Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
30508/15.7T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
PRESTAÇÃO DE CONTAS
BEM IMÓVEL
PRINCÍPIO DA COINCIDÊNCIA
PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
DENEGAÇÃO DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL / TRIBUNAL / COMPETÊNCIA INTERNACIONAL.
Doutrina:
-João de Castro Mendes, Apontamentos das suas Lições de Direito Processual Civil, redigidos por Armindo Ribeiro Mendes, Volume I, p. 263, 264, 269, 270 a 271
-José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3.ª Edição, p. 198 a 200 ;
Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 1.º, pá 139 e 144.
-José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª Edição, p. 131 a 134;
-Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, p. 92 e 93.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC) : - ARTIGOS 62.º, ALÍNEAS A) E C), 63.º ALÍNEAS A), B) E C).
Sumário :
I - Para que os tribunais portugueses sejam competentes, no seu conjunto, para julgar um qualquer litigio ocorrido no mundo, «é necessário que entre o litígio e a organização judiciária portuguesa haja um elemento de conexão considerado pela lei suficientemente relevante para servir de factor de atribuição de competência internacional para julgar esse litígio».

II - Esses factores ou critérios de atribuição traduzem-se em circunstâncias que integram o conteúdo de regras ou princípios que definem quando é que «o Estado português se arroga o direito e se impõe o dever de exercitar a sua função jurisdicional».

III - Assim, para além dos casos em que é reservada a competência exclusiva dos tribunais portugueses (art. 63.º do CPC), enuncia o art. 62.º do CPC, como factores de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses, os critérios ou princípios da coincidência, na al. a), da causalidade, na al. b) e da necessidade, na al. c).

IV - Estes factores são autónomos (e não cumulativos), funcionando cada um em completa independência relativamente aos outros, sendo de per si bastantes para desencadear a atribuição da competência aos tribunais portugueses.

V - Estando em causa, tão só, a prestação de contas dos rendimentos proporcionados por imóveis, ainda que situados em território português, o pleito não versa sobre qualquer direito real sobre os mesmos ou sequer sobre a validade dos respectivos contratos de arrendamento e não se enquadra na reserva de jurisdição prevista na al. a) do art. 63.º do CPC.

VI - O critério ou princípio da necessidade que constitui caso excepcional e subsidiário de alargamento da competência dos tribunais portugueses, nos termos da al. c) do art. 62.º do CPC, visa evitar que o direito a exercitar fique desprovido de garantia judiciária, ou seja, que ocorra uma situação objectiva de denegação de justiça, incluindo a impossibilidade absoluta e relativa, que tanto podem ser jurídica ou prática ou a dificuldade em tornar efectivo o direito por meio de acção instaurada em tribunal estrangeiro.

VII - Sendo a prestação de contas estruturalmente uma obrigação de informação, cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito, não se vê que a autora esteja impossibilitada ou sequer tenha dificuldade manifesta em pedir a prestação de contas perante os tribunais do Brasil, país onde, quer ela (e a sua curadora), quer o réu, residem, desde meados do século passado, e mantêm o centro de vida.

VIII - Podendo a prestação de contas ser realizada, no Brasil, sem dificuldade, não será de alargar a competência dos tribunais portugueses, nos termos da al. c) do art. 62.º do CPC.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Relatório

I AA, residente no …, Brasil, representada pela sua Curadora, BB, instaurou, no Juízo Cível de Lisboa processo especial de prestação de contas contra CC, também residente no …, Brasil, alegando, em síntese, que:

É casada com o Réu, desde 30.08.1952, ainda que em “Separação de Corpos”, declarada por sentença do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em 04.11.2004.

Sofre de «Alzheimer» e, por sentença datada de 6.02.2013 e proferida pela 5ª Vara de Família do Foro Regional do … da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, Brasil, foi decretada a sua interdição e nomeada sua curadora a filha BB.

O Réu continua a gerir o património comum do casal, no qual se incluem os quatro imóveis que identifica, localizados em Lisboa, e depósitos bancários desconhecidos.

