Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
086288
Nº Convencional: JSTJ00026999
Relator: MIRANDA GUSMÃO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURO
CONTRATO DE ADESÃO
INDEMNIZAÇÃO
SEGURADORA
VONTADE DOS CONTRAENTES
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
DEVER DE ESCLARECIMENTO PRÉVIO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: SJ199503280862882
Data do Acordão: 03/28/1995
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N445 ANO1995 PAG519
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 299
Data: 01/06/1994
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: ALMEIDA COSTA IN DIREITO DAS OBRIGAÇÃO PÁG178 4ED. GALVÃO TELES IN D DOS CONTRATOS EM GERAL PÁG408 1962.
Área Temática: DIR CIV - DIR RESP CIV / TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 227 N1 ARTIGO 236 ARTIGO 237 ARTIGO 280 ARTIGO 762 N2.
DL 446/85 DE 1985/10/25.
D 11242 DE 1925/11/16.
D 18725 DE 1930/08/02.
DL 36305 DE 1947/05/26.
DL 317/85 DE 1985/08/02.
DL 29441 DE 1939/02/11.
Sumário : I - Os contratos de seguro, como contratos de adesão que são devem ser submetidos a controlo judicial a nível da tutela da vontade do aceitante e da fiscalização do seu conteúdo.
II - Ao nível da tutela da vontade do segurado haverá que ter em conta os critérios interpretativos fixados nos artigos 237 e 236 do Código Civil, tomando-se o sentido dado pelo segurado.
III - Os modos de conduta por que posteriormente se prestou observância ao negócio concluido devem ser tomados em conta na interpretação do mesmo.
IV - Ao nível da fiscalização do conteúdo das condições gerais do contrato de seguro haverá que tomar em conta quer as normas de ordem pública (artigo 280 do Código Civil) quer as das cláusulas gerais de boa fé (artigos 227 e 762, n. 2, ambos do Código citado).
V - As claúsulas gerais de boa fé impõem que, nos contratos de seguro, a seguradora esteja adstrita ao cumprimento do dever de esclarecimento de cláusulas limitativas (ou de exclusão) da sua responsabilidade.
VI - A violação do dever de esclarecimento por parte da seguradora integra hipótese de violação positiva do contrato.
VII - A invocação de exclusão de responsabilidade por parte da seguradora que omitiu o dever de esclarecimento revela abuso de direito que tem como consequência legitimidade de oposição.
VIII - A seguradora está investida na obrigação de indemnizar os lesados em resultado do contrato de seguro celebrado com os segurados.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. A e B intentaram a presente acção com processo sumário contra C e mulher D e Companhia de Seguros Tranquilidade, Sociedade Anónima, pedindo a condenação destes a pagarem ao primeiro autor a quantia de 9357980 escudos e ao segundo a de 1879300 escudos, com juros desde a citação até integral pagamento, com o fundamento em embate, ocorrido em 17 de Julho de 1989, entre o velocípede com motor de matricula I. VVD e um canino raça pastor alemão, de nome Joy, pertença dos Réus C e mulher, que haviam transferido a sua responsabilidade civil por danos a terceiros causados pelo canino para a segunda Ré.
A Ré seguradora contestou alegando que não está investida na obrigação de indemnizar os Autores por no contrato de seguro celebrado com o Réu C ter sido expressamente estipulado que a falta de licença e do certificado de vacina actualizado tornavam a cobertura nula e de nenhum efeito, sendo certo que à data do acidente o Réu C não dispunha da licença de detenção e posse do cão.
Houve resposta dos Autores a alegar que ao Réu C apenas faltam a licença, a qual poderia ser solicitada antes ou após 17 de Julho, sendo certo que o cão foi vacinado e que a licença nunca poderia ser requerida antes da vacinação. Alegaram, ainda, que a falta de licença em nada constitui agravamento do risco, sanando-se a sua falta, reportada a 17 de Julho, com a sua obtenção em 24 de Julho de 1989.
