Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1407/19.5T8BCL.G1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: RETRIBUIÇÃO
RETRIBUIÇÃO MISTA
PRESTAÇÃO COMPLEMENTAR
ALTERAÇÃO DA ESTRUTURA DA RETRIBUIÇÃO
IRREDUTIBILIDADE DA RETRIBUIÇÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 06/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADAS AS REVISTAS
Sumário :
I- Do documento que define o denominado CVI (“complemento voluntário individual”) não se retira qualquer elemento que minimamente permita perceber/identificar qualquer causa específica e individualizável para tal prestação remuneratória, diversa da remuneração do trabalho, sendo certo que não se trata de um complemento extraordinário, mas antes, de uma prestação regular, paga mensalmente, 14 vezes ao ano, e que se mostra antecipadamente garantida, circunstâncias que obstam ao seu enquadramento nas alíneas b) e c) do no 1 do art. 260o, do Código do Trabalho (como as demais disposições citadas).

II- Neste contexto, e nada se tendo provado em contrário, não pode deixar de reconhecer-se a natureza retributiva do CVI, nos termos, desde logo, do preceituado no art. 258o, no 3.

III- Tendo convencionado que o CVI teria um quantitativo (base) de 350,00 € mensais, as partes acordaram ainda que “todas as importâncias lançadas nesta rubrica serão consideradas como pagas por conta de todo e qualquer aumento futuro na retribuição mensal efetiva (...) e dos montantes necessários a ajustamentos resultantes das promoções impostas pelo ACTV ou da iniciativa do próprio Banco”, daqui decorrendo que esta prestação constitui a componente variável de uma retribuição mista (cfr. art. 260o).

IV- Nos termos contratualizados, a R. apenas reduziu o CVI na estrita medida dos aumentos da retribuição-base do A. que tiveram lugar, sendo que a lei laboral em nada obsta a que as partes convencionem a alteração das componentes de uma retribuição mista, desde que não haja redução do valor global da remuneração, como acontece no caso vertente.

V- Litiga de má-fé a parte que invoca a falsidade da sua própria assinatura, que se vem a comprovar ser verdadeira, inserta em documento junto ao processo pela contraparte.

Decisão Texto Integral:

Revista n.o 1407/19.5T8BCL.G1.S1


MBM/JG/RP


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.


1. AA intentou a presente ação de processo comum contra Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, S.A.


2. A ação foi julgada parcialmente procedente na 1a Instância, reconhecendo-se, nomeadamente, ter o contrato de trabalho sido resolvido pelo A. com justa causa.


3. Interposto recurso de apelação por ambas as partes, o Tribunal da Relação de Guimarães (TRG) julgou improcedente a apelação do autor e, julgando parcialmente procedente a da ré, condenou aquele, como litigante de má-fé, na multa de 25 UC e em indemnização à ré.


4. Inconformado, o A. veio interpor:


a) Recurso de revista excecional, ao abrigo do artigo 672o, no 1, a), do CPC, no tocante ao segmento do acórdão do TRG que considerou improcedente o pedido de condenação da Ré na quantia de 29.399,07 euros, relativa a reclamadas diferenças salariais, em virtude de ter negado natureza retributiva a determinado complemento salarial (CVI – complemento voluntário individual).


b) Recurso de revista nos termos gerais, i) invocando a nulidade do acórdão da Relação, por omissão de pronúncia, por alegadamente não se ter pronunciado sobre a invocada intempestividade do recurso de apelação da Ré; e, por outro lado, ii) do segmento do mesmo aresto que o condenou como litigante de má-fé.


5. Essencialmente, na parte que ora releva, diz nas conclusões da sua alegação:


– Na contra-alegação do recurso interposto pela Ré, o A. invocou que o mesmo havia sido interposto depois de ultrapassado o prazo para o efeito.


– O acórdão recorrido não se pronuncia sobre essa questão, enfermando assim de nulidade, nos termos do artigo 615o, no 1, d), do CPC.


– Quanto ao CVI: foi celebrado um contrato de trabalho, que se rege pelas suas cláusulas, pelo ACTV aplicável e pelo Código do Trabalho; os contratos de trabalho são escritos e apresentados pelas entidades patronais e o trabalhador pouca ou nenhuma capacidade tem de negociar as cláusulas constantes do mesmo.


– O contrato de trabalho apresentado foi assinado pelo A. como condição essencial para a sua contratação.


