Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07S4387
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA GRANDÃO
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
ÓNUS DA PROVA
CÔNJUGE
Nº do Documento: SJ20080409043874
Data do Acordão: 04/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I - O nosso ordenamento jurídico laboral contém princípios que consagram uma concepção de retribuição primacialmente destinada à satisfação das necessidades pessoais e familiares do trabalhador (v.g. art.s 59.º, n.º 2, da CRP, 266.º, 270.º, 377.º, 380.º, 364.º e 441.º do Código do Trabalho), evidenciando também a preocupação do pagamento pontual do salário ao trabalhador, como facto essencial ao equilíbrio vinculístico.
II - Não se compagina com a existência de um contrato de trabalho, mas antes com o dever de assistência entre os cônjuges (autora e réu), a circunstância de, não obstante entre eles ter sido acordado o pagamento, por este àquela, de uma importância pelo trabalho por ela prestado, durante cerca de 20 anos (tantos quantos durou o alegado contrato de trabalho), o réu não ter pago à autora a referida importância, com a passividade desta perante tal omissão, limitando-se o réu a providenciar à autora o dinheiro necessário à manutenção do lar de ambos.
III - Atendendo a que a autora e o réu são casados um com o outro, o facto de a autora se deslocar diariamente às instalações onde o réu/marido exerce a actividade lucrativa de transformação de ferro e aço e fabrico de ferramentas, e nelas permanecer durante grande parte do dia, cumprindo um horário de trabalho das 10h às 12h e das 13h às 19 horas (embora se pudesse ausentar, com consentimento do réu/marido, para tratar de assuntos relacionados com a vida do casal), executando todo o tipo de trabalho de conferente e ainda o trabalho de escritório, tanto pode configurar um efectivo vínculo laboral, como se pode inscrever no âmbito do mero dever de cooperação, a que os cônjuges se acham reciprocamente vinculados.
IV - Por isso, apesar de se encontrar provado que a autora se encontrava inscrita na Segurança Social como trabalhadora por conta de outrem e possuía seguro de acidentes de trabalho, onde figurava com a categoria profissional de conferente de 2.ª, atento o referido em II e III, havendo, no mínimo, dúvidas sobre se a actividade desenvolvida pela autora se inseria, como ela reclama, num contrato de trabalho, ou se, ao invés, apenas decorre da estrutura familiar que liga as duas partes, mormente do dever de cooperação, deve a referida dúvida reverter em desfavor da autora, onerada que estava com a prova – não obtida – do dito contrato (art. 342.º, n.º 1, do CC e art. 516.º, do CPC).
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Supremo Judicial de Justiça

1 – RELATORIO

1-1
AA intentou, no Tribunal do Trabalho de Braga, acção declarativa de condenação, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra BB, de quem reclama – com fundamento na celebração, entre as partes, de uma relação jurídica de natureza laboral e na sua ulterior resolução, operada pela Autora com justa causa – o pagamento dos componentes retributivos e indemnizatórios discriminados na P.I..
O Réu impugna a celebração do invocado vínculo laboral e, porque entende nada dever à Autora, conclui pela necessária improcedência da acção, do mesmo passo que peticiona a condenação da demandante como litigante de má fé.
1-2
Corroborando a versão da Autora, no que concerne à celebração do aduzido vínculo laboral e à sua resolução com justa causa, veio a 1ª instância a concluir pela procedência parcial da acção, por virtude do que condenou o Réu a pagar à Autora:
- a quantia de € 6.641,65, a título de indemnização por danos patrimoniais a que alude o art. 443º do Código de Trabalho;
- a quantia de € 60.140,44, atinente a créditos laborais vencidos e não pagos ao longo da vigência do contrato de trabalho;
- os respectivos juros moratórios, a incidir sobre aqueles dois referenciados montantes, à taxa de 4%, desde a data do seu vencimento até efectivo e integral pagamento.
Debalde apelou o Réu, porquanto o Tribunal da Relação do Porto confirmou por inteiro a sentença apelada.
1-3
Continuando irresignado, o Réu pede a presente revista, em cujas alegações convoca o seguinte núcleo conclusivo:
1 – atenta a relação conjugal existente entre A. e R., os factos provados nos autos não permitem concluir pela existência de uma relação laboral;
2 – a A., enquanto cônjuge do R., tinha interesse nos proventos e lucros da actividade do marido, não sendo alheia, por isso, à propriedade dos meios de produção;
3 – o facto de a A. estar inscrita na Segurança Social, como empregada do R., não pode levar à consideração da relação como laboral, face à própria alegação da Autora de não ter recebido qualquer salário durante tantos anos;
4 - ao considerar a relação que existiu entre A. e R. como laboral, as instância fizeram errada interpretação do art. 1º da anterior L.C.T. e do art. 10º do actual C.T.;
5 – face à relação conjugal existente entre A. e R., e à falta de reclamação de salários pela A. ao longo de cerca de 20 anos, deve considerar-se abusivo, por ofensa do disposto no art. 334º do C.C., o exercício de direito que a A. pretende fazer valer nesta acção.