No despacho saneador foi a Ré seguradora absolvida do pedido com o fundamento de os Réus C e mulher não terem ainda requerido e obtido licença do cão à data do acidente, em manifesta oposição à cláusula do contrato que aceitaram e, nesta medida, os vinculava.
2. Autores e Réus C e mulher apelaram. A Relação do Porto, por acórdão de 6 de Janeiro de 1994, revogou o despacho saneador recorrido na parte em que absolveu a Ré Seguradora do pedido, e ordenou que a acção prosseguisse também contra esta.
3. A Ré Companhia de Seguros Tranquilidade, Sociedade Anónima, pede revista - revogação do acórdão recorrido e com substituição por outro que mantenha integralmente o saneador - sentença - formulando as seguintes conclusões:
1) O registo e o licenciamento são obrigatórios pelo que revestem interesse e ordem pública;
2) Não se pode aceitar a desvalorização da obrigatoriedade da licença de caninos em favor da vacina;
3) Ao estipular nas condições gerais da apólice a obrigatoriedade de o segurado ter o seu canideo licenciado, a seguradora concorre para que os objectivos de interesse e ordem pública subjacentes à obrigatoriedade do licenciamento sejam prosseguidos;
4) Tal cláusula é perfeitamente válida, porque livre e conscientemente contratada, ao abrigo do estatuído no artigo 405 do Código Civil;
5) Mal se compreenderia que uma seguradora ao efectuar um seguro de responsabilidade civil de um cão prescindisse em relação ao respectivo dono, para aceitar o seguro, da assunção por este do cumprimento das normas de interesse e ordem pública legalmente consagradas;
6) Interesse e ordem pública que a seguradora teve em vista salvaguardar quando na celebração do contrato exigiu que o Segurado tivesse o seu animal devidamente licenciado e vacinado;
7) Os recorridos não podem alegar desconhecimento daquilo a que livremente se obrigaram e que livremente contrataram;
8) Assim, como não podem alegar desconhecimento das obrigações que para eles decorrem da lei;
9) Com a exigência da licença há todo um conjunto de interesses a prosseguir no controlo da população canina que não se esgotam nem podem ser substituídos pela mera exigência da vacina;
10) O que está em causa quando a seguradora exige o licenciamento do cão não é uma questão de mais ou menos risco;
11) Contrariamente ao que afirma o acórdão recorrido não há qualquer dificuldade para os detentores de caninos no conhecimento da legislação que regula o seu registo, licenciamento e vacina;
12) É do conhecimento comum, mesmo de quem não é possuidor de cães, que estes estão submetidos àquele regime, sendo também do conhecimento público que as entidades competentes para velarem pelo cumprimento das disposições legais atinentes são as Câmaras Municipais;
13) Não é defensável pretender que um qualquer cidadão, medianamente instruído, não saiba que tem que registar, licenciar e vacinar o seu cão;
14) Também não é defensável pretender que um qualquer cidadão, medianamente instruído, não saiba ler e interpretar correctamente uma cláusula contratual do tipo daquela que constitui a cláusula particular da apólice n. 02;
15) A ninguém se pode exigir que parta do princípio de que os outros que entrem em relação consigo, seja qual for o motivo, desconhecem a lei ou não a cumprem;
16) Indagar de alguém se cumpre a lei, principalmente em relação a obrigações que são do conhecimento generalizado, não é dar prova de boa fé, é ser inconveniente e indelicado.
17) O acórdão recorrido violou o disposto no n. 2 do artigo 762, e n. 1 do artigo 406, ambos do Código Civil, e artigo 427, Código Comercial.
