Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99A281
Nº Convencional: JSTJ00036736
Relator: PAIS DE SOUSA
Descritores: ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
INDÚSTRIA DOMÉSTICA
COMÉRCIO
Nº do Documento: SJ199904270002811
Data do Acordão: 04/27/1999
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N486 ANO1999 PAG296
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 522/98
Data: 10/26/1998
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR CONTRAT.
Legislação Nacional: RAU90 ARTIGO 75 N1 N2.
Sumário : Atenta a natureza excepcional do nº 1 do artigo 75º do RAU, no uso residencial do prédio arrendado, inclui-se o exercício de qualquer indústria doméstica, mas já não o exercício do comércio doméstico.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A, intentou, nos Juízos Cíveis da Comarca do Porto, acção declarativa, que veio a seguir seus termos sob a forma ordinária no tribunal de Círculo de Gondomar, contra B e mulher, pedindo a condenação destes a reconhecerem o seu direito de propriedade sobre o Rés-do-chão indicado como residência dos réus, a entregarem-lho livre de pessoas e coisas e a pagarem-lhe as quantias de 630000 escudos e a de 70000 escudos por cada mês que decorra desde a citação, ambas a título de indemnização pelos prejuízos que tem suportado e continua a suportar por não poder arrendar aquele imóvel desde Fevereiro de 1994, data em que os interpelou para que procedesse a tal entrega.
Para tanto, e em síntese, alegou ser dona desse rés-do-chão, que estava arrendado a C e depois à viúva deste, D, arrendamento esse que caducou com a morte desta última (ocorrida em 24/1/94), tendo sido desde então que, dois ou três dias por semana, os Réus passaram a ocupar o referido rés-do-chão, recusando-se a entregá-lo à Autora, privando-a, assim dos rendimentos que um novo arrendamento do prédio lhe poderia gerar.
Contestando, os Réus alegaram, no fundamental, que o referido C (pai do Réu marido), arrendou a um antecessor da autora o r/c em causa para aí exercer o comércio de calçado, depois de anteriormente ter arrendado apenas uma parte do prédio, nas suas traseiras, para habitação.
Desde então, nesse r/c tem sido explorado um estabelecimento comercial com o nome de "Sapataria Pires", em cujas traseiras o C habitava com o seu agregado familiar.
Na exploração do estabelecimento - que actualmente faz parte da herança indivisa daqueles C e D, começou a participar o R. marido há vários anos, designadamente no último ano da vida dos pais.
Com este fundamento, concluíram pela improcedência da acção e, alegando que efectuaram benfeitorias no prédio pediram, em reconvenção, a condenação da Autora a pagar-lhes o valor dessas benfeitorias, de 1500000 escudos.
Replicando, a Autora alegou que o r/c em causa foi arrendado a C para sua habitação e que o comércio que este aí exerceu assumia a natureza de indústria doméstica, razão pela qual era admitido.
No arrendamento (para habitação) sucedeu a viúva D, tendo o respectivo contrato caducado com a sua morte.
Negando qualquer consentimento ou autorização na efectuação das invocadas benfeitorias, que a existiram sempre terão sido efectuadas para recreio dos RR., concluiu pela improcedência do pedido reconvencional.
A acção prosseguiu a sua normal tramitação vindo a realizar-se a audiência de julgamento e a proferir-se sentença, que julgou parcialmente procedente a acção, e totalmente improcedente a reconvenção, declarando o direito de propriedade da autora sobre o prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial e condenando os Réus a entregarem-no àquela livre e desocupado de pessoas e coisas. Condenou, ainda, os mesmos Réus a pagarem à Autora, a título de indemnização pela ocupação que vem fazendo do mesmo, uma quantia correspondente a 50000 escudos por cada mês, desde Abril de 1994 até à efectiva entrega de tal imóvel, indemnização essa que ascendia já, à data da sentença, a 2250000 escudos.
Por não se conformarem com a sentença os RR. apelaram, mas a Relação confirmou-a na íntegra.