– O Autor colocou em crise a assinatura aposta num dos anexos do contrato de trabalho, pois não se recordava de a ter efetuado.


– A assinatura foi considerada verdadeira pela 1a instância, mas, independentemente de tal facto, carecia a Ré de fazer prova de que o sistema de pagamento que criou era melhor para o trabalhador, o que não fez.


– O contrato de trabalho não era mais favorável ao trabalhador que o sistema constante do C.C.T., tendo sido violada a sua cláusula 61a (definição de retribuição).


– O designado CVI é uma prestação regular e periódica, feita em dinheiro, e é um subsídio de função, integrando o conceito de “retribuição mensal efetiva”, nos termos do no 2 desta cláusula.


– O TRG não respeitou a hierarquia das normas a aplicar ao contrato, pois o contrato tem cláusulas que contrariam o C.C.T., não se demonstrando que são concretamente mais favoráveis ao trabalhador, pelo que não podem ser aplicadas, em face do princípio da irredutibilidade da retribuição.


– O recorrente não litigou com má fé ao colocar em crise a assinatura aposta num documento junto pela Ré.


6. A R. contra-alegou.


7. A revista excecional foi admitida pela formação dos três Juízes desta Secção Social a que se refere o n.o 3 do artigo 672.o, do CPC.


8. Neste Supremo Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser concedida a revista apenas no tocante à condenação do A. como litigante de má-fé, parecer a que respondeu a recorrida, reiterando a posição antes assumida nos autos quanto a este ponto.


9. As questões a decidir1, pela ordem resultante do nexo de precedência lógica e prático-jurídica que entre elas existe, são as elencadas em supra no 4.


Decidindo.


II.


10. Com relevância para a decisão, a matéria de facto fixada na decisão recorrida é a seguinte:


A) A Ré dedica-se à atividade bancária (...).


B) O Autor é associado do Sindicato Nacional dos Quadros e Técnicos Bancários e Independente da Banca, Associação sindical que se encontra filiada na FSIB.


C) O Autor foi admitido ao serviço da Ré, mediante contrato de trabalho, celebrado em 19 de julho de 2007, com início no dia 23 de julho de 2007, para (...) exercer as funções correspondentes à categoria profissional de Técnico de Grau III, exercendo a função interna designada por Gestor de Produto, sendo a sua antiguidade fixada com início em 15 de outubro de 2003.


D) Em contrapartida pelo trabalho prestado para a ré, o autor auferia, na data da resolução do contrato, a remuneração mensal de € 1.637,14 (...), acrescida de diuturnidades no montante global de € 125,19 (...), de isenção de horário de trabalho € 617,08 (...), de CVI, € 132,49 (...), o que totaliza € 2.511,90.


(...)


G) Desde 02 de junho de 2008, o A. passou a ter isenção de horário de trabalho.


H) Por carta registada com aviso de receção, (...) datada de 23 de abril de 2019, o autor comunicou à ré a resolução do contrato declarando o seguinte: (...)


I) O autor entrou de baixa no dia 15/10/2018, inicialmente por 12 dias, que veio depois a prolongar-se até 27/03/2019.


J) O autor esteve de baixa médica desde o dia 15 de outubro de 2018 até ao dia 27 de março de 2019, tendo regressado nesta data ao trabalho.


(...)


Z) Aquando do início da baixa médica aludida em l), o autor exercia as funções de Responsável de Cliente de Empresas – ... II, com a categoria profissional de Técnico de Grau III, nível 12, função que era exercida desde 24/01/2011 e o seu local de trabalho era em ....


(...)


AAA) No momento da sua contratação, foi atribuído ao autor, o CVI [“Compl. Volunt. Indiv.”], no valor de €350,00, conforme documento junto a fls. 156 e 220 dos autos (...), assinado pelo autor em 19.07.2007.


III.


a) – Se o acórdão recorrido enferma de nulidade, por omissão de pronúncia.





11. Sobre esta questão, em termos que dispensam qualquer desenvolvimento argumentativo, refere o Exmo Procurador-Geral Adjunto, no seu douto parecer:


“A invocação da nulidade em causa só pode ficar a dever-se a mero lapso, uma vez que, após a resposta do autor, o recurso de apelação da ré não foi admitido pelo despacho do tribunal de 1.a instância, de 15.09.2021, sendo que do mesmo foi interposta reclamação nos termos do art. 643.o do CPC.


