Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
209/09.1TBPTL.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: AUTORIDADE DO CASO JULGADO
FRACCIONAMENTO DO PRÉDIO
PRÉDIO RÚSTICO
UNIDADE DE CULTURA
ANULAÇÃO
Data do Acordão: 06/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ORDENADA A BAIXA DOS AUTOS
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PROVAS - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE DE IMÓVEIS / FRACCIONAMENTO DE PRÉDIO RÚSTICOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, 343.º, N.º1, 1376.º, N.º1, 1377.º, AL. B), 1378.º, 1379.º.
LEI Nº 83/95, DE 31-8: - ARTIGO 20.º.
Sumário :
1. A invocação da figura da “autoridade de caso julgado” emergente de sentença proferida numa acção não é susceptível de ser invocada noutra acção em que são partes outros sujeitos, não sendo permitido que, com esse exclusivo motivo, se aditem os factos que naquela acção foram considerados provados.

2. O facto de numa acção de anulação da transferência de uma parcela de terreno rústico, nos termos do art. 1376º, nº 1, do CC, se pedir também a declaração de que o adquirente da parcela não era titular de outro prédio contíguo susceptível de legitimar a desanexação, ao abrigo do art. 1377º, al. b), do CC, não transforma tal acção numa acção de simples apreciação negativa.

3. Em tal acção recai sobre o autor o ónus da prova de que a parcela de terreno rústico doada tem área inferior à da unidade da cultura (facto constitutivo do direito de anulação) e sobre o adquirente da parcela o de provar, como facto impeditivo da anulação, que na data da doação já era titular de outro prédio contíguo, nos termos e para efeitos do disposto no do art. 1377º, al. b), do CC.

A.G.

Decisão Texto Integral: I - O Ministério Público

veio propor acção declarativa contra

AA, BB, CC e DD

e

EE

pedindo a declaração de nulidade da doação efectuada pela R. EE ao R. DD e de inexistência do prédio urbano levado a registo e descrito sob o art. …, ordenando-se o cancelamento da inscrição nº …, da freguesia da Gandra, e a inutilização da descrição, bem como a inscrição matricial que tenha sido efectuada com base na participação efectuada pelos RR.

Para tanto alegou o A. que a R. EE acordou com os demais RR. a cedência de uma parcela de um prédio rústico, violando as regras sobre a divisão de prédios rústicos integrados na Reserva Agrícola Nacional (RAN), já que a parcela cedida tem uma área inferior à unidade de cultura.

A 5ª R. contestou dizendo que o fraccionamento que foi efectuado não é proibido por lei.

Os demais RR. contestaram invocando a excepção do caso julgado decorrente da sentença proferida noutra acção em que se apurou que eram titulares de um prédio confinante com a parcela alienada, adquirido por usucapião, destinando-se a parcela adquirida a aumento do logradouro deste prédio.

Já depois de ter sido proferido o despacho saneador, FF requereu a sua intervenção principal (fls. 239), alegando ser dona de um prédio confinante com o prédio da 5ª R., sendo que a actuação dos RR. viola o PDM de Ponte de Lima e as normas de protecção do património classificado ou em vias de classificação.

O Ministério Público requereu entretanto a ampliação do pedido (fls. 270) de modo que o pedido primitivo abranja não só o art. … da Gandra, mas todas as descrições que se sucederam.

Foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu os RR. com fundamento em que não se apurou que o prédio dos 2º a 4º RR. não existia.

A interveniente FF interpôs recurso de apelação em que, mas a Relação, ainda que por fundamento diverso, manteve a sentença, depois de aditar à matéria de facto que a 1ª instância considerara provada factos relacionados com a existência do prédio contíguo na titularidade dos 1º a 4º RR. que haviam sido apurados numa outra acção que um desses RR. movera contra o Município de Ponte de Lima. Com fundamento em tais factos, concluiu que estava demonstrada titularidade dos donatários da parcela relativamente a um prédio confinante, com efeitos na validade do acto de transferência da parcela.

