Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07S2916
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: VASQUES DINIS
Descritores: PROVA PERICIAL
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ACIDENTE DE TRABALHO
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ200802130029164
Apenso:
Data do Acordão: 02/13/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - A força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal (artigo 349.º do Código Civil) e, como tal, a decisão das instâncias fundada em prova pericial escapa aos poderes de censura do Supremo Tribunal de Justiça.
II - Por isso, tendo as instâncias declarado, com base na prova pericial, não provado que o evento fortuito ocorrido no dia 18 de Setembro de 1997 foi a causa das lesões corporais que vieram a ser diagnosticadas ao Autor, não pode o Supremo, com fundamento em erro na apreciação da prova, alterar aquela decisão.
III - Para que um evento possa integrar-se no conceito legal de acidente de trabalho é necessário, além do mais, por um lado, que seja adequado a produzir determinada lesão corporal, perturbação funcional ou doença, e, por outro, que a ocorrência desse mesmo evento tenha, efectivamente, actuado como condição de verificação da concreta ofensa à integridade física, à plenitude da capacidade funcional, ou à saúde.
IV - Face ao disposto no artigo 12.º do Decreto n.º 360/71, de 21 de Agosto, diploma que regulamentou a Lei n.º 2 127, de 3 de Agosto de 1965, a lesão observada no local e tempo de trabalho presume-se, até prova em contrário, consequência do acidente de trabalho.
V - Não beneficia da referida presunção (da lesão/descolamento da retina ser consequência de acidente de trabalho), o Autor que, ao serviço da entidade empregadora, ao manusear o ferro, uma parte deste embateu nos seus óculos, quebrando uma das lentes, sentindo na ocasião uma dor, mas continuando a trabalhar, assim como nos dias subsequentes, vindo-lhe cinco dias depois a ser diagnosticado o referido descolamento da retina.
VI - Daí que caiba ao Autor provar que as alterações orgânicas e funcionais que o afectaram resultaram do evento em causa.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. Na presente acção especial emergente de acidente de trabalho, instaurada no Tribunal do Trabalho de Vila Franca de Xira, mediante participação apresentada em 15 de Junho de 1998, AA demandou “BB, A.C.E.” e “CC, S.A.”, para pedir a condenação destas no pagamento de uma indemnização por incapacidade temporária para o trabalho, uma pensão anual e vitalícia, por incapacidade permanente, e de uma importância correspondente a despesas de internamento, tratamentos médicos e deslocações, tudo para reparação dos danos emergentes de um acidente de trabalho que alegou ter sofrido, em 18 de Setembro de 1997, ao serviço da 1.ª Ré.

Contestaram as Rés: – a primeira, dizendo desconhecer o acidente porque o Autor nunca lho participou e que a responsabilidade infortunística estava transferida para a segunda Ré; – esta, afirmando o mesmo desconhecimento, aduziu que os sintomas descritos pelo Autor são consequência de uma doença natural e alheios a qualquer acidente.

Na 1.ª instância, a acção foi julgada improcedente, decisão com a qual o Autor não se conformou, tendo apelado para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, negando provimento ao recurso, confirmou a sentença.

2. Do acórdão da Relação, vem o Autor pedir revista, resumindo os motivos do seu inconformismo nas conclusões, que apresentou a finalizar a sua alegação, assim redigidas:

1 - É do âmbito da competência do Supremo Tribunal de Justiça, sendo a esse respeito, a jurisprudência praticamente unânime, (Acórdãos do STJ de 2001.03.01 (Revista n.º 3607/00 da 4.ª Secção), de 2001.03.21 (Revista n.º 3509/00 da 4.ª Secção), de 2001.03.21 (Revista n.º 3316/00 da 4.ª Secção), de 2001.04.11 (Revista n.º 59/00 da 4.ª Secção), de 2002.11.13 (Revista n.º 4418/01 da 4.ª Secção), face à matéria de facto provada, apurar se se verifica ou não, o nexo de causalidade entre o acidente e a lesão sofrida,

2 - Foi fulcral tanto para a decisão do Tribunal de 1.ª instância, como para a decisão tomada no acórdão do Tribunal da Relação, a resposta dada como “Não Provado”, ao quesito 21.º. Ao assim considerar, estamos perante um erro na apreciação da prova pericial, uma vez que as respostas dos senhores peritos médicos, conjugadas nomeadamente com a resposta ao quesito 1.º do A., ora recorrente e restante matéria de facto provada, levariam a considerar existir nexo causa-efeito, entre o acidente de trabalho e as lesões produzidas no recorrente.

