Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | JOÃO CAMILO | ||
| Descritores: | MATÉRIA DE FACTO CONTRADIÇÃO | ||
| Nº do Documento: | SJ200703010043751 | ||
| Data do Acordão: | 03/01/2007 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | ORDENADA A BAIXA DO PROCESSO | ||
| Sumário : | Perante a existência de contradições nos factos dados por provados pelas instâncias, sendo estes factos essenciais à aplicação do direito, tem o Supremo Tribunal de Justiça de anular o acórdão recorrido, nos termos do art. 729º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil, a fim de o tribunal recorrido sanar aquelas contradições e aplicar o direito aos factos então fixados. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça AA e mulher BB intentam a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, no 5º Juízo Cível de Matosinhos, contra CC e mulher DD Alegam terem adquirido verbalmente um prédio rústico em 11/06/1984, de parte do qual já eram arrendatários rurais, sendo que a partir da data mencionada passaram a agricultar e tratar do prédio como donos e na convicção de o serem, à vista de todos e sem oposição de quem quer que seja. Em 19/02/2002 os autores verificaram que os réus haviam outorgado em 05/11/2001, escritura de compra e venda desse prédio na qualidade de compradores. Pedem, em consequência, que se reconheça serem os autores possuidores do citado prédio rústico, que os réus se abstenham de praticar qualquer acto que possa perturbar essa posse, que se reconheça serem os autores os únicos e legítimos proprietários desse prédio, e que, em consequência, seja ordenado o cancelamento da inscrição do registo predial a favor dos réus. Os réus contestaram a acção e deduziram pedido reconvencional alegando, em síntese, que no contrato promessa invocado pelos autores ficou estipulado que a venda só se realizaria depois de desocupado o terreno de pessoas e coisas, pessoas que não eram os autores mas terceiros, que esses sim eram então os arrendatários do prédio em questão. Acresce que do próprio contrato promessa celebrado pelos autores como promitentes compradores resulta que estes reconheciam não terem a propriedade do terreno, sendo ilegítima a invocada posse pelos autores anterior ao dito contrato promessa. A partir da celebração deste, com o consentimento dos donos, os autores passaram a agricultar o terreno, praticando os actos inerentes a esta actividade, sempre sabendo que o dito prédio lhes não pertencia e nunca actuando perante os anteriores proprietários, entidades públicas ou terceiros como legítimos proprietários do terreno. Os réus além de gozarem da presunção que lhes advém do registo alegam os factos relativos à aquisição originária por usucapião. Na réplica, os autores contestam o pedido reconvencional impugnando os factos articulados pelos réus na contestação, e concluem pela improcedência do pedido reconvencional e pela procedência do pedido formulado na petição inicial. Na tréplica os réus impugnam os factos articulados na réplica e concluem como na contestação. Saneado o processo, foi organizada a matéria assente e a base instrutória, realizando-se audiência de discussão e julgamento com decisão da matéria de facto. Por fim, foi proferida sentença que julgou improcedente o pedido dos autores e procedente o pedido reconvencional. Desta apelaram os autores, tendo a Relação do Porto julgado improcedente a apelação. Mais uma vez inconformados, vieram os autores a interpor a presente revista, tendo nas suas alegações formulado as conclusões seguintes: - A posse susceptível de conduzir à usucapião analisa-se num duplo momento: Corpus e Animus; - O Corpus é constituído pelo elemento material da posse no sentido de se identificar com os actos materiais praticados sobre a coisa que é objecto dela; - O Animus traduz-se na intenção daquele que exerce o Corpus em actuar como se titular fosse do direito real correspondente aos actos materiais que pratica; - Pela vertente da espiritualidade do “animus” é este, muitas vezes, de difícil prova pelo que se presume que aquele que exerce os poderes de facto sobre uma coisa tem a intenção de a haver para si, isto é, tem o “animus possidendi”; - Celebrado