Confrontada com este acórdão, a interveniente principal interpôs recurso de revista no qual suscitou as seguintes questões essenciais:

a) Legitimidade do aditamento de factos que foram considerados provados numa acção que foi instaurada por um dos RR. contra o Município de Ponte de Lima e na qual a interveniente não teve qualquer intervenção, a pretexto de ser respeitada a “autoridade do caso julgado” formado pela sentença que em tal acção foi proferida

b) Omissão de pronúncia revelada pelo facto de a Relação não ter apreciado a questão da isenção de custas suscitada pela recorrente no recurso de apelação.

Para além dessas duas questões considera-se ainda pertinente a verificação da distribuição do ónus da prova relativamente à existência ou não de um prédio na esfera dos 1º a 4º RR. antes de ter sido outorgada a escritura de doação.

Já, por outro lado, se considera afastada a discussão da legitimidade da interveniente, uma vez que os elementos do processo não são conclusivos e não é oportuna nesta fase do processo a recolha de elementos relacionados com tal pressuposto.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – Quanto ao aditamento de factos fundado na figura da “autoridade de caso julgado”:

1. Os 1º a 4º RR. alegaram a existência de caso julgado formado pela sentença que foi proferida no proc. nº 1505/06.5TBPTL em que foi A. AA e R. o Município de Ponte de Lima e na qual foi reconhecida a existência do prédio urbano que o Ministério Público, primitivo A. desta acção, veio questionar.

No despacho saneador foi considerado que tal sentença não constituía caso julgado invocável nesta acção, atenta a diversidade de sujeitos processuais. Apesar disso, quer na fundamentação da decisão da matéria de facto, quer na sentença, aludiu-se à figura da “autoridade de caso julgado” para concluir, ainda que de modo complementar, pela existência na esfera jurídica dos 1º a 4º RR. de um prédio que confinava com a parcela que o 1º R. recebeu em doação da 5ª R.

Tal opção foi questionada pela interveniente no anterior recurso de apelação. Porém, o acórdão recorrido recorreu explicitamente à mesma figura para aditar factos que haviam sido considerados provados naqueloutra acção.

2. É por demais evidente o erro de direito em que incorreu a Relação ao invocar a figura de raiz doutrinária e jurisprudencial da “autoridade de caso julgado” para legitimar o aditamento de novos factos, com o único argumento de que tinham sido considerados provados na outra acção. Basta evidenciar que a sentença que foi invocada como base para legitimar o aditamento de novos factos foi proferida no âmbito de uma acção declarativa em que apenas um dos RR. interveio e que foi interposta contra uma entidade terceira – o Município de Ponte de Lima – sem qualquer intervenção activa ou passiva do Ministério Público ou da ora interveniente principal.

Para sustentar tal opção foram invocados alguns arestos. Porém, uma análise mais atenta dos mesmos revela-nos que incidiram sobre situações que não apresentam qualquer identidade com o caso sub judice.

Efectivamente, tanto o acórdão da Rel. de Guimarães, de 13-3-11, como o da Rel. do Porto, de 13-1-11, como ainda o da Rel. de Coimbra, de 15-5-07 (todos em www.dgsi.pt) trataram de situações em que existia identidade de sujeitos e em que, por isso, seria legítimo discutir os efeitos que uma sentença proferida num processo determinaria no outro processo que corria entre os mesmos sujeitos. As considerações que então foram feitas em torno da autoridade do caso julgado jamais podem justificar a eficácia externa de uma sentença (ou do segmento de factos que na sentença foram considerados apurados) perante um litígio que corre entre outros sujeitos processuais.

A mesma figura tem sido apreciada em numerosos arestos e designadamente foi analisada no Ac. deste STJ, de 11-10-12 (www.dgsi.pt), relatado pelo ora relator, onde então se concluiu (nos termos que ficaram sumariados) que:

“1. A autoridade de caso julgado inerente a uma decisão que reconheceu ao autor o direito de propriedade sobre uma parcela de terreno e condenou o réu na sua restituição e na demolição da construção que na mesma foi erigida impede que este, em nova acção, peça o reconhecimento do direito de propriedade sobre a mesma parcela, ainda que com fundamento na acessão industrial imobiliária.

