Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1470/09.7TBPTM.E1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
PREÇO
CARÁCTER SINALAGMÁTICO
TRADIÇÃO DA COISA
CLÁUSULA RESOLUTIVA
INEFICÁCIA
RATIFICAÇÃO DO NEGÓCIO
RESOLUÇÃO DE NEGÓCIO
Data do Acordão: 03/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
Doutrina: -Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 3ª edição, págs. 118, 122.
-Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume III, 6ª edição, pág. 38.
-Pessoa Jorge, Direito das Obrigações, Volume I, Lições Proferidas no Ano Lectivo 1971/1972, Edição dos Serviços Sociais da Universidade de Lisboa, pág. 241.
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, págs. 216 e 254.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 268.º, 275.º, N.º2, 432.º, N.º1, 464.º, 465.º, ALÍNEA A), 471.º, 801.º, N.º2, 806.º, N.º1, 817.º, 886.º
DL N.º 211/2004, 20-08: - ARTIGO 17.º, N.º3.
Sumário :

I - A obrigação de pagamento do preço no contrato de compra e venda encontra-se colocada em nexo de reciprocidade com a entrega da coisa, pelo que, constituindo a compra e venda um contrato sinalagmático, o não cumprimento da obrigação de pagamento do preço poderia dar fundamento à resolução do contrato por incumprimento, de acordo com o disposto no artigo 801.º, n.º 2, do Código Civil.
II - O artigo 886.º vem no entanto restringir consideravelmente esta faculdade, no caso de transmitida a propriedade da coisa ou o direito sobre ela e feita a sua entrega, de tal sorte que o vendedor não pode, salvo convenção em contrário, resolver o contrato por falta de pagamento do preço.
III - Assim, tendo havido traditio da fracção a favor dos réus, a cláusula resolutiva foi introduzida na escritura de compra e venda exclusivamente no interesse da autora, pois, sem ela, o alegado não cumprimento da obrigação do pagamento do preço não poderia dar fundamento à resolução do contrato.
IV - Esta cláusula revertia ainda integralmente no interesse da autora, porquanto o gestor de negócios e a autora sabiam que a mesma não correspondia à vontade presumível dos réus, na medida em que já haviam pago a totalidade do preço da fracção ao EE, enquanto mediador imobiliário e que agora gestor de negócios.
V - Embora os réus houvessem ratificado o contrato de compra e venda, quiseram excluir esta cláusula, sendo certo que, ainda que a não tivessem excluído, não a podiam ratificar, sob pena de contradição insanável: estariam simultaneamente a ratificar o negócio e a sua resolução.
VI - Esta cláusula é, pois, ineficaz em relação aos réus, não havendo, consequentemente, fundamento para a resolução do contrato.
VII - Acresce que a resolução do contrato sempre teria de se considerar como não verificada, face ao disposto no artigo 275.º, n.º 2 CC.
VIII - Assim, não se operando o efeito resolutivo da dita cláusula, operou-se o efeito translativo do direito de propriedade para os ora recorrentes mercê da ratificação da gestão de negócios.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.

AA, L.da, instaurou, em 17/04/2009, no Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Portimão, contra BB e mulher CC, a acção declarativa de condenação, com a forma de processo ordinário, pedindo:

a) - A resolução do negócio de compra e venda entre autora e réus sobre o imóvel identificado nos artigos 1º e 2º da petição inicial, nos termos dos artigos 432º e seguintes do C.C.

b) – A condenação dos réus na entrega à autora do imóvel devoluto de pessoas e bens e nas mesmas condições em que o receberam.

c) – A condenação dos réus no pagamento de uma renda mensal de 550 euros por cada mês de ocupação da fracção, desde a data da sua ocupação até à sua restituição.

d) – A condenação dos réus no pagamento das custas e honorários forenses do advogado da parte contrária, tudo com as legais consequências.

Fundamentando a sua pretensão, alega, em síntese, que, por escritura pública celebrada no dia 13/06/2008, vendeu aos réus a fracção autónoma designada pelas letras “AB”, correspondente ao... andar B do prédio sito no “........”, Portimão, descrita na Conservatória Registo Predial de Portimão sob o nº 0000 da Freguesia de Portimão, e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 00000, pelo preço de 155.000 euros, do qual foi dado como “sinal” e princípio de pagamento a quantia de 50.000 euros, tendo acordado que o restante valor (105.000 euros) seria liquidado através do cheque número 00000000, sacado ao BANCO SANTANDER TOTTA, passado á ordem da autora.

Acordaram nessa escritura pública que o contrato de compra e venda seria resolvido, se o cheque entregue para pagamento da quantia de 105.000 euros não tivesse, como veio a acontecer, boa cobrança, sendo certo que, apesar das diversas interpelações levadas a cabo pela autora, o valor não foi pago.

Contestaram os réus, invocando a ilegitimidade passiva e a ineptidão da petição inicial, alegaram o pagamento total do preço acordado e impugnaram os factos, acrescentando que incidem duas hipotecas sobre a fracção autónoma, cujos registos a autora ainda não cancelou, e, em reconvenção, pediu a condenação da autora a proceder ao respectivo cancelamento.

Segundo eles, a autora vendeu-lhes a aludida fracção, pelo preço de 155.000 euros, tendo a predita escritura de compra e venda como outorgantes DD, na qualidade de legal representante da autora e DD, na qualidade de gestor de negócios dos réus. A aludida escritura foi ratificada pelo réu BB.

Para além do valor de 50.000 euros, entregues pelos réus, a título de sinal e princípio de pagamento do preço, existiram outros pagamentos efectuados a esse mesmo título, tendo a totalidade do preço sido paga antes da outorga da escritura pública.

A autora replicou, respondendo às excepções e contestando a reconvenção.