3 - Assim, existe nos autos, matéria provada suficiente, nomeadamente, os factos constantes nas alíneas f) a j), da sentença do Tribunal de 1.ª instância, para se estabelecer o nexo de causalidade como prevê o n.º 1 da Base V da Lei n.º 2127 de 03 de Agosto de 1965.

4 - Ao ignorar tais factos, violou o acórdão do Tribunal da Relação, o disposto no preceito legal referido no n.º anterior.

5 - Para além disso, o caso “sub judice”, enquadra-se na presunção iuris tantum, prevista no disposto no n.º 4 da Base V da Lei n.º 2127 de 03 de Agosto de 1965 e no [artigo] 12.º, n.º 1, do [Decreto] n.º 360/71, de 21 de Agosto, uma vez que a lesão foi reconhecida a seguir ao acidente dos autos, conforme os factos considerados provados. O diagnóstico dessa lesão, por razões que não podem ser imputadas ao recorrente, é que foi feito passados 5 dias.

6 - Deve o recorrente, beneficiar da presunção iuris tantum, anteriormente referida e ao assim não ter considerado, violou o acórdão de que se recorre, os dispositivos legais acima mencionados.

7 - Termos em que, deve ser concedida revista, revogando-se o acórdão recorrido, com as demais consequências legais.

Na contra-alegação, a pugnar pela confirmação do julgado, Ré seguradora formulou as seguintes conclusões:

1.ª Carece de todo e qualquer fundamento fáctico-jurídico a pretensão do recorrente de ver revogada a douta sentença recorrida e de que a mesma seja substituída por decisão que considere existir NEXO DE CAUSALIDADE entre a IPP de que padece e o acidente ocorrido em 18SET97;

2.ª Tendo em conta que da factualidade dada como assente, alicerçada na DECISÃO UNÂNIME DA JUNTA MÉDICA, resultou INEQUIVOCAMENTE provado que estamos perante uma situação de DOENÇA NATURAL, que nada tem a ver com a prestação laboral do recorrente;

3.ª Assim, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo aplicou correctamente o silogismo judiciário e deu cabal cumprimento ao disposto nos art.os 508.º--A, 653.º n.º 4 e 712.º, todos do Código de Processo Civil, à Base V-4 da Lei n.º 2127, conjugada com o n.º 1 do art.º 12.º do DL n.º 360/71, de 21 de Agosto, ao plasmado nos art.os 349.º e 350.º do Código Civil, e ainda ao art.º 6.º, n.os 5 e 6 da LAT/97 complementado pelo n.º 2 do art.º 7.º do DL n.º 143/99, de 30 de Abril.

Neste Supremo Tribunal, a Exma. Magistrada do Ministério Público pronunciou-se, em parecer que não obteve reacção das partes, no sentido de ser concedida a revista, para o que expendeu as seguintes considerações:

[...]

Dada a natureza da lesão sofrida pelo A., mais tarde diagnosticada como “descolamento da retina”, a mesma dificilmente poderia, por definição ser “observada no local e tempo de trabalho”, tal como aconteceria, por exemplo, com uma fractura exposta, devendo, pois, tal situação, dada a mencionada natureza da lesão, ser entendida no caso concreto, em termos hábeis, de molde a abarcar todo o tipo de lesões, e em especial, aquela que nos ocupa, por não poder ser “patente” logo após o acidente.

É que,

Tendo em conta o tipo de lesão sofrida a que se referem os autos o próprio trabalhador se pode não aperceber imediatamente da sua existência, uma vez que o seu diagnóstico só pode ser efectivado mediante observação a efectuar por aparelhos técnicos oftalmológicos especializados.

No momento do acidente o A. sentiu logo uma dor (a qual se verificou no local e tempo do trabalho – cfr. respostas aos quesitos 1.º, 2.º e 3.º - fls. 175 e 248 dos autos), na sequência do embate do ferro que manuseava, nos respectivos óculos tendo, em consequência partido uma lente.

