Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05P645
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SIMAS SANTOS
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA
VIOLAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VIOLÊNCIA
CO-AUTORIA
INSTIGAÇÃO
Nº do Documento: SJ200503170006455
Data do Acordão: 03/17/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T J ENTRONCAMENTO
Processo no Tribunal Recurso: 371/01
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : 1 - Se no julgamento de crimes sexuais contra menor o Tribunal usar na audição da ofendida expressões como "Vá, esforça-te um pouco mais, ajuda-nos!"; "só mais um esforço..", "eu prometo que não te faço mais perguntas!"; "os passos que já deste foram importantes"; "olha, não me digas que vais morrer na praia!"; "estão aqui alguns homens na sala, mas nem todos são violadores", que criaram "situações de espontaneidade provocada" isso não anuncia um préjuízo sobre a culpabilidade do arguido que viole o princípio da presunção de inocência e ponha em causa a imparcialidade do Tribunal.
2 - Essas expressões traduzem antes um esforço do Tribunal no sentido de obter a colaboração das menores da descoberta da verdade em crimes sexuais, domínio onde se faz sentir, como é sabido, uma grande dificuldade e retraimento das vítimas na recordação, no reviver, em público das situações por que passaram, e que muitas vezes se traduz numa verdadeira penalização secundária.
3 - Tem decidido o Supremo Tribunal de Justiça, a uma só voz, que para conhecer de recurso interposto de um acórdão final do tribunal colectivo relativo a matéria de facto, mesmo que se invoque qualquer dos vícios previstos no art. 410 do CPP, é competente o tribunal de Relação, não podendo o recorrente suscitar essa questão perante aquele Tribunal designadamente se a 2.ª Instância já se pronunciou.
4 - A violência ou ameaça grave, bem como constranger outro, inscrevem-se seguramente na matriz do crime de violação, sendo constranger: compelir, obrigar à força, violentar, coagir, que acontece se o arguido de mais de 49 anos, sargento-ajudante da GNR ameaça a menor de 13 anos, mostrando a pistola, que lhe batia e matava os seus pais, de que se dizia amigo, para assim a conseguir violar
5 - Destaca-se como elemento nuclear do crime continuado, uma diminuição considerável da culpa do agente derivada de um quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que facilite ao agente a prática de actos de execução de um tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico.
6 - O pressuposto da continuação criminosa será assim a existência de uma relação que, de fora, e de modo considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.
7 - O que não sucede se o arguido cultivou a relação com os pais da menor violada e se aproveitou dela para se aproximar da menor e criou intencionalmente, em cada uma das vezes, as circunstâncias favoráveis, mas diversas, à consumação dos crimes.
8 - Se foi por iniciativa do arguido que se teve a certeza da gravidez, foi ele que convenceu a menor a abortar, foi ainda ele que escolheu a abortadeira em concreto, a contactou e satisfez as condições por esta colocadas para levar a cabo a sua actividade e conduziu a menor à casa daquela para aí abortar e a levou de volta a casa, e obteve uma receita médica de uma antibiótico que mandou aviar para a menor e pagou o custo do aborto, está-se mais perto da co-autoria do que da instigação, uma vez que a co-arguida surge como o elemento técnico desencantado pelo arguido para levar a cabo as manobras abortivas.
9 - Não merece censura a decisão que puniu o arguido como instigador de aborto agravado pelo intuito lucrativo se foi ele que convenceu a co-arguida a realizar as manobras abortivas pagando-lhe o preço pedido.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1.1.
O Tribunal Colectivo do Entroncamento (proc. n.º 371/01) procedeu ao julgamento dos arguidos, AMSG e MTSP, ambos com os sinais nos autos, sendo imputados ao primeiro, em concurso real, a prática de 1 crime de violação agravado continuado dos art.ºs 30, n.º 2, 164, n.º 1, e 177, n.º 3, do C. Penal (menor BPCG), 4 crimes de violação agravados dos art.ºs 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, do C. Penal (menor ALCG ) e, como co-autor, de 1 crime de aborto agravado dos art.ºs 26.º, 28.º, 140.º, n.º 1, e 141.º, n.º 2, do C. Penal, e, à arguida, a prática, em co-autoria material, de 1 crime de aborto agravado dos art.ºs 140.º, n.º 1 e 141.º, n.º 2, parte final, do C. Penal.
O pai das menores formulou pedidos de indemnização cível contra os arguidos pedindo a condenação do primeiro arguido a pagar-lhes a quantia de € 150.000,00 (€ 75.000 a título de compensação pelos sofrimentos de cada uma das referidas menores) e a condenação solidária de ambos os arguidos a pagar a quantia de € 5.000 pelos sofrimentos e danos na saúde sofridos pela menor BPCG.

Por acórdão de 5-1-2004 foi julgada parcialmente procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido, totalmente procedente a acusação deduzida contra a arguida e ainda parcialmente procedentes os pedidos cíveis deduzidos contra os arguidos e decidido:

- Condenar o arguido como autor de 2 crimes de violação agravados dos art.ºs 26.º, 1.ª parte, 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, do C. Penal, nas penas de 6 anos de prisão por cada um, como autor de 2 crimes de abuso sexual de crianças dos art.ºs 26.º, 1.ª parte, e 172.º, n.º 2 do C. Penal, nas penas de, respectivamente, 4 anos e 6 meses de prisão e 5 anos de prisão, e como instigador de 1 crime de aborto agravado dos art.ºs 26.º, última parte, 140.º, n.º 2, e 141.º, n.ºs 1 e 2 do C. Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico na pena única de 14 anos e 3 meses de prisão;

- Condenar a arguida como autora material de 1 crime de aborto agravado, dos art.ºs 26, 1.ª parte, 140, n.º 2, e 141, n.ºs 1 e 2 do C. Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, subordinada à condição resolutiva de no prazo de 18 meses pagar à BPCG a quantia de € 5.000 que lhe foi arbitrada a título de compensação por danos não patrimoniais;

- Condenar o arguido a pagar à ALCG a quantia de € 30.000, a título de danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mora vincendos contados a partir do dia imediato à leitura da decisão e até efectivo e integral pagamento e sem prejuízo da aplicação de ulteriores taxas supletivas de juros de mora aos juros corridos na sua vigência, absolvendo-o do restante peticionado por esta lesada, e condenar solidariamente ambos os arguidos a pagar à BPCG a quantia de € 5.000, a título de danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mora vincendos contados a partir do dia imediato à leitura da mesma decisão e até efectivo e integral pagamento e sem prejuízo da aplicação de ulteriores taxas supletivas de juros de mora aos juros ocorridos na sua vigência, absolvendo-se os demandados do restante peticionado por esta lesada.

- Absolver o arguido dos restantes crimes constantes da acusação.
1.2.
Inconformado, o arguido recorreu para a Relação de Évora (proc. n.º 1607/04) que, por acórdão de 30.11.04, julgou parcialmente procedente esse recurso e:

- Alterou a matéria de facto dada como provado sob os n.ºs 21 e 67, do acórdão da 1.ª Instância;

- Revogou esse acórdão, na parte em que condenou o arguido pela prática de 2 crimes de abuso sexual de crianças dos art.ºs 26, 1.ª parte, e 172.º, n.º 2, do C. Penal, nessa parte absolvendo o arguido;

- Revogou o mesmo acórdão, na parte em que condenou o arguido como autor material de cada um de 2 crimes de violação agravada, dos art.ºs 26, 1.ª parte, 164, n.º 1 e 177, n.º 4, do C. Penal, na pena de 6 anos de prisão, e, em substituição, condenou-o como autor de 2 crimes de violação dos art.ºs 26, 1.ª parte, e 164, n.º 1 do C. Penal, por cada um destes, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão;

- Revogou o mesmo acórdão, na parte em que condenou o arguido pela prática, como instigador, de 1 crime de aborto agravado dos art.ºs 26.º, última parte, 140.º, n.º 2, e 141.º, n.ºs 1 e 2, do C. Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão e, em substituição, condenou-o como autor desse crime na pena de 2 anos de prisão.

- E condenou-o na pena única de 8 anos de prisão (2 penas de 4 anos e 6 meses de prisão e 1 pena de 2 anos de prisão)
- Revogou o acórdão da 1.ª Instância na parte em que, a título de danos não patrimoniais, condenou o arguido a pagar à ALCG a importância de € 30.000,00 e, em substituição, condenou-o a pagar à mesma, a título de danos não patrimoniais, a importância de € 15.000,00, acrescida de juros vincendos desde a condenação em 1.ª instância e até efectivo e integral pagamento.

- No mais, confirmou o acórdão da 1.ª Instância.
No recurso juntou o recorrente um parecer doutoral.
2.1.1.
Ainda inconformado recorreu o arguido para este Supremo Tribunal de Justiça, concluindo na sua motivação:

1 - O Tribunal da Relação decidiu erradamente ao considerar que o Tribunal a quo não formulou qualquer juízo de perigosidade e de culpabilidade em relação ao arguido, nem violou o principio da presunção da inocência;

2 - As regras e comandos contidos no artigo 138°, n.° 2 do Código de Processo Penal, dirigem-se a todos os agentes judiciários, Magistrados incluídos;

3 - Por isso, o método utilizado pelo Tribunal da 1.ª Instância na audição da lesada BPCG, criou situações de espontaneidade provocada", ao serem utilizadas, repetidamente e ao longo das várias horas que durou a audição, pelos Srs. Magistrados, expressões tais como Vá Bruna, esforça-te um pouco mais, ajuda-nos!"; "só mais um esforço.. . eu prometo que não te faço mais perguntas!"; "os passos que já deste foram importantes"; "olha BPCG, não me digas que vais morrer na praia!"; « estão aqui alguns homens na sala, mas nem todos são violadores»;

4 - Por outro lado, o Tribunal de 1 Instância formulou previamente pré-juízo de perigosidade em relação ao ora recorrente, ao defender no despacho acerca da reapreciação da prisão preventiva a inabitual liberdade de movimentos do arguido", ao defender a "necessidade de manter o arguido sem contacto visual com o exterior, ao entender que não seria permitido conversar com os agentes que o acompanhavam e com terceiros e nem sequer se encontrava algemado, e ao entrar pela porta de acesso principal deste Tribunal, em vez de entrar pela porta de acesso reservado aos arguidos detidos»;

5 - As referidas intervenções traduzem a existência de um pré-juízo de culpabilidade em relação ao recorrente, conjugado com a utilização da expressão " estão aqui alguns homens na sala, mas nem todos são violadores", sugerindo que um já era violador, a saber o arguido AMSG;

6 - O Tribunal evidenciou com tais comportamentos que já considerava o recorrente culpado, no início do julgamento, e antes da sua eventual culpabilidade ser apurada, através dos mecanismos legais;

7 - Os factos mencionados nas conclusões 1 a 6, traduzem uma postura violadora do principio da presunção da inocência, prevista no artigo 32°, n.° 2 da CRP, que é um principio fundamental do processo penal, tendo também em consideração o contido no artigo 200, n.° 4, da mesma CRP, e no parágrafo único do artigo 6° do CEDH;

8 - Assim, mostra-se violado o preceituado nos artigos 138°, n.° 2 do Código Penal, e 32°, n.° 2, 20°, n.° 4 da Constituição da República Portuguesa e parágrafo único do artigo 6° da CEDH, aplicável ao ordenamento jurídico português;

9 - Tal actuação do Tribunal constitui nulidade insanável, invocável nomeadamente nos termos do artigo 4 10°, n.° 3 do CPP, e conduzirá à repetição do julgamento, o que se requer seja ordenado em primeira mão;

10 - O Tribunal da Relação de Évora decidiu erradamente quando entendeu não ter existido alteração substancial dos factos;

11 - Pois, do ponto de vista jurídico-positivo, o artigo 39°, n.° 1 do CPP, proíbe que uma alteração substancial dos factos descritos seja tida em conta pelo Tribunal, para efeitos da condenação do arguido, e a sentença que não respeitar esta proibição é nula, nos termos do artigo 379°, n.° 1 b) do CPP, o que sucede no caso dos autos;

12 - Enunciado o cotejo entre as imputações contidas na acusação deduzida pelo Ministério Público e o teor da condenação, verifica-se que o Tribunal Judicial do Entroncamento condenou o recorrente como instigador de um crime de aborto, p.p. artigos 26°, última parte, 140°, n.° 2 e 141°, n.° 1 do Código Penal, o que foi mantido pelo Tribunal da Relação de Évora, enquanto a acusação imputava ao arguido a co-autoria de crime p.p. nos artigos 26°, 28°, 1400, n.° 1 e 14 1°, n.° 2 do Código Penal;