No entanto, não lhe presta contas da gestão do património que tem a seu cargo, desde a “Separação de Corpos”.

Com tais fundamentos, concluiu por pedir a condenação do Réu no seguinte:

1. A apresentar, no prazo de 30 dias, as contas referentes aos valores recebidos, nos anos de 2005 a 2015, pelo arrendamento dos aludidos imóveis;

2. A prestar contas relativas aos saldos bancários de que seja titular com a A.;

3. A entregar à A. metade dos proventos, após apuramento dos valores apresentados;

4. A pagar juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, calculados sobre as quantias acima discriminadas, desde o final de cada ano civil a que respeita, até integral e efectivo pagamento.”

O Réu apresentou contestação em que, além de arguir a incompetência internacional do tribunal nacional e a falta de autorização da curadora, impugnou parte dos factos e concluiu não ter obrigação de prestar as requeridas contas.

A Autora respondeu a pugnar pela improcedência das invocadas excepções.

O Juízo Cível de Lisboa entendeu inexistir qualquer factor de atribuição de competência aos tribunais portugueses e declarou-se incompetente para tramitar a causa, absolvendo o Réu da instância.

Inconformada com essa decisão, apelou a Autora, com êxito, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa revogado a decisão da 1ª instância e ordenado o prosseguimento do processo.

Agora inconformado, interpôs o Réu recurso de revista, finalizando a sua alegação, com as seguintes conclusões:

(i) - Em sede de matéria de facto, o acórdão da segunda instância manteve a substancialidade alegada pela Recorrida na primeira instância, mas, omitindo, ou não dando relevância, a parte dela, fazendo uma errónea interpretação dos factos e, mais ainda, ignorando por completo o alegado pelo ora Recorrente;

(ii) - Em sede de decisão de direito, o acórdão recorrido veio também alterar significativamente a sentença da primeira instância, determinando o prosseguimento dos autos, em pedido em que a sentença de primeira instância absolvera o Recorrente;

(iii) - Com o que, o Tribunal da Relação, violou (com o devido respeito e salvo melhor opinião) não só o princípio da aquisição processual mas, também, a aplicação da lei substantiva que quadra ao caso dos autos;

(iv) - A Recorrida pede a apresentação de contas dos imóveis sitos em Lisboa (e tão-somente destes) - perfeitamente identificados na sua petição inicial -, aos valores recebidos pelo arrendamento dos mesmos e, bem ainda, quanto a contas bancárias e rendimentos obtidos;

(v) - Face aos factos aludidos [alíneas a) a g) do corpo destas alegações - de pags. 3 a 5] fica patente que a Recorrida foi declarada inabilitada por sentença proferida por Tribunal do Brasil (onde ficou determinada a prestação de contas a cada seis meses), que o património comum da Recorrida e do Recorrente é composto por aproximadamente 29 imóveis, dos quais 25 situam-se no Brasil e, os demais, em Portugal - ou sejam os identificados pela Recorrida na sua petição inicial - mas que, no entanto, a Recorrida só requer a apresentação de contas em relação aos imóveis sitos em Portugal;

(vi) - O Acórdão sub júdice confunde a Recorrida com a sua Curadora e, pior ainda, confunde a identidade da autora da acção. É que a acção foi interposta pela Recorrida e não pela sua Curadora. A Curadora intervém no processo como representante da Recorrida;

(vii) - Todavia, o Acórdão recorrido diz expressamente que «A autora foi nomeada curadora da mãe que por sentença transitada foi declarada inabilitada. Alegou que o pai marido da mãe administra todo o património e nada entrega» e, mais adiante, acrescenta: " A requerente precisa de recursos para prestar assistência como curadora pode pedir contas e entrega de rendimentos, os artºs. 138 e 139 do CC equiparam o interdito e o incapaz dos menores. Tem legitimidade para requerer a prestação de contas art. 941 do ncpc» e, ainda mais adiante repetindo o equívoco, diz que «Estamos perante um pedido de prestação de contas e apuramento de rendimentos de imóveis arrendados, pela curadora nomeada»;