2. Apesar de em tal situação não se verificar a excepção de caso julgado, atenta a diversidade da causa de pedir, a segurança e a certeza jurídica decorrentes do trânsito em julgado da decisão obstam a que em posterior acção se questione o direito de propriedade e as obrigações de restituição e de demolição reconhecidas na primeira acção com base numa realidade que naquela ocasião já se verificava e que aí poderia ter sido invocada quer para impedir a procedência da acção, quer para sustentar, em sede de reconvenção, o direito potestativo de acessão imobiliária”.

Ainda que muitos outros arestos pudessem ser invocados no mesmo sentido e sem necessidade de reproduzir os argumentos que foram arrolados para sustentar a solução que foi assumida, é importante que se afirme que a “autoridade do caso julgado” não pode servir para desvirtuar a figura do “caso julgado”. Ou seja, o objectivo de evitar toda e qualquer contradição lógica entre duas sentenças judiciais, ainda que proferidas em processos diferentes, não pode justificar que, contra as mais elementares regras processuais, se façam repercutir numa acção que corre entre determinados sujeitos os efeitos decorrentes de uma sentença proferida noutro processo que correu entre outros sujeitos.

3. Sem pretender esgotar os argumentos impeditivos de uma solução tão estranha como a acolhida no acórdão recorrido, basta anotar que, a ser aceite, tal representaria, além do mais, uma flagrante violação do princípio do contraditório que, tal como Castro Mendes ensinava em Direito Processual Civil, II vol., pág. 781, determina, além do mais, que “o caso julgado não pode prejudicar terceiros que não intervieram no processo”.

Numa tal regra pode encontrar-se espaço para algumas excepções. Porém, estas deverão ser sustentadas em regras de valor semelhante, como ocorre com os arts. 622º e 623º do NCPC sobre a eficácia externa do caso julgado em determinadas acções ou ainda com o art. 19º da Lei nº 83/95, de 31-8 (acção popular), segundo o qual as sentenças proferidas em acções cíveis, “salvo quando julgadas improcedentes por insuficiência de provas, ou quando o julgador decidir por forma diversa fundado em motivações próprias do caso concreto, têm eficácia geral, não abrangendo, contudo, os titulares de direitos ou interesses que tiverem exercido o direito de se auto-excluírem da representação”.

Estas e outras previsões legais excepcionais não encontram qualquer identidade com o caso sub judice.

A autoridade de caso julgado é um conceito que tem sido usado para extrair efeitos de uma sentença em determinadas situações em que não se verifica a conjugação dos três elementos de identidade: sujeitos, pedido e causa de pedir.

Ainda assim, Manuel de Andrade excluía da eficácia externa do caso julgado os terceiros interessados, isto é os terceiros relativamente aos quais a sentença determina um “prejuízo jurídico, invalidando a própria existência ou reduzindo o conteúdo do seu direito”, exclusão ainda mais absoluta tratando-se de “terceiros que são sujeitos de uma relação ou posição jurídica independente e incompatível” (Noções Elementares de Processo Civil, págs. 311 e 312).

Noutros casos a afirmação da “autoridade de caso julgado” é usada para atribuir relevo não apenas ao segmento decisório mas também aos fundamentos da decisão ou aos pressupostos de que o Tribunal necessariamente partiu para a afirmação do resultado declarado.

Tal pode ocorrer, segundo Teixeira de Sousa, quando os “fundamentos de facto, considerados em si mesmos (e, portanto desligados da respectiva decisão), adquirem valor de caso julgado”, o que sucede quando “haja que respeitar e observar certas conexões entre o objecto decidido e outro objecto”, mencionando uma diversidade de arestos que têm relevado para o efeito as questões que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva da sentença. Ainda assim, acrescenta o mesmo autor, “a extensão de caso julgado a relações de prejudicialidade ou sinalagmáticas apenas se pode verificar quando no processo em que a decisão foi proferida forem concedidas, pelo menos, as mesmas garantias às partes que lhe são concedidas no processo em que é invocado o valor vinculativo daqueles fundamentos” (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., págs. 580 e 581). Acresce que todos os exemplos apresentados acerca dos efeitos da sentença relativamente a terceiros (efeitos directos ou efeitos reflexos) não encontram qualquer paralelo com a concreta situação dos autos.