13 - O Tribunal Judicial do Entroncamento permitiu que uma alteração substancial dos factos fosse tida em conta, para efeitos de condenação do recorrente, o que foi erradamente mantido pelo Tribunal da Relação de Évora, e que permitiu que o recorrente fosse condenado por crime diverso (art. 1, n.° 1, al. f) do CPP), do que lhe era imputado pela acusação;

14 - O vicio em causa encontra-se previsto no artigo 379°, n.° 1, al. b) do Código do Processo Penal, e sanciona com nulidade a decisão condenatória, o que se indica no vertente;

15 - Assim, encontra-se também violado o preceituado nos artigos 359°, n.° 1, 379°, n.° 1 b) e 1, n.° 1, al. f) do CPP e 26°, última parte, 140°, n.° 2 e 14 1°, nos i e 2 do Código Penal;

16 - O n.° 21 dos factos provados, com a nova redacção que lhe foi dada pelo Tribunal da Relação de Évora, padece dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição entre a fundamentação e a decisão, e erro notório na apreciação da prova, previstos no n.° 2 do art. 410° do CPP;

17 - O Tribunal errou ao dar como assente a existência de relações sexuais entre o recorrente e a lesada ALCG, sem cuidar de apurar a articulação entre a situação de convalescença do recorrente no período entre Novembro de 2000 e os primeiros meses de 2001;

18 - O Tribunal errou ao não procurar aprofundar os dias e as horas dessas ocorrências;

19 - O Tribunal errou ao não cuidar de verificar a data ou datas em que o recorrente foi submetido a intervenção cirúrgica, o período em que usou tala gessada, o período em que usou canadianas e fez fisioterapia, e os reflexos dessa situação na capacidade de movimentação do arguido no período compreendido entre Novembro de 2000 e os primeiros meses de 2001, e da capacidade do arguido para se movimentar no interior do veiculo automóvel, para efeitos de despir a ALCG e de tirar as suas cuecas, calças, tirar a arma e manter relações nessas circunstâncias;

20 - O Tribunal errou ao não procurar articular os períodos de eventual relacionamento sexual com o local de trabalho do recorrente, na data dos factos, com as horas de entrada e de saída do local de trabalho, em Santarém, tendo os factos ocorrido na zona do Entroncamento;

21 - O Tribunal errou nos pontos 25, 29, 30 e 33, ao dar como provado que o recorrente introduziu o seu pénis erecto na vagina da mesma, na medida em que não existiu qualquer outra testemunha da ocorrência para além da lesada ALCG , e esta nunca utilizou em julgamento a expressão " pénis erecto";

22 - O Tribunal errou ao dar relevância ao depoimento da mesma, no que a tal diz respeito, sem ter em conta um conjunto de depoimentos de várias testemunhas, tais como PM, TM e JM, RB, JS e de PG, que afirmaram ter mantido relações sexuais com a mesma, em data anterior à dos factos em discussão no processo;

23 - O Tribunal errou ao dar credibilidade a essa parte do depoimento da lesada ALCG , quando noutra parte o mesmo Tribunal entendeu que certos segmentos do depoimento não foram credíveis;

24 - O Tribunal errou, caindo nos vícios apontados no n.° 2 do art. 410° do CPP, ao dar como assentes os factos dos artigos 24, 28 e 66, ao não articular os factos 1 a 19 com os que constam de 20 a 33;

25 - O Tribunal de 1ª Instância deu como assente que em data anterior a Novembro de 2000, a ALCG tinha presenciado potenciais actos sexuais do arguido com a irmã BPCG, sem que em relação a essas constasse a existência de qualquer pistola ou a existência de ameaças;

26 - De acordo com a experiência comum, a ALCG poderia ser um factor de perigo para o recorrente em tais circunstâncias, nomeadamente, podendo contar aos seus pais as ocorrências que teria presenciado entre o arguido e a irmã;

27 - Da forma como está construído o artigo 19 dos factos assentes, ("fazia com que a ALCG os acompanhasse"), parece até que o recorrente se queria atirar para boca do lobo, ou que tinha gozo na presença da ALCG em tais circunstâncias (algumas dessas saídas);

28 - Mas não consta desse facto 19 que a ALCG tenha sido obrigada ou compelida à força, a presenciar tais actos sexuais;

29 - É credível à luz da lógica e da experiência comum que o recorrente necessitasse de ameaçar com uma pistola a ALCG ou de ameaçar que contava aos pais, só na altura em que manteve relacionamento sexual com ele, quando já antes havia muitos outros motivos para essas potenciais ameaças?

30 - O Tribunal errou e fez uma apreciação incorrecta da prova no que respeita a esses artigos;

31 - O Tribunal errou ao considerar como não provado o facto XXXI, dado que em face da prova existente nos autos, é patente que existiu um processo cível interposto pelo recorrente contra os pais das lesadas, que correu pelo Tribunal Judicial de Abrantes, sob o n.° 2/02, do 1° Juízo, no qual ficou provado, após recurso para o Tribunal da Relação de Évora, a existência de vários empréstimos do recorrente aos pais, em datas anteriores aos factos, e até posteriores à instauração da queixa crime;

32 - Só devido a uso de critérios arbitrários e insustentáveis se deu esse facto como não provado, tendo o mesmo interesse ser dado como provado, na medida em que o recorrente considera ter sido vítima de vingança e de uma cabala por parte dos Assistentes e lesadas, exactamente por causa de tais empréstimos;

33 - Relativamente ao facto constante do artigo 52, o Tribunal errou ao não articular esse facto com os empréstimos efectuados pelo recorrente ao dito casal, e ao não aprofundar a possibilidade, que para o recorrente, é certeza, desse cheque ter sido entregue à mãe das lesadas - CMRC - que o utilizou como quis e junto de quem quis, sendo o recorrente alheio à entrega do mesmo a MTSP;

34 - Faltaram no processo elementos suficientes para uma decisão certa, segura, adequada, quanto a esse artigo 52, pelo que existe erro manifesto na apreciação da prova;

35 - Todos esses pontos da matéria de facto se encontram incorrectamente julgados e devem ser alterados por esse Tribunal Superior, nos termos dos artigos 434° do CPP em conjugação com o artigo 410°, n.° 2, em virtude da existência dos fundamentos já apontados para esse efeito, o que determinará o reenvio do processo À instância para novo julgamento, nos termos do 426° do Código de Processo Civil;

36 - Inexiste na matéria de facto dada como assente qualquer referência à existência de resistência séria por parte da lesada ALCG , ou uma vontade contrária à actuação do recorrente;

37 - Como tal, não existem nos autos elementos de facto nem de Direito, suficientes para se considerar objectiva e subjectivamente preenchido o tipo penal do artigo 164° do Código Penal, cuja norma se encontra, aliás, violada;

38 - Contudo, a entender-se de modo diferente, o que se admite como hipótese, deve decidir-se que a conduta do recorrente configura a verificação de crime de forma continuada, tendo o Tribunal da Relação decidido erradamente ao condenar o recorrente como autor de dois crimes de violação autónomos:

39 - A darem-se como verificados os factos, estamos presente um crime continuado, na medida em que se encontra em causa o mesmo tipo de crime, existindo unidade do injusto objectivo da acção e do resultado, sendo que as diversas resoluções do recorrente se conservam dentro de uma «linha psicológica continuada", e que existem circunstâncias exógenas que facilitavam a execução, com relação de conhecimento com os pais e a frequência da casa de habitação;

40 - Assim, conjugando tal ponto de vista com o preceituado nos artigos 40°, 40, n.° 1, 43°, n° 1 e 72°, n.° 2 do Código Penal, deve nessa parte ser fixada uma pena única não superior a três anos;

41 - O Tribunal da Relação de Évora errou ao manter a condenação do arguido como instigador de um crime de aborto agravado, na forma consumada, p.p. nos artigos 26°, última parte, 140°, n.° 2, 14 1°, n°s 1 e 2 do Código Penal;

42 - Na nossa ordem jurídica a instigação encontra-se inserida no universo da autoria e consubstancia a conduta em que: a) alguém, dolosamente, determina outra pessoa à prática do facto; b) desde que haja execução ou começo de execução, sendo que a determinação de outrem à prática de um facto acontece quando alguém consegue criar em outra pessoa a firme decisão de esta querer praticar uma infracção;

43 - Contudo, a regra da acessoriedade impõe que o instigador só seja punido quando o autor imediato executa ou começa a executar o facto ilícito e típico;

44 - E nos casos em que o consentimento é elemento do tipo, revela-se jurídico-penalmente ilegítima a compreensão que ancora com a instigação na determinação dolosa do consentimento, pois, tal determinaria, por um lado, um alargamento intolerável das margens de punibilidade e, por outro, enredaria o discurso argumentativo em um paradoxismo;

45 - O Tribunal da Relação de Évora errou ao condenar o recorrente por ter dolosamente determinado BPCG a aceitar a interrupção da gravidez, porquanto, pela conjugação dos artigos 26° e 140°, n.° 2, do Código Penal, apura-se que a determinação dolosa do consentimento (que não é ainda o facto ilícito típico), configura jurídico-penalmente um facto não punível;

46 - A argumentação do Tribunal encerra um paradoxo, na medida em que ao sustentar que o consentimento foi instigado, situa-se numa linha interpretativa que conduzirá à irrelevância do consentimento - pela razão singela de um consentimento instigado não traduzir uma vontade livre (artigo 38°, n.° 2 do Código Penal) - mas quando se condena o recorrente por ter instigado um aborto consentido pela mulher grávida, pressupõe a relevância juridico-penal de tal consentimento;

47 - Deste modo, o Tribunal cometeu um erro notório na apreciação da prova, porque a factualidade provada não comporta o manifesto juízo de que o recorrente teria dolosamente determinado outrem à prática do aborto, o que se invoca nos termos e para os legais efeitos do artigo 410° n.°2 - C, do Código de Processo Penal;

48 - Não se provou que o recorrente tivesse criado em BPCG a resolução firme de cometer o crime de aborto;

49 - A remuneração entregue à enfermeira reformada MTSP e co arguida no processo, não é suficiente para sustentar que o arguido criou nesta a resolução firme de cometer o crime de aborto;

50 - Viola o principio da dupla valoração (art. 71°, n.° 2 do Código Penal), considerar a remuneração para efeitos do agravamento do crime de aborto (art. 141°, n.° 2 do Código Penal) e para efeitos de fundamentação da punição do instigador;

51 - Os poderes de cognição e de decisão do Tribunal de julgamento exercem-se nos limites do objecto do processo definido heteronomamente, sendo que a referida vinculação temática do Tribunal visa assegurar um efectivo direito de defesa do arguido;

52 - Em face do exposto, o recorrente deverá ser absolvido pela prática de instigador de um crime de aborto agravado;

53 - Mostram-se violados os preceitos contidos nos artigos 26°, última parte, 38°, n.° 2, 71°, n.° 2, 140°, n.° 2, 141°, nos i e 2 do Código Penal;

54 - Se se entender de modo diferente, não deverá ser aplicada ao arguido, por este crime, pena superior a um ano de prisão;

55 - E operado o cúmulo jurídico, a pena global a aplicar ao recorrente não poderá ser superior a quatro anos de prisão;

56 - Inexistem fundamentos para a condenação do recorrente no pagamento de indemnização a título de danos não patrimoniais, a qualquer das lesadas;

57 - Mostram-se violados os preceitos contidos nos artigos 562°, e 496°, n.° 1 do Código Civil;

58 - Se se entender de modo diferente, o que se admite como hipótese, em face do supra exposto, a indemnização a arbitrar à lesada ALCG não deverá ser superior a €. 5.000,00 (cinco mil euros), e a indemnização a fixar à lesada BPCG não deverá ser superior a € 1.000,00 (mil euros).

2.1.2.

Respondeu o Ministério Público pronunciando-se pela rejeição do recurso por ser manifestamente improcedente, quanto às questões de falta de imparcialidade do tribunal de primeira instância, de nulidade por alteração substancial dos factos, de inexistência de elementos de facto e de direito para o preenchimento, objectivo e subjectivo, do tipo legal de crime do artigo 164° do Código Penal e da verificação deste na forma continuada, e da absolvição da prática, como instigador, do crime de aborto agravado, e improcedente, quanto às demais questões que suscita.