contrato-promessa de compra e venda de uma coisa – um prédio – e, passando o promitente comprador, nesta qualidade e na previsão de futura outorga da escritura de compra e venda prometida a conduzir-se como se o imóvel fosse seu, os actos de posse por si praticados são praticados com “animus” de exercer o direito da propriedade em seu próprio nome e interesse e não no do promitente vendedor; - Os recorrentes, depois de 11 de Junho de 1984, data na qual verbalmente acordaram com os recorridos ou seus antecessores, passaram a agir como se donos fossem do mesmo, na convicção de que o eram, à vista de todos, bem sabendo que não prejudicavam terceiros, sem que ninguém se lhes opusessem pelo que, tendo posse pública, pacífica, titulada e de boa fé adquiriram por usucapião o prédio dos autos; - Tal aquisição por usucapião do prédio dos autos teria ocorrido mesmo que se defendesse a tese de que a celebração do contrato-promessa de compra e venda não era susceptível de transmitir para os recorrentes a posse, na medida em que aos mesmos faltaria sempre o “animus”, ou a intenção a “sibi habendi” – o que só por facilidade de raciocínio se admite; - De facto, sempre teria de considerar-se que, desde 1984 os recorrentes haveriam então invertido o título de posse já que passaram a agir sobre o prédio dos autos de forma autónoma em oposição directa com os poderes do antepossuidor, fazendo obras no terreno, vedando-o, movimentando terras de forma a torná-lo mais fértil e aproveitável nas suas zonas alagadiças, etc.; - Pelo que os recorrentes sempre teriam adquirido por usucapião o prédio dos autos; - Assim, os Venerandos Desembargadores fizeram incorrecta aplicação da lei e violaram o disposto nos artigos 1251, 1253, 1258, 1260, 1263 al. b) , 1265, 1287 e 1296 do C. Civil. Contra-alegaram os recorridos defendendo a manutenção do decidido. Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir. Como é sabido – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil -, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes. Das conclusões dos aqui recorrentes se vê que estes, para conhecer neste recurso, levantam as seguintes questões: a) Tendo os recorrentes depois do acordo verbal de promessa de compra do prédio em causa, aos ali promitentes vendedores, antecessores dos recorridos no prédio, passaram a agir como se donos fossem daquele, na convicção de que o eram, à vista de todos, bem sabendo que não prejudicavam terceiros, sem que ninguém se lhes opusessem, adquiriram por usucapião o mesmo prédio ? b) Em 1984 os recorrentes inverteram o título de posse que tinham anteriormente sobre o imóvel ? Os factos que as instâncias deram por provados são os seguintes: 1. No dia 10 de Abril de 1985, o aqui autor e EE, FF e GG outorgaram o acordo a que denominaram de “Promessa de compra e venda”, no qual os referidos EE, FF e GG declararam prometer vender ao aqui autor, pelo preço de esc. 1.800.000$00 o terreno sito na Rua da Cruz, da freguesia de Lavra do Concelho de Matosinhos, inscrito na matriz rústica no artigo 1026 (cfr. doc. nº 3 junto com a petição do procedimento cautelar aqui apenso, e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido). 2. O prédio referido no nº 1 é sito no Lugar de Antela da freguesia de Lavra do concelho de Matosinhos, inscrito na matriz rústica dessa freguesia no artigo 1026 e actualmente descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o nº 02090/120398 da freguesia de Lavra. 3. Após buscas, verificaram os Autores em 19/2/2002 que os réus haviam outorgado em 5 de Novembro de 2001 escritura de compra e venda, na qual, na qualidade de compradores haviam adquirido o prédio identificado nos números 1. e 2. supra, a GG e mulher por ter então já falecido EE (cfr. doc. nº 4 junto com a petição da Providência Cautelar cujo teor se dá por reproduzido). 4. Declarando comprador e vendedor na referida escritura que o que uns vendiam e outros compravam era um terreno de construção, mas cuja área e descrição na Conservatória do registo Predial de Matosinhos, coincidem com o prédio rústico dos autos, tratando-se de um único e mesmo prédio. 