1-4
A Autora contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso .
1-5
No mesmo sentido se pronunciou, sem reacção das partes, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta.
1-6
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2 – FACTOS

2-1
A 1ª instância fixou a seguinte factualidade:
1 – o Réu dedica-se de forma habitual e intuito lucrativo, à transformação de ferro e aço e fabrico de ferramentas de corte;
2 – a Autora, casada com o Réu, desde há cerca de 20 anos e até inícios de Junho de 2006, trabalhou sob as ordens, direcção e fiscalização deste;
3 – no exercício dessa actividade, a Autora deslocava-se diariamente às instalações onde o marido exerce a sua actividade e nelas permanecia durante grande parte do dia, executando todo o tipo de trabalho de conferente e ainda o trabalho de escritório, designadamente recebendo encomendas, elaborando facturas e efectuando cobranças;
4 – a Autora cumpria um horário de trabalho das 10 h às 12h e das 13h às 19h, embora se pudesse ausentar, com consentimento do marido, para tratar de assuntos relacionados com a vida do casal;
5 – a Autora trabalhou sempre sob as ordens, direcção e fiscalização do seu marido, ora Réu;
6 – em diversas ocasiões, não inferiores a três, no local onde ambos trabalhavam, o Réu dirigia-se à Autora, dizendo “és uma puta”, “uma vaca”, “uma badalhoca”, fazendo-o na presença de terceiros;
7 – em 7/6/2006, a Autora enviou ao Réu uma carta registada com A/R, onde comunica ao Réu a resolução do contrato de trabalho que alega manter com este, invocando seis anos e seis meses de salários em atraso e as agressões verbais referidas em 6;
8 – a Autora foi admitida com o salário mensal de 61.300$00, auferindo desde Janeiro de 2000, a remuneração de € 650 mensais, estando inscrita na Segurança Social como trabalhadora por conta de outrem, possuindo seguro de trabalho, onde figurava com a categoria profissional de conferente de 2ª;
9 – a Autora nunca recebeu qualquer salário ou remuneração desde 1986 até Junho de 2006, limitando-se o Réu a providenciar à Autora o dinheiro necessário à manutenção do lar de ambos;
10 – Actualmente, Autora e Réu mantêm pendente um processo de divórcio litigioso, sendo que a Autora vem sendo acometida, por força deste rompimento conjugal, de crises de ansiedade e depressão.
2-2
Por considerar que a respectiva matéria expressava uma conclusão ou um conceito de direito, a Relação eliminou o ponto nº 5 supra referido e reformulou, fundindo-os, os pontos nº 2 e 3, a que conferiu a seguinte redacção:
“ A Autora, casada com o Réu, desde há cerca de 20 anos e até inícios de Junho de 2006, deslocava-se diariamente às instalações onde o marido exerce a sua actividade e nelas permanecia durante grande parte do dia, executando todo o tipo de trabalho de conferente e ainda o trabalho de escritório, designadamente recebendo encomendas, elaborando facturas e efectuando cobranças”.
São estes os factos.

3 – DIREITO
3 – 1
Perante o núcleo conclusivo recursório, verifica-se que o objecto da presente revista se reconduz à análise de duas questões;
1ª- a de saber se entre as partes vigorou, ou não, um contrato de trabalho;
2ª- a de saber se a Autora, ao accionar a pretensão deduzida nos autos, agiu, ou não, com abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”.
Trata-se de duas das questões que o Réu, enquanto apelante, também já suscitara junto do Tribunal da Relação.
Relativamente a esse recurso, é de referir que o Réu descartou, desta feita, a questão, que ali igualmente aduzira, dos montantes retributivos e indemnizatórios fixados pelas instâncias.
É dizer que, a ser confirmado o Acórdão em crise, quedam insindicáveis as consequências já extraídas pelas mesmas instâncias sobre a resolução contratual operada pela Autora.
De resto, como toda a defesa do Réu se situa a montante dessa resolução, bem se compreende que o desfecho da demanda se reconduza à pronúncia que vier a recair sobre as questões nucleares supra referidas.