O cuidado com que é tratada a eficácia externa do caso julgado também é bem visível em Antunes Varela que, depois de abordar a problemática dos efeitos da sentença relativamente a terceiros juridicamente indiferentes, acrescentou, relativamente aos terceiros titulares de uma relação jurídica incompatível com a litigada, que “nenhuma razão há, de acordo com o espírito da norma que prescreve a eficácia relativa do caso julgado, para impor a sentença ao terceiro, titular da posição incompatível com a declarada na sentença transitada” (Manual de Processo Civil, 2ª ed. pág. 727). Nas demais situações cobertas pelas regras gerais, a invocação da “autoridade de caso julgado” formado num processo não pode conduzir a que se produzam na esfera de terceiros efeitos com que este não poderia contar, pelo facto de emergirem de um processo em que não teve qualquer intervenção.

4. No caso concreto, não se observa qualquer motivo ou fundamento para estender a esta acção efeitos projectados a partir da sentença proferida noutra acção interposta por um dos RR. - AA - contra uma entidade terceira, já que a interveniente principal (que passou a ocupar a posição de co-autora, ao lado do Ministério Público, numa acção em que se discute a existência de um determinado prédio urbano na esfera dos 1º a 4º RR. e o cancelamento da inscrição da aquisição de uma parcela desintegrada de outro prédio) não teve qualquer intervenção em tal acção.

Ainda que na sentença que em tal processo foi proferida se tenha reconhecido a existência de um prédio urbano na esfera jurídica de uma das RR., não há qualquer motivo para considerar que os factos em que a mesma se fundou vinculam os sujeitos processuais desta acção.

Como já se anunciou, tal redundaria na violação de um dos mais elementares princípios do processo civil - o princípio do contraditório - que assim seria duplamente afastado:

a) Em primeiro lugar, porque a interveniente não foi parte no processo em que a sentença foi proferida e em que foi produzida a prova com base na qual foram considerados provados os factos;

b) Em segundo lugar porque, de modo absolutamente surpreendente, a Relação procedeu à transposição de novos factos para o acórdão recorrido sem sequer ter ouvido as partes a tal respeito, nos termos do art. 3º, nº 3, do anterior CPC.

Não se compreende, aliás, a relutância que continua a manifestar-se em algumas decisões judiciais a respeito do princípio do contraditório, cujo cumprimento potencia o fortalecimento da decisão, permitindo a ponderação dos argumentos favoráveis ou desfavoráveis aduzidos por cada uma das partes e evitando ou prevenindo a prolação de decisões que, como ocorreu no caso sub judice, surgem à revelia do que a evolução do processo projectaria.

Não se questionando, em abstracto, o poder da Relação no que concerne ao aditamento de factos cuja prova plena resulte dos autos, designadamente quando emergem de confissão ou acordo das partes ou de documento com força probatória suficiente, o certo é que não se encontravam reunidos os pressupostos para que uma tal opção fosse tomada, uma vez que nem a sentença proferida no outro processo, nem os factos que aí foram considerados provados podem exercer qualquer efeito nos presentes autos.

5. Por conseguinte, procede a revista na parte em que a recorrente impugna a transposição de factos transpostos a partir da sentença que foi proferida no proc. nº 1505/06, os quais, por isso, se terão por excluídos.

Restam os factos que a seguir se descrevem.