Teve lugar uma audiência preliminar.

Foi proferido o despacho saneador, julgando improcedentes as excepções da ilegitimidade e da nulidade do processo por ineptidão da petição inicial, e admitiu a reconvenção.

Instruído e julgado o processo, foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção:

a) – Declarou resolvido o contrato de compra e venda celebrado entre a autora e os réus, cuja cópia da escritura consta a fls. 8 e seguintes dos autos e, em consequência, condenou os réus a restituírem à autora, livre e devoluta, a fracção autónoma objecto de tal contrato;

b) – Condenou os réus a pagarem à autora, a quantia de 500 euros por cada mês que, após o trânsito em julgado da sentença, se mantenham a ocupar tal fracção autónoma (até a restituírem à autora);

c) – Julgou, na parte restante, improcedente a presente acção e, em consequência, absolveu os réus do restante pedido;

d) – Na improcedência da reconvenção, absolveu a autora do pedido reconvencional.

Inconformados, apelaram os réus para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de 6/10/2011, na procedência da apelação, julgou a acção improcedente, absolvendo os réus/recorrentes dos pedidos, assim revogando a sentença que julgara esses pedidos procedentes.

Inconformada, recorreu agora a autora para o Supremo Tribunal de Justiça, pretendendo a revogação do acórdão recorrido e, desse modo, a confirmação da sentença que determinou a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre autora e réus e consequente destruição de todos os efeitos produzidos pelo aludido contrato.

Mais requer que o pagamento da indemnização no valor da renda fixada na sentença, por cada mês de ocupação abusiva do imóvel, seja fixado, desde a data da citação da competente acção e não desde a data do trânsito em julgado da decisão.

Alegando, formulou as seguintes conclusões:

1ª - A sentença do Tribunal de Portimão não padece de qualquer vício. A fundamentação é expressa, clara, coerente e suficiente para nos fazer acreditar e aceitar a justiça da decisão; O imperativo constitucional que impõe o dever dos Magistrados fundamentarem os actos foi cumprido.

2ª - A decisão cumpre a sua dupla função pois permitiu o exercício do direito de recurso às partes e permitiu esclarecê-las quanto as razões de facto e de direito que justificaram a decisão e permitem concluir pela sua justiça.

3ª – Daí que a autora/recorrente propugne a “repristinação” da sentença do Tribunal de Portimão e a “revogação” do Acórdão do Tribunal da Relação.

4ª - O acórdão recorrido, ao revogar a sentença, tomou como ponto de partida pressupostos errados e inexistentes, in casu, a existência de um contrato de mediação entre a autora/vendedora e o Sr. EE e a imputação de intenções obscuras à estipulação da cláusula resolutiva.

5ª – O acórdão recorrido ignorou as evidências objectivas, in casu, tituladas por documentos.

6ª - O acórdão recorrido faz tábua rasa de princípios tão elementares como o princípio da liberdade contratual, princípio da pontualidade, e o desvio ao princípio da consensualidade ou liberdade da forma, imposto em nome da segurança e protecção dos intervenientes no tráfego jurídico.

7ª – O acórdão recorrido, ao revogar a sentença, não se limita a negar eficácia à cláusula resolutiva estipulada, isto porque, em simultâneo, nega os efeitos do exercício da liberdade contratual e o sinalagma entre as obrigações principais que oneram compradora e vendedora.

8ª - O Tribunal a quo reconhece que o contrato de compra e venda é um contrato real quanto aos efeitos, mas ignora que é igualmente um contrato com efeitos obrigacionais e com estrutura sinalagmática.

9ª - Ao fazermos uma síntese dos factos dados como provados no tribunal da 1.ª Instância e confirmados pelo tribunal ad quem resulta o seguinte quadro:

a) - Entre a autora/vendedora e réus/compradores foi celebrado um contrato de compra e venda de imóvel.

b) - O contrato de compra e venda foi outorgado através de escritura pública em 13 de Junho de 2008.

c) - Na aludida escritura, foram intervenientes, o senhor DD, na qualidade de legal representante da autora/vendedora e o senhor DD, que declarou actuar como gestor de negócios dos réus/compradores.

d) - Na escritura ficou estipulado que a falta de liquidação do preço em falta determinava a resolução do contrato.

e) - Os réus/compradores não pagaram à recorrida/vendedora o preço global do imóvel.

f) - A autora/vendedora só recebeu e deu quitação de € 50.000 (cinquenta mil euros); este valor foi entregue a título de sinal e princípio de pagamento.

g) - Os réus entregaram quantias ao senhor EE/terceiro que não era o credor, nem seu representante.

h) - O pagamento efectuado pelos réus não tem eficácia liberatória.

i) – Os réus ocupam abusivamente o imóvel objecto do presente pleito desde a data da citação.

Contra – alegaram os réus/recorridos, formulando as seguintes conclusões:

1ª – O acórdão deverá ser confirmado, porquanto não existiu prova factual produzida em juízo que sustente entendimento diverso.

2ª - Bem pelo contrário, já que os pontos 15, 17 e 18 da fundamentação de facto da sentença alicerçam o decisório do Tribunal da Relação de Évora.

3ª - O Acórdão sindicado entendeu ser ineficaz perante os réus a condição resolutiva inclusa na escritura de compra e venda do imóvel, ao abrigo dos artigos 275º, n.º 2 e 464º do Código Civil.

4ª – Reitera-se que a autora/recorrente recebeu e aceitou como bom o primeiro pagamento de € 50.000 (cinquenta mil euros), entregue pelo EE.

5ª – Mais. O Tribunal da 1ª Instância deu como provado que os réus entregaram ao EE a restante quantia do pagamento do preço.