Continuando inconformados, os RR. voltaram a recorrer, agora de revista, para este Supremo Tribunal e, na sua alegação de recurso, concluíram do seguinte modo.
A) - Face à factualidade dada como provada, o arrendamento dos autos, pelo menos no que tange à parte frontal do rés-do-chão do prédio identificado no artº 1º da petição inicial terá que ser havido como comercial e como tal é o regime jurídico deste arrendamento que terá de aplicar-se ao caso "sub judice";
B) - O arrendamento e estabelecimento existente no rés-do-chão fazia e fez parte integrante da herança aberta por morte da arrendatária D e como tal foi descrito e é partilhado. Só com a partilha e adjudicação é que o recorrente se tornou "sucessor" no arrendamento em causa e, consequentemente, só a partir de então se iniciou o prazo - que cumpriu - para a sua comunicação à senhoria, já que a "ocorrência da qual nasce os seus direitos, que terá de comunicar ao senhorio é, não apenas a morte do arrendatário, mas o acto jurídico, por força do qual nasce o seu direito a suceder-lhe no arrendamento;
C) - Mesmo a considerar-se ter caducado o arrendamento e ser devida uma indemnização pela ocupação, só depois de o Tribunal considerar existir a caducidade, e declara-la, é que ela seria devida, e a senhoria só poderia pedir a restituição do arrendado passados três meses sobre a verificação do facto determinante da caducidade, e não na data em que o fez e que a sentença erradamente considerou;
D) - De qualquer modo, não existe matéria nos autos suficiente para considerar caduco o arrendamento, e, sequer matéria para considerar a existência de um único arrendamento no rés-do-chão;
E) - A sentença recorrida reconhece a existência de benfeitorias úteis autorizadas pelos senhorios, que aumentaram o valor do prédio e que não podem ser levantadas sem detrimento do mesmo. Não se tendo apurado com exactidão o custo de tais obras ou benfeitorias e o seu valor actual, deveria a douta sentença condenar numa obrigação ilíquida e relegar a sua liquidação para execução de sentença, pelo que a douta sentença recorrida violou, nomeadamente, o disposto nos artºs. 85º, 110º, 112º, 113º, 114º, do R.A.U., 1046º do Código Civil, pelo que deve ser revogada.
Contra-alegou a recorrida pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
A matéria de facto apurada é a seguinte:
1 - A Autora é dona de um prédio urbano composto de casa de habitação com dois pavimentos e quintal, sito na rua D. Afonso Henriques, 190, Rio Tinto, da Comarca de Gondomar, inscrito na matriz predial urbana sob o Artº 51º e descrito na conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº 7339, a fls. 136 do livro B-20 - A) de especificação.
2 - Adquiriu esse prédio por sucessão mortis-causa ao seu pai E, encontrando-se tal aquisição inscrita sob o nº 24.673 do livro G-25, a fls. 55, efectuada em 22/05/67 - B).
3 - Por contrato escrito, cuja cópia consta a fls. 9, celebrado em 13/05/37, aquele E deu de arrendamento para habitação, pelo menos, a habitação situada nas traseiras do r/c do mesmo prédio a C, pai do R. marido, pela renda mensal de 120 escudos . C).
4 - Após a morte de C, a sua posição de arrendatário transmitiu-se para a viúva D - D).
5 - Desde então e até à sua morte, ocorrida em 24/01/94, a D habitou diariamente no referido prédio - E).
6 - A partir de 1938, os pais do R. marido passaram a explorar o comércio de venda a público de sapatos, no r/c do aludido prédio, sob o nome de "Sapataria Pires" - F).
7 - Para o efeito dotaram-no de uma montra para exposição de calçado destinado à venda, prateleiras, balcão e expositores - G).
8 - Há várias gerações, ao longo de cerca de 60 anos, que no estabelecimento se realiza a venda de calçado - H).
9 - Na parte traseira do r/c, os pais do Réu habitavam com o agregado familiar, conforme combinado e autorizado por E - I).