Ora, por outro lado, não se pode dizer que, pelo facto de não ter sido dado como “provado” que o acidente foi a causa da lesão aqui em apreciação, tenha ficado “provadoo seu contrário, isto é, que não foi a sua causa.

E esta prova cabia à Ré aqui recorrente a fim de ilidir a presunção que, conforme se referiu atrás e nos termos descritos, se verifica, a nosso ver.

Assim sendo,

Estamos em crer que, nos termos supra expostos, foi feita a prova pelo A. de que a lesão se operou no local e no tempo de trabalho, verificando-se em consequência a presunção “juris tantum” supra referida, não tendo por seu lado a Ré ora Seguradora, a quem cabia “elidir” tal presunção, a fim de se subtrair ao pagamento da pensão por incapacidade aqui em causa, logrado levar a cabo a prova necessária, para o efeito, conforme se referiu atrás, daí se devendo retirar as consequências jurídicas inerentes.

Efectivamente, e além do mais,

O A. logrou provar, como lhe competia, que a lesão se manifestou logo a seguir ao acidente, uma vez que foi provada a existência de “dor” logo a seguir ao mesmo o que “in casu” dada a natureza [de que] esta lesão se reveste, conforme se referiu atrás, terá de ser valorada tal matéria provada como “manifestação” da mencionada lesão decorrente do embate de que foi vítima (acidente, aliás, tido, em abstracto, pela própria junta médica, como apto a produzir o efeito aqui em causa) – cfr. fls. 27 e verso do Apenso de Fixação de Incapacidade.

[...]

Corridos os vistos, cumpre decidir.

II

1. Na 1.ª instância foram declarados provados, nos termos que se transcrevem, os seguintes factos:
a) O A., AA, iniciou a sua actividade laboral como armador de ferro na “BB, A.C.E.”, a 1 de Outubro de 1996, sob a autoridade a direcção desta;
b) Foi celebrado contrato a termo por um período de 6 meses;
c) Este contrato foi renovado por duas vezes;
d) O A. auferia a remuneração mensal base de Esc. 114.000$00 (cento e catorze mil escudos);
e) A entidade patronal, mediante contrato de seguro, titulado pela apólice n.º ............., tinha a sua responsabilidade infortunística transferida para a Companhia de Seguros "Portugal ...." (actualmente "CC Portugal, S.A.");
f) No dia 18 de Setembro de 1997, à tarde, estando o A. a manusear ferro, uma parte do ferro embateu nos seus óculos;
g) O A. sentiu uma dor e aparentemente não estava ferido;
h) Na sequência do facto referido em f), partiu-se uma das lentes dos óculos do A;
i) Na tarde do dia 18 de Setembro de 1997 o A. esteve a trabalhar;
j) No dia 18 de Setembro de 1997, o A. trabalhou com uma das lentes dos óculos com algumas fracturas;
k) No dia 19 de Setembro de 1997 o A. foi trabalhar;
l) Os registos de assiduidade e pontigráficos do A. revelam o seguinte:

No dia 18/09/1997 entrou às 7h51 e saiu às 17h08

No dia 19/09/97 entrou às 7h36 e saiu às 17h21

No dia 22/09/97 entrou às 7h36 e saiu às 17h09

No dia 23/09/97 entrou às 7h36 e saiu às 17h08

No dia 24/09/97 não trabalhou, tendo justificado a ausência mediante Boletim de Baixa nele fazendo constar os serviços competentes “doença natural”;