6ª – Como estabelece o artigo 464º C.C., um dos pressupostos para fazer funcionar o instituto da gestão de negócios é a direcção do negócio ter sido realizada “no interesse e por conta do respectivo dono”.

7ª - Ora, a condição resolutiva jamais foi estabelecida no interesse dos réus, pelo que não é oponível a estes.

8ª - Conforme dado como provado, os réus já tinham pago o preço, pelo que não faz sentido que estabeleçam uma cláusula na qual se prevê a resolução do contrato, em caso de não pagamento (a escritura pública data de 2008/06/13 e o último pagamento foi feito em 2007/05/25), pelo que o preço do imóvel já estava integralmente pago há mais de um ano, quando se realizou a escritura pública).

9ª - Nos termos do disposto no artigo 275º, n.º 2 do CC, como bem salienta o acórdão recorrido, a condição resolutiva sub judice ter-se-á por não verificada.

10ª - Paralelamente, o facto de a autora ter concordado (pelo menos confirmado) e aceite um primeiro pagamento, entregue pelo EE, feito a estes pelos réus, incute nestes últimos a legítima convicção de que o EE era pessoa “habilitada” para receber tais montantes.

11ª - Ora, esta situação encontra abrigo legal na figura do mandato sem representação, prevista legalmente no artigo 1180º, sendo um negócio consensual: artigo 219º do CC.

12ª - O efeito translativo da transmissão do direito de propriedade verificou-se, tendo sido entregues as chaves do imóvel e pago o preço atinente.

13ª - Se o mandatário - EE - não entregou tais quantias à autora é questão a dirimir entre estes e à qual os réus são completamente alheios.

14ª - Sempre se dirá que face à conduta da autora em ter aceite do EE o montante de € 50.000 (cinquenta mil euros), a invocação da cláusula resolutiva configura situação de manifesto abuso de direito, nos termos do artigo 334º do CC, pelo que também por esta razão deverá ser mantido o acórdão recorrido.

15ª - A recorrente coloca ainda à apreciação deste Tribunal a alteração do alcance da decisão da primeira instância, no que tange ao pagamento de quantia por ocupação abusiva do imóvel (situação que só se equaciona, por mera cautela de patrocínio e dever deontológico).

16ª – A sentença não foi censurada pela autora que se conformou com aquela e, portanto, não pode, nesta instância recursiva recorrer desta questão (artigo 671º e 677º, ambos do CPC).

17ª – Assim, o acórdão recorrido não merece censura, devendo manter-se a absolvição dos réus dos pedidos.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

2.

As instâncias consideraram provados os seguintes factos:

1º - A autora vendeu aos réus a fracção autónoma designada pelas letras “AB”, correspondente ao ........., no lote nº ...., sito no “............”, Freguesia e Concelho de Portimão (alínea A).

2º - Essa fracção encontra-se descrita na Conservatória Registo Predial de Portimão sob o nº00000 da Freguesia de Portimão, e inscrita na matriz sob o artigo 000000da respectiva Repartição de Finanças (alínea B).

3º - O processo de aquisição pelos réus da fracção autónoma supra identificada, teve início em meados de Setembro de 2007, quando estes reuniram no “Hotel Dom Pedro Meia Praia”, em Lagos, com EE e FF (resposta ao quesito 9º).

4º - EE e FF, em nome da imobiliária “M........”, apresentaram o imóvel objecto dos presentes autos aos réus (resposta ao quesito 10º).

5º - Quando os réus tomaram a decisão de adquirir o apartamento em causa foram visitados na sua residência por EE, que informou que teria que ser feito de imediato o pagamento de € 1.000,00 para reservar o imóvel (resposta ao quesito 11º).

6º - Quando os réus solicitaram os dados da conta para que pudessem efectuar tal pagamento, EE indicou uma conta de que era titular, referida a fls.142 (resposta ao quesito 12º).

7º - No dia 26/10/2007, EE acompanhou os réus ao Cartório Notarial de Portimão, do Dr.GG, para procederem à assinatura do contrato, que se encontra junto a fls. 167 e seguintes (resposta ao quesito 15º).

8º - No dia 26/10/2007, EE disse aos réus que tinham assinado a escritura de compra e venda (resposta ao quesito 16º).

9º - Os réus fizeram os seguintes pagamentos:

a) - No dia 18/09/2007            1.000 euros;

b) - No dia 20/09/2007                500 euros;

c) - No dia 28/09/2007             30.000 euros;

d) - No dia 25/10/2007             23.500 euros;

e) - No dia 25/10/2007             100.000 euros (resposta ao quesito 5º).

10º - EE recebeu a quantia de € 50.000,00, referida no ponto 16º, a qual entregou à autora (resposta ao quesito 7º).

11º - EE recebeu as quantias referidas no ponto 9º (resposta ao quesito 8º).

12º - Na sequência dos pagamentos referidos no ponto 9º, EE e FF entregaram aos réus as chaves do imóvel (resposta ao quesito 14º).

13º - EE apresentou o imóvel para venda aos réus, recebeu pagamentos, procedeu à entrega das chaves do imóvel aos réus, após pagamentos por estes efectuados, apresentou cópia do contrato e apresentou aos réus contrato-promessa assinado pelo legal representante da autora, onde constava quitação do valor de € 50.000,00 a título de “sinal” e princípio de pagamento (resposta ao quesito 20º).

14º - A escritura pública do contrato supra referido foi outorgada no dia 13/06/2008, no Cartório Notarial da Dr.ª HH(alínea C).

15º - EE agiu como gestor de negócios na escritura de compra e venda e a autora foi interveniente na referida escritura (resposta ao quesito 23º).

16º - A referida fracção foi vendida pelo valor global de 155.000 euros dos quais foram dados 50.000 euros, como “sinal” e princípio de pagamento (alínea b).