10 - Com o falecimento do pai do Réu, o estabelecimento continuou a ser explorado pela viúva D - J).
11 - Os Réus ocupam tal prédio, pelo menos, dois ou três dias por semana e recusam-se a entregá-lo à A. - L).
12 - A Autora interpelou os Réus para que lhe entregassem o citado r/c, em Fevereiro de 1994 - nº 1 do questionário.
13 - Se esse r/c estivesse desocupado, a Autora poderia arrendá-lo por 50000 escudos mensais, a partir de Abril de 1994 - nº 2.
14 - Em 1937, quando o pai do R. marido arrendou o dito r/c, na parte frontal deste tinha funcionado um estabelecimento de chapelaria arrendado a um tal Sr. Américo - nº 3.
15 - O R. marido colaborava com os pais na exploração do estabelecimento - nº 9.
16 - Ainda em vida se sua mãe, o R. marido, quotidiana e permanentemente, administrava o estabelecimento, sendo ele quem pagava à Autora ou ao seu marido as respectivas rendas - nº 10.
17 - Ao longo dos anos, e com autorização do E e da Autora, os pais do R. marido e os próprios R.R. construíram, no r/c referido, um novo quarto de banho, com sanita, bidé, banheira e chuveiro e uma nova fossa séptica para os esgotos de cozinha e casa de banho. Cimentaram e nivelaram o piso da cozinha e substituíram o encanamento e torneiras da cozinha, que havia apodrecido - nºs 12, 13, 14 e 15.
18 - Substituíram a montra e a porta principal do arrendado e pintaram o arrendado por várias vezes - nº 16.
19 - Em todas essas obras, os R.R. e seus antecessores gastaram quantia não apurada - nº 18.
Resulta ainda dos autos que o dito estabelecimento foi descrito e partilhado no inventário facultativo instaurado por óbito daquela D, sendo adjudicado ao recorrente. Este comunicou à recorrida que se havia transferido para ele o contrato de arrendamento do citado estabelecimento, sem que aquela tivesse suscitado objecção ou referência à não observância correcta do estabelecido no nº 2 do artº 112º do R.A.U..
Há, pois, que qualificar juridicamente o que se passou e passa no que toca à parte da frente do imóvel reivindicado.
Alega a recorrida que o questionado estabelecimento no rés-do-chão teve sempre a característica de uma indústria doméstica, conceito que abarca também o exercício do comércio, já que tal estabelecimento foi sendo explorado pelos pais do R., ainda que com a colaboração deste.
Discorda-se desta qualificação.
Continuando o que dispunha o revogado art. 1108º do Cód. Civ., o actual nº 1 do artº 75º do Regime de Arrendamento Urbano (R.A.U.) estabelece que, no uso residencial do prédio arrendado, inclui-se o exercício de qualquer indústria doméstica. E esclarece o nº 2, seguinte, que é indústria doméstica a explorada na sua residência pelo arrendatário ou pelos seus familiares, contanto que não ocupe mais de três auxiliares assalariados.
Todavia, é essencial frisar, que a actividade industrial é muito diferente da actividade comercial, consoante resulta do nº 1 do art. 3º do R.A.U., ao diferenciar os diversos fins que pode ter o arrendamento urbano. O relator do presente acórdão, na sua obra "Anotações do Regime de Arrendamento Urbano", na pág. 63, explica que a actividade comercial se caracteriza fundamentalmente pela compra de bens naturais ou de produtos para revender. O comerciante intervém na circulação da riqueza através de uma actividade de mediação. Por outro lado, a actividade industrial pretende criar riqueza através da transformação de matérias-primas ou produtos noutros produtos ou objectos, tornados mais valiosos por via dessa transformação.