2.1.3.

Também respondeu o assistente que concluiu pelo improvimento do recurso.

2.2.1.

Recorreu igualmente o Ministério Público que pede a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro, que reponha em toda a sua plenitude a decisão condenatória proferida em primeira instância, concluindo na sua motivação:

1 - Quando um tribunal da Relação conhece, em recurso, da matéria de facto, quando reaprecia esta para que possa apurar dos vícios que podem inquinar a decisão proferida em tal domínio, tem, necessariamente, de fazer incidir a sua análise sobre todos os meios de prova que sobre determinado facto foram produzidos.

2 - Só procedendo nesses termos e com essa amplitude estará em perfeitas condições de decidir se determinado facto foi bem ou mal julgado, se as provas sobre ele produzidas não comportam nem permitem a decisão alcançada pela primeira instância, se as conclusões que da análise desses meios de prova foram extraídas sobre esse dito facto são lógicas, coerentes e fundamentadas, não contraditórias nem insuficientes, se não laborou em erro.

3 - E só assim procedendo estará em condições de afirmar se a convicção adquirida pela primeira instância sobre um dado facto, à luz do principio da livre apreciação da prova, é segura e isenta de dúvida.

4 - Enferma do vício de erro notório na apreciação da prova - Código de Processo Penal, artigo 410°, n.° 2, alínea c) - o acórdão da Relação que, reapreciando a matéria de facto assente como provada e não provada pela primeira instância a altera e considera fazer valer o princípio in dubio pro reo sobre determinado facto e o conhecimento que dele tem o autor do facto-crime, não procedeu a uma análise e apreciação de todos os meios de prova que sobre aquele facto foram produzidos.

5 - Viola a livre convicção adquirida pelo julgador da primeira instância e o principio da livre apreciação da prova - Código de Processo Penal, artigo 127° - o acórdão da Relação que, reapreciando a matéria de facto naquela assente como provada e não provada a altera, se apenas parcialmente aprecia e analisa os meios de prova produzidos sobre determinado facto e extrapola a motivação da sua decisão para além do que objectivamente permitem as regras da experiência e da vida.

6 - Ao revogar o acórdão da primeira instância, absolvendo o arguido da prática de dois crimes de abuso sexual de criança e desagravando a condenação do mesmo de dois crimes de violação agravados para dois crimes de violação (simples), em função das alterações que introduziu na matéria de facto provada e não provada apurada em primeira instância, nos termos e com a amplitude que supra se deixaram expressos, o acórdão recorrido violou também o disposto nos artigos 26, 1.ª parte, 172°, n.° 2 e 177°, n.° 4, todos do Código Penal,

7 - Como violado resultou o disposto nos n.°s 1 e 2 do artigo 71° e nos n.°s 1 e 2 do artigo 77°, do mesmo diploma legal.

8 - Por isso que, o acórdão objecto do recurso deverá ser revogado e substituído por outro, que reponha em toda a sua plenitude a decisão condenatória proferida em primeira instância.

2.2.2.

Respondeu o arguido a este recurso, concluindo:

1 - O Tribunal da Relação de Évora ao dar como não provado que i AMSG tinha perfeito conhecimento da idade da BPCG e da ALCG , incidiu a sua análise sobre todos os meios de prova que sobre esse facto foram produzidos;

2 - Assim, essa não prova do facto resultou de uma análise dos meios de prova de forma lógica, coerente, fundamentada e não contraditória, nem insuficiente, segura e isenta;

3 - O Tribunal da Relação de Évora não enfermou no vicio de erro notório na apreciação da prova, ao reapreciar a matéria de facto, no que respeita a esse aspecto particular, e ao fazer valer o principio in dubio pro reo, sobre determinado facto, tendo procedido à análise e apreciação de todos os meios de prova que sobre aquele facto foram produzidos;

4 - O Acórdão da Relação, no que respeita ao facto indicado em 1) não violou o principio da livre convicção adquirida pelo julgador da primeira instância, bem como o da livre apreciação da prova, dado que apreciou, na totalidade, os meios de prova produzidos sobre esse facto, usando as regras da experiência e da vida;

5 - Ao revogar o Acórdão da ia instância, absolvendo o arguido da prática de dois crimes de abuso sexual de crianças e desagravando a condenação do mesmo, de dois crimes de violação agravados, para dois crimes de violação (simples), em função das alterações introduzidas na matéria de facto, provada e não provada, o Acórdão da Relação de Évora não violou o disposto nos artigos 26°, 1 parte, al. 72°, n.° 2, 177°, n.° 4, 71°, n.ºs 1e 2, 77°, n.ºs 1 e 2 do Código Penal;

6 - Nesse particular e que absolveu o arguido, conforme o referido em 5), o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, deve manter-se.

7 - Devem considerar-se como não escritas a parte das alegações de recurso em que foram efectuadas transições, nomeadamente de fis. 20 a 24, dado que se trata de renovação de meios de prova, não admissível em recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

3.

O Ministério Público neste Supremo Tribunal de Justiça teve vista dos autos.

Colhidos os vistos legais teve lugar a audiência. Nela o Ministério Público pronunciou-se pelo improvimento do recurso do Ministério Público, pois que se não vê o erro notório invocado. Quanto ao recurso do arguido sustentou que não se vê ofensa à imparcialidade do tribunal, na forma como foram interrogadas as ofendidas, até porque o arguido teve oportunidade de reagir contra essa conduta do tribunal e se s ativesse considerado lesiva, teria reagido o que não fez. E fora dos prazos do art. 44.º do CPP já não é possível reagir. A alteração de co-autor do crime de aborto para a de instigador não é alteração substancial dos factos, como resulta da al. f) do n.º 1 do art. 1.º do CPP. Não se verificam vícios da matéria de facto, não sendo incompatíveis os n.ºs 21 e 37 da matéria de facto. Quanto à resistência ou oposição da ALCG , posta em causa pelo arguido, ela resulta dos n.ºs 24, 28 e 66 da matéria de facto.

Quanto à instigação do aborto não se refere a mesma ao consentimento da menor, mas à actividade da abortadeira. Considera, neste âmbito que se a remuneração no crime de aborto estabelece a instigação não pode servir, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, para agravar o crime, pelo que a punição deve ser pelo crime simples.

As assistentes, consideraram que o tipo de interrogatório é o adequada para as vítimas menores de crimes sexuais, que a mudança de co-autoria para instigação não é alteração substancial de factos, que a matéria de facto está definitivamente fixada e o que oferece o recorrente é a sua visão subjectiva da prova produzida.

Quanto à resistência da ALCG se deve atender à sua idade (13 anos) e origem humilde, quando o arguido era oficial da GNR. Se verifica concurso real de infracções e não crime continuado, pois que não circunstância exterior ao agente que diminua a culpa, antes a proximidade com as menores foi procurada pelo arguido para cometer os crimes. Que o arguido foi co-autor no crime de aborto e não instigador, pois desempenhou um papel essencial no cometimento do crime. Deve, finalmente, ser mantida a pena.

O arguido aderiu à posição expressa pelo Ministério Público quanto ao recurso trazido por esta Magistratura e manteve e reafirmou a posição assumida na sua motivação de recurso e respectivas conclusões, criticando a matéria de facto fixada e o valor dado a documentos que juntou. Sustentou que eu não devia ser condenado pela prática do crime do art. 164.º e subsidiariamente que se tratou de crime continuado e não um concurso real, pois os conhecimentos com a família tinham facilitado a prática dos crimes. A pena em todo o caso deveria baixar, pois tem 49 anos, é primário e tem tido um comportamento exemplar na cadeia.

Cumpre, pois, conhecer e decidir.

E conhecendo.

3.1.

São as seguintes questões suscitadas:

- Falta de imparcialidade da 1.ª Instância (recurso do arguido);

- Alteração substancial dos factos (recurso do arguido);

- Vícios da decisão da matéria de facto (recurso do arguido e do Ministério Público)

- Violação da livre convicção adquirida pelo julgador da primeira instância e do princípio da livre apreciação da prova (recurso do Ministério Público)

- Culpabilidade quanto ao crime de violação (recurso do arguido);

- Concurso dos dois crimes de violação e pena concreta (recurso do arguido)

- Instigação no crime de aborto (recurso do arguido);

- Pena pelo crime de aborto e pena única (recurso do arguido);

- Indemnização (recurso do arguido)

3.2
Vejamos, no entanto e desde já a matéria de facto assente pela 1.ª instância.
4 - A matéria de facto provada foi a seguinte:
1. BPCG e ALCG, nasceram, respectivamente, em 17 de Janeiro de 1986 e em 27 de Agosto de 1987, e são filhas de LMGG e de CMRC.

2. AMSG e os pais de BPCG e de ALCG conheceram-se há cerca de seis anos, tendo-se estabelecido entre todos uma relação de amizade e de confiança, sedimentada com o decurso do tempo.

3. Nessa altura, AMSG assumia o comando do Posto Territorial da Guarda Nacional Republicana em Abrantes.

4. AMSG passou a ser visita dos pais de BPCG e de ALCG , quando estes moravam na casa da Atalaia, sita na Rua Sacadura Cabral, Quinta Casal da Ribeira, em que viviam no ano de 2000 e onde viveram até há cerca de dois meses atrás.

5. De igual forma, saíram algumas vezes todos em conjunto.

6. BPCG foi viver para casa da então companheira de AMSG, MICS, residente na Rua 25 de Abril, n.º 4, 3º esquerdo, no Entroncamento, ajudando-a na lida da casa e no estabelecimento de café "Lago Amarelo" que explorava no Centro Comercial "O Túnel", sito na mesma cidade.

7. Assim, em data não apurada de 2000, mas pelo menos a partir do início de Junho de 2000, com a anuência do seu pai, quando já não frequentava a escola, a BPCG foi viver para a casa de MICS, onde, à data, vivia AMSG.

8. BPCG passou então a viver com AMSG e a companheira deste, ajudando-a na casa e no café, sendo por ela sustentada, estando de facto ao seu cuidado, apenas indo a casa dos pais em fins-de-semana.

9. A situação manteve-se pelo menos até Outubro do mesmo ano.
10. Nesse período, na casa da sua companheira MICS, no Entroncamento, AMSG manteve, várias vezes, relações sexuais com a BPCG, então com catorze anos de idade, o que bem sabia.

11. Para o efeito, aproveitava a noite quando a companheira já se encontrava a dormir ou as ocasiões em que a mesma não se encontrava em casa, para abordar a BPCG, o que
geralmente sucedia no quarto desta, onde o mesmo se dirigia.

12. Deste modo, AMSG manteve com BPCG, repetidas vezes, relações de sexo, designadamente, penetrando-a com o pénis na vagina e na boca.

13. A primeira vez teve lugar logo após a primeira semana de estadia da BPCG, em data não concretamente apurada, tendo AMSG abordado a BPCG de noite, no corredor da casa, quando a mesma se dirigia da cozinha para o seu quarto.

14. Aproveitando a circunstância de a companheira se encontrar a dormir, logo aí AMSG agarrou os braços da BPCG, encostou-a à parede, dizendo-lhe para não dizer nada nem gritar.

15. De seguida, AMSG despiu-lhe as calças de pijama e as cuecas e introduziu-lhe o pénis erecto na vagina.

16. Além disso, desde a data em que a BPCG regressou à Atalaia até meados de Julho de 2001, AMSG, conhecedor do horário dos pais daquela, deslocou-se várias vezes a casa dos mesmos, geralmente após estes se terem ausentado para o trabalho, procurando-a para aí manter relações sexuais com ela, designadamente, de cópula vaginal e coito oral.

17. Nalguns desses actos a ALCG surpreendeu-os, estando também pelo menos uma vez presente a DRCG, nascida a 11 de Julho de 1999.

18. Outras vezes, durante este período de tempo, AMSG convencia o pai de BPCG a deixá-la sair com ele, ou ia buscá-la a casa na ausência dos pais e, em locais ermos, das zonas de Tomar e de Martinchel, Abrantes, para onde se deslocavam no seu automóvel, mantinha com a mesma relações sexuais, no interior do veículo.