3-2-1
Estabelece o art. 8º nº 1 da Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto – diploma aprovador do Código de Trabalho – que os contratos laborais celebrados antes da sua entrada em vigor (1 de Dezembro de 2003) ficam sujeitos ao novo regime, “...salvo quanto às condições de validade e aos efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento”.
Deste modo, e tendo em conta a alegação produzida pela Autora no que a tal respeita, afigura-se-nos que a pretendida qualificação do vinculo, pretensamente aprazado entre as partes, terá de ser feita à luz do direito anterior – Regime do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo D.L. nº 49.408, de 24 de Novembro de 1969 (L.C.T).
Em contrapartida, já o seu aduzido incumprimento por banda do Réu, porque ocorrido na vigência da nova lei, deve ser apreciado de acordo com o respectivo regime.
Porém, em sede de qualificação jurídica, a aplicação de um ou de outro regime não assume qualquer relevância prática, tanto quanto é certo que a definição introduzida pelo art. 10º do Código de Trabalho corresponde, na sua essência, à que já constava do art. 1º da L.C.T. e do art. 1152º do Código Civil.
Na definição legal, contrato de trabalho é aquele mediante o qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta (arts. 1º da L.C.T. e 1152º do C.C.)
Decorre desta definição que a “subordinação jurídica” do trabalhador à sua entidade patronal constitui o elemento essencialmente caracterizador do contrato de trabalho, que o permite diferenciar de outros vínculos afins.
Conforme refere Galvão Telles, a referida subordinação reconduz-se ao poder do empregador de orientar, de algum modo e em si mesma, a actividade exercida, quanto mais não seja no tocante ao lugar e ao modo da sua prestação (cfr. “Contratos Civis”, pags. 62 e 63).
No mesmo sentido se orienta Monteiro Fernandes: “Para que se reconheça a existência de um contrato de trabalho, é fundamental que, na situação concreta, ocorreram as características da subordinação jurídica por parte do trabalhador (...). A subordinação jurídica consiste numa relação de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato face às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do mesmo contrato e das normas que o regem” (in “Direito do Trabalho”, 11ª ed. pág. 131).
Apesar desta convergente orientação, nem sempre é fácil identificar, no plano concreto, os elementos diferenciadores dos diversos contratos afins.
Por isso, a doutrina e a jurisprudência têm-se socorrido, nessa tarefa distintiva, da verificação, ou não, de determinados índices, a apreciar casuisticamente e interdependentes entre si.
Ainda segundo Monteiro Fernandes, constituem índices de subordinação “ .... a vinculação a horário de trabalho, a execução da prestação em local definido pelo empregador, a existência de controlo externo do modo de prestação, a obediência a ordens, a sujeição à disciplina da empresa – tudo elementos retirados da situação típica de integração numa organização técnico-laboral, predisposta e gerida por outrem. Acrescem elementos relativos à modalidade de retribuição (em função do tempo por regra), à propriedade dos instrumentos de trabalho e, em geral, à disponibilidade dos meios complementares da prestação. São ainda referidos indícios de carácter formal e externo, como a observância dos regimes fiscal e de segurança social próprios do trabalho por conta de outrem (in “ob. cit., pág. 143).
Também Pedro Ramalho Martinez, referindo que o critério-base para a qualificação do contrato de trabalho será sempre o da subordinação jurídica, pondera a necessidade de recorrer a métodos indiciários negociais internos e externos (in “Manual do Direito de Trabalho”, pags. 306 a 311).
No âmbito dos índices internos, alude àqueles que já acima se mostram descritos e, quanto aos externos, particulariza os seguintes: o facto de o prestador desenvolver a sua actividade ou actividade idêntica para diversos beneficiários – o que indicia uma independência não enquadrável na subordinação da Relação laboral – a inscrição, na Repartição de Finanças, como trabalhador dependente ou independente e a declaração de rendimentos, a inscrição do prestador na Segurança Social e ainda o facto de ele se encontrar sindicalizado – situação indiciadora de que o contrato é laboral.
Em suma – e conforme conclui Fernando Ribeiro Lopes (Parecer publicado na R.D.E.S. – Ano XXIX, nº 1 – Jan.- Mar. de 1987, págs. 57 a 80) – a “Subordinação jurídica”, concretiza-se na dependência do trabalhador perante vários direitos ou poderes da entidade patronal, entre os quais avultam:
1 – o poder determinativo da função, corporizado na faculdade, atribuída ao empregador, de escolher, dentro do género de trabalho em que se integra a categoria do trabalhador, a actividade de que ele carece. A tal direito corresponde, na esfera do trabalhador, um dever de conduta direccionado para a realização da função efectivamente escolhida pela entidade patronal;
2 – o poder conformativo da prestação , consistente na faculdade, que a entidade patronal tem, de especificar os termos em que deve ser prestado o trabalho, o que se projecta num dever de obediência por banda do trabalhador.