m) Mais tarde, o A. para comprovar o internamento hospitalar em 97/10/30, entregou documentação nela se não aludindo a qualquer acidente de trabalho;
n) No dia 23 de Setembro de 1997, o A. foi a uma consulta de oftalmologia, tendo-lhe sido diagnosticado o descolamento da retina direita;
o) Situação que, não sendo tratada a breve prazo, pode conduzir à cegueira, pelo que o doente deve ser sujeito a cirurgia no mais curto espaço de tempo possível;
p) Em 24 de Setembro de 1997 foi concedida ao A. baixa médica;
q) No dia 30 de Setembro de 1997, o A. foi internado no serviço 7 do Hospital de Santo António dos Capuchos para ser submetido a cirurgia no olho direito;
r) O A. foi operado pela primeira vez à vista direita no dia 09 de Outubro de 1997;
s) E no dia 15 de Outubro de 1997, após 15 dias de internamento, o A. teve alta;
t) Em 07 de Abril de 1998, o A. foi submetido a um segundo internamento por novo descolamento da retina;
u) A segunda cirurgia à vista direita foi realizada no dia 16 de Abril de 1998;
v) O A. recebeu uma carta da R., datada de 21 de Maio de 1998, na qual a “” revela a sua intenção de não renovar o contrato de trabalho a termo certo do A., denunciando o seu termo em 31 de Julho de 1998;
w) Em Agosto de 1998, o A. foi confrontado com o descolamento da retina esquerda;
x) Tendo sido internado em 18 de Agosto de 1998 e teve alta em 31 de Agosto;
y) Em resultado de um exame médico realizado pela Dr.ª DD (presidente da Junta Médica na Sub-Região de Santarém), é conferida ao A. uma incapacidade permanente global de 67,5%, desde Agosto de 1998;
z) Em exame médico realizado a 12 de Abril de 1998 foi atribuído ao A. um coeficiente global de incapacidade de 18,75%;
aa) Por decisão proferida no apenso A foi fixada ao A. a IPP de 10%, a partir da data da alta;
bb) Cerca de um mês após o facto referido em f), o A. requereu à R. “” que esta ou o seguro lhe pagassem uma lente dos óculos que se havia partido quando estava a trabalhar;
cc) Aquando do facto referido em aa), o A. não aludiu a qualquer embate de um ferro com violência na cara;
dd) No dia 24/09/97 o A. entregou um boletim de baixa do CRSS de Santarém, com validade até 29/09/97 - doença natural;

No dia 06/10/97, entregou um boletim de internamento passado pelos Hospitais Civis de Lisboa, com efeitos a partir de 30/09/97;

No dia 15/10/97, apresentou um Boletim de Alta dos Hospitais Civis de Lisboa com efeitos a partir de 15/10/97;

No dia 16/10/97 apresentou um Boletim de Baixa da Segurança Social de Santarém, até 15/11/97:

No dia 15/11/97 apresentou um Boletim de revalidação da Baixa Médica até 15/12/97;

No dia 15/12/97 apresentou um certificado de incapacidade temporária para o trabalho por estado de doença, emitido pelo CRSS de Santarém (doença natural) válido até 14/01/98;

No dia 14/01/98, apresentou uma prorrogação da incapacidade temporária até 13/02/98;

No dia 13/02/98, apresentou uma nova prorrogação da incapacidade temporária até 20/02/98;

No dia 07/04/98, apresentou um Boletim de Internamento nos Hospitais Civis de Lisboa;

No dia 27/05/98 entregou um certificado de incapacidade temporária absoluta para o trabalho, válido até 26/06/98;

No dia 26/06/98 entregou uma prorrogação de baixa até 26/07/98;

No dia 26/07/98, nova prorrogação da baixa até 25/08/98.

2. A questão fundamental a resolver é a de saber se o acontecimento fortuito que teve lugar no dia 18 de Setembro de 1997 deve ser qualificado como acidente de trabalho.

2. 1. O regime jurídico a observar, face data em que ocorreu aquele facto, é o que consta da Lei n.º 2 127, de 3 de Agosto de 1965 (LAT/65) e do Decreto n.º 360/71, de 21 de Agosto, que a regulamentou, visto que o regime estabelecido pela Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (LAT/97), regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, apenas se aplica aos acidentes ocorridos após a sua entrada em vigor, que ocorreu em 1 de Janeiro de 2000, por força do artigo 1.º do Decreto--Lei n.º 382-A/99, de 22 de Setembro.

De acordo com o n.º 1 da Base V da LAT/65, “[é] acidente de trabalho o acidente que se verifique no local e tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou redução na capacidade de trabalho ou de ganho”.

Para que um evento possa integrar-se no conceito legal de acidente de trabalho é necessário, além do mais, por um lado, que seja adequado a produzir determinada lesão corporal, perturbação funcional ou doença, e, por outro lado, que a ocorrência desse mesmo evento tenha, efectivamente, actuado como condição de verificação da concreta ofensa à integridade física, à plenitude da capacidade funcional, ou à saúde.