Em sequência, e por despacho de 03.11.2021, do Tribunal da Relação de Guimarães, foi a reclamação considerada procedente, tendo sido determinada a sua admissão (...).


Esse despacho, não tendo sido objeto de recurso, transitou em julgado, pelo que, em sequência, o recurso da ré foi admitido pelo despacho do tribunal de 1.a instância proferido em 05.01.2022 (...).


Encontrando-se esta questão definitivamente resolvida, não tinha, obviamente, o acórdão recorrido que se pronunciar sobre a mesma.”


Não se verifica, pois, a invocada nulidade.


b) – Se o CVI reveste natureza retributiva e se o acordado pelas partes neste âmbito viola norma legal imperativa ou o ACT.


12. O autor peticiona a quantia de 29.399,07 €, correspondente à diferença entre o valor pago pela ré e o valor a que o autor entende ter direito, referente aos anos de 2008 a 2019, alegando que o CVI, no valor mensal de 350,00 €, que lhe foi atribuído aquando da contratação, é um complemento salarial integrante da retribuição e que a ré, sem o seu consentimento e sem justificação, reduziu o seu valor ao longo dos anos, com início de janeiro de 2008.


13. Do documento aludido no ponto AAA) da matéria de facto consta o seguinte:


“(...)


Remuneração-base: € 1254,00.


CVI: € 350,00.


(...)


O CVI é um conceito salarial, não pensionável, que é concedido em atenção ao desempenho, experiência, conhecimentos e dedicação à empresa, que em cada caso ocorram.


Todas as importâncias lançadas nesta rubrica serão consideradas como pagas por conta de todo e qualquer aumento futuro na retribuição mensal efetiva, resultante da negociação do clausulado do ACTV ou revisão contratual das cláusulas com expressão pecuniária e dos montantes necessários a ajustamentos resultantes das promoções impostas pelo ACTV ou da iniciativa do próprio Banco.”


14. Neste âmbito, as instâncias coincidiram no seguinte raciocínio: i) o CVI acordado pelas partes não tem natureza retributiva; ii) o assim acordado não envolve a ofensa de normas legais imperativas, mormente o princípio da irredutibilidade da retribuição; iii) tal como não viola qualquer instrumento de regulação coletiva.


15. Quanto à natureza (não) retributiva da prestação remuneratória em causa:





15.1. O art. 258.o, do CT/20092, epigrafado “princípios gerais sobre a retribuição”, dispõe:


1 - Considera-se retribuição a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho.


2 - A retribuição compreende a retribuição base e outras prestações regulares e periódicas feitas, direta ou indiretamente, em dinheiro ou em espécie.


3 - Presume-se constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador.


4 - À prestação qualificada como retribuição é aplicável o correspondente regime de garantias previsto neste Código.


E, complementarmente, o art. 129o, no 1, d), consagra o princípio da irredutibilidade da retribuição.


Precisando conceitos, utilizaremos o de remuneração em sentido amplo, compreendendo a retribuição (em sentido técnico-jurídico ou restrito) e outras prestações remuneratórias destituídas de índole retributiva.


Posto isto.


A densificação do conceito fortemente indeterminado de retribuição envolve múltiplas dificuldades.


Desde logo, como nota Júlio Manuel Vieira Gomes, “para alguns autores (...) o sinalagma não domina toda a execução do contrato de trabalho, havendo frequentes derrogações ao sinalagma funcional, derrogações que permitiriam falar de uma crise do sinalagma ou, de um outro prisma, escapar da tirania da correspetividade”3, sendo que «a complexidade da retribuição, resultante da sua plurifuncionalidade e da convergência de perspetivas e valores contrastantes, individuais e supra-individuais, é bem visível, mesmo num contacto superficial, com a “selva retributiva”, atendendo á “fantasia dos nomes” e ao modo como estes se multiplicam»4.


Conexamente, refira-se, “a verdade é que a história da retribuição (...) é uma história feita da multiplicação das suas componentes e da tendência a oscilar entre sistemas retributivos que assumem que o intercâmbio essencial no contrato de trabalho se faz entre o tempo de trabalho e o respetivo preço e sistemas retributivos que atendem em maior medida ao resultado”5.


Em todo o caso, é irrelevante, neste âmbito, o nomen iuris que as partes atribuam a determinada prestação remuneratória: “a vontade (individual ou coletiva) não pode [só por si] atribuir natureza retributiva a uma prestação que dela careça (...) ou, inversamente, negar tal natureza a uma prestação que intrinsecamente se apresente como retributiva” 6.