III – Factos provados:

1. No dia 28-5-93, no 3º Cart. Not. do Porto, a 5ª R., adquiriu, por compra, o prédio rústico denominado “Q…”, sito no Lugar de …, S. Martinho da Gandra, Ponte de Lima, descrito na CRP de Ponte de Lima sob o nº …. e inscrito na respectiva matriz sob o art. … (doc. fls. 16 a 25 de onde consta a área de 39.600,00 m2) – A);

2. O prédio mencionado em 1. tinha e tem a localização, configurações e confrontações constantes de fls. 4 – 1º;

3. Na Rep. de Finanças de Ponte de Lima foi declarada, como pertencente à herança de GG, a inscrição na matriz predial urbana do prédio urbano sito na freguesia de Gandra, …, com 1 piso, 3 divisões e 213 m2 de área bruta de construção – B);

4. No dia 19-10-04 a 1ª R. requereu na CRP de Ponte de Lima o registo de aquisição deste prédio que tinha declarado na Rep. de Finanças, em comum e sem determinação de parte ou de direito, a seu favor e dos 2º, 3º e 4º RR. – 4º;

5. Tal prédio urbano não foi avaliado pela Rep. de Finanças competente, pois “o mesmo não foi possível localizar”, conf. docs. juntos a fls. 34 a 36 – C);

6. No dia 14-12-04, no 1º Cart.o Not. de Barcelos, os 1º a 4º RR. procederam à partilha dos bens da herança, na qual adjudicaram ao 4º R. … o prédio mencionado em 3., conf. certidão de fls. 26 a 31 – D);

7. Os prédios referidos em 1. e 6. integram a RAN, facto que era do conhecimento dos 1º, 2º, 3º e 4º RR. – 13º e 14º.

8. No dia 14-12-04 e no mesmo 1º Cart. Not. de Barcelos, a 1ª R. outorgou uma escritura pública na qual declarou doar ao 4º R., que declarou aceitar, uma parcela de terreno com a área de 3.600,00 m2, a desanexar do prédio rústico identificado em 1. destinada ao aumento de logradouro do prédio identificado em 3. (conf. certidão de fls. 51 a 55) – E);

9. A 5ª R. acordou com os 1º a 4º RR. a cedência de parte do terreno mencionado em 1., a qual se destinou a aumento do logradouro do prédio urbano dos donatários – 2º;

10. No dia 30-3-05 os 1º a 4º RR. requereram à C. M. de Ponte de Lima a aprovação de um projecto de construção de habitação no prédio referido em 3. – 8º e 12º.

IV - Decidindo:

1. A recorrente pretende que seja declarada a nulidade da doação de uma parcela de terreno rústico e que se reconheça a inexistência do prédio urbano na titularidade dos 1º a 4º RR. que foi objecto de inscrição matricial e de descrição no registo predial.

No acórdão recorrido considerou-se que ao pedido de declaração de inexistência do prédio urbano correspondia uma acção de simples apreciação negativa, concluindo que pertencia aos RR. o ónus da prova da pré-existência de um prédio na sua esfera jurídica na ocasião em que foi outorgada a doação da parcela (fls. 598).

Embora os 1º a 4º RR. tenham alegado que haviam adquirido tal prédio por usucapião, essa matéria não foi inserida na base instrutória, opção que foi dispensada pela Relação com a já referida ampliação da matéria de facto em resultado da transposição dos factos apurados noutra acção que correu entre outros sujeitos.

Já anteriormente se afirmou o erro manifesto em que se traduziu esta última opção da Relação, tomada sem contraditório e fora dos quadros da figura do caso julgado ou da autoridade do caso julgado.

Mas não se fica por aqui a errada aplicação do direito adjectivo.

O confronto com a pretensão que materialmente foi formulada obriga-nos a reflectir sobre a qualificação jurídica da acção e definir se estamos verdadeiramente perante uma acção de simples apreciação negativa que visa a declaração de inexistência de um prédio na esfera jurídica dos donatários, ao qual foi acoplada a parcela doada, ou se a alegação por parre dos RR. da existência desse prédio é de qualificar como facto impeditivo do direito invocado pelo A., obstando à declaração de anulação da doação.

2. Na petição foram inseridos formalmente três pedidos:

a) Um de declaração de nulidade da doação efectuada pela 5ª R. EE ao R. DD;

b) Outro de declaração de inexistência do prédio urbano levado a registo e descrito sob o art. …;

c) E outro ainda de cancelamento da inscrição nº … (e, depois da anexação ao prédio nº 909, cancelamento do prédio daí resultante com o nº 910) e inutilização da descrição e da inscrição matricial que tenha sido efectuada pelo serviço de Finanças com base na participação efectuada pelos RR.