19. Em algumas destas saídas AMSG fazia com que a ALCG os acompanhasse.

20. Após a saída da BPCG da casa de MICS, quando se deslocava a Atalaia a casa do LMGG, AMSG começou também a abordar a irmã da BPCG, a ALCG , com o mesmo propósito, aproveitando as ocasiões em que os pais da BPCG e da ALCG se encontravam ausentes.

21. Assim, em datas não concretamente apuradas, situadas entre Novembro de 2000 e os primeiros meses de 2001, por quatro vezes, AMSG manteve com a ALCG relações sexuais (a 1.ª Instância considerara ainda provado «sabendo que a mesma tinha apenas treze anos de idade»).

22. A primeira vez, encontravam-se os pais ausentes e, sob o pretexto de irem os dois a um café na Atalaia, AMSG levou a ALCG no seu veículo automóvel, de marca Mercedes, azul, para um pinhal perto da estrada que liga Atalaia a Tomar.

23. Aí, AMSG imobilizou o veículo e, mantendo-se no seu interior, baixou as calças e as cuecas que ALCG usava e de seguida, baixou as suas próprias calças e cuecas.

24. Seguidamente, AMSG tirou uma pistola de um bolso das calças e colocou-a sobre o "tablier" do veículo, dizendo "sabes para que serve isto" e "se contares alguma coisa aos teus pais eu mato-os".

25. Após isso, AMSG colocou-se sobre ALCG , que se mantinha no banco ao lado do banco do condutor e introduziu o seu pénis erecto na vagina da mesma.

26. Uma segunda vez, AMSG deslocou-se a casa dos pais de BPCG e de ALCG e, aproveitando a circunstância de se encontrarem apenas a ALCG e a irmã mais nova, DRCG, logo se agarrou àquela.

27. De seguida, na presença da DRCG, AMSG despiu a ALCG.

28. Enquanto isto, a ALCG tentou fugir e disse que ia contar aos pais, tendo o AMSG dito que se ela contasse aos pais lhe batia e os matava.

29. Após isso, AMSG deitou-se sobre a ALCG , introduzindo o seu pénis erecto na vagina da mesma.

30. Na terceira vez, AMSG levou a ALCG para o mesmo local para onde a havia conduzido da primeira vez e no interior do seu veículo Audi cinzento onde seguiam, depois de lhe baixar as calças e as cuecas, baixou as suas próprias calças e cuecas e colocou-se sobre ela, a qual se mantinha no banco ao lado do banco do condutor e introduziu o seu pénis erecto na vagina da mesma.

31. Na quarta vez, AMSG deslocou-se a casa dos pais de BPCG e de ALCG e, aproveitando a circunstância de se encontrarem apenas a ALCG e a irmã mais nova, DRCG, logo se agarrou àquela.

32. De seguida, na presença da DRCG, AMSG despiu a ALCG.

33. Após isso, AMSG deitou-se sobre a ALCG , introduzindo o seu pénis erecto na vagina da mesma.

34. Por força dos factos, a ALCG passou a apresentar alterações de comportamento, não dormindo, não comendo, vomitando quando se recordava deles, predominando sinais de pânico, ansiedade e medo do que poderia vir a acontecer e de como iria ser vista pelos outros, tendo passado a não se aceitar e a não gostar de si.

35. A ALCG foi submetida a acompanhamento psicológico que teve lugar no Serviço de Pediatria, no Hospital de Torres Novas, no período compreendido entre 10 de Dezembro de 2001 e 13 de Junho de 2002, num total de cinco sessões.

36. AMSG, de Janeiro de 2000 a Julho de 2001 - esteve colocado no Grupo Territorial de Santarém, onde exercia as funções de Chefe da Secretaria Pessoal do Comando.

37. Todavia, AMSG esteve afastado do serviço activo, por motivo de doença, nos seguintes períodos de tempo:

- em 03 e 24 de Janeiro de 2000, convalescença por seis dias; - em 20 de Março de 2000, convalescença por seis dias;
- de 26 de Maio de 2000 a 30 de Maio de 2000 em convalescença;
- em 30 de Maio de 2000, convalescença por dez dias;
- de 10 de Agosto de 2000 a 16 de Agosto de 2000;
- em 16 de Agosto de 2000, convalescença por vinte dias;
- de 03 de Dezembro de 2000 a 13 de Dezembro de 2000;
- em 13 de Dezembro de 2000, convalescença por 30 dias;
- de 12 de Janeiro de 2001 a 24 de Janeiro de 2001, com 30 dias de convalescença;
- de 3 de Fevereiro de 2001 a 07 de Março de 2001, com 30 dias de convalescença;
- de 05 de Abril de 2001 a 10 de Abril de 2001;
- em 10 de Abril de 2001, com 30 dias de convalescença;
- de 11 de Maio de 2001 a 23 de Maio de 2001;
- em 23 de Maio de 2001, com 30 dias de convalescença; - de 21 de Junho de 2001 a 26 de Junho de 2001;
- em 26 de Junho de 2001, com 30 dias de convalescença.

38. Em consequência das relações sexuais sofridas acima descritas veio a BPCG a engravidar.

39. No dia 15 de Julho de 2001, AMSG logrou convencer o pai da BPCG e da ALCG a deixá-las acompanhá-lo sob o pretexto de irem os três jantar fora.

40. Nesse mesmo dia 15 de Julho de 2001, a BPCG deu a conhecer ao AMSG a ausência da sua menstruação há dois meses, tendo o mesmo diligenciado pela obtenção de um teste de gravidez, que a BPCG veio a realizar e cujo resultado foi positivo, facto que lhe deu a saber.

41. Visando impedir que aquela gravidez fosse por diante, dirigiram-se a Abrantes no seu Audi cinzento e aí à casa de MTSP, depois de com ela AMSG ter previamente estabelecido contacto telefónico para o n.º 241361173, pelas 21 horas 20 minutos e 22 segundos, usando o seu telemóvel n.º 916944100.

42. Uma vez na casa de MTSP, onde apenas entraram AMSG e a BPCG, este transmitiu àquela que a BPCG era filha de um amigo dele, que ficara grávida do namorado e que precisava de abortar.

43. MTSP, enfermeira reformada, que havia prestado serviço em obstetrícia no Hospital de Abrantes, durante cerca de 16 anos, logo acordou proceder à interrupção da gravidez desta, a realizar no dia seguinte.

44. Todavia, MTSP logo deu um supositório a BPCG, de especialidade farmacêutica não apurada, para a mesma colocar nessa noite.

45. Assim, no dia 16 de Julho, AMSG, depois de ter de novo convencido o pai da BPCG a deixá-la acompanhá-lo sob o pretexto de irem a Santarém, levou a BPCG a Abrantes à casa de MTSP, onde a deixou sozinha.

46. Aí foi conduzida por esta a um compartimento que fica do lado direito de quem entra, onde a mandou deitar sobre uma marquesa que ali tinha oculta por uma estrutura de madeira, como se de uma cómoda se tratasse, à qual fixou duas peças onde a BPCG colocou os pés.

47. De seguida, MTSP desinfectou com algodão embebido em álcool um espéculo vaginal.

48. Depois, MTSP deu à BPCG uma máscara, que se encontrava ligada a uma botija de gás, tendo a BPCG colocado a máscara sobre a boca e o nariz, segura por um elástico.

49. Após, A BPCG começou a inalar o gás que saía da máscara.

50. Pouco tempo depois, MTSP, sabedora que a BPCG se encontrava grávida de dois meses, facto que constatou, introduziu-lhe o espéculo na vagina e com ele procedeu a uma raspagem, provocando-lhe em consequência fortes dores e incómodos, fazendo-a vomitar.

51. Com esse comportamento, MTSP logrou a morte do feto.

52. Passado algum tempo, já depois da MTSP ter feito abortar a BPCG, AMSG foi buscá-la e, para pagamento do serviço por aquela efectuado, emitiu, com data de 16 de Julho de 2001, e entregou a MTSP, o cheque n.º 2937422120, no montante de oitenta mil escudos, da conta n.º 7742300, da agência de Abrantes, da Caixa Geral de Depósitos, de que é titular.

53. No dia 16 de Julho de 2001, AMSG dirigiu-se ao seu médico, António Ribeiro Marques Heitor, e obteve uma receita médica onde o clínico exarou o seguinte:
"AMSG, ADMG n.º 1771927000, Bactrim Forte - 1 embalagem, 20 comprimidos, Alferrarede, 01/07/16".
54. No dia seguinte, dia 17 de Julho, AMSG dirigiu-se à Atalaia, a casa da BPCG, quando os seus pais já haviam saído, na posse da receita daquele medicamento emitida em seu nome pelo referido médico.

55. Uma vez aí, solicitou à ALCG que a fosse aviar, entregando-lhe para o efeito a receita referida, o dinheiro necessário e ainda, o seu cartão de beneficiário da ADMG.

56. Assim, nesse mesmo dia 17 de Julho de 2001, a ALCG dirigiu-se à farmácia "Tente", sita na Atalaia, Vila Nova da Barquinha e aí adquiriu o medicamento referido, pelo qual pagou o preço de 269$00.

57. Dele, a BPCG tomou parte, tendo sido recuperados nove comprimidos embalados.

58. O Bactrim Forte é do laboratório "Roche" e cada comprimido é composto por 160 mg de trimetoprim e de 800 mg de sulfametoxazol, tratando-se de um agente quimioterápico de dupla acção com propriedades bactericidas (vulgo antibiótico) indicado para o tratamento, entre outras, de infecções dos órgãos genitais.

59. Tal medicamento foi comparticipado em 75% (806$00) pela ADMGNR, com referência ao beneficiário n.º 1771927000, AMSG.

60. O cheque de oitenta mil escudos emitido e entregue por AMSG à MTSP foi por esta creditado na sua conta n.º 003035231-900, da agência de Abrantes da Caixa Geral de Depósitos, no dia 17 de Julho de 2001, através do documento n.º 001232150.

61. No dia 09 de Julho de 2002, no compartimento onde realizou o aborto, guardados num armário-estante embutido na parede, MTSP tinha as seguintes embalagens de especialidades farmacêuticas e material de enfermagem:

- doze ampolas de vidro acastanhado, de 4,5 cms. x 1 cm. de diâmetro, contendo um líquido no seu interior e apresentando cada uma delas as seguintes inscrições a branco "Oxitocina 5U.I./ml. / solução injectável 1 ml. / para infusão I.V ou injecção I.M. / Scanpharm a.s. Dinamarca", sendo que sete têm a referência "L. 10907B F. 05/2003" e as restantes cinco, a referência "L. 14502B E. 12/2003", todas acondicionadas num envelope;

- um dispositivo constituído por dois discos concêntricos de 10,5 e 8 cms. de diâmetro, em material plastificado, de cores azul e rosa, com inscrições diversas e a marca "Schering", utilizável para cálculo do tempo da gravidez;

- um pedaço de cartão com diversas inscrições na frente e verso, nomeadamente "Anagelsia, Anaesthesia, The Cyprane Inhaler", aparentemente parte da embalagem de um aparelho de anestesia; - duas agendas de secretária, uma de 1999 e outra de 2001; - uma agenda de bolso de 1991, com apontamentos manuscritos diversos.

62. Tal material foi apreendido na sequência de busca domiciliária autorizada à residência de MTSP e levada a cabo no dia 09 de Julho de 2002.

63. A especialidade farmacêutica Oxitocina é de uso exclusivamente hospitalar e pode ser usada em manobras abortivas.

64. Nessa data, no aludido compartimento, encontrava-se uma marquesa em ferro, do tipo usado em obstetrícia e ginecologia, pintada de branco, coberta por uma estrutura de madeira, em forma de cómoda, com uma tolha de renda branca por cima.

65. AMSG e MTSP agiram de modo voluntário, livre e consciente.

66. AMSG agiu com o propósito de manter relações sexuais com a BPCG e a ALCG nas formas e pelos meios antes descritos, criando na ALCG medo e receio de que lhe batia se contasse aos pais, consciente de que assim punha em causa a intimidade e a liberdade sexual da ALCG)

67. (AMSG tinha perfeito conhecimento da idade de BPCG e de ALCG ) retirado dos factos provados por decisão da Relação.

68. AMSG agiu com o propósito de levar a BPCG a interromper a sua gravidez, da qual era o autor, diligenciando ele próprio junto da MTSP pela realização do aborto e pelo pagamento da quantia por esta exigida para o provocar.