Com base no teor do citado art. 258o, Monteiro Fernandes define a retribuição como “conjunto dos valores (pecuniários ou não) que a entidade patronal está obrigada a pagar regular e periodicamente ao trabalhador em razão da atividade por ele desempenhada (ou, mais rigorosamente, da disponibilidade da força de trabalho por ele oferecida)”7.


Pese embora todas as dificuldades associadas à fluidez de alguns dos elementos definidores do conceito de retribuição, conjugando o citado art. 258o com as demais disposições legais pertinentes do Código do Trabalho, maxime o art. 260o (prestações incluídas ou excluídas da retribuição), t 260o, é possível identificar os seguintes elementos fundamentais:


i) Patrimonialidade, embora a retribuição possa ter uma componente pecuniária e outra em espécie (art. 259o).


ii) Obrigatoriedade, decorrente da lei, de IRCT, de contrato individual, de regulamentação interna ou de usos laborais.


«Pretende-se, assim, afastar as meras liberalidades, valores atribuídos com animus donandi nomeadamente a título de “recompensa ou prémio” (são as gratificações ou prestações extraordinárias a que se reporta o art. 260o/1-b), sem prévia vinculação do empregador.8 Já se vê, todavia, que podem ser disfarçadas sob tal fórmula verdadeiras prestações salariais (...).


Note-se (...) que a lei (art. 260o/1-c) exclui o carácter retributivo de certos prémios de mérito e de assiduidade (...) que se relacionam, por sua natureza, com a prestação de trabalho. O mecanismo de exclusão assenta no facto de a atribuição desses prémios não estar antecipadamente garantida – justamente por depender da verificação de [outros] fatores a considerar – e não constituir, por conseguinte, fundamento de qualquer expetativa legítima de ganho, não sendo, neste sentido específico, obrigatória.9


iii) Periodicidade/regularidade (que não tem de ser a mesma para todas as prestações), embora Júlio Gomes, em linha com outros autores, afirme que hesita em afirmar que só as prestações regulares podem assumir a natureza de retribuição, tendo em conta que “nesta matéria parte-se de uma presunção ilidível de que constitui retribuição toda e qualquer prestação do empregador ao trabalhador”10.


À luz do art. 260o, no 1, b), os prémios e gratificações não integram a retribuição se forem extraordinários, integrando-a, ao invés, se forem atribuídos regularmente.


Sobre este requisito, diz Monteiro Fernandes:


«Esta característica tem um duplo sentido indiciário: Por um lado, sugere a existência de uma vinculação prévia (quando não se ache expressamente consignada) e, por conseguinte, de uma prática vinculativa; por outro, assinala a medida das expetativas de ganho do trabalhador e (...) confere relevância ao nexo existente entre a retribuição e as necessidades pessoais e familiares daquele.


A repetição (...) do pagamento de certo valor, com identidade título e/ou montante, cria a convicção da sua continuidade e conduz a que o trabalhador, razoavelmente, paute o seu padrão de consumo por tal expetativa (...) juridicamente protegida.” 11


iv) Correspetividade.


No tocante a este elemento, continua o mesmo autor: 12


«Enfim, é necessário que exista correspetividade entre as prestações do empregador e a situação de disponibilidade do trabalhador – ou seja, noutros termos, que essas prestações não tenham causa específica e individualizável, diversa da remuneração do trabalho.


(...)


É, em suma, necessário que se possa detetar uma contrapartida específicadiferente da disponibilidade da força de trabalho – para certa prestação do empregador, a fim de que esta se coloque à margem do salário global. O que, dito de outro modo, envolve a existência da presunção de que qualquer atribuição patrimonial efetuada pelo empregador em benefício do trabalhador, salvo prova em contrário, constitui parcela da retribuição (art. 258o/3).”


Especialmente significativo sobre este ponto específico é o Ac. de 12.10.2017 desta Secção Social13, Proc. n.o 84/16.0T8PNF.P1.S2, assim sumariado:


I. Princípio reitor na definição da retribuição (stricto sensu), visto o carácter sinalagmático que informa o contrato de trabalho, é a exigência da contrapartida do trabalho, pois só se considera retribuição aquilo a que nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho.


II. Mesmo provadas a regularidade e a periodicidade no pagamento de remunerações complementares, as mesmas não assumem carácter retributivo se tiveram uma causa específica e individualizável, diversa da remuneração do trabalho ou da disponibilidade para este.