5. Os Réus fizeram registar na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos, a seu favor o mencionado prédio, encontrando-se o mesmo aí inscrito a seu favor pela inscrição G3 ap. 64/121201. 6. No dia 16 de Janeiro de 1998, na Secretaria Notarial de Matosinhos, onde compareceram como primeiros outorgantes FF e marido GG, foi lavrada a escritura de justificação junta ao apenso de providência cautelar como doc. nº 1, com a oposição (e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido), tendo o extracto dessa escritura sido publicado no jornal “Matosinhos Hoje”, no dia 30 de Janeiro de 1998. 7. Em 11 de Junho de 1984 os Autores acordaram verbalmente com EE, então viúvo, sua filha FF e GG, a compra do prédio supra identificado nos números 1. e 2. 8. Os Autores eram, anteriormente a tal data, arrendatários rurais de parte do mencionado prédio rústico, pelo qual pagavam a renda anual de 17.000$00 à usufrutuária do mesmo, sendo que essa renda anual de 17.000$00 era a global paga pelos autores e demais rendeiros. 9. O acordo verbal de compra e venda celebrado entre os Autores e os então proprietários do prédio rústico dos autos – EE, FF e GG– viria a ser reduzido a escrito, mediante a celebração do acordo referido no nº 1. supra. 10. A partir de 1984 os Autores deixaram de pagar a renda anual pela parte do prédio do qual eram arrendatários e passaram a agricultá-lo e a tratá-lo na sua totalidade, como fazem habitualmente os proprietários. 11. Assim, a partir de Junho de 1984 os Autores passaram a agricultar e a tratar o prédio rústico dos autos, intitulando-se de seus donos. 12.Os autores plantavam ali batatas, couves, semeando ervas para o gado, e tratando e colhendo tais produtos, aí apascentando animais, tratando o prédio rústico em questão como usualmente o fazem os respectivos donos. 13. Procedendo no mesmo a movimentações de terras e procedendo a aterro nas suas zonas mais baixas e alagadiças de forma a permitirem um melhor aproveitamento para fins agrícolas do prédio referido. 14. Vedando-o junto à via pública – Rua da Cruz – de forma a não permitir a introdução de pessoas, coisas ou animais no mesmo. 15. Tudo, ininterruptamente, desde Junho de 1984 e até à actualidade. 16. À vista de todos e sem oposição de quem quer que seja, com pleno conhecimento de todos que residem nas imediações do prédio e da residência dos Autores. 17. Sendo o prédio dos autos tido e havido como pertencendo aos Autores e estes tidos e havidos como seus efectivos donos. 18. Os Autores actuaram sempre como se fossem seus efectivos donos e na convicção de não lesar direitos alheios. 19. Fizeram-no sempre sabendo que o dito prédio lhes não pertencia, e sabendo ainda que o mesmo pertencia aos referidos EE, FF e GG. 20. Os referidos EE, FFe GG promoveram a sua venda. 21. Declararam-no para efeitos de Imposto sobre as Sucessões e Doações à morte de EE. 22. O dito EE visitava, esporadicamente, o ajuizado prédio. 23. Estes actos foram praticados em público, pacificamente, de boa – fé e sem a oposição de que quer que fosse, nomeadamente por parte dos aqui autores. 24. Aquando da celebração do acordo verbal referido no nº 7 , os Autores e o pai e sogro dos referidos FF e GG não celebraram qualquer “Contrato-Promessa de Compra e Venda por escrito” já que o EE referia que era bastante a sua palavra que, no seu dizer, valia mais que uma escritura. 25. Tendo deixado os Autores imediatamente de pagar as rendas do prédio dos autos à então usufrutuária – tia daquele EE -, porque este se comprometera aquando do acordo de venda feito com os Autores a ser ele a liquidar junto da tia o valor do usufruto. 26. Pois que se tivesse “vendido” o seu prédio sujeito a tal encargo o preço seria inferior ao acordado. 