69. MTSP agiu com o propósito de impedir que a gravidez da BPCG fosse por diante, provocando-lhe para o efeito a morte do feto, o que fez para alcançar um ganho económico a que sabia não ter qualquer direito.

70. AMSG e MTSP agiram em execução de acordo previamente estabelecido entre ambos e ambos sabiam que praticavam factos proibidos por lei.

71. As manobras abortivas provocaram à BPCG dores e mal estar que perduraram durante cerca de uma semana, tendo sido para ela fonte de perturbações psicológicas que perdurarão por toda a vida.

72. As práticas sexuais de AMSG com a ALCG foram para ela fonte de desgosto, sofrimento e causa de sofrimentos psicológicos que a acompanharão por toda a vida.

73. AMSG é casado e é sargento ajudante da Guarda Nacional Republicana, auferindo no exercício da sua actividade cerca de mil duzentos e setenta euros líquidos, é dono de um estabelecimento comercial sito em Casa Branca que se acha alugado pela renda mensal de cento e vinte e cinco euros a que acresce IVA, montante que reverte para sua esposa.

74. AMSG tem dois filhos com vinte e dois e vinte e sete anos de idade, o mais novo a frequentar o quinto ano da faculdade de direito e o mais velho engenheiro florestal.

75. AMSG concluiu o antigo quinto ano dos liceus.

76. AMSG manifesta emoções e sentimentos de forma intensa, mas pouco consistentes, o que faz dele uma pessoa emocionalmente reservada, com dificuldades em descontrair-se e em mostrar aos outros os seus sentimentos de uma forma casual e informal, o que lhe provoca alguma dificuldade de adaptação ao nível do relacionamento interpessoal.

77. Na sua história pessoal, AMSG manifesta necessidades em experimentar relações de afecto com pessoas do sexo oposto, mas os relacionamentos são pouco consistentes, gerando sentimentos de insatisfação e determinando o estabelecimento de sucessivos e até simultâneos vínculos amorosos.

78. AMSG não tem antecedentes criminais e tem demonstrado desde o primeiro dia de reclusão grande correcção e educação.

79. MTSP é viúva e enfermeira parteira, tendo exercido tal actividade durante cerca de quarenta anos, achando-se presentemente e desde há cerca de dez anos reformada, auferindo uma pensão de reforma no montante mensal de mil e noventa e três euros líquidos, recebendo ainda por morte de seu marido cento e vinte euros por mês.

80. MTSP habita sozinha em casa de renda pagando uma renda mensal no montante de duzentos e noventa e seis euros e trinta cents.

81. MTSP não tem antecedentes criminais, tem a quarta classe e tem dois filhos maiores.

82. MTSP é estimada pelos vizinhos e amigos, sendo considerada por eles pessoa educada, amável e prestável.
Factos não provados:
I) Que AMSG e os pais da menores se conheceram há cerca de sete anos.
"I-A) Que AMSG tinha perfeito conhecimento da idade da BPCG e de ALCG " (introduzido por decisão da Relação)
II) Que os pais das menores passaram a viver na casa da Atalaia no ano 2000)

III) Que as saídas de todos em conjunto eram para passeios, almoços e jantares.

IV) Que a companheira de AMSG, MICS, residente na Rua 25 de Abril, n.º 4, 3º esquerdo, no Entroncamento, abordou o pai de BPCG e ALCG , no sentido de a BPCG a poder ajudar na lida da casa e no estabelecimento de café "Lago Amarelo" que explorava no Centro Comercial "O Túnel", sito na mesma cidade.

V) Que BPCG foi viver para casa de MICS em Janeiro de 2000 e que tal situação se manteve até Dezembro de 2000.

VI) Que AMSG manteve com BPCG, repetidas vezes, relações de sexo penetrando-a com o pénis no ânus.

VII) Que na primeira vez que manteve relações sexuais com BPCG AMSG antes a ameaçou de contar aos pais que ela fumava, que a deitou no chão e que a introdução do pénis na vagina da BPCG foi contra a vontade daquela.

VIII) Que em data não apurada de Dezembro de 2000, AMSG, que se preparava para manter relações sexuais com BPCG, foi inesperadamente surpreendido pela companheira a sair do quarto daquela, todo despido, pelo que a BPCG, nesse mês regressou a casa dos pais, na Atalaia.

IX) Que AMSG forçou BPCG a manter consigo relações sexuais, designadamente de cópula vaginal, coito anal e oral e que praticou com BPCG coito anal.

X) Que AMSG levou sempre a cabo as relações sexuais com BPCG depois de a ameaçar que lhe batia se revelasse os factos a alguém, designadamente aos pais, chegando numa das ocasiões a dar-lhe bofetadas e, noutra, a exibir-lhe uma pistola que trazia no veículo.

XI) Que o relacionamento sexual entre AMSG e ALCG se verificou entre finais de Dezembro de 2000 e meados de Julho de 2001.

XII) Que na primeira vez que manteve relações sexuais com ALCG , AMSG começou a apalpá-la.

XIII) Que na primeira vez que manteve relações sexuais com ALCG , só perante a resistência oferecida pela ALCG , que afirmava ir contar ao pai, AMSG ejaculou fora da vagina daquela.

XIV) Que a segunda vez em que AMSG manteve relações sexuais com ALCG ocorreu cerca de um mês depois da primeira vez.

XV) Que a segunda vez em que AMSG manteve relações sexuais com ALCG acabou por ejacular fora perante o choro da irmã mais nova que a tudo assistiu.

XVI) Que AMSG levou sempre a cabo as relações sexuais com a ALCG depois de a ameaçar que lhe batia se contasse os factos aos pais e também de ameaçar nos mesmos termos a BPCG, à sua frente, chegando a exibir-lhes uma pistola que trazia no seu veículo.

XVII) Que a ALCG antes destes acontecimentos ainda não havia tido relações sexuais.

XVIII) Que a BPCG deu a conhecer ao AMSG a ausência da sua menstruação no mês de Julho de 2001, em data anterior ao dia 15 desse mês.

XIX) Que aquando do contacto com a MTSP, no dia 15 de Julho de 2001, AMSG pediu que a interrupção da gravidez tivesse lugar de imediato e que a anuência de MTSP à efectivação da interrupção da gravidez se deu após esta se ter inteirado da idade da BPCG.

XX) Que no dia 16 de Julho de 2001, AMSG, para convencer o pai da BPCG a deixá-la acompanhá-lo, disse que ia a Leiria buscar uns papéis e que forçou a BPCG a abortar.

XXI) Que nesse dia, de um armário-estante existente no compartimento que fica do lado direito de quem entra na casa de MTSP, esta retirou um pedaço de algodão e uma embalagem de Betadine e já com as mãos protegidas com luvas, desinfectou com o algodão embebido naquele produto um espéculo vaginal que previamente retirara da gaveta da marquesa.

XXII) Que após ter recebido o cheque de AMSG, a MTSP apontou num papel o nome do medicamento - Bactrim Forte - que a BPCG deveria tomar para combater qualquer infecção que pudesse surgir em consequência daquela manobra abortiva e entregou-o ao AMSG para que diligenciasse pela receita necessária à sua aquisição.

XXIII) Que no dia 16 de Julho de 2001 AMSG se dirigiu ao consultório do seu médico sito na Rua da Estação, em Alferrarede, e que lhe solicitou a receita médica necessária para a aquisição de "Bactrim Forte".

XXIV) Que a BPCG entregou os nove comprimidos embalados à mãe depois dos factos virem a ser conhecidos pelos pais, o que sucedeu em 29 de Julho de 2001.

XXV) Que AMSG ameaçou a BPCG na presença da ALCG , chegando a dar bofetadas na BPCG, exibindo-lhes a sua pistola para ainda mais as perturbar e levando-as para locais isolados para impedir a sua resistência ou defesa.

XXVI) Que AMSG agiu consciente de que punha em causa a intimidade e a liberdade sexual da BPCG.

XXVII) Que AMSG agiu com o propósito de compelir a BPCG a interromper a sua gravidez.
XXVIII) Que as práticas sexuais a que AMSG submeteu BPCG são para esta fonte permanente e duradoira de constrangimento para com ela própria e para com as pessoas com quem priva, sendo causa de conflitos íntimos que jamais poderá ultrapassar e gerando complexos perante as demais pessoas.
XXIX) Que MTSP ministrou medicamentos tóxicos perniciosos à saúde de BPCG.
XXX) Que AMSG manteve uma relação amorosa com a mãe de BPCG e de ALCG .
XXXI) Que AMSG fez alguns empréstimos em dinheiro aos pais das menores.
Que quando começou a pedir para lhe pagarem porque necessitava do dinheiro recebeu em troca uma queixa crime e que em tempos o pai das menores chegou ao ponto de dizer que desistia da queixa se este lhe perdoasse a dívida.
Vejamos, então, as anunciadas questões.
3.3.
Falta de imparcialidade do Tribunal da 1.ª Instância

Sustenta o recorrente que se verifica uma nulidade insanável do art. 410.º, n.º 2 do CPP, por pré-juizo de perigosidade e de culpabilidade do arguido, por parte do Tribunal Colectivo que violou o princípio da presunção da inocência e que deve conduzir à repetição do julgamento (conclusão 9.ª).

Defende que, dirigindo-se as regras e comandos do n.º 2 do art. 138° do CPP também aos Magistrados (conclusão 2.ª), não podia o tribunal usar na audição da ofendida BPCG expressões como "Vá Bruna, esforça-te um pouco mais, ajuda-nos!"; "só mais um esforço..", "eu prometo que não te faço mais perguntas!"; "os passos que já deste foram importantes"; "olha Bruna, não me digas que vais morrer na praia!"; "estão aqui alguns homens na sala, mas nem todos são violadores", que criaram "situações de espontaneidade provocada" (conclusão 3.ª).

E que anunciam um pré-juízo sobre a culpabilidade do arguido (conclusão 5.ª) e sobre a sua perigosidade (conclusão 4.ª), o que viola o princípio da presunção de inocência consagrado constitucionalmente e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (conclusões 6.ª a 8.ª).

Decidiu a Relação sobre esta questão o seguinte:

«5.1 - Quanto à invocada falta de imparcialidade do tribunal recorrido (por, segundo diz o recorrente, o tribunal ter utilizado um método de inquirição/audição em particular da ofendida BPCG que criou situações de "espontaneidade provocada", ao serem utilizados repetidamente expressões como "vá Bruna esforça-te um pouco, ajuda-nos", "só mais um esforço... eu prometo que não te faço mais perguntas", "os passos que já deste já foram importantes", "ajuda-nos a encerrar o assunto", "olha Bruna não me digas que vais morrer na praia", "estão aqui alguns homens na sala mas nem todos são violadores", assim também formulando um prejuízo de culpabilidade em relação ao recorrente, evidenciador de que já o considerava culpado antes daquela ser apurada de acordo com os mecanismos legais, assim igualmente se violando o princípio de presunção de inocência do arguido), entendemos não assistir qualquer razão ao recorrente pois, embora seja verdade, como aliás resulta da gravação da audiência, que os Senhores Juízes às vezes tenham utilizado aquelas expressões em especial durante o interrogatório da BPCG, tal, como também evidencia a dita gravação, resultou das dificuldades que, como é normal neste tipo de crimes referentes à intimidade e à vida sexual das pessoas, o Tribunal sentiu por a menor se mostrar inibida, com vergonha e sentir dificuldades em, perante o tribunal, se referir a esses factos de natureza sexual que constavam da acusação.

Como bem refere o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto, naquele seu douto parecer, "a proclamada falta de imparcialidade do tribunal a quo traduziu-se, precisamente, em procurar restituir às vítimas/testemunhas a (possível) dignidade e serenidade necessárias para que, mesmo se para tanto fosse necessário "todo o tempo do mundo", esclarecerem os julgadores sobre o ocorrido e levado a julgamento".

O tribunal tem o dever de procurar recolher todos os elementos que considere necessários para construir uma decisão justa que só a ele compete proferir e, assim, não deve ter pressa e passar à frente quando sente que os inquiridos, de modo especial no caso de inquirição de menores que se apresentam como ofendidos em crimes de natureza sexual e manifestam dificuldades em pronunciarem-se sobre os factos que, de acordo com a acusação, esses menores são vítimas.