(viii)  - Mas quem está a pedir a prestação de contas é a Recorrida e não a sua Curadora!!!;

(ix) - Donde, verificar-se uma manifesta confusão na fundamentação do Acórdão sub judice;

(x) - Mas, ainda que a acção tivesse sido (que não foi) interposta pela Curadora da Recorrida, também o Recorrente não seria obrigado a prestar contas em vista do que se dispõe no nº. 1. do art. 1681º. do Cód. Civil;

(xi) - A obrigatoriedade do Recorrente prestar contas, em razão do que antecede, só poderá, quiçá, decorrer de uma qualquer imposição da lei Brasileira, que não da portuguesa;

(xii) - E, existindo tal obrigação, o que se admite face à sentença de interdição junta à petição inicial como Doc. 5, a mesma terá de ser cumprida perante o Tribunal do Brasil que proferiu a referida sentença e não perante os tribunais portugueses;

(xiii) - Concluindo-se, destarte, que, no caso, o Recorrente não é obrigado, face à lei portuguesa, a prestar contas, mesmo quando requerido (o que, contudo, não é o caso), para o efeito, pela Curadora da Recorrida;

(xiv) - Verifica-se, portanto, uma manifesta omissão e incorrecta interpretação de matéria de facto que inquina o douto decisório de que ora se recorre;

(xv) - Assim, afigura-se ao Recorrente que o Acórdão recorrido patenteia desacerto na compreensão dos factos e retira conclusões irrazoáveis e, talvez por isso, defende uma subsunção jurídica perdida da realidade fáctica como resulta patente da seguinte passagem, de que se discorda por completo, daquele decisório: «O facto de o pedido ser a prestação de contas não se circunscrever a actos que deveriam ser praticados junto de entidades nacionais e de esses actos terem sido efectivamente executados em território nacional, não podem deixar de ser considerados integrantes da causa de pedir. O suficiente para que, em face do art. 62º, nº. 1. al. c), do anterior CPC, na redacção aplicável ao caso, se reconheça que aos tribunais portugueses competência para a apreciação do mérito da presente acção e para a apreciação das demais questões que foram suscitadas»;

(xvi) – Significa-se que Recorrente, Recorrida e sua Curadora têm residência no Brasil e que Recorrente e Recorrida têm nacionalidade portuguesa, situando-se, como já referido, o seu património maioritariamente no Brasil e só residualmente em Portugal, os termos da acção de interdição da Recorrida ter corrido no Brasil, em particular quanto à prestação de contas, e finamente, que o pedido de prestação de contas foi requerido pela Recorrida e não pela sua Curadora;

(xvii) – A al. c) do artº. 62º do Cód. Proc. Civil consagra o critério da necessidade que constitui um caso excepcional e subsidiário que alarga a competência internacional dos tribunais portugueses às situações em que o direito invocado apenas se pode efectivar por meio de acção proposta em território português ou em que seja apreciavelmente difícil para o autor a sua apresentação no estrangeiro;

(xviii)  - Sucede que, no caso, não se verificam tais requisitos, pelo que não importará cuidar se ocorrem, ou não, os sub-requisitos de tais requisitos;

(xix) – É este, no essencial, o saber jurídico que a sentença da primeira instância entende quadrar ao caso dos autos, o que, cuida o Recorrente, faz de forma lógica, rigorosa, sensata e bem motivada, pelo que o Recorrente nela se louva;

(xx) – Quando assim não se entenda, o que só por mera hipóteses de raciocínio se admite, sempre se dirá que, por aplicação do critério da inconveniência, deverá ser recusada a jurisdição à presente causa, uma vez que os Tribunais do Brasil se encontram mais bem colocados para dela conhecer;

(xxi) – Até porque a admitir-se uma prestação parcial de contas (uma vez que só se apurariam, de acordo com o requerido pela Recorrida, apenas os rendimentos obtidos em Portugal e não também os auferidos no Brasil e que resultam de um património muito mais vasto nele existente) atingir-se-ia um resultado, com toda a probabilidade, desequilibrado e que afrontaria princípios que a lei portuguesa visa salvaguardar, nomeadamente o instituto da prestação de contas;