III. Não integram o apontado conceito de retribuição, pela falência do elemento constitutivo da contrapartida da prestação, os suplementos remuneratórios recebidos pelo trabalhador a título de “Abono/subsídio de Prevenção”, pois é pago para estar disponível para uma eventual chamada, fora das horas normais de serviço.


IV. Não integra o conceito de retribuição o subsídio de condução que é pago ao trabalhador, que não sendo motorista tem que conduzir em exercício de funções e por causa destas, pois visa compensar a especial penosidade e o risco decorrente da condução de veículos, tendo assim uma justificação individualizável, diversa da contrapartida pelo trabalho prestado.


15.2. Sobre os contornos do conceito de retribuição, a propósito de um “complemento remuneratório em absorção”, ponderou-se no recente Ac. do STJ de 15.02.2023, Proc. 2162/19.4T8BRR.L1.S1:


«(...)


[O] n.o 2 do artigo 258.o distingue a retribuição base das chamadas prestações complementares (subsídios de penosidade, perigosidade, diuturnidades, alimentação, turno, férias, Natal, prémios de produtividade ou de assiduidade, comissões, prestações por trabalho suplementar ou noturno, por exemplo).


É consensual na doutrina que a delimitação do conceito de retribuição suscita na sua concretização inúmeras dificuldades, que a jurisprudência tem tentado clarificar e desenvolver (...).


João Loff Barreto, in Indemnização por despedimento - art. 13.o, n.o 3 do DL 64-A/89, ROA, Ano 53, p. 787, explica que “o “vencimento base” já deixou em muitos casos de constituir o “sol do sistema” face aos satélites constituídos pelas remunerações “corretivas” ou “acessórias” e pelas remunerações “variáveis”.


(...)


Por sua vez, Monteiro Fernandes (...) esclarece que “Ao lado da retribuição-base, generalizam-se gratificações de diversa natureza, conhecidas pelas mais variadas designações: subsídio de férias, gratificação de Natal (ou também “décimo-terceiro mês”), gratificação de balanço, subsídio de Páscoa, prémio ou gratificação de assiduidade, etc. Sob a aparência de liberalidades recompensatórias que o próprio termo “gratificação” sugere, trata-se realmente, na maioria dos casos, de prestações salariais suplementares, caracterizadas por uma periodicidade distinta da do salário-base”.


(...)


Leal Amado e Outros, in Direito do Trabalho, Relação Individual, Almedina, 2019, pág. 771, escrevem que “O n.o 2 do art. 258.o dá conta da grande complexidade assumida pelo salário, nele se distinguindo a chamada «retribuição base» de todo um conjunto (cada vez mais extenso e diversificado, sobretudo por influência da contratação coletiva) de prestações complementares ou acessórias, tais como diuturnidades, subsídios de risco, de penosidade, de toxicidade, de isolamento, de alojamento, de alimentação, de transporte, de turno, de férias, de Natal, prémios de produtividade ou de assiduidade, comissões, prestações por trabalho suplementar ou noturno... O salário é, pois, uma realidade multiforme e heterogénea, integrada por numerosas prestações pecuniárias, mas também, não raro, por prestações em espécie (alojamento, alimentação, automóvel ou telemóvel para uso particular, etc.), a este propósito se falando, eloquentemente, em «retribuição complexiva», de modo a abranger todas aquelas prestações. De forma ainda mais impressiva, não falta mesmo quem veja na variada tipologia de atribuições patrimoniais constitutivas do salário a expressão de uma autêntica «selva retributiva», tornando a estrutura daquele fragmentária e quase incontrolável”.


Neste particular, Júlio Gomes (...) dá conta que do tradicional sistema de retribuição em função do rendimento, têm despoletado as mais variadas fórmulas de retribuição em função do resultado e a atribuição de benefícios (fringe benefits), nomeadamente, entre os “quadros e os cargos de direção, como seja pagamento de prémios de seguros, complementos “à assistência em caso de doença, pensões complementares e reforma, empréstimos para aquisição de casa ou de automóvel”, estrutura retributiva esta avessa a qualquer tarefa de elaboração dogmática.”


(...)


O Conselho de Administração da Ré (...) atribuiu à Autora o “complemento remuneratório em absorção, com efeitos a partir de 01 de janeiro de 2005, pago catorze vezes por ano, no valor de € 300.00”; mais foi deliberado pelo mesmo Conselho de Administração que esse “complemento remuneratório em absorção seja absorvível, em montante não superior a um terço do valor devido por futuros acréscimos de retribuição mensal”.