É, portanto, indispensável que exista um nexo de causa e efeito (nexo de causalidade) entre dois factos: o evento e a lesão.

Nos termos do n.º 4 da Base V da LAT/65, “[s]e a lesão, perturbação ou doença forem reconhecidas logo a seguir a um acidente presume-se consequência deste”.

Sob a epígrafe “Prova do acidente”, artigo 12.º do Decreto n.º 360/71, de 21 de Agosto, esclarece que: “[a] lesão observada no local e tempo de trabalho [...] presume-se, até prova em contrário, consequência do acidente de trabalho” (n.º 1); e [s]e a lesão não for reconhecida a seguir ao acidente ou tiver manifestação posterior compete à vítima ou aos beneficiários legais provar que foi consequência deste (n.º 2).

2. 2. A sentença da 1.ª instância, depois de discorrer sobre a noção jurídica de acidente de trabalho e sobre o ónus da prova do nexo de causalidade entre o evento e as lesões, apreciando o caso à luz do predito regime, considerou que:

[...] a lesão ou perturbação não foi reconhecida a seguir ao acidente, nem observada no local e no tempo de trabalho, posto que no dia em que ocorreu o «acidente» o A. ficou exclusivamente com uma das lentes do óculos partida, sem que, porém, se provasse sequer que a entidade empregadora de tal facto se apercebeu. O descolamento, por sua vez, foi diagnosticado cinco dias depois, sabendo-se apenas que entre a data do evento sobremencionado e o diagnóstico ora referido o A. esteve sempre a trabalhar. Ora, as presunções sobremencionadas só podem funcionar a favor do trabalhador quando este alegue e prove os factos que lhe servem de base (art.os 349.º e 350.º, n.º 1, do Código Civil), o que, in casu, o A. não logrou fazer.

Assim, por não beneficiar das presunções sobremencionadas, incumbia ao A. alegar e provar o nexo de causalidade entre o evento (embate do ferro nos óculos) e a lesão/perturbação (descolamento das duas retinas). Contudo, conforme resulta da resposta ao quesito 21.º da base instrutória, o A. não logrou também fazer essa prova.

Não podendo concluir-se pela verificação de todos os pressupostos cumulativos supra enunciados, não pode igualmente concluir-se no sentido de que o A. sofre[u] um acidente de trabalho indemnizável, pelo que, consequentemente, terá de improceder a sua pretensão.

[...]

No recurso de apelação, o Autor pugnou pela alteração da resposta que o tribunal formulou ao quesito 21.º da base instrutória, em que se perguntava:

O acidente sofrido pelo A. no dia 18 de Setembro de 1997 foi a causa da lesão corporal que apresenta, tanto na vista direita, como mais tarde na vista esquerda?

Para tal, alegou que o tribunal, ao responder “Não provado” a esse quesito, cometeu erro na apreciação da prova pericial, “visto das respostas dos senhores peritos médicos, conjugadas com a demais matéria de facto provada, poder-se extrair o nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e as lesões produzidas no trabalhador”. Alegou, outrossim, que, havendo contradições nas respostas dadas pelos senhores peritos – concretamente entre as respostas aos quesitos 1.º e 2.º apresentados pela Ré empregadora e a resposta ao quesito 1.º apresentado pelo Autor –, não podia, como fez o tribunal, atribuir-se força probatória às respostas que conduziram à decisão nesse ponto da matéria de facto.

Quanto a esta impugnação da decisão da matéria de facto, o douto acórdão recorrido pronunciou-se nos seguintes termos:

[...]

Nos quesitos 1.º e 2.º apresentados pela ré BB para a Junta médica, perguntava-se se era de admitir que o acidente sofrido pelo autor, a 18/9/1997, foi a causa directa e necessária das lesões corporais que apresenta na vista direita e do descolamento da retina esquerda verificada em Agosto de 1998. E a resposta foi não.

Também no quesito 1.º apresentado pela ré CC para a Junta Médica responder se perguntava se os deslocamentos de retina de que o autor foi vítima, no olho direito e no olho esquerdo, ou em algum deles, resultaram do traumatismo que o autor refere ter sofrido na parte superior da cara. E a resposta foi não.