(xxii) – Sem prescindir, sempre se dirá que a acção de prestação de contas, regulada no artº. 941º e sgts. do Cód. Proc. Civil não contém qualquer regra específica quanto à respectiva competência internacional, pelo que importa fazer a aplicação do regime geral contido no n.º 1 do artigo 80º. do mesmo Código e, em consequência, conclui-se que, no caso, são competentes os tribunais do Brasil;

(xxiii)  - Acresce que a acção de prestação de contas deve, segundo as regra de conexão ou dependência, seguir por apenso (e não ser distribuída, conforme decorre do disposto na alínea a) do nº.1. e nº. 2. do artº. 206º. do Cód. Proc. Civil) ao processo de que depende;

(xxiv) -  Disposições violadas: artigos 62º. al. c), 80º. nº.1, 206º nº 1, al. a) e 941º e seguintes do Código de Processo Civil e artigos 1678º, nº 2 alínea f) e 1681º, nº. 1 do Código Civil.

A Recorrida ofereceu contra-alegação a pugnar pelo insucesso do recurso e, colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação de facto

Além do que consta do antecedente relatório, relevam para a apreciação do recurso os elementos seguintes:

1 - Autora e Réu têm a nacionalidade portuguesa.

2 - Casaram um com o outro, em 30 de Agosto de 1952, no Rio de Janeiro.

3 - Aí tinham residência e mantêm centradas as suas vidas.

4 - Integram o património comum do casal, entre outros bens, 29 imóveis, 4 deles situados em Lisboa.

5 - Por sentença de 6 de Fevereiro de 2013 da 5ª Vara de Família do foro Regional de … do Rio de Janeiro, foi decretada a interdição da Autora e nomeada sua Curadora a filha BB que ficou obrigada a prestar contas semestralmente.

III – Fundamentação de direito

A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente (artigos 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil), resumem-se à análise e dilucidação da única questão jurídica colocada a este tribunal e que consiste em determinar se o tribunal português é internacionalmente competente para apreciar o pedido de prestação de contas referente a bens situados em Portugal e integrantes de património comum de casal português, cujo centro de vida se desenvolve, no Brasil, e onde, desde 1952, residem.

As instâncias divergiram frontalmente, pois, enquanto a 1ª instância entendeu que o tribunal português é incompetente, já a Relação, ao invés, estribada na alínea c) do artigo 62º do Cód. Proc. Civil, considerou o tribunal português competente.

O Recorrente pugna naturalmente para que fique a subsistir a 1ª decisão, em substituição da ditada pela Relação, sustentando não ocorrer fundamento para, com alicerce no principio da necessidade, atribuir a competência a tribunal português, quando é certo tal radicar em tribunal brasileiro, país onde residem e têm o centro de vida ambos os litigantes e onde se situa a grande maioria dos bens comuns do casal.

Vejamos, então, a solução a dar à controvertida questão sobre a competência internacional, sublinhando que, tal como sucede com os outros poderes e funções do Estado, a jurisdição dos tribunais portugueses tem fronteiras e é delimitada por confronto com a jurisdição dos tribunais de outros países.

Na verdade, os tribunais portugueses não se encarregam de julgar todo e qualquer litígio que ocorra no planeta Terra. Para serem competentes, no seu conjunto, «é necessário que entre o litígio e a organização judiciária portuguesa haja um elemento de conexão considerado pela lei suficientemente relevante para servir de factor de atribuição de competência internacional para julgar esse litígio»[1]. Esses factores ou critérios de atribuição traduzem-se em circunstâncias que integram o conteúdo de regras ou princípios que definem quando é que «o Estado português se arroga o direito e se impõe o dever de exercitar a sua função jurisdicional»[2].