17º - A predita escritura de compra e venda teve como outorgantes DD, na qualidade de legal representante da autora, e DD, que declarou actuar como gestor de negócios dos réus (alínea J).

18º - A autora declarou, na escritura de compra e venda, que a venda era feita livre de ónus ou encargos, e que o cancelamento das duas hipotecas se encontrava assegurado (alínea L).

19º - Nos termos da escritura pública, referida no anterior ponto 14º, o restante valor (105.000 euros) seria liquidado através do cheque n° 0000000000, sacado sobre o Banco Santander Totta, S.A., passado à ordem da autora (resposta ao quesito 1º).

20º - Cada um dos presentes no acto da escritura declarou que “estipulam para o caso de o referido cheque não ter boa cobrança a resolução deste contrato” (alínea E).

21º - O cheque supra identificado foi entregue à autora por DD (alínea F).

22º - O referido cheque foi devolvido por falta de provisão (alínea G).

23º - O valor referido no ponto anterior não foi pago à autora (resposta ao quesito 2º).

24º - Apenas volvidos vários meses, tomaram os réus conhecimento de que não haviam outorgado a escritura de compra e venda, e que esta havia sido outorgada por EE e o legal representante da autora, em Junho de 2008 (resposta ao quesito 18º).

25º - Existe um contrato de mandato celebrado entre a autora e a sociedade “M........”, que tinha como sócio - gerente EE (alínea I).

26º - O contrato de fls. 54/55 foi exibido aos réus, tendo-lhes sido concedida cópia do mesmo (resposta ao quesitos 6º).

27º - O contrato referido no ponto 26º é denominado “contrato de prestação de serviços” e foi celebrado entre a imobiliária “M........” e a autora (resposta ao quesito 13º).

28º - Os réus encontram-se a ocupar o imóvel desde Junho de 2008 (alínea H).

29º - Uma fracção, nas condições e no local em que aquela se encontra, tem o valor de arrendamento mensal de 500 euros (resposta ao quesito 3º).

3.

Nos termos do preceituado nos artigos 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar as seguintes questões:

1ª – Se a condição resolutiva inclusa na escritura de compra e venda do imóvel é, ou não, eficaz perante os réus;

2ª – Se o pagamento da indemnização a favor da autora no valor da renda, fixada na sentença, deve ser calculada, desde a data da citação dos réus, (como a autora pediu) ou desde o trânsito em julgado da decisão, (como a sentença considerou).

4.

Quanto à segunda questão:

Ao propor a presente acção, a autora formulou os seguintes pedidos:

a) - A resolução do negócio de compra e venda entre autora e réus sobre o imóvel identificado nos artigos 1º e 2º da petição inicial, nos termos dos artigos 432º e seguintes do C.C.

b) – A condenação dos réus na entrega à autora do imóvel devoluto de pessoas e bens e nas mesmas condições em que o receberam.

c) – A condenação dos réus no pagamento de uma renda mensal de 550 euros por cada mês de ocupação da fracção, desde a data da sua ocupação até à sua restituição.

d) – A condenação dos réus no pagamento das custas e honorários forenses do advogado da parte contrária, tudo com as legais consequências.

A sentença, na parcial procedência da acção:

a) - Declarou resolvido o contrato de compra e venda celebrado entre a autora e os réus, cuja cópia da escritura consta a fls. 8 e seguintes dos autos;

b) - Em consequência, condenou os réus a restituírem á autora, livre e devoluta, a fracção autónoma objecto de tal contrato;

c) - Condenou os réus a pagarem à autora, a quantia de 500 euros por cada mês que, após o trânsito em julgado da sentença, se mantenham a ocupar tal fracção autónoma (até a restituírem à autora);

d) – Absolveu os réus do restante pedido.

Ou seja, na parte que ora interessa, condenou os réus a pagarem à autora a quantia de 500 euros por cada mês em que se mantenham a ocupar tal fracção autónoma (até a restituírem à autora), como a autora pedia, mas determinou que tais “rendas” seriam devidas desde o trânsito em julgado da sentença e não desde a citação, como a mesma pretendia.

Ora, quem apelou, foram os réus. A autora, aceitando a decisão, não recorreu, nem sequer subordinadamente.

Não tendo a sentença sido censurada pela autora, que com aquela se conformou, não pode, nesta instância recursiva, ressuscitar essa questão (artigo 684º-B, n.º 1, 685º, n.º 1 CPC).

Nesta parte, improcede a pretensão da recorrente.

5.

Quanto à primeira questão:

5.1.

BREVE SINOPSE DA PROBLEMÁTICA DOS AUTOS:

A autora e a sociedade imobiliária “M......” outorgaram o contrato de fls. 54/55 dos autos, que consubstancia um contrato de mediação imobiliária (vide artigo 2º do DL 211/2004, de 20 de Agosto), obrigando-se esta a arranjar interessados para a compra do imóvel, constituído em propriedade horizontal, de que a autora era proprietária, o qual integrava, além de outras, a fracção autónoma designada pelas letras “AB”, correspondente ao .... andar B, no lote 3, sito no “............”, Portimão.

O processo de aquisição pelos réus da aludida fracção teve início, em meados de Setembro de 2007, quando reuniram, no “Hotel Dom Pedro Meia Praia”, em Lagos, com EE e FF, que, em representação da referida imobiliária, lhes apresentaram o dito imóvel e a fracção em causa.

Poucos dias depois, ou seja, no dia 18/09/2007, quando os réus tomaram a decisão de adquirir o referido apartamento, foram visitados na sua residência pelo EE, legal representante da imobiliária, que os informou que teria de ser feito de imediato o pagamento de 1.000 euros, para reservar a fracção, numa conta de que ele era titular, o que estes fizeram, conforme documento de fls. 142.