Os recorridos apresentaram contra-alegações onde pugnam pela manutenção do acórdão recorrido.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II
Elementos a tomar em conta:
1') No dia 17 de Junho de 1989, pelas 8 horas, no lugar do Coucieiro, Concelho de Vila Verde, ocorreu um embate entre um canino de raça pastor alemão, de nome "Joy" e pertença dos Réus C e mulher, e o velocípede com motor de matricula 1. VV;
2') Os Réus C e mulher celebraram, em 17 de Fevereiro de 1984, um contrato de seguro com a Ré Companhia de Seguros Tranquilidade, Sociedade Anónima, mediante o qual transferiram para esta a responsabilidade civil por danos a terceiros provocados pelo canino raça pastor alemão, de nome "Joy", sua pertensa;
3')A apólice foi emitida em 23 de Março de 1984 com a indicação de vigorar a cláusula 02 das condições particulares;
4') A cláusula particular da apólice referida em 3', tem a seguinte redacção:
"No caso de cobertura de quaisquer cães das raças acima referidas deverão os animais ser devidamente identificados no objecto do recurso, incidindo a cobertura exclusivamente sobre os danos provocados por esses animais".
"O segurado compromete-se a cumprir com todas as determinações legais decorrentes daquela sua qualidade e a falta de licença e certificado de vacina actualizados dos seus animais, tornam a cobertura nula e de nenhum efeito.";
5') Em 24 de Julho de 1989 foi emitido cartão de identificação do cão dos Réus C e mulher;
6') O cão dos Réus C e mulher foi vacinado (vacina anti-rábica) em 2 de Maio de 1988 e 28 de Abril de 1989.
III
Questões a apreciar no presente recurso.
A apreciação e a decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, passa pela análise da questão de saber se a Ré Seguradora não está investida na obrigação de indemnização os autores em resultado do contrato de seguro celebrado com o Réu
C.
Abordemos tal questão.
IV
Se a ré seguradora não está investida na obrigação de indemnizar os autores em resultado do contrato de seguro celebrado com o Réu C.
1. Posição da Relação e da recorrente:
1a) A Relação do Porto decidiu que o contrato de seguro celebrado entre a Ré Seguradora e o Réu C, mediante o qual transferiu para aquela - responsabilidade civil por danos a terceiros provocados pelo canino raça pastor alemão, de nome "Joy" permaneceu válido e eficaz, apesar do incumprimento por parte dos Réus C e mulher da cláusula posta em crise, por duas ordens de razão:
- a primeira, não ser de estranhar que nos contratos de adesão, como é o caso do contrato de seguro em causa, o aderente não leia no contrato o que poderia ler, mesmo em relação a uma cláusula de aparente clareza e simplicidade, como parece ser a que aqui se discute; que o emprego de um determinado vocábulo pode ser entendido com diversos sentidos, como é o caso da licença e vacina empregues na cláusula em crise, sendo certo que os danos do cão tiveram o cuidado pouco usual de realizar um contrato de seguro de responsabilidade civil com relação a ele, tendo vacinado o mesmo e tendo-o também registado;
- o segundo, no cumprimento da obrigação, tal como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé - artigo 762 n. 2 Código Civil.
Longe se estava da boa fé contratual se se concluísse pela não responsabilização da Ré Seguradora num caso como o presente em que há a conduta de ambas as partes no início e no decorrer do contrato de seguro: os segurados fazendo tudo aquilo que lhes pareceu razoavelmente ser-lhe exigido e a seguradora nada fazendo, a não ser receber o prémio, sem cuidar, atempadamente, de saber se tudo estava em ordem em relação ao cão, inicialmente e em cada ano em que recebia cada prémio.
1b) O recorrente sustenta que não está obrigado a indemnizar os Autores por quanto, por um lado, não faz qualquer sentido alegar-se que deveria ser a recorrida a alertar os recorrentes C e mulher para a necessidade de obterem licença do cão pois quando livremente celebraram o contrato de seguro com a recorrida os recorrentes obrigaram-se a terem sempre o seu animal devidamente licenciado.
Por outro lado, não é uma das partes num contrato que incumbe velar para que a outra parte cumpra as obrigações que dele para si decorrem; não há qualquer dever jurídico nem o cumprimento de qualquer princípio em termos de boa fé contratual que impusesse à recorrida tal comportamento.
Conclui que o que está em causa não é uma questão de mais ou menos risco, mas do cumprimento ou incumprimento de cláusulas livremente contratadas.
Que dizer?