Assim, para além dos casos em que é reservada a competência exclusiva dos tribunais portugueses (artigo 63º do Cód. Proc. Civil), enuncia o artigo 62º do Cód. Proc. Civil, como factores de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses, os critérios ou princípios da coincidência, na alínea a), da causalidade, na alínea b) e da necessidade, na alínea c)[3]. Estes factores são autónomos (e não cumulativos), funcionando cada um em completa independência relativamente aos outros, sendo de per si bastante para desencadear a atribuição da competência aos tribunais portugueses[4].

O caso vertente não se enquadra na reserva de jurisdição prevista na alínea a) do artigo 63º do Cód. Proc. Civil, uma vez que o pleito, ainda que respeite a imóveis situados em território português, não versa sobre qualquer direito real sobre os mesmos ou sequer sobre a validade dos respectivos contratos de arrendamento. Em causa está, tão só, a prestação de contas dos rendimentos proporcionados pelos imóveis, ou seja, um mero direito de crédito não abrangido, nessa medida, pelo aludido normativo e ao qual não é possível lançar âncora para atribuir a competência aos tribunais portugueses.

Resta, portanto, a alínea c) do artigo 62º do Cód. Proc. Civil, na qual o acórdão recorrido se alicerçou para atribuir a competência aos tribunais portugueses. Consagra esta, como já referido, o critério ou princípio da necessidade que constitui caso excepcional e subsidiário de alargamento da competência dos tribunais portugueses, visando evitar que o direito a exercitar fique desprovido de garantia judiciária, ou seja, que ocorra uma situação objectiva de denegação de justiça, incluindo a impossibilidade absoluta e relativa, que tanto podem ser jurídica ou prática ou a dificuldade em tornar efectivo o direito por meio de acção instaurada em tribunal estrangeiro[5].

Ora, não se vê que a Autora esteja impossibilitada ou sequer tenha dificuldade, que, frise-se, tem de ser manifesta, em pedir a prestação de contas perante os tribunais do Brasil, país onde, quer ela (e a sua curadora), quer o Réu, residem, desde meados do século passado, e mantêm o centro de vida.

Aliás, ponderando que a prestação de contas é estruturalmente uma obrigação de informação, cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito, é óbvio que tal tanto pode ocorrer naquele país ou em Portugal.

A mera localização de 4 dos 29 imóveis em Portugal não é factor bastante para, com base no referido principio ou critério da necessidade, deferir a competência à jurisdição portuguesa. Mais, residindo as partes no Brasil e tendo aí centrada a vida, desde 1952, é de todo razoável e até aconselhável que seja a jurisdição daquele país a encarregar-se do litígio, tanto mais que o património comum do casal também ali se situa, em grande maioria.

Nesta conformidade, procedem as conclusões do recorrente, a quem assiste razão em insurgir-se contra o decidido pela 2ª instância que, sem quebra do devido respeito, não equacionou devidamente a situação em apreço e não fez correcta leitura, interpretação e aplicação das citadas disposições legais, não podendo, por isso, subsistir.

IV – Decisão

Nos termos expostos, concede-se a revista, revoga-se o acórdão recorrido e determina-se que fique a subsistir o decidido pela 1ª instância.

Custas, em todas as instâncias, pela Autora.


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Anexa-se sumário do acórdão (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC).

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Lisboa, 28 de Junho de 2018


António Joaquim Piçarra (relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

__________

[1] João de Castro Mendes, in Apontamentos das suas Lições de Direito Processual Civil, redigidos por Armindo Ribeiro Mendes, Volume I, pág. 263.
[2] Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pág. 92, e José Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3ª edição, pág. 198.
[3] Cfr., sobre a noção desses critérios e princípios, João de Castro Mendes, in obra citada, págs. 264 a 271, José Alberto dos Reis, in obra citada, págs. 198 a 200, e José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3ª edição, págs. 131 a 134.  
[4] Neste sentido, Manuel de Andrade, in obra citada, págs. 92 e 93, João de Castro Mendes, in obra citada, pág. 264, e José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, in obra citada, pág. 131. 
[5] Cfr, neste sentido, João de Castro Mendes, in obra citada, págs. 269 e 270, e José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, in obra citada, pág. 133, e José Alberto dos Reis, in obra citada, pág. 200, e Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 1º, págs. 139 e 144.