3 – o poder dever de elaborar um horário de trabalho, a que corresponde o dever de assiduidade e pontualidade por parte do trabalhador.
Acrescenta o mesmo Autor que o modelo actual da relação de trabalho ainda contém, por via da regra, algumas especificidades, cujo fundamento já não radica na “subordinação jurídica” do trabalhador: a propriedade dos meios de trabalho, a pertença do local de trabalho e a modalidade de retribuição.
Cabe ainda referir que cada um dos apontados indícios, tomados de per si, assumem natural relatividade, o que implica a necessidade da formulação de um juízo global, face à relação jurídica concreta.
É dizer que a pretendida qualificação do contrato deve ser feita caso a caso, comportando necessariamente alguma margem da indeterminação, e até de subjectividade, na valoração dos indícios disponíveis.
Nessa tarefa qualificativa, não poderá deixar de relevar, quiçá decisivamente, o comportamento posterior dos contratantes, em ordem a saber que tipo contratual – ou se, inclusivamente, algum tipo contratual – veio a ser por eles decerto implementado.
Esta indagação é importante, quando não mesmo decisiva, em todos os contratos de execução continuada.
A este respeito, escreve Albino Mendes Baptista (in “Jurisprudência do Trabalho Anotada”, 3ª ed, pág. 56, nota 7):
“Tendo em conta a frequência com que, nas relações de trabalho, o acordado e o realmente executado entram em contradição, só pela execução efectiva é possível determinar, com alguma frequência, a vontade das partes, tanto mais que a relação emergente do contrato pode sofrer uma crise de identidade relativamente ao momento inicial da celebração”.
E, neste contexto, cita Heinrich E. Horster:
“Para a qualificação jurídica de um negócio é decisiva, não a designação acolhida pelas partes ou o efeito jurídico desejado por elas, mas sim o conteúdo do negócio. Em caso de contradição entre o acordado e o realmente executado, prevalece a execução efectiva”.
Este entendimento não poderá deixar de ser inteiramente acolhido nos negócios consensuais – como é o caso - em que releva sobremaneira o conteúdo real, decorrente da pratica das partes, reservando-se ao documento respectivo – e quando o houver – uma função subsidiariamente interpretativa.
Importa anotar, por fim, que cabe ao demandante, como facto constitutivo do seu arrogado direito, provar a celebração do vínculo invocado – art. 342º nº 1 do Cód. Civil.
Na verdade, é ao trabalhador que cumpre fazer a prova de que exerce – ou exerceu – a sua actividade a favor de outra pessoa, sob a sua autoridade e direcção, para assim demonstrar que se encontra – ou esteve – vinculado a ela por um contrato de trabalho subordinado.
3-2-2
É altura de reverter ao concreto dos autos.
Cabe recordar, antes de mais, que o invocado contrato de trabalho, a ter sido efectivamente convencionado, revestiu a forma verbal: por isso, e à míngua de um documento escrito que pudesse ser subsidiariamente interpretativo, releva sobretudo, o modo como ele terá sido implementado na prática.
No circunstancialismo dos autos – a Autora e o Réu são casados um com o outro – não releva particularmente que a actividade desenvolvida pela demandante se processasse nas instalações onde o marido exerce a sua actividade profissional.
Só por si, essa circunstância tanto pode indiciar um efectivo vínculo laboral, como se pode inscrever no âmbito do mero dever de cooperação, a que os cônjuges se acham reciprocamente vinculados - arts. 1672º e 1674º do Código Civil.
É que o dever de cooperação, na vertente do “socorro e auxílio mútuos”, estabelece uma obrigação que não se esgota na resolução comum dos problemas quotidianos da sociedade familiar, mormente nos cuidados exigidos pela vida e saúde de um dos cônjuges, antes abarca também a colaboração necessária ao exercício das respectivas profissões (cfr. Antunes Varela in “Direito de Familia”, 2ª ed. pág. 336).
Em contrapartida, a existência de um “horário de trabalho”, em cujo decurso as eventuais ausências da Autora estavam subordinadas à autorização do Réu, não deixa de consubstanciar um índice relevante de subordinação jurídica.
No mesmo sentido apontam o sistema previdencial e a existência de seguro laboral.
Mas, em contraponto disso, recordemos que “A Autora nunca recebeu qualquer salário desde 1986 até Junho de 2006, limitando-se o Réu a providenciar à Autora o dinheiro necessário à manutenção do lar de ambos” – ponto nº 9 da matéria de facto.