É que em crimes desta natureza, em que normalmente tudo se terá passado entre arguidos e ofendidos, torna-se sobremaneira fulcral o depoimento dos arguidos e dos ofendidos e, assim sendo, o tribunal, no dever inalienável de recolher o maior número possível de elementos que tenha por relevantes, deve interrogá-los, se bem que com plena ressalva dos seus direitos e das normas processuais, durante o tempo que entender necessário e pela forma que, no seu entender, melhor conduza à descoberta da verdade, pois só assim ficará capacitado para elaborar a decisão justa que, repete-se, apenas ao tribunal compete.

Analisada a forma como o Tribunal a quo procedeu ao interrogatório da BPCG, verifica-se que aquelas expressões então utilizadas pelo tribunal resultaram das dificuldades sentidas pela BPCG em esclarecer o tribunal sobre os referidos factos e assim, ao contrário do que diz entender o recorrente, consideramos não existir qualquer indício no sentido de o tribunal ter sido parcial ou ter agido de forma a levar à alegada "espontaneidade provocada".

Por outro lado, o facto de o tribunal, haver indeferido em audiência de julgamento um requerimento apresentado pelo arguido em que este pretendida a substituição da medida coactiva de prisão preventiva, numa altura em que ainda não tinham sido ouvidas as menores nem os seus progenitores, dizendo, além do mais, que havia o perigo de conservação da prova e da sua veracidade e uma inabitual liberdade de movimentos do arguido apesar de se encontrar em situação de prisão preventiva, também não permite concluir, como concluiu o arguido, que o tribunal, quando depois em despacho esclareceu, ainda a requerimento do arguido, em que consistia essa "inabitual liberdade de movimentos do arguido", formulou previamente préjuízo de perigosidade e de culpabilidade em relação ao ora recorrente.

Para melhor compreensão desta questão, passamos a transcrever esse despacho de esclarecimento que é do seguinte teor e faz parte da acta de audiência de discussão e julgamento de 2003-11-28 ( cf. fls. 877 ):

"Respondendo à solicitação legítima do arguido de concretização da referida inabitual liberdade de movimentos do arguido apesar de se encontrar em situação de prisão preventiva, indicam-se de seguida as mesmas:

Em primeiro lugar, estranha-se que estando o arguido na situação em que se encontra, não tenham os serviços competentes diligenciado para que o seu transporte se efectuasse em veículo apropriado a mantê-lo isolado e sem contacto visual com o exterior, já que o mesmo tem vindo a ser transportado num veículo ligeiro da Brigada de Trânsito.

Em segundo lugar é para nós anormal que um detido na situação de prisão preventiva, se apresente no exterior deste Tribunal a conversar com os agentes que o acompanham e com terceiros e sem sequer se encontrar algemado.

Em terceiro lugar, o facto de entrar pela porta de acesso principal deste tribunal, em vez de entrar pela porta de acesso reservada aos arguidos detidos.

Estas as razões concretas da aludida inabitual liberdade de movimentos.".
Do teor deste despacho resulta que o mesmo apenas se refere ao tratamento algo privilegiado que, no entender do tribunal, estava a ser dado ao arguido em relação a outros presos preventivos nas vindas ao tribunal e, assim, ao contrário do alegado pelo recorrente, nele não se formula qualquer pré-juízo de perigosidade do arguido e em nada belisca o princípio da presunção de inocência deste.

Não se verificam, pois, os invocados pré-juízo de perigosidade e de culpabilidade do arguido nem a violação do princípio da presunção de inocência do mesmo.»

Face a estas considerações, que merecem toda a concordância, não se vê que esteja em causa a imparcialidade do Tribunal. O que aquelas expressões traduzem é um esforço do Tribunal no sentido de obter a colaboração das menores da descoberta da verdade em crimes sexuais, domínio onde se faz sentir, como é sabido, uma grande dificuldade e retraimento das vítimas na recordação, no reviver, em público das situações por que passaram, e que muitas vezes se traduz numa verdadeira penalização secundária.

As expressões utilizadas e que o recorrente invoca não se referem ao arguido, traduzindo um pré-juízo sobre a sua culpabilidade, sendo como são nutras, e destinam-se, antes, a incentivar, facilitar e suavizar aquela colaboração.

Quando é referido que nem todos são violadores naquela sala, refere-se à tipologia criminal em apreciação, salientando que a depoente estava protegida de novas ofensas naquela sala e não traduz um pré-juizo em relação ao arguido.

Manteve-se, assim, o Tribunal Colectivo nos limites do seu poder-dever de investigação da verdade material, procurando criar condições para uma completa e livre produção de prova. Verdadeiramente não se incentiva a depoente a depor em qualquer sentido concreto, antes se procura actuar sobre a sua inibição em recordar os factos.

Por outro lado, como igualmente analisa a Relação, as referências à liberdade de movimentos do arguido, quando estava detido, não traduzem um pré-juízo contra o arguido, designadamente quanto à sua perigosidade, mas a compreensão de que essa liberdade não habitual, poderia fazer, isso sim, danos à imagem pública da imparcialidade do tribunal e mesmo conduzir ao constrangimento das testemunhas indicadas pela acusação.

Carece, assim, de fundamento esta pretensão do recorrente.
3.4.
Alteração substancial dos factos

Sustenta o recorrente que, enunciado o cotejo entre as imputações contidas na acusação deduzida pelo M.º P.º e o teor da condenação se verifica que a 1.ª Instância o condenou como instigador de um crime de aborto dos art.ºs 26°, última parte, 140°, n.° 2 e 141°, n.° 1 do C. Penal, o que foi mantido pela Relação, enquanto a acusação imputava ao arguido a co-autoria de crime dos art.ºs 26°, 28°, 140.º, n.° 1 e 14 1°, n.° 2 do mesmo diploma (conclusão 12), permitindo que uma alteração substancial dos factos fosse tida em conta, para efeitos da sua condenação do recorrente, o que foi erradamente mantido pela Relação, e que permitiu que o recorrente fosse condenado por crime diverso ( art. 1, n.° 1, al. f) do CPP), do que lhe era imputado pela acusação (conclusão 13), ocasionando a nulidade da decisão condenatória ¯ art. 379°, n.° 1, al. b) do CPP (conclusão 14).

Esta resenha permite apreender que o recorrente embora continue a invocar uma alteração substancial dos factos geradora de nulidade da decisão que o condenou, mudou o ângulo de abordagem da questão.

Com efeito, perante a Relação questionou, neste capítulo, a alteração introduzida nos factos referentes ao conhecimento que tinha da idade das menores e às ameaças que fez às ofendidas, como resulta das conclusões 45 a 48 da sua motivação de recurso então apresentada.

E foi essa a questão que foi decidida desfavoravelmente para as suas pretensões pela Relação, como resulta inequivocamente do ponto 5.2. do acórdão deste Tribunal Superior, cuja parte inicial se transcreve:

«5.2 - Invoca também o arguido uma nulidade que integra no art.º 410.º n.º 3, do C. P. Penal, por o tribunal, com base nas declarações da ALCG , ter promovido, segundo o recorrente, uma alteração substancial dos factos, prevista no art.º 359.º, n.ºs 1 e 2, do C. P. Penal, e não uma alteração não substancial prevista no art.º 358.º, como considerou o tribunal, em particular no que concerne à circunstância de considerar que o recorrente sabia que a mesma tinha treze anos de idade, e que o mesmo tirou uma pistola do bolso das calças, dizendo "sabes para que isto serve" e "se contares alguma coisa aos teus pais eu mato-os", assim introduzindo, ainda segundo o recorrente, factos substanciais que tiveram repercussões agravativas na medida da punição.
Adianta-se desde já que também aqui não assiste qualquer razão ao recorrente.(...)»

Mas, como se viu, o recorrente deixou cair essa questão e veio sustentar a alteração substancial dos factos, mas quanto à comparticipação no crime de aborto.

O que significa que a questão agora é apresentada é nova, toda a vez que não foi colocada perante a Relação, no recurso dirigido a esse Tribunal Superior.

Ora, como é sabido, os recursos destinam-se a obter o reexame pelo Tribunal Superior das decisões tomadas pelo Tribunal recorrido e não para obter daquele a pronúncia ex novo de questão, não colocada, e por isso não apreciada, por este.

Assim, não tendo a questão sido colocada perante a Relação, dela não se tomará agora conhecimento.

3.5.

Vícios da decisão da matéria de facto

Continua o arguido a impugnar, no recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, a matéria de facto fixada pela 1.ª Instância e alterada parcialmente pela Relação.

E invoca a existência de erro notório (conclusões 16 a 33 e 47), insuficiência da matéria de facto provada para a decisão (conclusões 16 e 34) e contradição entre fundamentação e a decisão: (conclusão 16).

Por sua vez, o Ministério Público sustenta que a decisão de facto da Relação, na parte em que altera a decisão da 1.ª Instância, enferma de erro notório na apreciação da prova, quando reaprecia a matéria de facto e considera fazer valer o princípio in dubio pro reo sobre determinado facto e o conhecimento que dele tem o autor do facto-crime, não tendo procedido uma análise e apreciação de todos os meios de prova que sobre aquele facto foram produzidos (conclusão 4).

Estas pretensões não podem, no entanto proceder.
Com efeito, tem decidido o Supremo Tribunal de Justiça, a uma só voz, que para conhecer de recurso interposto de um acórdão final do tribunal colectivo relativo a matéria de facto, mesmo que se invoque qualquer dos vícios previstos no art. 410.º do CPP, é competente o tribunal de Relação.
Em relação às decisões na al. d) do art. 432.º o âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal é fixado na própria alínea e não no art. 434.º do CPP, o que significa, que, relativamente aos acórdãos finais do tribunal colectivo, o recurso para o Supremo só pode visar o reexame da matéria de direito, designadamente quando, como no caso, a questão de facto já passou o crivo da 2.ª Instância.

Nos recursos interpostos da 1.ª Instância ou da Relação, o Supremo Tribunal de Justiça só conhece dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, por sua própria iniciativa e, nunca, a pedido do recorrente, que, para tal, terá sempre de dirigir-se à Relação, como fez o recorrente neste caso..

Ora, a leitura da matéria de facto fixada pelas instâncias não suscita qualquer dúvida, não se vislumbrando qualquer dos vícios de que o Supremo Tribunal de Justiça pode conhecer oficiosamente.

A leitura do extenso trecho do acórdão da Relação que se debruça sobre a questão não deixa dúvidas. Com efeito, a Relação tomou em consideração os elementos de prova de que se socorra a 1.ª Instância e deles tirou ilações ou conclusões que, como matéria de facto que são, escapam à censura do Supremo Tribunal de Justiça, quando como é o caso, se limitam a desenvolver os factos provados directamente. E, como é igualmente sabido, também não pode o Supremo Tribunal de Justiça censurar a invocação do princípio in dúbio pró reo pelas Instâncias, por considerar de que não deveria ter ficado em estado de dúvida, pois essa é também uma questão de facto.

Por outro lado, diferentemente do que parecem entender os recorrentes, o recurso em matéria de facto não é um novo julgamento em que a 2.ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª Instância. Antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros. Só essas provas e as que o recorrido e o Tribunal entendam que as contrariam é que, aliás, são transcritas.

E o recorrente não deu cumprimento ao encargo que permitira um mais detalhado reexame da matéria de facto.
Por outro lado, não se pode afirmar, como faz o recurso do Ministério Público, que a Relação se tenha situado fora do âmbito do art. 431.º do CPP ao alterar a matéria de facto e que não tenha atendido nessa alteração a todos os elementos a que devia atender.

Mais, não se configura nesse recurso a preterição pela Relação de uma norma legal respeitante aos seu poderes de alteração da matéria de facto.

A invocação da regra do art. 17.º do CPP, referente à livre convicção do juiz, não pode desempenhar esse papel, toda a vez que faz apelo a poderes de censura que não assistem a este Supremo Tribunal, enquanto tribunal de revista.

Deve, assim, considerar-se definitivamente fixada pelas instâncias a matéria de facto a atender neste processo.
3.6.

Culpabilidade quanto ao crime de violação

Sustenta o arguido que não há na matéria de facto dada como assente qualquer referência a resistência séria por parte da ALCG , ou uma vontade contrária à actuação do recorrente (conclusão 36), pelo que não existem nos autos elementos de facto nem de Direito, suficientes para se considerar objectiva e subjectivamente preenchido o tipo penal do art. 164° do C. Penal (conclusão 37).

Mas não lhe assiste razão.