Ora não se vê como de tais respostas periciais era possível à Mma Juíza “a quo” concluir pela consideração como provado do quesito 21º. Seria dar como provado, precisamente, o contrário daquilo que se retira da prova pericial que o apelante chama em seu socorro.

Mas então será que estas respostas periciais estão em contradição com a resposta pericial dada ao quesito 1.º formulado pelo sinistrado para a Junta médica responder? Também não.

Naquele quesito 1.º perguntava-se: “Uma forte pancada na cabeça pode provocar descolamento da retina?”. E a resposta foi sim.

Mas esta resposta positiva não implica contradição com aquelas outras atrás consideradas, pois aquela configura urna situação genérica de possibilidade, enquanto que os quesitos 1.º e 2.º das rés colocavam a questão ao nível concreto do sinistrado.

Daqui resulta que, pelo facto de uma forte pancada na cabeça poder provocar descolamento da retina não quer dizer, necessariamente, que o autor sofreu os descolamentos de retina (uma delas passado cerca de 1 ano), por causa da pancada que sofreu. Não há, deste modo, matéria probatória suficiente ou mínima para que a resposta dada ao quesito 21.º do questionário possa ser alterada.

[...]

De acordo com o disposto no artigo 389.º do Código Civil, a força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal e, como tal, a decisão das instâncias fundada em prova pericial, como sucedeu no caso, escapa aos poderes de censura do Supremo Tribunal, atenta a sua função de tribunal de revista, ao qual compete aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, não podendo, em regra, alterar a decisão proferida quanto à matéria de facto.

É este o sentido que se alcança das disposições contidas nos artigos 712.º, n.º 6, do Código de Processo Civil – a que pertencem todos os preceitos neste ponto referidos, sem menção de origem –, que não permite recurso da decisão da Relação atinente à fixação da matéria de facto; 721.º, n.º 2, e 722.º, n.º 1, que consignam, como fundamento específico do recurso de revista, a violação de lei substantiva, e, como fundamentos acessórios, a arguição de nulidades do acórdão recorrido e outras violações de lei de processo; 722.º, n.º 2, 1.ª parte, segundo o qual, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista; e 729, n.º 2, 1.ª parte, de acordo com o qual, a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada.

A lei consagra, porém, excepções àquela regra, nos artigos 722.º, n.º 2, parte final, que admite, como fundamento do recurso de revista, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, quando haja ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova ou que fixe a força de determinado meio de prova; e 729.º, n.º 2, que consente a alteração da decisão da matéria de facto, nos casos previstos no n.º 2 do artigo 722.º.

Nestas situações, apresentadas como excepcionais, o poder conferido ao Supremo Tribunal de alterar a decisão sobre a matéria de facto compreende-se nas atribuições de um tribunal de revista, uma vez que não implica a apreciação do modo como, nas instâncias, foram valoradas as provas não sujeitas a formalidade especial – em relação às quais rege o princípio da liberdade do julgamento, consignado no n.º 1, do artigo 655.º –, antes pressupõe averiguar se, na fixação da matéria de facto, foram respeitadas – correctamente interpretadas e aplicadas – normas de direito probatório material, envolvendo, por conseguinte, um juízo sobre questão de direito, e, como se referiu, de acordo com o n.º 2 do artigo 721.º, a violação de lei substantiva constitui fundamento específico do recurso de revista.

Em tais casos, “embora venham a questionar-se factos, em termos de apreciação imediata e concreta, o que o STJ pode – e deve – fazer é, apenas, conhecer se foi violada regra jurídica, ou seja, é julgar matéria jurídica e não o facto, isto é, não a ocorrência material, se aconteceu ou não” (1)..

Ora, tendo as instâncias declarado, com base na prova pericial, não provado que o evento fortuito ocorrido no dia 18 de Setembro de 1997 foi a causa das lesões corporais que vieram a ser diagnosticadas ao Autor, não pode este Supremo, com fundamento em erro na apreciação da prova, alterar aquela decisão.

É certo que, como alega o Autor, é do âmbito da competência do Supremo Tribunal de Justiça apurar, face à matéria de facto provada, se se verifica ou não o nexo de causalidade entre o acidente e a lesão sofrida.