A única absorção foi de € 26,04 (€ 300,00 - € 273,96).”.


(...)


O Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo que a atribuição ao trabalhador de uma remuneração complementar paga todos os meses, inclusive no subsídio de Férias e de Natal, integra o conceito de retribuição base, independentemente da designação que lhe tenha sido atribuída pelo empregador [cfr. acórdãos do STJ de 04-07-2018, proc. n.o 4981/16.4T8VIS.C1.S1, Júlio Gomes (Relator), e 14-01-2015 Recurso n.o 2330/11.7TTLSB.L1.S1, Melo Lima (Relator), in www.dgsi.pt].


Preenche tais requisitos, o “complemento remuneratório em absorção” pago à Autora (...)


É também entendimento do Supremo Tribunal de Justiça que está vedado ao empregador reduzir a retribuição auferida pelo trabalhador, sendo certo que a mesma corresponde àquilo que o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho, compreendendo a retribuição base e outras prestações regulares e periódicas destinadas a remunerar a prestação laboral [cfr. acórdão do STJ de 01-06-2017, proc. n.o 585/13.1TTVFR.P1.S1, Chambel Mourisco (Relator), in www.dgsi.pt].


(...)»


Nesta matéria, assumem ainda especial pertinência os seguintes acórdãos desta Secção Social:

• Ac. de 06.05.2020, Proc. n.o 14746/18.3T8LSB.L1.S1:

Deve ser considerada retribuição uma prestação paga anualmente ao trabalhador cujas condições de atribuição estão publicadas na Intranet da Ré, e que é determinada pelo conjunto de três componentes: o desempenho individual do trabalhador - 30%; o desempenho da área de negócio do trabalhador - 40%; e o desempenho global da empresa - 30%, sendo certo que estes elementos se reportam a um ano civil, sendo que o seu conhecimento apenas ocorre no ano civil seguinte, ou seja, após o encerramento das contas da área de negócio e da empresa e da avaliação referente ao ano em causa.

• Ac. de 04.07.2018, Proc. n.o 4981/16.4T8VIS.C1.S1:

A atribuição ao trabalhador de uma remuneração complementar paga todos os meses, desde que assumiu as funções de Diretor Regional em 2006, e inclusive no subsídio de Férias e de Natal, integra o conceito de retribuição base, independentemente da designação que lhe tenha sido atribuída pelo empregador.


– Ac. de 01.06.2017, Proc. n.o 585/13.1TTVFR.P1.S1:





O complemento de mérito previsto no art.o 44.o, do Estatuto dos Trabalhadores da Caixa Económica Montepio Geral, acresce à retribuição fixada no respetivo ACTV e é atribuído, de forma [casuística e] precária, a título de mérito, ou seja corresponde a um prémio atribuído pelo empregador que vai para além do que é devido ao trabalhador como contraprestação pelo trabalho por ele desenvolvido. Não integrando o referido complemento a retribuição do trabalhador, o seu não pagamento, no âmbito do estrito circunstancialismo estabelecido no aludido Estatuto, não consubstancia qualquer violação do princípio da irredutibilidade da retribuição por o mesmo não assumir essa natureza.


15.3. In casu:


O texto constante do documento aludido no ponto AAA) da matéria de facto e em supra no 13, que se propõe definir o CVI, é um texto que não prima pela clareza e do qual não se retira qualquer elemento que minimamente permita perceber/identificar qualquer causa específica e individualizável para tal prestação remuneratória, diversa da remuneração do trabalho.


É certo, todavia, em face do mesmo texto, que não se trata de um complemento extraordinário, mas antes, de uma prestação regular, paga mensalmente (14 vezes ao ano, como por acordo das partes decorre dos autos) e que se mostra antecipadamente garantida, circunstâncias que desde logo obstam ao enquadramento do CVI nas alíneas b) e c) do no 1 do art. 260o.


Neste contexto, e nada se tendo provado em contrário, não pode deixar de reconhecer-se a natureza retributiva do CVI, nos termos, desde logo, do preceituado no art. 258o, no 3, do CT.


