Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
627/19.7T8CNT.C1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE DIAS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
AÇÃO DE PREFERÊNCIA
TRIBUNAL COMUM
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
CONHECIMENTO PREJUDICADO
RECURSO DE REVISTA
RESTRIÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PRESSUPOSTOS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 05/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO TOMAR CONHECIMENTO DO RECURSO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Admitido o recurso ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 2 do art. 629 do CPC (regras de competência em razão da matéria), o seu objeto fica limitado à apreciação da impugnação que esteve na base da sua admissão, não podendo alargar-se a outras questões.

II - A determinação do tribunal competente em razão de matéria, como é questão a tratar por agora, é aferida em função dos termos em que é formulada a pretensão do autor, incluindo os respetivos fundamentos.

III - Uma ação de preferência como a presente, prevista no art. 1380º do CC, é manifestamente o exercício de um direito real de aquisição, visando dar completude ao direito de propriedade do proprietário confinante, conferindo-se aos tribunais comuns a competência (subsidiária) para dirimir conflitos nessa área.

IV - Tendo a ação corrido no Tribunal comum, não ocorreu violação das regras de competência em razão da matéria.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 1ª Secção Cível.



AA intenta a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra:

1. BB, e mulher, CC,

2. DD e marido, EE, e

3. FF,

Alegando, em síntese, que os 1ºs. RR. venderam à 3ª R. um prédio rústico confinante com um prédio rústico propriedade da autora, inferior à unidade de cultura, sem que lhe tenha sido dada preferência, pedindo, em consequência, que seja reconhecido à autora o direito de haver para si o prédio rústico vendido à Ré FF.

Os 1ºs. Réus/vendedores deduziram CONTESTAÇÃO, no sentido da improcedência da ação, alegando terem dado conhecimento dos elementos essenciais da transmissão ao (ex) marido da autora, sendo que, o prédio da autora encontra-se afeto à construção urbana e o prédio vendido é também apto para tal fim, agindo a autora em abuso de direito.

A Ré FF deduz também CONTESTAÇÃO, alegando, em síntese:

Aquando da compra do prédio da autora em 2009, deram entrada de um pedido de licenciamento, “obras de edificação”, destinando-se esta a habitação, anexos e muros, sendo que, também a Ré requereu junto da CM de ... um pedido de licenciamento para a edificação de construção no terreno objeto de preferência, não preenchendo a parcela da autora os requisitos legais do art. 1380º, nº1, CC;

Por outro lado, o prédio da Ré destina-se a outros fins que não os relacionados com a agricultura, sendo sua intenção afetá-lo à construção urbana, encontrando-se, assim, excluído o direito de preferência por força da al. a) do art. 1381º CC;

A autora teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação e renunciou ao direito de preferência.

Conclui pela improcedência da ação.

A Autora apresenta articulado de RESPOSTA às exceções deduzidas em ambas as contestações, alegando, no que assume relevo para o objeto do recurso, que o facto de o Dr. GG, antigo proprietário do imóvel pertencente à autora te pedido no ano de 2009 uma licença de construção para o rústico é irrelevante, não afetando a atual proprietária, para além de que tal licença de construção caducou; quanto ao pedido de licenciamento formulado para o prédio objeto da preferência é para uns arrumos com a área de 80 m2 e não para edificar qualquer imóvel, sendo que, o facto de os imóveis se encontrarem numa zona de construção considerada como tal pelo PDM não significa só por si que os prédios obedeçam a todos os requisitos necessários para se poder construir.


*


Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença em que é proferida a seguinte decisão:

“Pelo exposto, decido julgar a presente ação procedente e, consequentemente:

1. Reconhecer à autora o direito de preferência na compra e venda formalizada na escritura notarial exarada no dia 02 de Abril de 2009, do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...31, com inscrição matricial sob o art. ...54 da Freguesia ... e ..., nela passando a ocupar a posição da 3ª ré compradora, FF.

2. Ordenar o cancelamento da inscrição predial de aquisição a favor da 3ª ré e outras que, entretanto, tenham sido efetuadas com base na escritura de compra de venda referido em 1.).