Posteriormente, nos dias 20/09/2007 e 28/09/2007, os réus entregaram ao EE, respectivamente, 500 euros e 30.000 euros.

No dia 25/10/2007, os réus entregaram ao EE as importâncias, respectivamente, de 23.500 euros e 100.000 euros, assim perfazendo a totalidade do preço acordado.

No dia seguinte, 26/10/2007, o EE acompanhou os réus ao Cartório Notarial de Portimão, do Dr. GG, para procederem à assinatura do contrato, que se encontra junto a fls. 167 a 169, denominado “contrato de promessa de compra e venda”, constando do mesmo que o preço da venda era de 155.000 euros, quantia que se encontrava paga, conforme cláusula terceira desse contrato, (a contrario) e de que a promitente – vendedora dava aos promitentes – compradores a respectiva quitação.

O contrato foi assinado pelos réus, na qualidade de segundos contraentes, e o EE assinou na qualidade de representante, tendo sido reconhecidas as assinaturas dos réus, constando desse documento que todos os signatários foram advertidos da lei em vigor, pelo facto de não terem exibido o alvará de utilização, nesse mesmo dia.

Após a assinatura do aludido documento pelos réus e pelo EE, este disse aos réus que tinham assinado a escritura de compra e venda da fracção que haviam comprado e, porque se encontrava efectuado o pagamento do preço, entregou-lhes as chaves do imóvel, para o poderem ocupar.

Também, junto aos autos a fls. 161 a 163, encontra-se um outro documento, denominado contrato de promessa de compra e venda, com a mesma data do anterior, diferindo apenas deste na cláusula terceira.

Nos termos desta cláusula, o preço de venda acordado seria pago pelos promitentes – compradores à promitente da seguinte forma:

a) – “Nesta data, a título de sinal e princípio de pagamento, pelo qual os promitentes - compradores dão aos promitentes – vendedores a quantia de 50.000 euros e os promitentes – compradores (sic) dão a respectiva quitação”;

b) – “O restante do preço 105.000 euros será pago no acto da escritura notarial”.

Entretanto, este documento alegadamente feito em Portimão aos 26/10/2007, na mesma data do primeiro, foi, ao contrário daquele, assinado apenas por DD, legal representante da AA, cuja assinatura foi feita na presença do Notário, Dr.II, apenas, no dia 29 de Janeiro de 2008”. Ou seja, dele não consta a assinatura dos promitentes – compradores, nem podia constar, pois, como se disse, os mesmos estavam, nessa altura, convencidos de que já tinham assinado a escritura de compra e venda, no cartório do Dr. GG, em 26/10/2007, quando haviam assinado o outro “contrato – promessa”.

Acresce que os réus têm nacionalidade espanhola e tinham residência em Espanha, não se encontrando presentes, quando a autora assinou este último documento no cartório do Dr.II.

Assim sendo, não corresponde à verdade a declaração feita, pela promitente vendedora de que os réus, naquela data, 26/10/2007, lhe entregaram a quantia de 50.000 euros, a título de sinal e princípio de pagamento, de que lhes dava a quitação (vide ponto 28º com referência ao contrato de fls. 161/163).

Nem podia o EE ter apresentado aos réus este contrato, onde se referia a entrega de 50.000 euros a título de sinal e princípio de pagamento, sendo a restante importância (105.000 euros) paga no acto da escritura, uma vez que estes não estavam presentes. Importa não esquecer que, quando assinaram o contrato – promessa de fls. 167, os réus tinham sido convencidos pelo EE que haviam assinado a escritura de compra e venda.

É, pois, manifesto que a sentença se contradiz, quando, nomeadamente, refere, num lado, que os réus e o legal representante da autora assinaram o contrato de fls. 167/169, onde constava que os réus haviam satisfeito o preço da venda (cláusula 3ª a contrario) e, noutro lado, quando refere que os réus entregaram, apenas, à autora 50.000 euros, a título de sinal e de princípio de pagamento, de que dava quitação (ponto 20º conjugado com o contrato – promessa assinado pela autora), sendo certo que, à data em que o JJ assinou esse contrato-promessa, o preço da venda estava integralmente satisfeito, há cerca de três meses (vide pontos 15º, 18º e 16º).

Volvidos vários meses, já depois de 13 de Junho de 2008, tomaram afinal os réus conhecimento de que não haviam outorgado a escritura de compra e venda e que esta havia sido outorgada por EE e pelo legal representante da autora, em Junho de 2008, no Cartório Notarial da Dr.ª HH, em Lagoa.

Em consonância com o contrato – promessa de fls. 161/163, consta dessa escritura que a aludida fracção foi vendida pelo valor global de 155.000 dos quais foram dados 50.000 á autora, como “sinal e princípio de pagamento”, de que esta dá a quitação e que os restantes 105.000 euros foram satisfeitos através de um cheque da conta de que o EE era titular, que ele assinou e por este entregue à autora AA, à ordem da qual havia sido emitido, com a data de 13/06/2008.

Consta ainda da escritura que o DD, na qualidade de legal representante da autora e o DD, na qualidade de gestor de negócios do réu BB, estipulam, para o caso do referido cheque não ter boa cobrança, a resolução deste contrato.

Acrescentam “que, nesta compra e venda, não houve intervenção de mediadora imobiliária, tendo sido advertidos das consequências penais em que incorrem por falsidade de tal declaração”, não obstante terem sido partes nesse contrato de mediação.

Bem está de ver que, não obstante a autora ser uma conhecida empreiteira, o seu legal representante não exigiu que o cheque fosse visado, o que, a ter-se verificado, como se impunha, obstaria a que fosse efectuada a escritura e que o cheque fosse devolvido, como foi, por falta de provisão.