Dispõe o n.º 1 do art. 164.º do C. Penal que quem, por meio de violência, ameaça grave (...), constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.

A violência ou ameaça grave, bem como constranger outro, inscrevem-se seguramente na matriz do crime de violação pelo qual o arguido vem condenado.

Constranger é compelir, obrigar à força, violentar, coagir. Ora foi isso o que fez o arguido, de acordo com a matéria de facto dada como provada.

Com efeito, como notou o Ministério Público em audiência deste Tribunal, está provado que no interior do veículo onde conduzira a ALCG a local propício às suas intenções, o arguido tirou uma pistola de um bolso das calças e colocou-a sobre o "tablier" do veículo, dizendo "sabes para que serve isto" e "se contares alguma coisa aos teus pais eu mato-os" (cfr. n.º 24 da matéria de facto), após o que se colocou sobre aquela, que se mantinha no banco ao lado do banco do condutor e introduziu o pénis erecto na sua vagina (cfr. n.º 25. da matéria de facto). Uma segunda vez, o arguido deslocou-se a casa dos pais das menores e, aproveitando a circunstância de se encontrarem apenas a ALCG e a irmã mais nova, DRCG, logo se agarrou àquela (cfr. n.º 26 da matéria de facto), despiu aquela na presença da irmã (cfr. n.º 27 da matéria de facto), e como a ALCG tentasse fugir dizendo que ia contar aos pais, o arguido disse que se ela contasse aos pais lhe batia e os matava (cfr. n.º 28 da matéria de facto).

Finalmente, está ainda provado que o arguido. AMSG agiu com o propósito de manter relações sexuais com (...) a ALCG nas formas e pelos meios antes descritos, criando nesta medo e receio de que lhe batia se contasse aos pais, consciente de que assim punha em causa a intimidade e a sua liberdade sexual (cfr. n.º 66 da matéria de facto).

Está, pois, provado que o arguido, elemento da GNR e visita da casa dos pais da menor de 13 anos, através da exibição de uma pistola e da ameaça de que lhe bateria e mataria os pais se ela se opusesse ou contasse alguma coisa, para conseguir com ela manter relações de cópula. Ameaças que repetiu numa segunda vez, quando ela tentou fugir, dizendo que ia contar tudo aos pais.

Dúvidas não restam que só através daquelas ameaças é que conseguiu manter relações de cópula com a menor que resistiu o que era possível, atendendo à sua idade, às ameaças vindas de um militar graduado da GNR "amigo" dos pais.

Impunha-se, pois, a conclusão das instâncias de que o arguido constrangeu a ALCG a suportar a relação de cópula, com base em ameaças graves e que esta resistiu o que era possível na sua condição.

O que basta para afastar a pretensão do recorrente.

3.7.

Crime continuado na violação e pena concreta

Sustenta o arguido, subsidiariamente, que então se configura um crime continuado e não dois crimes (conclusão 38), pois se encontra em causa o mesmo tipo de crime, existindo unidade do injusto objectivo da acção e do resultado, sendo que as diversas resoluções do recorrente se conservam dentro de uma «linha psicológica continuada", e que existem circunstâncias exógenas que facilitavam a execução, com relação de conhecimento com os pais e a frequência da casa de habitação (conclusão 39)

Assim, conjugando tal ponto de vista com o preceituado nos artigos 40°, 40, n.° 1, 43°, n°1 e 72°, n.° 2 do Código Penal - defende o recorrente - deve nessa parte ser fixada uma pena única não superior a 3 anos (conclusão 40)

No que tange ao crime de violação, estamos perante dois crimes, em concurso real e efectivo, e não, como diz o recorrente, perante um único crime na forma continuada.

Invoca o recorrente o n.º 2, do art. 30.º do C. Penal que prescreve que constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

Deste modo, destaca-se como elemento nuclear do crime continuado, uma diminuição considerável da culpa do agente derivada de um quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que facilite ao agente a prática de actos de execução de um tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico.

A situação em causa tem de ser exterior ao agente e que o "solicite" à renovação da prática dos crimes. São dados, como exemplos de escola, a renovação de uma oportunidade anteriormente aproveitada pelo agente, ou a perduração do meio apto para a realização do crime, ou em que o agente, tendo executar a resolução inicial, se apercebe de que se lhe abriu a possibilidade de alargar o âmbito da sua actividade criminosa.
Isso mesmo vem entendendo este Tribunal.
Decidiu-se (Ac. de 29-11-2001, proc. n.º 3116/01-5, com o mesmo Relator), que:
«1 - Sucede, por vezes, que certas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime - ou mesmo diversos tipos legais, mas que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico -, e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções (que portanto atiraria a situação para o campo da pluralidade de infracções), devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam uma considerável diminuição da culpa do agente.

2 - Esse crime continuado tem os seguintes pressupostos:
- realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico);
- homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção);

- unidade de dolo (unidade do injusto pessoal da acção). As diversas resoluções devem conservar-se dentro de "uma linha psicológica continuada";
- lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto de resultado) ;
- persistência de uma "situação exterior" que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.

2 - O pressuposto da continuação criminosa será assim a existência de uma relação que, de fora, e de modo considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.

3 - A doutrina indica algumas das situações exteriores que, diminuindo consideravelmente a culpa do agente, poderão estar na base de uma continuação criminosa: (-) ter-se criado, através da primeira actividade criminosa, um certo acordo entre os sujeitos; (-) voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa; (-) perduração do meio apto para realizar o delito que se criou ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa; (-) a circunstância de o agente, depois de executar a resolução criminosa, verificar haver possibilidades de alargar o âmbito da sua actividade.»

Ora, como se viu, o arguido pretende que se verificou uma situação de continuidade criminosa nas suas condutas, existindo entre os factos uma conexão temporal e uma homogeneidade de actuação, representada pela sua facilidade de movimentação na casa dos pais das menores, com conhecimento deles.

Mas, como decidiu o acórdão recorrido, não se verificou qualquer diminuição da culpa do arguido por virtude de circunstancialismo que lhe fosse externo, solicitando-o à renovada prática do crime.

Resulta da matéria de facto que o arguido cultivou a relação com os pais da menor ALCG e se aproveitou dela para se aproximar da menor, e que criou intencionalmente, em cada uma das vezes, as circunstâncias favoráveis, mas diversas, à consumação dos crimes. De uma vez foi buscar a menor a casa dos pais, na presença destes, e, sob o pretexto de tomar um café, a levou para um pinhal onde a violou, enquanto de outra, aproveitando a circunstância de os pais da menor se encontrarem ausentes, estando apenas com a irmã mais nova, a violou em casa dos pais.

A facilidade de acesso do arguido à casa dos pais da menor, por si cultivada, não surge, pois, como um elemento desculpabilizador da reiteração da sua conduta, mas um elemento, por ele construído pré-ordeadamente, caracterizador da sua desviada personalidade. Depois, como se viu, esse elemento comum não "facilitou" a ocorrência da primeira violação, a não dispensar o arguido de então, retirar a menor da casa dos pais, para vir a consumar a violação no exterior.
Improcede, pois, também esta pretensão do recorrente.
3.8.
Instigação no crime de aborto

Sustenta o arguido que a regra da acessoriedade impõe que o instigador só seja punido quando o autor imediato executa ou começa a executar o facto ilícito e típico (conclusão 43) e quando o consentimento é elemento do tipo não é legítima a compreensão da instigação na determinação dolosa do consentimento, o que determinaria um alargamento intolerável das margens de punibilidade e enredaria o discurso argumentativo em um paradoxo (conclusão 44), enquanto sustenta que o consentimento foi instigado, logo não livre e irrelevante (art. 38°, n.° 2 do C. Penal), quando o aborto consentido pela mulher grávida, pressupõe a relevância juridico-penal de tal consentimento (conclusão 46)

Não devia, assim, ter sido o arguido condenado por ter dolosamente determinado a ofendida a aceitar a interrupção da gravidez, pois que face aos art.ºs 26° e 140°, n.° 2, do C. Penal, a determinação dolosa do consentimento (que não é ainda o facto ilícito típico), configura um facto não punível penalmente (conclusão 45), sendo certo que se não provou que o recorrente tivesse criado em BPCG a resolução firme de cometer o crime de aborto (conclusão 48)

A remuneração entregue à co-arguida no processo, não é suficiente para sustentar que criou nesta a resolução firme de cometer o crime de aborto (conclusão 49) e viola o princípio da dupla valoração (art. 71°, n.° 2 do C. Penal), considerar a remuneração para efeitos do agravamento do crime de aborto (art. 141°, n.° 2 do C. Penal) e para efeitos de fundamentação da punição do instigador (conclusão 50).

Mas também aqui lhe não assiste razão.

Resulta da matéria de facto provada que a BPCG engravidou em consequência das relações sexuais tidas com o arguido que, tendo conhecido por ela, a 15.07.2001, a ausência da sua menstruação há dois meses, logo diligenciou pela realização de um teste de gravidez que deu resultado positivo e, visando interromper aquela gravidez, dirigiram-se à casa da arguida, depois de o arguido ter previamente estabelecido contacto telefónico com esta e, uma vez aí, entrando o arguido e a BPCG, o arguido transmitiu à arguida que a menor era filha de um amigo dele, que ficara grávida do namorado e que precisava de abortar, tendo a arguida logo acordado proceder no dia seguinte à interrupção daquela gravidez e dado logo um supositório à BPCG para esta colocar nessa noite. No dia seguinte (16.07.2001), o arguido levou de novo a BPCG a casa da arguida, onde a deixou sozinha e aí a foi buscar, passado algum tempo e já após a arguida ter feito o aborto na BPCG, entregando à arguida para pagamento de tal actividade, um cheque no montante de 80.000$00 da sua conta, que a esta creditou na sua conta no dia seguinte (n.ºs 38, 40 a 45, 52 e 60 dos factos provados).

Perante esta matéria de facto, não restam dúvidas, como decidiram as instâncias, que o arguido agiu, livre voluntária e conscientemente, com o propósito de levar a BPCG a interromper a sua gravidez, da qual era ele o autor.
E que foi ele que diligenciou junto da co-arguida pela realização do aborto e pagou a quantia por esta exigiu para levar a cabo tal actividade.

Foi por iniciativa do arguido que se teve a certeza da gravidez, foi ele que convenceu a menor a abortar, foi ainda ele que escolheu a abortadeira em concreto, a contactou e satisfez as condições por esta colocadas para levar a cabo a sua actividade e conduziu a BPCG à casa daquela para aí abortar e a levou de volta a casa, e obteve uma receita médica de uma antibiótico que mandou aviar para a BPCG. Compreende-se, assim, que também se tenha dado como, e que ambos os arguidos agiram em execução de acordo previamente estabelecido entre ambos e sabendo que praticavam factos proibidos por lei.

Actividade do arguido que mais se aproxima da co-autoria do que da instigação, uma vez que a co-arguida surge como o elemento técnico desencantado pelo arguido para levar a caso as manobras abortivas, questão que, no entanto e como se viu, não será aqui apreciada.

Diferentemente do que pretende o recorrente, e como se escreve na decisão recorrida, «o arguido não é punido por ter dolosamente determinado a BPCG a aceitar a interrupção da gravidez, mas sim, como se refere no douto acórdão recorrido, por se ter apurado que ele teve um papel decisivo quer na determinação da BPCG a aceitar a interrupção da gravidez, quer na determinação da arguida a executar os actos necessários à consecução da interrupção da gravidez de BPCG. De facto, se aquele simples determinar a BPCG a aceitar o aborto não é crime e, assim, não permite a punição do arguido como instigador, o mesmo já não se passa com o determinar a arguida a executar, como executou, os actos necessários à consecução da interrupção da gravidez. Tendo, assim, o arguido dolosamente determinado a arguida à prática do aborto na pessoa da BPCG, bem qualificada se mostra a conduta dele como instigador do crime de aborto p. p. p. disposições conjugadas dos art.ºs 26.º, n.º 1, in fine - instigador, 140.º, n.º 2 - com consentimento da mulher grávida, e 141.º n.ºs 1 - aumento de um terço da pena, e 2 - intenção lucrativa, todos do C. Penal.».

Mas os elementos que se coligiram também não permitem afirmar, como o faz o recorrente, que a remuneração que entregou à co-arguida não é suficiente para sustentar que assim criou nesta a resolução firme de cometer o crime de aborto. É que é claro, no quadro de facto dado, que se não garantisse o pagamento, não seria feito o aborto.