Inconformada veio a ré FF interpor recurso de apelação, sendo deliberado e a final proferido acórdão do seguinte teor:

“Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar procedente a Apelação, revogando a decisão recorrida, pelo que, julgando a ação improcedente, se absolvem os réus do pedido”.


*


Inconformada com o decidido pela Relação, a autora AA interpõe recurso de Revista para este STJ, e formula as seguintes conclusões:

“1 - Nunca até à prolação da Acórdão recorrido se havia colocado nos autos a questão jurídica da classificação para efeitos fiscais do prédio da Recorrente, a qual introduz uma nova abordagem na apreciação do caso em apreciação.

2 – Tendo esta nova abordagem sido determinante para a alteração da decisão da 1ª instância, o Acórdão recorrido constitui uma decisão surpresa.

3 - Os arts. 6º e 13º do CIMI não foram invocados no Acórdão recorrido a título incidental, mas sim como a fundamentação jurídica que serviu de base à decisão de mérito neste proferida.

4 - Quando estejam em causa questões de facto ou de direito relevantes para a decisão a proferir, como é manifestamente o caso presente, existe o dever de audição prévia dos interessados como forma de dar cumprimento efectivo ao princípio do contraditório.

5 - A inobservância do princípio do contraditório constitui uma violação grave sempre que tal omissão seja susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, constituindo uma nulidade processual que afecta a decisão proferida.

6 - A competência em razão da matéria do tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é configurada no seu articulado, independentemente do mérito da pretensão deduzida.

7 - Parece evidente que para os efeitos predominantemente civis, como será o exercício de um direito de preferência, devem valer as noções resultantes da lei civil fundamental, não se encontrando o Tribunal vinculado pelos conceitos ou classificações resultantes do direito fiscal.

8 - Caso Administração Fiscal classificasse o prédio da Recorrente como terreno para construção, cabia aos tribunais fiscais conhecer, nos termos dos arts 1º, nº 1, 2º, nº 1 e 49º nº1, al. a) , ii, do ETAF impugnação que dela eventualmente se viesse a fazer e não aos tribunais do foro cível.

9 - Os conceitos do direito civil e do direito fiscal não são necessariamente os mesmos, cabendo determinar em cada caso qual deles se aplica, devendo os Tribunais respeitar as regras da competência em razão da matéria, o que não aconteceu no caso presente.

10 - Ao decidir uma questão predominantemente civil não com base no CC mas sim com base na legislação fiscal, o Acórdão recorrido violou as regras da competência em razão da matéria.

11 – Ao contrário do que se afirma no Acórdão recorrido o processo de licenciamento do prédio da Autora caducou e foi arquivado em Janeiro/20.

12 - À luz do direito civil, da factualidade dada como provada nas alíneas “D” e “P” dos factos provados resulta que o prédio da Autora é um prédio rústico, não se verificando no caso presente a excepção ao exercício do direito de preferência prevista na alínea a) do artº 1381º do CC.

13 - O Acórdão recorrida violou o disposto nos arts. 3º, nº 3 e 64º do CPC e alínea a) do artº 1381º do CC.

Termos em que, deve a presente revista ser julgada procedente e consequentemente revogar-se o Acórdão recorrido e confirmando-se a decisão proferida pela 1º Instância”.

Apresenta resposta a ré FF, concluindo:

“1ª O presente recurso não deve ser admitido, porquanto:

a) - O valor da causa não excede a alçada do Tribunal da Relação, pelo que não pode haver lugar arecurso de revista;

b) - A competência das instâncias foi devidamente fixada em tempo próprio e não foi em ponto algum reclamada pelas partes;

c) - Não existiria qualquer decisão-surpresa dado que o acórdão recorrido não apreciou quaisquer normas no âmbito administrativo, mas limitou-se a tirar ilações da matéria de facto para aquilatar da aplicação (ou não) do disposto no artº 1381º do Código Civil – o que sempre foi apreciado em todas as instâncias;

d) -A ora recorrente não suscitou qualquer questão relativa à competência material nas suas contra-alegações de recurso ordinário;

e) -Os tribunais judiciais são competentes para decidir matérias do âmbito administrativo desde que tais matérias sejam conexas com a questão principal a decidir nos autos, a qual é do foro do direito privado (exercício do direito de preferência em compra e venda de imóvel);

2ª Relativamente às demais questões suscitadas pela ora recorrente, não existe qualquer nulidade, violação das regras de competência material, ou erro na aplicação do Direito.