Este modo de contribuição pecuniária aproxima-se claramente do dever de assistência – art. 1675º nº 1 do Código Civil – e encaixa como uma luva na eventual cooperação que a Autora prestaria ao Réu na sua actividade profissional.
Como quer que seja, uma coisa é certa: o Réu nunca pagou à Autora a retribuição pretensamente acordada.
Esta omissão, pela sua relevância, exige uma ponderação acrescida.
3-2-3
Se o contrato de trabalho é necessariamente oneroso, logo se alcança que a retribuição deve constituir um dos seus elementos essenciais.
Com efeito, a retribuição representa o correspectivo da prestação, realizada pelo trabalhador, assumindo-se o seu pagamento como a principal obrigação da entidade patronal.
Por outro lado, a “Regularidade” e a “periodicidade” desse pagamento são tão relevantes que a própria lei manda atender a essas características para integrar no conceito de retribuição algumas prestações, de duvidosa qualificação, realizadas pelo empregador – art. 249º do Código de Trabalho (a cujo diploma pertencem os demais preceitos a citar sem menção de origem).
De resto, e conforme estatui o art. 265º nº 1, “a obrigação de satisfazer a retribuição vence-se por períodos certos e iguais que, salvo estipulação ou usos diversos, são a semana, a quinzena ou o mês do calendário”.
O nosso ordenamento jurídico laboral contém abundantes princípios, todos eles tributários de uma concepção de retribuição primacialmente destinada à satisfação das necessidades pessoais e familiares do trabalhador.
Assim se entende o regime da remuneração mínima garantida (aliás, de raiz constitucional – art. 59º nº 2 da C.R.P.) – inicialmente vertido no D.L. nº 217/74, de 27 de Maio e, actualmente, enunciado no art. 266º –, a regra da inadmissibilidade da compensação integral da retribuição em dívida com créditos da entidade patronal sobre o trabalhador – art. 270º – o beneficio de privilégio creditório conferido à retribuição – art. 377º – a existência de um Fundo de Garantia Salarial – art. 380º – e, sobretudo, todo o regime que disciplina o não pagamento pontual dos salários, exigido como causa autónoma da resolução contratual, desde logo se o incumprimento for culposo – art. 441º nº 2 al. A) – mas também se o não for – art. 364º.
A maioria esmagadora destes princípios constitui, de há muito, aquisição firme do nosso ordenamento laboral e evidencia a preocupação que nele se confere ao pagamento pontual do salário, como factor essencial ao equilíbrio vinculístico.
Num tal quadro – sem ignorar que os créditos remuneratórios do trabalhador são irrenunciáveis e beneficiam de um regime especial de prescrição (arts. 271º c 381º), quer por virtude da intangibilidade da retribuição, quer pela situação de dependência económica do trabalhador no decurso da relação laboral – importa reconhecer que a omissão de pagamento durante cerca de 20 anos (tantos quantos durou o aduzido contrato!) com a completa passividade da Autora perante tal omissão, não se compagina minimamente com a existência de um contrato de trabalho.
Mas se compreende, com efeito, que um trabalhador se permita passar mais de metade da vida profissional activa sem receber, uma única vez, a contrapartida da sua prestação – o salário – que constitui, afinal, a razão primeira e última dessa prestação.!
É dizer, enfim, que o sinalagma típico do vínculo laboral jamais funcionou no caso dos autos, o que não deixa de abalar decisivamente os indícios, atrás apontados, que favoreciam a existência de tal vínculo.
Perante esta gritante evidência, é legitima, no mínimo, a dúvida sobre se a actividade desenvolvida pela demandante se inseria, como ela reclama, num aduzido contrato de trabalho, ou se, ao invés, apenas decorreu da estrutura familiar que liga as duas partes, mormente do falado dever de cooperação.
Esta dúvida não pode deixar de reverter em desfavor da Autora, onerada que estava com a prova – não obtida – do dito contrato – art. 519º do Código de Processo Civil.
3-3
Aqui chegados, resta concluir pela necessária procedência do recurso e pelo inevitável fracasso da acção.
Neste quadro, torna-se irrelevante saber se o comportamento da Autora, ao accionar o Réu em juízo nos moldes em que o fez, configura um eventual abuso de direito, quedando prejudicado o conhecimento desta questão.
4 – Decisão
Em face do exposto, concede-se a revista, revogando-se o Acórdão impugnado e, na improcedência total da acção, absolve-se o Réu do pedido.
Custas pela Autora.
Lisboa, 9 de Abril de 2008

Sousa Grandão (relator)
Pinto Hespanhol
Vasques Dinis