Mas esse não foi o único acto conducente à determinação da co-arguida.

Na verdade, daquele complexo de factos resulta ainda que a determinou a praticar o aborto remunerado, através dos contactos que estabeleceu e que lhe permitiram localizá-la, antes de ter sido efectuada qualquer remuneração, o que só teve lugar depois de concretizado aquele.

Daí que não se mostre violado o principio da dupla valoração.

Aliás, Damião da Cunha (Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. 1.º, 164), indica como exemplo da instigação do crime de aborto com intenção lucrativa, a actuação daquele que oferece a remuneração pelas manobras abortivas, devendo entender-se que o crime que instiga é esse aborto (agravado) e não outro que (simples) não teve lugar. E a comparticipação do arguido, foi-o também no dolo quanto à intenção lucrativa (art. 29.º do C. Penal).

3.9.

Medida concreta da pena pelo crime de aborto e única

O recorrente só questionou a medida concreta da pena pelos crimes de violação no quadro do crime continuado, que entendeu verificar-se, não o fazendo no quadro do concurso real de infracções.

Quanto ao crime de aborto, sustenta que não deveria ser aplicada pena superior a um ano de prisão (conclusão 54), e, operado o cúmulo jurídico, a pena global a aplicar ao recorrente não poderia ser superior a quatro anos de prisão (conclusão 55).

A decisão recorrida, depois de enunciar os princípios a que se deve atender na dosimetria penal, decidiu:

«Os crimes aqui em causa (...) são punidos, em abstracto, cada um dos dois primeiros, com a pena de prisão de 3 a 10 anos, e o último, com a pena de prisão de 40 dias a 4 anos (...)
No que tange ao aborto agravado jogam em desfavor do arguido as seguintes circunstâncias:

- O papel preponderante e desencadeante que assumiu na execução do facto, fazendo, nomeadamente, os contactos necessários com a arguida, conduzindo por duas vezes a BPCG à casa daquela para a interrupção da gravidez e pagando os 80.000$00 devidos pela execução dessa interrupção.
- o elevadíssimo grau de violação dos deveres impostos que recaem sobre o arguido, que pertencendo a uma Corporação cuja missão é a protecção das pessoas e o combate ao crime, não se coibiu de, contrariando essa missão, levar a cabo as condutas mencionadas.

- As consequências do facto, na medida em que da interrupção da gravidez resultaram consequências permanentes na pessoa da BPCG.

- As exigências de prevenção geral, pois a descrença na eficácia da protecção penal dos bens jurídicos é maior quando a sua violação provém de alguém que se enquadra no próprio sistema de tutela penal.

- A intensidade do dolo (directo).
A favor do arguido apenas se divisa o já supra referido ao analisar a pena a aplicar em concreto pelo crime de violação [em favor do arguido apenas se divisa o facto de ser primário, o que, numa pessoa com cerca de 49 anos à data da prática dos factos, já tem algum relevo atenuativo, e ter demonstrado, desde o seu primeiro dia de reclusão, grande correcção e educação, e ainda, de alguma forma, o ter ele como habilitações literárias o antigo 5.º ano dos liceus e ter dois filhos (um a frequentar o 5.º ano de direito e o outro ser engenheiro florestal)].

Ponderadas todas estas circunstância e atendendo a que o crime em causa é punível, em abstracto, com pena de prisão de 40 dias a 4 anos e tendo também em conta a pena que foi imposta à arguida, temos como mais justa e adequada, para sancionar a descrita conduta do arguido, a pena de dois anos de prisão.

Em cúmulo jurídico das três referidas penas (duas de 4 anos e 6 meses de prisão e uma de dois anos de prisão), considerando agora o disposto no art.º 77.º, do C. Penal, e, assim, em conjunto, os apurados factos e a personalidade do arguido neles revelada, é de fixar a pena global e única em 8 (oito) anos de prisão.»

Vejamos, pois, se assiste razão ao recorrente, começando por analisar os poderes de cognição deste Tribunal em matéria de medida concreta da pena.

Mostra-se hoje afastada a concepção da medida da pena concreta, como a «arte de julgar»: um sistema de penas variadas e variáveis, com um acto de individualização judicial da sanção em que à lei cabia, no máximo, o papel de definir a espécie ou espécies de sanções aplicáveis ao facto e os limites dentro dos quais deveria actuar a plena discricionariedade judicial, em cujo processo de individualização interviriam, de resto coeficientes de difícil ou impossível racionalização.

De acordo com o disposto nos art.ºs 70.º a 82.º do Código Penal a escolha e a medida da pena, ou seja a determinação das consequências do facto punível, é levada a cabo pelo juiz conforme a sua natureza, gravidade e forma de execução, escolhendo uma das várias possibilidades legalmente previstas, traduzindo-se numa autêntica aplicação do direito. Não só o Código de Processo Penal regulou aquele procedimento, de algum modo autonomizando-o das determinação da culpabilidade (cfr. art.ºs 369.º a 371.º), como o n.º 3 do art. 71.º do Código Penal (e antes dele o n.º 3 do art. 72.º na versão originária) dispõe que «na sentença devem ser expressamente referidos os fundamentos da medida da pena», alargando a sindicabilidade, tornando possível o controlo dos tribunais superiores sobre a decisão de determinação da medida da pena.

Mas importa considerar os limites de controlabilidade da determinação da pena em recurso de revista, como é o caso, sendo certo que a questão já passou irrestritamente o arquivo da 2.ª Instância.

Não oferece dúvidas de que é susceptível de revista a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação.

Tendo sido posto em dúvida que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade caibam dentro dos poderes de cognição do tribunal de revista (Cfr. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, § 82 II 3.), deve entender-se que a questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada (Neste sentido, Maurach e Zipp, Derecho Penal, § 63 n.º m. 200, Figueiredo Dias, Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 197 e Simas Santos e Correia Ribeiro, Medida Concreta da Pena, Disparidades, pág. 39).

Ao crime de aborto agravado corresponde a moldura penal abstracta de 40 dias a 4 anos de prisão.
Determinada a moldura penal abstracta, é dentro dessa moldura penal, que funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o agente, designadamente:

- O grau de ilicitude do facto (o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente);
- A intensidade do dolo ou negligência;
- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
- As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
- A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
Agiu o arguido com dolo directo e intenso, pois agiu com a intenção de por ter termo à gravidez da menor, de que ele fora responsável, de forma a apagar os sinais da sua conduta para com uma menor de 14 anos filha de um casal de quem se dizia amigo.

A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (Ac. do STJ de 17-09-1997, proc. n.º 624/97).

A medida das penas determina-se, já o dissemos, em função da culpa do arguido e das exigências da prevenção, no caso concreto, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra ele.

A esta luz, e atendendo aos poderes de cognição que a este Supremo Tribunal assistem, impõe-se concluir que a pena concreta fixada e que o recorrente contesta, se situa claramente dentro da sub-moldura a que se fez referência e que dentro dela foram sopesados todos aqueles elementos de facto que se salientaram.

E que não se mostra a quantificação efectuada pelas instâncias violadora das regras da experiência ou desproporcionada, por forma a permitir a intervenção correctiva deste Supremo Tribunal de Justiça .

Já o mesmo se não dirá da pena única.
Nos termos do disposto no art. 77.º, n.º 1, do C. Penal, na sua redacção actual, "quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente."

Neste caso, a pena aplicável tem como limite superior a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes" (art. 77º, n.º 2, do Código Penal).

No caso dos autos, os crimes deles objecto foram cometidos pelo arguido antes de responder por qualquer um deles, pelo que há lugar à aplicação de uma pena única nos termos previstos no art. 77º, n.º 1.

A pena aplicável ao arguido varia entre 4 anos e 6 meses e 11 anos de prisão.
Neste contexto releva o conjunto dos factos que traduzem uma personalidade peculiar de um sargento ajudante que violou por duas uma menor filha de um amigo e fez abortar de uma gravidez por si engendrada uma outra, mas releva igualmente a idade do arguido, 49 anos de idade, a ausência de antecedentes criminais e a ocupação que tinha então, bem como a conduta no meio prisional.

Ponderando em conjunto os factos, a personalidade do arguido e a sua condição pessoal entende-se como adequada, para punição destes crimes, a pena única de 6 anos e 8 meses de prisão, e que se situa dentro do critério que este Supremo Tribunal de Justiça vem seguindo em muitos casos: não ultrapassar em princípio, na pena única a soma da pena mais grave com um terço do remanescente das restantes penas parcelares (cfr. neste sentido o acórdão de hoje, proc. n.º 124/05, com o mesmo Relator).
3.10.

Indemnização

Continua a sustentar o recorrente que inexistem fundamentos para a condenação do recorrente no pagamento de indemnização a título de danos não patrimoniais, a qualquer das lesadas (conclusão 56), mas, a entender-se diferentemente, a indemnização a arbitrar à lesada ALCG não deverá ser superior a €. 5.000,00 (cinco mil euros), e a indemnização a fixar à lesada BPCG não deverá ser superior a €. 1.000,00 (conclusão 58)

Parte para essa posição da ideia, que também vem sustentando, de que não cometeu qualquer facto ilícito gerador de responsabilidade civil.

E no que respeita à discordância com os montantes das indemnizações arbitradas, nada se escreve, quer nas conclusões, que se retomaram, quer no texto da motivação que se limita a reproduzir a conclusão 58.ª (fls 1764), sobre as razões que imporiam uma redução dessas indemnizações.

Ora, afastadas as pretensões do recorrente quanto à sua absolvição pela prática dos factos que lhe foram imputadas, mostra-se despida de conteúdo a impugnação dos montantes das indemnizações.

Ora, não cabe ao Supremo Tribunal de Justiça substituir-se ao recorrente na revisão integral das decisões em causa, para tentar determinar se algum censura (qual?) merecem.

De todo o modo, sempre se dirá, que se decidiu na decisão recorrida:

«8 - Relativamente aos € 30.000,00 em que o Tribunal a quo condenou o arguido a pagar à ofendida ALCG , a título de indemnização por danos não patrimoniais, consideramos que, face à referida alteração da matéria de facto provada e à consequente absolvição do arguido, no que tange aos dois crimes de abuso sexual de crianças, e igualmente terem deixado de ser tidos como agravados os dois crimes de violação, entendemos que tal montante passou a estar algo exagerado.

Com efeito, tratando-se, como se trata, de danos de natureza não patrimonial, há que ter em conta o disposto no art.º 496, n.º 3, do C. Civil, ou seja, "o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art.º 494", isto é, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.

Assim, ponderando o grau de culpabilidade do arguido apenas no que tange aos dois crimes de violação na pessoa da ALCG , à situação económica do arguido e desta ofendida e às demais circunstâncias apuradas, designadamente, a idade desta ofendida, a forma como foram praticadas as duas violações, o ter a ALCG , por força dos factos praticados pelo arguido, sentido desgosto e sofrimentos psicológicos que a acompanharão por toda a vida e passado a apresentar alterações de comportamento, como sejam, não dormindo, não comendo, vomitando quando se recordava de tais factos, predominando sinais de pânico, ansiedade e medo do que poderia vir a acontecer e de como iria ser vista pelos outros, tendo passado a não se aceitar e a não gostar de si e, inclusive, sido submetida a acompanhamento psicológico ( cf. n.ºs 34, 35 e 72 , dos factos provados ) e atendendo ainda aos critérios doutrinais e jurisprudenciais relativamente a este tipo de crimes, entendemos ser adequada e justa a indemnização de € 15.000,00.

E, no que se refere à indemnização de € 5.000,00 atribuída à ofendida BPCG também a título de danos não patrimoniais, considerando os fatos apurados e os critérios já referidos, entendemos também inexistir fundamento para a pretendida redução.»

E não se vê, face ao teor desta decisão que ela mereça qualquer censura, antes se mostrando adequados os montantes às circunstâncias do caso.
4.
Pelo exposto, acordam os juízes da (5.ª) Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em concedem parcial provimento ao recurso, diminuindo a pena única para 6 anos e 8 meses de prisão
Custas pelo arguido, no decaimento, com a taxa de justiça de 4 Ucs.

Lisboa, 17 de Março de 2005
Simas Santos,
Santos Carvalho,
Costa Mortágua,
Rodrigues Costa.