Vejamos.

3ª Não existe qualquer decisão-surpresa, tal como não existiu qualquer decisão-surpresa quando a ora recorrente obteve ganho de causa quando a 1ª instância decidiu a seu favor inicialmente e entendeu não se verificar a exclusão da al. a) do nº1do artigo 1381º, CC, dado que:

a) - Estava em causa nos autos o enquadramento da licitude do exercício de direito de preferência relativamente a uma compra e venda de imóvel, cumpria aferir se estava excluído o exercício do direito de preferência ao abrigo do al. a) donº1 do artigo 1381º, CC.

b) - A apreciação de tal questão envolveu, em todas as instâncias, a convocação de matérias do foro administrativo (classificações de imóveis por tipologia urbana ou rústica e eventual ponderação da possibilidade de alteração dessa classificação mediante a situação de facto) como questões conexas à principal.

c) - Com efeito, não seria possível a nenhum Tribunal judicial apreciar da aplicação da exceção prevista na al. a) do nº 1 do artº 1381º do CC caso não pudesse convocar normas do foro administrativo em função da factualidade provada.

d) - Com efeito, caso a pretensão da ora recorrente viesse a obter acolhimento, todas as questões relacionadas com o exercício do direito de preferência teriam, necessariamente, de ser remetidas à jurisdição administrativa por força da questão conexa que a norma da al. a) do nº1 do artigo 1381º do CC admite.

4ª O acórdão recorrido não incorreu em qualquer violação das regras de competência em razão da matéria, dado que:

a) - Não está, nem nunca esteve, em causa qualquer questão do foro da jurisdição administrativa, nem a ora recorrente alega que o exercício do direito de preferência seja uma questão materialmente administrativa – algo que, fora de certas coordenadas especificas, não o seria à partida.

b) - Assim sendo, a convocação de outras normas de direito administrativo para resolver uma questão do foro privado é admissível à luz do disposto no artº 91º do CPC, e é jurisprudência pacífica que tal possibilidade está aberta aos Tribunais – sob pena de todas as questões ligadas ao exercício do direito de preferência deverem ser remetidas aos tribunais administrativos.

Por fim,

5ª Louvando-nos no raciocínio trilhado pelo acórdão recorrido (cujo teor se dá por integralmente reproduzido e do qual não se discorda), não há qualquer erro na interpretação e aplicação do Direito, pelo que a decisão vertida no acórdão recorrido deve ser integralmente mantida.

Nestes termos

Devem as presentes contra-alegações de recurso ser consideradas procedentes e, em consequência:

a) - Ser liminarmente indeferida a admissão do recurso de revista apresentado pela ora recorrente;

OU,

b) - Ser negado provimento ao recurso, e mantido o acórdão recorrido”.


*


O recurso foi admitido excecionalmente, ao abrigo do disposto no art. 671º, nº 2 al. a) e art. 629º, nº 2 al. a), ambos do CPC.

Cumpre apreciar e decidir.


*


Nas Instâncias foram apurados os seguintes factos:

“São os seguintes os factos dados como provados na decisão recorrida:

A) Por escritura pública outorgada no dia 2 de Abril de 2019, a terceira Ré comprou aos primeiros e segundo Réus o seguinte prédio: Prédio rústico composto por terra de semeadura, vinha e casal, situado na ..., na União de Freguesias ... e ..., concelho ..., com a área de quatro mil e cem metros quadrados, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ..., da freguesa de ...,” (…), “inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ...54, da União de Freguesias ... e ..., proveniente do artigo rústico ...00 da extinta freguesia ...”.

B) Nesta escritura o preço de venda declarado foi de € 8.000,00.

C) A 3ª ré, à data de aquisição, não era proprietária de qualquer prédio rústico confinante com o prédio agora adquirido.