16. Se a natureza variável do CVI viola normas legais imperativas, mormente o princípio da irredutibilidade da retribuição:





Tendo convencionado que o denominado CVI teria um quantitativo (base) de 350,00 € mensais, as partes acordaram, complementar e relevantemente, que “todas as importâncias lançadas nesta rubrica serão consideradas como pagas por conta de todo e qualquer aumento futuro na retribuição mensal efetiva (...) e dos montantes necessários a ajustamentos resultantes das promoções impostas pelo ACTV ou da iniciativa do próprio Banco”, daqui decorrendo que esta prestação constitui a componente variável de uma retribuição mista (cfr. art. 260o).


Efetivamente, durante cerca de uma dúzia de anos, o CVI foi pago mensalmente, regular e periodicamente, em quantias de valor variável, como resulta dos recibos de vencimento juntos aos autos, dos quais não decorre que, até à cessação da relação laboral, o A. alguma vez tenha questionado os valores pagos a este título, nomeadamente que os pagamentos não observassem os requisitos contratualizados no tocante à sua atribuição.


Em face dos articulados, não existe controvérsia entre as partes sobre os valores efetivamente pagos e os ajustamentos efetuados pela ré.


Também decorre dos autos que, nos termos contratualizados, a R. apenas reduziu o CVI na estrita medida dos aumentos da retribuição-base do A. que tiveram lugar, sendo certo que a lei laboral em nada obsta a que as partes convencionem (pacta sunt servanda) a alteração das componentes de uma retribuição mista, desde que não haja redução do valor global da remuneração, como acontece no caso vertente.


Na verdade, constitui jurisprudência pacífica que o princípio da irredutibilidade da retribuição se reporta ao seu valor global, pelo que não o viola o empregador que [mesmo unilateralmente] procede à diminuição do valor de uma componente remuneratória, desde que não se verifique uma diminuição do montante global da retribuição (v.g. Acs. do STJ de 02.12.1998, CJ/STJ-98, III, p. 280, de 20.11.2003, Proc. n.o 03S2170, de 26.03.2008, Proc. n.o 07S3791, e de 18.01.2018, Proc. n.o 25106/15.8T8LSB.L1.S114, e Ac. da Rel. Coimbra de 06.12.2019, Proc. n.o. 1558/18.3T8CVL.C1).


No mesmo sentido, v.g. Monteiro Fernandes, ob. cit., pp. 409 – 410, e Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 6.a edição, p. 578.


17. Conformidade do acordado CVI com o ACT:


À relação laboral em causa é aplicável o ACT celebrado entre várias instituições de crédito e o Sindicato Nacional dos Quadros e Técnicos Bancários e outro, publicado no BTE no. 4/2005, e o que lhe sucedeu, publicado no BTE no. 29/2016, com alteração às cláusulas pecuniárias publicada no BTE no. 10/2019.


No ACT, publicado no BTE no. 29/2016, a cláusula 61.a, n.o 2, estipula que “a retribuição compreende a remuneração base e todas as outras prestações regulares e periódicas feitas, direta ou indiretamente, em dinheiro ou espécie”, dispondo a cláusula 62.a, n.o 2: “A retribuição mensal efetiva compreende: a) A retribuição de base; b) As diuturnidades; c) Os subsídios de função previstos neste acordo; d) Qualquer outra prestação paga mensalmente e com carácter de permanência por imperativo da lei ou deste acordo, como contrapartida do trabalho prestado.”.


Ora, como nota o Exmo Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, “percorrendo-se o ACT aplicável, é de concluir que o CVI recebido pelo recorrente não se encontra aí previsto, pelo que a sua atribuição resulta apenas do acordo efetuado entre o recorrente e o recorrido, nos termos que se encontram expressamente previstos no já referido documento”, pelo que “não se alcança o argumento do recorrente no sentido que o recorrido não provou que o regime remuneratório previsto no contrato de trabalho é mais favorável do que o que resulta do ACT, já que, não sendo obrigatório o seu pagamento pelo IRCT, sempre esse regime é mais vantajoso para o recorrente”.


18. Em suma: pese embora a natureza retributiva do CVI, os termos em que foi contratualizado e implementado pela R. não infringe qualquer norma legal imperativa ou o ACT.


c) – Condenação do A. como litigante de má-fé.





19. Nos termos do artigo 542o, no 2, do CPC, “Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:


a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;


b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;


c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;


d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”.


O A. foi condenado por litigância de má-fé por ter arguido a falsidade da sua assinatura, inserta no documento aludido no ponto AAA) dos factos provados, junto ao processo pela R.