Logo que os réus assinaram o contrato de fls. 167 a 169, o que supunham ser a escritura de compra e venda, o EE entregou-lhes as chaves da fracção.

Entretanto, aos 9/10/2008, o réu, através de procuradora substabelecida, ratificou a gestão de negócios realizada através da escritura de 13/06/2008 (vide fls. 173/174).

A matéria de facto considerada provada encerra, assim, contradições, parecendo-nos, contudo, que as mesmas não obstam a que o Supremo Tribunal de Justiça possa fixar com precisão o regime jurídico a aplicar, razão por que não vislumbra necessidade de anular o acórdão recorrido (vide artigo 730º, n.º 2 CPC).

5.2.

A COMPRA E VENDA DA FRACÇÃO

Embora os réus tivessem sido convencidos pelo EE que haviam assinado a escritura de compra e venda, nas sobreditas circunstâncias, aquele sabia muito bem que isso não correspondia à verdade.

Por isso mesmo, a autora e o EE, na qualidade de gestor de negócios do réu, outorgaram o contrato de compra e venda da aludida fracção, no dia 13 de Junho de 2008, com total desconhecimento dos réus.

Embora estes tivessem satisfeito integralmente o preço da fracção, através das importâncias entregues ao EE, consta da escritura que, segundo declarações dos outorgantes, apenas haviam sido pago cinquenta mil euros, pelo que, para pagamento da parte restante do supra indicado preço, o EE entregou ao primeiro outorgante um cheque da conta de que era titular, no valor de cento e cinco mil euros, com a data de emissão de 13/06/2008. E “que estipulam, para o caso do referido cheque não ter boa cobrança, a resolução desse contrato”.

Ora, o aludido cheque foi devolvido por falta de provisão, pretendendo, por isso, a recorrente a resolução do contrato de compra e venda.

Defendem, porém, os réus a ineficácia da cláusula resolutiva acordada entre a autora e o EE, não havendo, consequentemente, fundamento para a resolução do contrato.

A 1ª instância acolheu a tese defendida pela autora. Ao invés, a Relação acolheu a tese defendida pelos réus.

A questão fundamental do recurso é exactamente a da eficácia ou ineficácia da aludida cláusula em relação aos réus, o que importa apreciar.

Um dos efeitos essenciais do contrato de compra e venda é a obrigação de pagar o preço, ou seja, a previsão da entrega de uma quantia em dinheiro ao vendedor como contrapartida da entrega da coisa por parte deste.

“A obrigação de pagamento do preço encontra-se colocada em nexo de reciprocidade com a entrega da coisa, pelo que, constituindo a compra e venda um contrato sinalagmático, o não cumprimento da obrigação de pagamento do preço poderia dar resolução do contrato por incumprimento, de acordo com o disposto no artigo 801º, n.º 2 do Código Civil”[1].

O artigo 886º vem, no entanto, restringir consideravelmente essa faculdade, ao referir que, “transmitida a propriedade da coisa, ou o direito sobre ela, e feita a sua entrega, o vendedor não pode, salvo convenção em contrário, resolver o contrato por falta de pagamento do preço”.

In casu, atendo-nos apenas ao texto da escritura, poder-se-ia considerar que o preço não fora ainda satisfeito integralmente.

Verifica-se, porém, ter sido definitivamente efectuada a atribuição patrimonial do vendedor, através da transferência da propriedade e entrega do bem, pelo que não poderia a autora, em princípio, fazer reverter essa atribuição patrimonial por meio da resolução por incumprimento e reclamar por essa via a restituição do bem. As suas acções contra o comprador ficariam assim restringidas à acção de cumprimento para cobrança do preço (artigo 817º) e respectivos juros moratórios (artigo 806º, n.º 1).

Apesar de fortemente restringida, a resolução do contrato por incumprimento da obrigação do comprador é, no entanto, possível, nomeadamente, se houver convenção em contrário (artigo 432º, n.º 1).

Esta situação é admissível, face à natureza supletiva do artigo 886º. Assim, da mesma forma que é possível convencionar fundamentos contratuais para atribuição do direito de resolver o contrato (artigo 432º, n.º 1), nada impede que as partes estipulem igualmente que o incumprimento da obrigação de pagar o preço por parte do comprador constitua fundamento de resolução. Nesse caso, em virtude da existência dessa cláusula resolutiva expressa, serão derrogadas as restrições do artigo 886º, sendo assim admissível a resolução por incumprimento.

Assim, por força desta cláusula que a autora e o EE introduziram na escritura de compra e venda da fracção, assistia à vendedora a faculdade de resolver o contrato, caso o cheque entregue pelo EE não obtivesse boa cobrança.

Segundo a escritura, o contrato de compra e venda ficava sujeito a uma condição resolutiva, pelo que o acto produzia efeitos imediatamente, mas, verificado o facto futuro e incerto, esses efeitos cessavam de produzir-se e eram destruídos retroactivamente.

5.3.

A EFICÁCIA/INEFICÁCIA DA CLÁUSULA RESOLUTIVA

A GESTÃO DE NEGÓCIOS:

Prevista no artigo 464º Código Civil, a gestão de negócios dá-se “quando uma pessoa assume a direcção de negócio alheio no interesse e por conta do respectivo dono, sem para tal estar autorizada”.

Alguém interfere em assunto de outrem, praticando um ou mais actos. Fá-lo no interesse e por conta da pessoa a quem o assunto diz respeito. Mas não está autorizado a essa intromissão. Existe gestão de negócios.

Por conseguinte, um dos requisitos essenciais da gestão de negócios é a actuação do agente, no interesse e por conta de outra pessoa, o “dominus negotii”.