D) Sob o nº 435/19..., encontra-se descrito como rústico na Conservatória do Registo Predial ... o prédio, sito em ..., Freguesia ... e ..., com a área de 910m2, composto de terra de semeadura, 3 tanchas, 10 cepas e vinha e casal, a confrontar no norte com Estrada, sul Herdeiros de HH, nascente II e poente JJ, inscrito na respetiva matriz rústica sob o art. ...56.

E) A aquisição da propriedade desse prédio encontra-se inscrita a favor da autora por partilha subsequente a divórcio pela Ap. ...43 de 2012/08/09, tendo por sujeito passivo GG.

F) Sob o nº 12131/20..., encontra-se descrito como rústico na Conservatória do Registo Predial ... o prédio, sito em ..., Freguesia ... e ..., com a área de 4957 m2, composto de terreno de semeadura, e vinha e casal, a confrontar do norte com II, sul KK, nascente LL, e Poente Largo ..., inscrito na matriz rústica sob o art. ...54.

G) A aquisição da propriedade desse prédio encontra-se inscrita a favor da 3ª ré, por compra pela Ap. ...49 de 2019/04/03, tendo por sujeito passivo BB e DD.

H) O prédio referido em D) confina do seu lado sul com o prédio objeto da escritura mencionada em A).

I) Os 2ºs réus anunciaram a intenção de venda do prédio referido em A) mandando colocar no mesmo uma placa indicativa dos números de telemóvel com os dizeres seguintes: “vende-se ...99 / ...39”.

J) Em data anterior à venda GG contactou telefonicamente MM, representante dos 2ºs réus, manifestando interesse na compra do imóvel, sendo que, informado do preço de 8.000,00 €, referiu que por esse preço não estava interessado.

K) Em 10/10/2009, foi requerido ao Município de ... por GG, residente na morada da Autora da Petição Inicial, na qualidade de proprietário, licença administrativa para obras de construção de uma habitação, anexos e muros no seu prédio descrito em D).

L) A 3ª ré adquiriu o prédio descrito em A) com intenção de o afetar à construção de uma casa/moradia.

M) A 3º Ré requereu em 2019 junto da Câmara Municipal de ... licenciamento para a edificação de construção de arrumos com área de implantação de 80,80 m2 no terreno objeto de preferência inscrito na matriz predial sob o n.º ...54.

N) De acordo com o PDM do Município de ..., o prédio descrito em D) situa-se em área qualificada de “solo urbano” e o prédio referido em A) em “solo urbano” e em “solo rural” na categoria de “espaço agrícola” abrangida parcialmente pela “reserva ecológica nacional”.

O) Ambos os pedidos referidos em K) e M) foram deferidos com a condição de serem apresentados os projetos de especialidades no prazo de 6 meses.

P) À data da venda, o prédio descrito em A) não era cultivado, tendo o descrito em D) árvores de fruto.

Q) A autora sabe que é viável a construção de uma habitação no prédio referido em D)”.


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Conhecendo:

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações – artigo 635 do Código de Processo Civil – a questão a decidir respeita:

- A competência em razão da matéria do tribunal, alegando a recorrente:

Ao decidir uma questão predominantemente civil não com base no CC mas sim com base na legislação fiscal, o Acórdão recorrido violou as regras da competência em razão da matéria”.

(Porque o recurso foi admitido ao abrigo do disposto nos arts. 671º, nº 2 al. a) e 629º, nº 2, al. a), ambos do CPC).


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Os autos respeitam a ação de preferência ao abrigo do estatuído no art. 1380º, do Cód. Civil, sem descurar o disposto no art. 1381º

Sobre a questão de saber se era de afastar o direito de preferência pela verificação do fator de exclusão previsto na al. a) do artigo 1381º CC, entendeu o Tribunal recorrido ser de aplicar o CIMI (Código do Imposto Municipal sobre Imóveis).

E por isso refere o acórdão recorrido: “Ainda que nada nele tenha sido erigido, para o direito fiscal “o terreno para construção” merecerá já indiscutivelmente a classificação de urbano.