Todavia, perante uma resposta tão clara como a que foi dada ao referido quesito 21.º, cujo sentido não se mostra afectado pelos factos elencados nas alíneas f) a j) da decisão, concluir pela demonstração do nexo de causalidade traduziria uma alteração da decisão da matéria de facto, não consentida ao Supremo Tribunal.

Na verdade, os factos descritos nas referidas alíneas, que poderiam assumir alguma relevância – embate de uma parte de ferro nos óculos do Autor, quebra de uma das lentes dos óculos e uma dor sentida na ocasião –, não são concludentes no sentido de poder afirmar-se a relação de causa-efeito entre o evento e as lesões, sendo que, no caso concreto, tal nexo, objecto de prova directa e especializada, não ficou, segundo o juízo de facto que sobre ela incidiu, demonstrado.

Em suma, face à decisão da matéria de facto, que não contém contradições, fica sem se saber se o evento fortuito actuou como condição sem a qual não teriam ocorrido os descolamentos de retina, primeiro, do olho direito e, depois, do olho esquerdo, que vieram a ser diagnosticados ao Autor.

2. 3. Na ausência de prova do nexo de causalidade, há que averiguar se, no caso, funciona a presunção estabelecida no n.º 4 da citada Base V e no n.º 1 do artigo 13.º do Decreto n.º 360/71, de 21 de Agosto, segundo a qual, recorde-se, sendo a lesão reconhecida ou observada no local e tempo de trabalho, logo a seguir ao acidente, presume-se, até prova em contrário, consequência deste.

O douto acórdão impugnado observou, a propósito:

[...]

Como já esclarecia Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho, Almedina, 1995, a pág. 175, “se a lesão não for reconhecida no tempo e local de trabalho, mas em momento posterior ou se tiver revelação posterior, já não funciona a presunção, competindo à vítima (ou aos seus beneficiários) fazer a prova de que a lesão foi consequência do acidente”. No mesmo sentido, veja-se o Ac. do STJ de 7/10/99, disponível em www.dgsi.pt/jstj, P. n.º 998173, em que até se esclarece que uma dor sentida na altura não é “uma lesão, mas tão somente um sintoma, uma reacção orgânica a uma lesão ou anomalia”.

E esta necessidade de imediação já entendida no domínio da legislação infortunística em vigor até 2000, passou a estar prevista no art. 6.°-5-6, da LAT/97, complementada com a esclarecedora redacção do art. 7.°-2 do DL n.º 143/99 de 30/4, onde se lê que “Se a lesão não tiver manifestação imediatamente a seguir ao acidente, compete ao sinistrado ou aos beneficiários legais provar que foi consequência dele”.

Ora, no caso dos autos, a lesão no olho direito do sinistrado só foi reconhecida 5 dias depois do embate do ferro nos óculos do mesmo e subsequente dor sentida (factos provados n.os 6, 7 e 14 (2). E relativamente ao olho esquerdo, a lesão só se manifestou quase 1 ano depois (facto provado n.º 23 (3).

Não podia o sinistrado, deste modo, beneficiar da presunção prevista na Base V-4 da LAT/6[5] e no art. 12.° do [Decreto n.º] 360/71 de 21/8.

[...]

Discordando deste entendimento, o Autor argumenta que a lesão ficou reconhecida no dia em que ocorreu o acidente, uma vez que se provou que logo sentiu uma dor, e que o diagnóstico de descolamento da retina do olho direito, por razões não lhe podem ser imputadas, é que só foi feito passados cinco dias. Daí que, no seu entendimento, competia às Rés provar que não existiu “um nexo de causalidade entre o evento (embate do ferro nos óculos e consequente dor) e a perturbação (deslocação das retinas)”.

Idêntica foi a posição assumida pela Exma. Magistrada do Ministério Público, sustentando que dada a natureza da lesão sofrida, dificilmente poderia, por definição ser “observada no local e tempo de trabalho”, por não poder ser patente logo após o acidente, daí que a norma que consigna a presunção deva ser interpretada em termos hábeis, por forma a contemplar a situação, sendo que o facto de o Autor ter logo sentido uma dor terá de ser valorado como manifestação da lesão posteriormente diagnosticada.

A controvérsia reside na fixação do sentido e alcance do sentido das normas que estabelecem a presunção.