Quando a gestão se traduz na prática de actos jurídicos, o referido requisito pode preencher-se por uma de duas formas. Ou o agente actua em nome alheio ou actua em nome próprio mas, ainda aqui, com o intuito de aproveitar a outrem. Conforme os casos fala-se de gestão representativa e de gestão não representativa.

In casu, trata-se de gestão representativa, porquanto o EE pratica o acto em nome do dono do negócio, como se fora seu representante, embora sem ter para isso os necessários poderes.

Verificam-se ainda os demais requisitos da gestão de negócios, pois o negócio pertence a pessoa diversa do EE, o qual actuou com falta de autorização dos compradores.

Nesta actuação do gestor de negócios, há a considerar as relações entre este e o réu e as relações entre ele (EE) e a autora com quem celebrou o acto jurídico.

Quanto às relações do gestor com o dominus negotii, o gestor tem a obrigação geral de procurar ser útil ao dono do negócio, proporcionando-lhe resultados vantajosos. Deve evitar que a sua intervenção, redunde em desvantagens para ele.

O critério orientador consiste em o gestor se conformar com o interesse e a vontade, real ou presumível, do dono do negócio (artigo 465º, alínea a).

Assim, o EE, em princípio, teria de se comportar como se comportaria o réu/recorrido, se conhecesse todas as circunstâncias do caso. Deveria abster-se do que ele, com pleno conhecimento de causa não praticaria; e fazer o que ele faria, também com pleno conhecimento de causa.

A conduta conforme com a vontade real ou presumível do dono do negócio só não será de observar se for contrária à lei ou à ordem pública ou ofensiva dos bons costumes [artigo 465º, alínea a) in fine]. “E parece que o gestor, excepcionalmente, se deve abster de actos que seriam harmónicos com aquela vontade real mas se mostrem contrários ao real interesse do dono do negócio objectivamente considerado. Dado o conflito existente entre a vontade e o interesse, a solução que se impõe ao gestor é nada fazer: isto porque a lei tanto manda atender a uma como ao outro[2]”.

No caso concreto, tendo o EE recebido, já no ano anterior ao da celebração da escritura pública, as quantias pecuniárias correspondentes ao preço acordado (155.000 euros), era do interesse dos ora recorridos que, na escritura pública, esse preço fosse considerado integralmente pago.

Por conseguinte, o EE, ao outorgar na escritura pública, referindo que faltava pagar 105.500 euros, violou o artigo 17º n.º 3 do DL 211/2004, 20/08, pois implicitamente está a admitir que ainda não havia entregue aquela importância à autora. Por outro lado, a sua actuação não se conforma com o interesse e a vontade, real ou presumível, do dono do negócio. A sua conduta foi, pois, duplamente ilícita.

Traduzindo-se a gestão na prática de actos jurídicos, como ora se verifica, estabelecem-se, não só relações entre o gestor e dominus negotii, como igualmente entre este e a outra parte, ou seja, a AA.

Tendo o EE actuado, em nome do dono do negócio, (gestão representativa), o acto é, originariamente, ineficaz. Não produz efeitos em relação ao gestor, que não o celebrou nomine próprio. E também não os produz em relação ao dono do negócio, por o gestor não ter poderes para isso. O acto tornar-se-á todavia eficaz retroactivamente, em face do dono do negócio, considerando-se com ele celebrado, se o dono do negócio o ratificar (vide artigos 471º e 268º).

APROVAÇÃO E RATIFICAÇÃO DA GESTÃO

Aprovação e ratificação não se confundem.

“A aprovação é a concordância com a gestão praticada, consista esta em actos jurídicos ou em actos materiais. A ratificação é a declaração de vontade pela qual alguém faz seu um acto jurídico celebrado por outrem em seu nome, sem poderes de representação, outorgando retroactivamente esses poderes[3]”.

A aprovação situa-se no âmbito das relações entre o dono do negócio e o gestor enquanto a ratificação diz respeito à relação entre o “dominus” e a pessoa com quem o gestor contratou.

“Costuma dizer-se que, enquanto a aprovação consiste em o dono do negócio reconhecer como útil a actividade exercida pelo gestor, ainda que ela objectivamente não se pudesse considera como tal, a ratificação consiste em o dominus se apropriar do negócio celebrado pelo gestor, tornando-se parte, como se tivesse sido ele próprio a praticá-lo[4]”.

Esta noção de ratificação aplica-se apenas à gestão representativa, como in casu acontece (artigo 268º CC).

Na declaração de ratificação, efectuada pela procuradora substabelecida do réu BB, no dia 9/10/2008 (fls.173 e 174), foi dito apenas o seguinte:

“Que, por escritura pública de compra e venda de 13/06/2008, interveio DD, na qualidade de gestor de negócios do representado da outorgante, na qual a sociedade AA, L.da, vende a BB a fracção autónoma designada pelas letras ........umento, ratifica para todos os efeitos de direito a mencionada gestão de negócios realizada através da citada escritura, cujo conteúdo é do perfeito conhecimento do seu representado”.

E consta da escritura pública em alusão o respectivo averbamento da ratificação da gestão de negócios (v. fls.177 a 182).

Como se constata, sobre a cláusula resolutiva nada foi dito.

Ora, ao interesse dos réus, ora recorridos, corresponde o acto de compra, mas não corresponde a cláusula resolutiva do contrato de compra e venda que o EE, “gestor de negócios”, acordou com a outra parte na escritura pública.

Entre o efeito translativo do negócio e a dita cláusula há até uma flagrante contradição, já que os ora recorridos, que pretendiam a aquisição do direito de propriedade, não podiam pretender o efeito translativo desse direito a seu favor (o seu interesse era essa transmissão) e, ao mesmo tempo, aceitar a resolução desse negócio translativo (o que seria o oposto do seu interesse), até porque já tinham efectuado a entrega das quantias pecuniárias correspondentes à totalidade do preço acordado.