Dividindo os prédios urbanos em: a) Habitacionais; b) Comerciais, industriais ou para serviços; c) Terrenos para construção; d) Outros, o artigo 6º do CIMI considera “terrenos para construção os terrenos situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção12, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo.” (cfr. nºs 2 e 3 da citada norma).

E, se o proprietário requereu e conseguiu a aprovação de construção ou de loteamento ou informação de viabilidade construtiva ou de loteamento, ou declarou no título aquisitivo que o terreno se destina a construção, terá de apresentar a declaração modelo 1 de IMI, no prazo de 60 dias, contados a partir da data da notificação da autorização ou da data da escritura (artigo 13º do CIMI).

Ou seja, o pedido de informação prévia de viabilidade de loteamento ou de construção com parecer favorável, obriga o proprietário a, no prazo de 60 dias a contar da data da notificação da autorização, a apresentar a declaração modelo 1 do IMI, para alteração matricial da natureza do prédio (art. 13º, nº1, al. b), CIMI)”.

Questiona a recorrente a competência do tribunal judicial para dirimir o litígio, entendendo que foram violadas as regras de competência em razão da matéria.

Não tem razão a recorrente.

A questão em causa é predominantemente civil e foi decidida com base no CC, pois que, conforme acórdão recorrido, “E como tal, teremos por excluído o direito de preferência invocado pela autora na presente ação, por força da al. a) do nº1 do artigo 1381º, CC”.

A legislação fiscal/administrativa apenas foi utilizada para, no caso, definir a qualidade ou fim, do terreno a preferir, para apurar se se verificava alguma causa de exclusão do direito de preferência.

É certo que “A possibilidade de afectar um terreno de cultura, por exemplo, a finalidade diferente depende de uma decisão administrativa, tomada em função dos interesses gerais da colectividade, de acordo com os planos de ordenamento do território. A prova da viabilidade legal da construção é, assim, um elemento essencial para que o facto impeditivo do direito de preferência referido na 2ª parte da al. a) do art. 1381º do CC opere os seus efeitos” – como decidiu o Ac. da Rel. de Co., de 20-10-2015, no Proc. nº 768/12.1TJCBR.C1. Mas é, apenas, circunstância necessária para que o facto impeditivo do direito de preferência aludido na 2ª parte da al. a) do art. 1381º do CC opere os seus efeitos.

Como consta dos autos a ação foi intentada e é pedido que seja reconhecido à autora o direito de haver para si o prédio rústico vendido à ré.

Existindo várias categorias de tribunais tem de haver critério de repartição de competência entre eles, necessariamente de natureza objetiva, de acordo com a natureza das questões em razão da matéria, podendo, como tal, dar origem a conflitos de jurisdição.

A determinação do tribunal competente em razão de matéria, como é questão a tratar por agora, é aferida em função dos termos em que é formulada a pretensão do autor, incluindo os respetivos fundamentos.

E a competência dos tribunais judiciais é residual, ou seja, são da sua competência as causas não legalmente atribuídas à competência dos tribunais de outra ordem jurisdicional.

Pelo contrário, os Tribunais Administrativos têm a sua competência limitada às causas que lhe são especialmente atribuídas.

Tendo em conta o disposto no nº 3 do art. 212º da Constituição e do art. 1º do ETAF o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal é definido em função da qualificação dos litígios como emergentes de relações jurídicas administrativas, que constitui assim a regra geral para a delimitação da competência jurisdicional dos tribunais administrativos com os demais tribunais, detendo por força dela os Tribunais Administrativos competência para dirimir os litígios emergentes de relação jurídicas administrativas, exceto nos casos em que, pontualmente, o legislador atribua competência a outra jurisdição, como os desde logo previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 4º do ETAF, mas também os que são ou venham a ser contemplados em legislação avulsa – MARIA HELENA BARBOSA FERREIRA CANELAS  “A AMPLITUDE DA COMPETÊNCIA MATERIAL DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS EM SEDE DE ACÇÕES RELATIVAS A RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL”, in Revista Julgar, nº 15, 2011.