Mais do que atender ao que formalmente foi enunciado na petição, interessa percepcionar aquilo que materialmente está em causa e que no essencial se traduz na declaração de invalidade (nulidade, nos termos invocados pelo A.) de um contrato de doação, por violação do art. 1376º, nº 1, do CC.

Sem extrair por agora qualquer efeito quanto ao mérito da acção, é manifesto que o Ministério Público, primitivo autor, incorreu em manifesto erro de qualificação jurídica do vício, já que, em lugar da nulidade da doação da parcela, o efeito projectado pelo art. 1378º do CC é o de anulabilidade sustentada no facto de a área da parcela alienada ser inferior à da unidade de cultura.

A esta pretensão anulatória, isoladamente considerada, corresponde a uma acção constitutiva, sendo, aliás, a única com verdadeira autonomia, já que os demais segmentos apresentam natureza acessória.

Com efeito, o pedido da al. b) (“declarar que um determinado prédio não existe na esfera dos RR.”) não passa de uma defesa antecipada relativamente à eventual alegação por parte dos RR. de um facto impeditivo da declaração da invalidade (existência de um prédio autónomo na esfera dos 1º a 4º RR., nos termos e para efeitos do art. 1377º, al. b), do CC). Por seu lado, o pedido da al. c) (“cancelamento da inscrição predial e da inscrição matricial”) constitui simplesmente um pedido acessório ou complementar do pedido principal.

É pela substância da pretensão e não pela forma como a mesma se apresenta que deve aferir-se a natureza jurídica da acção. Por isso, o facto de formalmente nos surgir na petição inicial um pedido de “declaração de inexistência” dum direito ou dum facto não transforma automaticamente a acção numa acção de simples apreciação negativa.

O quotidiano judiciário confronta-nos, aliás, com outras acções, como a de reivindicação, em que o pedido de reconhecimento do direito de propriedade de um prédio e o de condenação do réu na desocupação surgem frequentemente acompanhados do pedido de “declaração de inexistência de um título legítimo de ocupação”, sem que, apesar disso, a acção se transforma numa acção de simples apreciação negativa.

No caso concreto, em lugar de uma acção de simples apreciação negativa, como a qualificaram as instâncias, depara-se-nos uma acção que, no essencial, é de natureza constitutiva, na medida em que, através da declaração de anulação da doação, se pretende obter uma modificação da ordem jurídica.

Por conseguinte, em lugar da aplicação do disposto no art. 343º, nº 1, do CC, sobre a distribuição do ónus da prova nas acções de simples apreciação negativa, aplicam-se as regras gerais previstas no art. 342º, segundo o qual cabe ao autor a prova dos factos constitutivos do seu direito e ao réu a prova dos respectivos factos modificativos, impeditivos ou extintivos desse mesmo direito.

3. O art. 1379º, nº 1, do CC, prescreve a anulação do contrato de alienação que incida sobre parcela de terreno com área inferior à unidade mínima de cultura na RAN, nos termos do art. 1376º, nº 1, do CC, pressuposto que resulta da matéria de facto provada.

Mas, atento o disposto no art. 1377º, al. b), do CC, tal efeito deixa de ser reconhecido (como facto impeditivo) nos casos em que a parcela seja alienada a um proprietário de terreno contíguo, desde que o prédio-mãe mantenha uma área superior à unidade de cultura.

Foi em redor da pré-existência deste prédio confinante com a parcela que se manifestou a maior divergência entre as partes.

Todavia, em vez de ter sido levado à base instrutória, como facto impeditivo do direito de anulação, a “existência” do prédio confinante na esfera dos RR., foi seleccionada a versão alegada pelo autor na petição inicial centrada na não existência do prédio que serviu de pretexto para a desanexação da parcela de terreno rústico.

Esta versão em torno da “não existência do prédio contíguo na esfera dos 1º a 4º RR.” foi considerada “não provada”, em resultado das respostas negativas aos pontos 5º, 6º, 7º, 9º, 10 e 11º da base instrutória.