27. Este acordo de venda só viria a ser passado a escrito a Contrato Promessa em 10 de Abril de 1985, porque os Autores precisavam nessa altura de um documento que justificasse a compra do prédio dos autos perante pessoa a quem pretendiam pedir o dinheiro que se destinava ao pagamento do restante preço do prédio, ao pai e sogro dos referidos FF e GG. Vejamos agora cada uma das concretas questões acima colocadas como objecto deste recurso. a) Na primeira daquelas questões defendem os recorrentes que tendo possuído o terreno em causa desde 1984, na sequência do contrato promessa verbal em que prometeram comprá-lo, como se donos fossem, e na convicção de que o eram, à vista de toda gente, sabendo que não prejudicavam terceiros e sem que ninguém se lhes opusesse, o adquiriram por usucapião. Para chegar a esta conclusão pretendem os recorrentes que provado o elemento material da posse, ou seja, o corpus, se presume o elemento subjectivo, ou seja, o animus. Ora analisando a factualidade dada por provada, tal como salientou o douto acórdão recorrido, há factos dados por provados que são contraditórios entre si. Ora estes factos são essenciais para a decisão do mérito da causa, por integrarem os fundamentos alegados do direito peticionado, ou seja, a verificação da usucapião, como meio de aquisição do direito de propriedade objecto do pedido dos autores. Assim, a 1ª instância deu como provado que os autores desde Junho de 1984 passaram a agricultar o prédio em causa, intitulando-se seus donos, tudo fazendo, em relação ao mesmo imóvel, como usualmente fazem os respectivos donos, à vista de toda a gente e sendo também tidos e havidos como seus donos, sem qualquer oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta até à actualidade – factos dados por provados e acima descritos sob os números 10. a 18. inclusivé. Também se deu como provado que EE, viúvo, e sua filha FF e marido GG, em 11-06-1984 acordaram verbalmente em vender aos autores o mesmo prédio – facto nº 7. Mas ainda se deu como provado que naquele período temporal, falecido o EE, a filha FFe marido declararam o prédio para efeitos de imposto sucessório referente àquele e que, em 5-11-1991, os referidos FFe marido celebraram uma escritura de justificação notarial do dito prédio onde se declarava que o mesmo havia sido adquirido por usucapião pelo falecido EE – factos 6. e 21. Ora estes últimos factos atribuídos aos referidos FF e marido estão em oposição com o facto de os autores serem tidos por todos como donos do mesmo prédio e com o facto de os autores se intitularem donos daquele sem nenhuma oposição. Também foi assinalado no douto acórdão recorrido a contradição de se ter dado como provado que, após o citado acordo verbal de 1984, os autores passaram a agricultar todo o prédio – facto nº 10. -, quando no contrato promessa que reduziu aquele acordo verbal a escrito, em Abril de 1985, consta que a escritura se faria quando o prédio estiver desocupado de coisas e pessoas, o que inculca a ideia de que, sendo os autores primitivamente arrendatários de parte do prédio, haveria outros arrendatários, ou ocupantes, ainda em Abril de 1985. Além disso, os factos dados como provados e acima constantes dos números 22. e 23. foram interpretados na sentença de 1ª instância como revelando a assunção por parte do referido EE da sua posição de proprietário sobre o prédio em causa, o que também briga com a referida factualidade consistente em os autores serem reconhecidos por todos como proprietários do mesmo prédio. Ora sendo estes factos essenciais para a decisão da verificação da usucapião como forma de aquisição da propriedade do prédio pelos autores aqui objecto do pedido, como dissemos já, fica-se sem se saber qual das versões dos factos contraditórios entre si, prevalece, e, por isso, fica este tribunal incapacitado de proceder à aplicação do direito por falta de fixação da matéria de facto. Por isso, terá de ser anulada a decisão recorrida com vista a suprir as referidas contradições, anulando-se as respostas dadas aos quesitos em contradição, ou seja, as respostas dadas aos quesitos da base instrutória nºs 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, e 18º, 20º e 21º. Fica assim, prejudicada a apreciação directa da questão aqui em apreço bem como da segunda questão objecto deste recurso. Pelo exposto, anula-se a decisão recorrida, nos termos do art. 729º, nº 3, para que o Tribunal recorrido proceda à eliminação das contradições acima apontadas, com a subsequente aplicação do direito aos factos então apurados. Custas pela parte vencida a final. Supremo Tribunal de Justiça, 1 de Março de 2007 João Moreira Camilo ( Relator ) Fernando Azevedo Ramos Manuel Silva Salazar |