A “atribuição de competência ao tribunal de jurisdição comum pressupõe a inexistência de norma específica que atribua essa competência a uma jurisdição especial para resolver determinado litígio, tal como o autor o configura. (Como explicita Miguel Teixeira de Sousa “[a] competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e competência residual. Pelo primeiro critério cabem-lhes as causas cujo objecto é uma situação regulada pelo direito privado, civil ou comercial. Pelo segundo, incluem-se na sua competência todas as causas que apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal não judicial ou a tribunal especial” - cf. A Competência declarativa dos tribunais comuns, 1994, p.76” como referido no Ac. do Tribunal de Conflitos de 16-05-2014, no Proc. nº 033/14.

Neste mesmo acórdão se refere que a titularidade do direito de preferência de que se arrogam os autores é uma titularidade de direito civil - art. 1380º do CC -.

E os autores serão titulares do direito de preferência - direito real de aquisição - se preencherem os pressupostos e os requisitos definidos na lei civil.

Nenhuma legislação de direito público lhes confere essa qualidade de preferentes, nem essa qualidade deriva de qualquer ato de império de qualquer autoridade administrativa do Estado.

No caso em analise nada existe que permita integrar a ação na jurisdição administrativa e fiscal sendo, para esse efeito, irrelevante (para o efeito) a referência aos artigos do CIMI.

Uma ação de preferência como a presente, prevista no art. 1380º do CC, é manifestamente o exercício de um direito real de aquisição, visando dar completude ao direito de propriedade do proprietário confinante.

E tem como objetivo primeiro a declaração da existência desse direito de preferência e como escopo ulterior a materialização e efetivação desse direito de preferência.

O litígio nos presentes autos é subsumível à competência subsidiária dos tribunais comuns, sendo que até à interposição do recurso de revista não se tinha colocado qualquer dúvida.

Nem se entende por que a recorrente/autora tendo intentado a ação em Tribunal comum vem agora pretender discutir a competência material desse mesmo Tribunal.

Assim que, no caso concreto, cabe ao tribunal comum a competência material para conhecer a ação de preferência intentada pela recorrente.

Pelo que não ocorreu violação das regras de competência em razão da matéria que tornasse admissível o recurso de revista.

Não havendo violação das regras de competência em razão da matéria é inadmissível o recurso de revista e, consequentemente, fica prejudicado o conhecimento do objeto do mesmo.

Conforme refere Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., pág. 48, “a norma que amplia a recorribilidade apenas pode servir para confrontar o Tribunal Superior com a discussão da matéria em causa, ficando excluídas outras questões que são submetidas à regra geral”.

Assim, não se toma conhecimento do objeto do recurso, por não se verificar o pressuposto da sua admissibilidade.

Conforme refere o Ac. deste STJ, no Proc. 34/12.2TBLMG.C1.S1, “Impossibilitada a admissão do recurso por inverificado o fundamento excecional do n.º 2, alínea a) “in fine” do artigo 629.º do Código de Processo Civil, nada mais poderá ser conhecido nesta sede”.


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Sumário elaborado nos termos do art. 663 nº 7 do CPC:

I - Admitido o recurso ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 2 do art. 629 do CPC (regras de competência em razão da matéria), o seu objeto fica limitado à apreciação da impugnação que esteve na base da sua admissão, não podendo alargar-se a outras questões.

II - A determinação do tribunal competente em razão de matéria, como é questão a tratar por agora, é aferida em função dos termos em que é formulada a pretensão do autor, incluindo os respetivos fundamentos.

III - Uma ação de preferência como a presente, prevista no art. 1380º do CC, é manifestamente o exercício de um direito real de aquisição, visando dar completude ao direito de propriedade do proprietário confinante, conferindo-se aos tribunais comuns a competência (subsidiária) para dirimir conflitos nessa área.

IV - Tendo a ação corrido no Tribunal comum, não ocorreu violação das regras de competência em razão da matéria.


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Decisão:

Em face do exposto acordam, no Supremo Tribunal de Justiça e 1ª Secção, em não tomar conhecimento do objeto do recurso.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 11 de Maio de 2022


Fernando Jorge Dias – Juiz Conselheiro relator

Jorge Arcanjo – Juiz Conselheiro 1º adjunto

Isaías Pádua – Juiz Conselheiro 2º adjunto