2. Os contratos são concluídos, em regra, após negociações prévias, com propostas e contrapropostas, de tal sorte que cada uma das partes fique a saber dos seus direitos (e obrigações) quando os mesmos se formalizaram.
Tal não acontece com os contratos de adesão, de que o contrato de seguro é um exemplo típico.
Neste tipo de contratos, o cliente não tem a menor participação na preparação das respectivas cláusulas limitando-se a aceitar o texto que o outro contraente lhe oferece em massa, quando oferece, já que é vulgar o segurado assinar a proposta do contrato e só vir a tomar conhecimento do seu conteúdo quando se verifica o risco cuja liberação se quis garantir.
Daí que de há muito se vem defendendo, quer na doutrina portuguesa quer na doutrina estrangeira, a necessidade de controlo sobre os contratos de adesão, controlo a fazer-se sentir não só ao nível da tutela de vontade do aceitante, como também ao nível de uma fiscalização do conteúdo das condições gerais do contrato dotado por razões de justiça comutativa (Almeida Costa, Direito das Obrigações, 4. edição, página 178; Pinto Monteiro, Cláusulas Limitativas e de Exclusão da Responsabilidade
Civil, página 344).
Exemplo paradigmático do controlo directamente sobre o conteúdo das condições gerais dos contratos de adesão é a lei alemã aprovada em 1976 que o legislador português procurou seguir com a publicação do Decreto-Lei 446/85, de 25 de Outubro, sendo certo que tal diploma não pode ser tomado em conta por não estar ainda em vigor aquando da celebração do contrato de seguro em que se encontrava inserida a cláusula tida pela Ré/recorrente como incumprida pelo Réu/Segurado, de sorte a excluir a sua responsabilidade.
3. A não aplicação do Decreto-Lei 446/85, de 25 de Outubro, não significa que a nossa lei não dispunha de meios a permitir uma fiscalização não só ao nível da tutela da vontade do aceitante, mas também ao nível de uma fiscalização do conteúdo das condições gerais dos contratos em causa.
4. Ao nível de tutela da vontade do segurado haverá que ter em conta os critérios interpretativos fixados nos artigos 237 e 236, ambos do Código Civil.
No que concerne ao artigo 237, o critério interpretativo é no sentido de que as condições gerais devem interpretar-se restritamente: impõe-se, como regra, o princípio "in dubio contra stipulatorum", na medida em que a aplicação do mesmo conduzirá a um maior equilíbrio das prestações.
O critério interpretativo fixado no artigo 236 encerra princípios que poderão constituir um auxílio preciso no domínio dos contratos de adesão, na medida em que o sentido da impressão do destinatário, nos termos daquela norma, favorecerá, em regra, o aderente (Pinto Monteiro, obra citada, página 372).
Ora, dentro destes critérios interpretativos, se em caso de litigio se pretender extrair das cláusulas (ou cláusula) uma significação que o aderente a não surpreendeu, não poderá tal significação prevalecer.
E assim será porque "nos contratos de adesão é sempre o pactuante mais poderoso o autor efectivo do conteúdo do contrato e, portanto, como destinatário deve sempre tomar-se o aderente, qualquer que seja a forma jurídica, mais ou menos artificiosa, em que se envolva esta indiscutível realidade" (Galvão Telles, Dos Contratos em Geral, 1962, página 408).
5. Ao nível de fiscalização do conteúdo dos contratos em causa há que tomar em conta quer as normas de ordem pública (artigo 280 Código Civil), quer as cláusulas gerais de boa fé: artigo 227 (formação dos contratos) e artigo 762 n. 2 (cumprimento da obrigação e exercício do direito correspondente).
Boa fé que a doutrina tem delimitado, por via negativa com os conceitos de equidade, os bons costumes, a ordem pública, a culpa, a diligência e a função social e económica dos direitos e, por via positiva, com os conceitos de confiança, e de lealdade contratual" (Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, volume II, páginas 1197, 1240 e 1251).
O legislador apelou aos princípios da boa fé, na sua delimitação por via positiva, tanto ao devedor (no cumprimento da obrigação) como ao credor (no exercício do direito correlativo) - artigo 762 n. 2.