No que concerne à interpretação das leis, rege o artigo 9.º do Código Civil, segundo o qual, em primeiro lugar, há que atender ao enunciado linguístico da norma, por representar o ponto de partida da actividade interpretativa, na medida em que esta deve procurar reconstituir, a partir dele, o pensamento legislativo (n.º 1) – tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada –, sendo que o texto da norma exerce também a função de um limite, porquanto não pode ser considerado entre os seus possíveis sentidos aquele pensamento que não tenha na sua letra um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 2).

Para a correcta fixação do sentido e alcance da norma, há-de, outrossim, presumir-se que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e consagraram a solução mais acertada (n.º 3), do que decorre, no ensinamento de João Baptista Machado (4)., que o texto da norma “exerce uma terceira função: a de dar um mais forte apoio àquela das interpretações possíveis que melhor condiga com o significado natural e correcto das expressões utilizadas”; por isso, “só quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e directo da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo”.

Aos vocábulos lesão, perturbação funcional e doença deve, no contexto das normas em apreciação, conferir-se o sentido com que são utilizados em Medicina, traduzindo realidades muito próximas.

Assim, doença é o estado do organismo “em que existem alterações anatómicas ou perturbações funcionais que o afastam de condições normais”; lesão “tem o significado preciso de alteração anatomo-patológica” (5).

“Em regra, dentro da medicina, dá-se uma certa limitação ao conceito de doença. Deste modo designam-se como doenças os processos anormais existentes no organismo tendo uma certa unidade, e considerados em toda a sua evolução desde as causasiniciais até à sua terminação e complicações. Estas entidades complexas que as doenças constituem são compostas por vários sinais isolados ou sintomas, de natureza funcional ou orgânica. Os sintomas orgânicos compreendem as alterações na estrutura dos tecidos, isto é, as suas lesões morfológicas. As perturbações funcionais não são mais do que desvios de funções normais do organismo, podendo estes desvios estar ou não ligados às lesões orgânicas. Existem casos em que as perturbações funcionais não estão ligadas com lesões orgânicas e são portanto consideradas como doenças funcionais” (6)..

A dor é um sintoma que consiste numa sensação desagradável com origem em processos patológicos (lesões, perturbações funcionais, doenças) mas nem todos os órgãos do corpo afectados por um processo patológico são susceptíveis de originar dor.

O descolamento da retina é indolor. Manifesta-se pela criação de formas irregulares flutuando ou clarões luminosos e pela progressiva perda de visão (7).

Não pode, por conseguinte, atribuir-se à dor que o Autor sentiu o carácter de manifestação da lesão que veio a ser diagnosticada, do que decorre que não poder afirmar-se que a lesão foi observada ou reconhecida, no local e tempo de trabalho, a seguir ao evento fortuito.

Por outro lado, os termos em que a lei se exprime não permitem ampliar o seu campo de aplicação a lesões, perturbações funcionais e doenças cujo reconhecimento ou observação se apresente difícil na ocasião do evento.

A lei não o diz e não se descortinam razões para considerar que o legislador disse menos do que queria.

Outra interpretação não tem o mínimo de correspondência verbal com as palavras da lei.

O ónus da prova dos factos em que radica a presunção incumbia ao Autor, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.

Não se tendo provado que a lesão ou perturbação funcional foi observada ou reconhecida, na ocasião do acidente, não funciona a presunção e, por isso, nos termos do n.º 2 do artigo 12.º do Decreto n.º 360/71, de 21 de Agosto, ao Autor competia provar que as alterações orgânicas e funcionais que o afectaram resultaram do evento em causa.

Porque o não fez, não pode o evento ser qualificado como acidente de trabalho.

Improcedem, por conseguinte, as conclusões e pretensão formuladas no recurso

III

Em face do exposto, decide-se negar a revista.

Não são devidas custas.

Lisboa, 13 de Fevereiro de 2008.

Vasques Dinis (Relator)

Bravo Serra

Mário Pereira

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(1)- J. O. Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, 3.ª Edição, Coimbra Editora, p. 98.
(2)-Correspondem às alíneas f), g) e n) na estrutura da sentença
(3)- Corresponde, na estrutura da sentença à alínea w).
(4)- Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador (Reimpressão), Almedina, Coimbra, 1999, p. 189.
(5)- Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.
(6)- Ibidem
(7)-Cfr. Manual Merck, em www.manualmerck.net