A este propósito, invoca o recorrente, fundamentalmente: o facto ocorreu em 2007 e o A. alegou a falsidade da assinatura em 2019; o decurso do tempo tende a confundir e enevoar as nossas lembranças; o ora recorrente, ao impugnar a assinatura perante a apresentação de um documento pela R., tinha razões de defesa legítimas para afirmar a falsidade da assinatura, não tendo atuado com dolo ou negligência grave ou grosseira.


Todavia, em termos categóricos, o A. arguiu a falsidade da sua assinatura, nos seguintes termos: a assinatura constante do referido documento 15 não é a do A., pelo que se impugna, com as legais consequências, protestando este juntar cópia do C.C. bem como amostra de assinaturas suas, como princípio de prova; consequentemente, o documento apresentado para além de não produzir os efeitos jurídicos pretendidos pela R. é também falso”.


Independentemente do grau de probabilidade15 que no exame pericial foi considerado no tocante à veracidade da assinatura (facto destituído de qualquer significado, pois apena releva o juízo final neste âmbito formulado pelo tribunal), a verdade é que o A. negou a prática de um ato pessoal que só com negligência manifestamente grave/groseira poderia desconhecer, assim deduzindo pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar e fazendo um uso manifestamente reprovável do incidente de falsidade.


Por inteiro acompanhamos, pois, as considerações expendidas pelo acórdão recorrido ao fundamentar a condenação do A. como litigante de má fé, a saber:


“(...)


Intentar ou contestar uma ação, representado por advogado, implica encontros com o causídico, rememoração e descrição dos factos a levar ao processo, sobre provas, etc... Os deveres de probidade e boa-fé que devem orientar as pessoas no acesso à justiça impõem deveres de cuidado, impõem um comportamento diligente no que se afirma e requer em tribunal.


Ainda que se conclua que a parte não tomou consciência que estava a impugnar facto verdadeiro, sempre estaremos em face de uma negligência grosseira, por omissão de deveres de cuidado elementares, que qualquer cidadão medianamente diligente tomaria, tanto mais tratando-se de um facto pessoal.


Em tais circunstâncias, só um completo desprezo pela verificação da verdade ou não do facto, antes de o invocar ou impugnar (a parte não se preocupa sequer em fazer essa verificação), pode justificar que não ocorra dolo. Mas estaremos seguramente no âmbito da negligência grosseira, de uma negligência própria de uma pessoa especialmente negligente, descuidada, desinteressada em relação aos deveres de boa-fé e probidade.


O autor impugnou a assinatura que veio a demonstrar-se é do seu punho. O autor não se limitou a tentar descredibilizar a versão da ré, foi mais adiante e negou a sua assinatura, impugnando-a, levando a ré a ter que solicitar a perícia.


Ao contestar a sua assinatura o autor agiu com má-fé, pelo menos na forma de negligência grave».


IV.


20. Em face do exposto, confirmando o acórdão recorrido, acorda-se em negar as revistas (excecional e nos termos gerais), embora com fundamentação diversa relativamente à matéria suscitada no âmbito do recurso de revista excecional.


Custas pelo A.


Lisboa, 23 de junho de 2023


Mário Belo Morgado (Relator)


Júlio Manuel Vieira Gomes


Ramalho Pinto





____________________________________________________

1. O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.o, 663.o, n.o 2, e 679o, do CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais nem vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.o, n.o 3, do mesmo diploma.↩︎

2. Como todas as disposições legais citadas sem menção em contrário.↩︎

3. Direito do Trabalho, I, Coimbra Editora, 2007, p. 760↩︎

4. Ibidem, p. 765↩︎

5. Ibidem.↩︎

6. Ibidem, p. 769.↩︎

7. Direito do Trabalho, Almedina, 16a edição, p. 395.↩︎

8. Todos os sublinhados e destaque são nossos.↩︎

9. Monteiro Fernandes, ob. cit., p. 396.↩︎

10. Ob. cit., p. 768.↩︎

11. Ibidem., p. 397.↩︎

12. Ibidem.↩︎

13. Como todos os arestos do Supremo Tribunal de Justiça citados sem menção em contrário.↩︎

14. Em cuja fundamentação se lê: “(...) o princípio da irredutibilidade da retribuição não obsta à alteração, por parte do empregador, do modo de cálculo da retribuição, na relação entre a remuneração de base e os respetivos complementos, desde que, evidentemente, tal alteração não redunde na diminuição da retribuição”.↩︎

15. Entre 50 e 70%, no caso em apreço.↩︎