Um a resposta negativa relativamente a determinados factos não representa a prova do contrário, a qual deveria resultar antes da selecção dos pertinentes factos que foram alegados pelos 1º a 4º RR. para contrariarem a pretensão anulatória do Ministério Público.

Com efeito, tais RR. alegaram (fls. 106) que eram titulares de um prédio urbano contíguo à parcela adquirida, o qual, apesar de estar omisso na matriz predial e no registo predial até Outubro de 2004, constituiu, por vários anos, a casa de morada de família do falecido GG e mulher, por ter sido adquirido por compra verbal ao anterior proprietário da Q… (arts. 24º e 25º). Alegaram ainda que há mais de 30 anos, considerando a data de Outubro de 2004, eles e os referidos antecessores, de forma pública e continuada e sem oposição de ninguém, se assumiam como donos desse prédio, agindo na convicção de que o eram e sendo como tal considerados pelas pessoas do lugar onde o mesmo se situa.

A demonstração de tais factos é susceptível de sustentar a conclusão de que, na data em que a doação foi outorgada, já existia na esfera jurídica dos 1º a 4º RR. um prédio urbano confinante com a parcela doada, por via da usucapião resultante da posse exercida pelos seus antecessores, com efeitos na afirmação da validade da desanexação de uma parcela de terreno com área inferior à unidade de cultura.

Porém, como se disse, esta versão que importava à defesa dos RR., como facto impeditivo da anulação, não foi integrada na base instrutória, revelando-se necessária a ampliação da decisão da matéria de facto, antes de se proceder á integração jurídica nos termos que anteriormente ficaram descritos.

4. É verdade que da matéria de facto já revela que a doação da parcela “se destinou ao aumento do logradouro do prédio urbano dos donatários”, prédio este que na mesma ocasião fora objecto de descrição do prédio na CRP em nome dos donatários.

Perguntando-se no ponto 2º se “a R. EE acordou com os restantes RR. a cedência de parte do terreno mencionado em A), com vista à construção de uma casa de residência”, a resposta que foi dada pelo Tribunal de 1ª instância foi a de considerar provada essa matéria “com o esclarecimento de que se destinou a aumento do logradouro do prédio urbano do donatário”, ficando, assim, explícito que “a R. EE acordou com os restantes RR. a cedência de parte do terreno mencionado em A), a qual se destinou a aumento do prédio urbano do donatário”.

Todavia, para efeitos de imediata apreciação do mérito da pretensão, não pode afirmar-se, a partir deste simples elemento conjuntural, que aquele prédio já existia na esfera jurídica dos 1º a 4º RR, revelando-se mais adequado considerar que está em conexão com o facto de na mesma altura em que foi outorgada a escritura de doação ter sido exarada a escritura de justificação notarial que permitiu aos 1º a 4º RR. inscrever em seu nome o prédio cuja existência real nesta acção se discute.

5. A recorrente invocou ainda omissão de pronúncia quanto à matéria de custas, entendendo que beneficia de isenção, uma vez que estamos em face de uma acção popular.

No recurso de apelação, a recorrente não invocou qualquer omissão de pronúncia, limitando-se a concluir que foi violado o art. 20º da Lei nº 83/95, de 31-8. Nessa medida, não se pode falar numa verdadeira omissão de pronúncia, antes na eventual violação de norma que impunha isenção de custas.

Violação essa que obviamente não existiu, uma vez que estamos perante uma acção declarativa com processo comum e não em face de uma acção popular cuja tramitação não encontra qualquer paralelo com a que foi seguida no caso concreto.

V – Face ao exposto, ao abrigo dos arts. 682º, nº 3, e 683º, nº 1, do NCPC, determina-se a remessa dos autos à Relação para que nesta ou, se necessário, na 1ª instância, seja ampliada a matéria de facto alegada pelos 1º a 4º RR. na sua contestação a respeito da titularidade do prédio confinante com a parcela na ocasião em que foi outorgada a escritura de doação cuja anulação se pretende.

Custas da revista e da apelação a cargo da parte vencida a final.

Notifique.

Lisboa, 18-6-14

Abrantes Geraldes (Relator)

Bettencourt de Faria

Pereira da Silva