Com a norma do n. 2 do artigo 762, o legislador quis adstringir, de modo expresso, o credor à boa fé (o que resulta já da cláusula geral do abuso de direito), assacando-lhe toda uma série de deveres de lealdade, de esclarecimento, de colaboração e de protecção, decalcados dos do devedor e com um "âmbito transcendente em relação ao mero aceitar da prestação" (Menezes Cordeiro, obra citada, volume I, página 594).
6. As considerações deixadas expendidas - controlo dos contratos de adesão não só a nível da tutela da vontade do aceitante mas também a nível de uma fiscalização do conteúdo das condições gerais dos mesmos com base quer nos critérios interpretativos fixados nos artigos 237 e 236, quer nas normas de ordem pública (artigo 280) e nas cláusulas gerais de boa fé, com a sua delimitação por via positiva (artigos 227 n. 1 e 762 n. 2), darão um contributo decisivo na solução das duas questões colocadas no caso "sub júdice": a primeira, se os Réus C e mulher incumprirem a cláusula 02 do contrato de seguro que celebraram com a Ré/recorrente
(cláusula esta cuja validade não foi posta em causa pelas instâncias, sendo irrelevante para a solução da questão saber se a mesma emerge (ou não) de norma de interesse e ordem pública); a segunda, se o incumprimento desta cláusula por parte dos Réus C e mulher determina a exclusão da responsabilidade da Ré/recorrente pelos danos sofridos pelos Autores em acidente provocado, na versão destes, pelo cão abrangido no contrato de seguro em causa.
7. Relativamente à averiguação da primeira questão (incumprimento por parte dos Réus C e mulher da cláusula 02 do contrato de seguro em causa; cláusula esta que é a referida em 4), parágrafo II presente acórdão), a mesma ficará facilitada através da interpretação dessa cláusula, que foi feita pela seguradora, conforme factos referidos em 2) e 3), parágrafo II do presente acórdão.
Na interpretação da cláusula em causa serão atendíveis, com as necessárias adaptações, "todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta "Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1980, página 421).
E os elementos a tomar em conta na interpretação da cláusula em causa podem ser posteriores ao negócio, elementos estes que são "os modos de conduta por que posteriormente se prestou observância ao negócio concluído" (Rui Alarcão, no Boletim do Ministério da Justiça n. 84, página 334, citando Betti e o Código italiano).
Pois bem.
A única matéria factual fixada pela Relação reporta-se à conduta que os Réus C e mulher assumiram após a celebração do contrato de seguro em causa: vacinaram o seu cão raça pastor alemão, de nome Joy, em 2 de Maio de 1988 (vacina anti-rábica).
A conduta que estes Réus assumiram em relação ao seu cão, após a celebração do contrato, vem a significar que os mesmos entenderam a cláusula em causa no sentido de que estavam obrigados a vacinar o cão.
E sendo a conduta posterior dos Réus o único elemento a atender na interpretação da cláusula em causa, por inexistência de demais matéria factual fixada pela Relação, haverá que a cláusula vale com o sentido dado pelos seus destinatários; a vacinação do cão era necessária para a manutenção do contrato.
E valendo a cláusula em causa, como vale, haverá que concluir que os Réus C e mulher não incumpriram a mesma.
8. A conclusão a que se chegou na apreciação de saber se houve ou não incumprimento dos Réus C e mulher relativamente à cláusula em causa, tornaria desnecessário a apreciação da segunda questão (se o incumprimento da cláusula em causa excluisse a responsabilidade da Ré/recorrente).
Acontece, porém, ser nosso entendimento que o incumprimento de tal cláusula por parte dos Réus C e mulher não excluiria a responsabilidade da Ré/recorrente, de sorte que convém, em termos sumários, apoiar esse nosso modo de entender.