Já no domínio da anterior lei se entendia, correctamente, que a lei autoriza a instalação na residência de indústrias domésticas, mas não o exercício do comércio (v. ac. da Rel. Lisboa de 5-1-72, in BMJ, 213/273). E tal entendimento é de manter actualmente, dado que a natureza excepcional de texto legislativo não admite, de maneira alguma, interpretação em contrário. Tanto assim, que o ilustre Prof. Antunes Varela, na recente 4ª ed. do vol. II do seu Código Civil Anotado, na pág. 633, citando Pereira Coelho e o ac. Rel. do Porto, de 30-6-92, afirma que a natureza excepcional do nº 1 do art. 75º, do R.A.U., impede a sua aplicação analógica ao exercício do comércio doméstico pelo arrendatário. E, na pág. 634, insiste que a lei se refere apenas às indústrias domésticas e não ao comércio doméstico.
No caso "sub iudice", o que se provou, como admite a recorrida na sua resposta, foi que a partir de 1938, os pais do R. marido passaram a explorar o comércio de venda ao público de sapatos no rés-do-chão do prédio sob o nome de "Sapataria Pires".
O que se prolongou, pelo menos, até à morte da mãe do R. marido, ao longo de décadas.
Não se provou, portanto, que os pais dos R.R. tivessem fabricado no prédio qualquer dos sapatos que venderam durante 60 anos. Conclui-se, portanto, que no rés-do-chão em causa, sobretudo na parte da frente, jamais funcionou uma indústria doméstica. Ali funcionou apenas um estabelecimento comercial, a "Sapataria Pires". É certo que na parte traseira do rés-do-chão funcionava como habitação dos pais do R., de tal modo que se especificou que essa parte do imóvel era habitado por aqueles com o agregado familiar, conforme combinado e autorizado pelo senhorio E. Há, aqui, algo a esclarecer, já que existia um contrato de arrendamento escrito para habitação, pelo que para este fim, não era necessário qualquer combinação ou autorização do senhorio. Estas têm que se referir ao estabelecimento instalado na parte da frente do prédio, o que ocorreu, depois de celebrado o contrato para habitação.
Seja como for, perante a factualidade apurada, é incontroverso que, por vontade, com o conhecimento e consentimento do senhorio, o rés-do-chão em causa, desde 1938 até à data do falecimento da arrendatária D, foi gozado pelos arrendatários mediante retribuição, sendo o local usado simultaneamente para habitação e exercício do comércio. Assim, de modo algum, face ao preceituado nos arts. 1º, 3º e 110º do R.A.U., se pode deixar de julgar que houve um arrendamento desse rés-do-chão feito ao pai do R. e depois transmitido para a viúva deste último, com a finalidade de habitação e exercício do comércio. Como não se apurou se um desses fins estava subordinado ao outro, tem de se concluir que, no caso, teve lugar um arrendamento com pluralidade de fins, previsto no nº 1 do artº 1028º do Cód. Civil.
Deste modo, dado o estatuído no nº 1 do artº. 342º do Cód. Civil, perante o que a A. alegou e pediu, competia-lhe provar que esse arrendamento caducara. O que não é possível concluir face aos factos apurados mercê da posição assumida pela A. de negar o arrendamento efectivamente apurado. Tanto mais que os R.R. alegaram não ter renunciado à transmissão do arrendamento para comércio e que fizeram à senhoria a comunicação a que alude o nº 2 do artº 112º do R.A.U., juntando documentos, para o efeito e que não foram impugnados.
Face ao exposto fica prejudicada a apreciação do pedido reconvencional de indemnização, mercê de benfeitorias realizadas pelos R.R. no local arrendado.
Nestes termos, decide-se conceder a revista revogando o acórdão recorrido na parte em que condenou os recorrentes a entregarem à recorrida, livre e desocupado de pessoas e coisas, o identificado rés-do-chão, bem como a pagarem-lhe a quantia de 50000 escudos por mês, desde Abril de 1994, até efectiva entrega desse imóvel.
Custas pela recorrida.
Lisboa, 27 de Abril de 1999.
Pais de Sousa,
Fernandes de Magalhães,
Correia de Sousa, (dispensei o visto).