Nos contratos de adesão, como é o caso do contrato do seguro em causa, as cláusulas gerais de boa fé são aplicáveis, de sorte que a seguradora está adstrita ao cumprimento do dever de esclarecimento sobre a cláusula em causa, sendo certo que, como bem salientou a Relação, os vários e sucessivos diplomas relativos a cães (Decreto n. 11242, Decreto n. 18725, Decreto-Lei n. 29441, Decreto-Lei n. 36305 e Decreto-Lei n. 317/85) com politicas legislativas nem sempre coincidentes, não facilitam o surpreender do sentido da cláusula em causa.
A Ré Seguradora, que recebeu a proposta do contrato e só depois é que emitiu a apólice, tinha o dever de entrar em contacto com o outro contraente para prestar-lhe os devidos esclarecimentos sobre o modo como os Réus deviam cumprir a sua obrigação que, mercê da cláusula em causa, não estava reduzido ao pagamento do prémio.
Violou o seu dever de esclarecimento, imposto pela boa fé, violação esta que deve ser considerada "como integrando hipótese de violação positiva do contrato" (Menezes Cordeiro, obra citada, volume I, página 602).
A violação positiva do contrato de seguro por parte da Ré, em resultado de omissão de dever de esclarecimento imposto pela boa fé, não permitia, nem permite, que a Ré viesse nesta acção invocar a exclusão da sua responsabilidade com base no incumprimento da cláusula em causa por parte dos Réus/segurados.
A sua actuação revelaria abuso de direito que teria como consequência a legitimidade de oposição (Antunes Varela, Código Civil anotado, volume I, 4. edição, páginas 299 e 300; Vaz Serra, Rev. Leg. e Jurisp. ano 107, página 25).
9. Tudo a permitir concluir que a Ré Seguradora está investida na obrigação de indemnizar os autores em resultado do contrato de seguro celebrado com o Réu
C.
V
Conclusão:
Do exposto, poderá extrair-se que:
1') os contratos de seguro, como contratos de adesão que são, devem ser submetidos a controlo judicial a nível da tutela da vontade do aceitante e da fiscalização do seu conteúdo;
2') ao nível da tutela da vontade do segurado haverá que ter em conta os critérios interpretativos fixados nos artigos 237 e 236, ambos do Código Civil, tomando-se o sentido dado pelo segurado;
3') os modos de conduta por que posteriormente se prestou observância ao negócio concluído devem ser tomados em conta na interpretação do mesmo;
4') ao nível de fiscalização do conteúdo das condições gerais do contrato de seguro haverá que tomar em conta quer as normas de ordem pública (artigo 280 Código Civil) quer as das cláusulas gerais de boa fé (artigos
227 e 762 n. 2, ambos do Código Civil);
5') as cláusulas gerais de boa fé impõem que, nos contratos de seguro, a seguradora esteja adstrita ao cumprimento do dever de esclarecimento de cláusulas limitativas (ou de exclusão) da sua responsabilidade;
6') a violação do dever de esclarecimento por parte da seguradora integra hipótese de violação positiva do contrato;
7') a invocação de exclusão de responsabilidade por parte da seguradora que omitiu o dever de esclarecimento revela abuso de direito que tem como consequência legitimidade de oposição.
Face a tais conclusões, em conjugação com os elementos reunidos nos autos, poderá precisar-se que:
1') os Réus C e mulher interpretaram a cláusula 02 do contrato de seguro celebrado com a Ré/recorrente no sentido de que só estavam obrigados a vacinarem o cão a que se referia o contrato;
2') a Ré Seguradora, demandada em acção de indemnização por danos causados pelo cão a que se refere o contrato de seguro celebrado com os Réus C e mulher, não pode invocar incumprimento da cláusula referida em 1), por parte dos Réus C e mulher, em virtude de ter omitido o seu dever de esclarecer o conteúdo e alcance de tal cláusula;
3') o acórdão recorrido não merece censura por ter observado o afirmado em 1) e 2).
Termos em que se nega a revista.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 28 de Março de 1995.
Miranda Gusmão,
Raul Mateus,
Mário Ribeiro.
Decisões impugnadas:
I - Sentença de 29 de Janeiro de 1993 do 1. Juízo de Vila Verde;
II - Acórdão de 6 de Janeiro de 1994 da Relação do Porto.