A aludida cláusula corresponde sim ao interesse da AA com quem o EE contratou.

Estando o EE, por força do contrato de mediação imobiliária, obrigado a entregar à autora as importâncias recebidas e tendo já sido recebida a totalidade do preço, a autora, com este estratagema, receberia, pelo menos, mais 105.000 euros ou então ficaria, de novo, com a disponibilidade da fracção, face à condição resolutiva introduzida no contrato. Era aliás óbvio que, tendo o EE recebido a totalidade da importância correspondente ao preço, e prestando-se a prestar a declaração que prestou, não iria passar um cheque que, apresentado a pagamento, tivesse provisão.

A estipulação da cláusula resolutiva visava fundamentalmente preservar o interesse da autora. Mas assim sendo, isto é, correspondendo a cláusula ao interesse da autora, (e não pode deixar de se referir mais uma vez que o outorgante EE tinha para com ela deveres emergentes do contrato de mediação imobiliária que tinham celebrado entre si), a conduta, que esse outorgante tomou na escritura pública, estipulando com a autora a dita cláusula resolutiva, revela-se perfeitamente ambígua e contraditória.

Com efeito, por um lado, estando ele obrigado a entregar à autora todas as quantias que recebeu dos ora recorrentes, no interesse dela passou-lhe o respectivo cheque sobre a sua própria conta, bem sabendo que o mesmo não tinha provisão (e também declarou aceitar a venda do imóvel), mas tendo declarado agir como “gestor de negócios” dos ora recorrentes, contrariamente ao que era o interesse destes, afirmava implicitamente não haver entregue àquela as quantias pecuniárias que deles tinha recebido já no ano anterior.

Pode, sem margem para qualquer dúvida, dizer-se que essa cláusula foi estipulada no essencial interesse da autora, tanto mais evidente, quanto é certo que aceitou um simples cheque (não visado), não constituindo a sua entrega uma “datio in solutum”, antes constituindo a sua entrega uma “datio pro solvendo”, apenas conferindo ao respectivo titular a expectativa de receber o montante nele indicado (vide artigo 1º Lei Uniforme sobre Cheques).

Por outro lado, tendo os réus entregue a totalidade do preço, o que o gestor de negócios bem sabia, a aludida cláusula era ineficaz em relação aos réus.

Assim sendo, os réus ratificaram o contrato, mas não a dita cláusula.

Na verdade, não pode considerar-se a sua ratificação, sem que daí resulte grave contradição entre o efeito translativo do direito de propriedade, o que corresponde ao interesse dos ora recorridos e, simultaneamente, a resolução do contrato, o que corresponderia ao contrário do seu interesse, tanto mais que, à data da ratificação, (29/10/2008), já tinha acontecido o facto que fundamentaria a resolução do contrato de compra e venda, isto é, o não pagamento do cheque por falta de provisão, devolvido no dia 17/06/2008. Por essa razão, era efectivamente contraditório estar a ratificar a gestão no que respeita ao efeito translativo do direito de propriedade e simultaneamente no que respeitava à resolução do respectivo contrato translativo, tendo eles perfeito conhecimento da entrega dos 155.000 euros.

Neste contexto, é patente não ter havido, por parte dos réus, intenção de ratificar a dita cláusula. Por isso mesmo, na declaração de ratificação, os réus fizeram expressa referência ao negócio jurídico, contrato de compra e venda, mas não fizeram a mínima referência à cláusula resolutiva.

Além disso, dado que a cláusula não foi estipulada no interesse dos ora recorrentes, mas claramente contra o seu interesse, essa estipulação não pode ser englobada na gestão de negócios, ou seja, não corresponde a um acto de gestão do EE (artigo 464º CC).

Em suma, atendendo a todo o contexto acima referido, isto é, àquele que rodeou a negociação – desde logo o denominado contrato-promessa assinado pelos réus e pelo EE, depois a celebração da escritura pública e por fim a declaração de ratificação da gestão sem qualquer referência à cláusula resolutiva – não poderá deixar de se concluir que não pretendeu abranger a dita cláusula na ratificação da gestão.

Importa finalmente acrescentar que, mesmo admitindo, ainda que por mera hipótese, que as partes houvessem sujeitado a cessação retroactiva dos efeitos do negócio jurídico à devolução do cheque sem provisão, o que pressupõe a sua emissão pelo gestor de negócios e a aceitação do cheque por parte da autora, torna-se evidente que o EE podia ter evitado que o facto resolutivo ocorresse, se tivesse emitido (como era seu dever) um cheque com provisão. Por sua vez, a autora podia também ter evitado a verificação da condição resolutiva, se tivesse exigido um cheque com provisão (visado), o que seria o normal, ou se tivesse recusado o cheque simples que aquele lhe entregou.

Por conseguinte, a ambos os sujeitos ficou a dever-se a verificação da condição resolutiva. À autora porque aceitou um cheque simples – sem garantia de provisão – e ao EE pela sua conduta ilícita de ter emitido esse cheque sem provisão (apesar de lhe terem sido entregues pelo ora recorrentes as referidas quantias pecuniárias).

A ilicitude dessa conduta do “gestor de negócios” leva a que se considere que agiu com grave violação das regras da boa - fé, sob o ponto de vista ético”[5].

Por sua vez, a autora violou igualmente essas regras da boa - fé, precisamente porque, ao contratar com esse “gestor de negócios”, não podia necessariamente deixar de admitir que o negócio viesse a ser ratificado e que os seus efeitos se integrassem na esfera jurídica dos ora recorridos. No entanto, ao actuar, como actuou, tinha a garantia de accionar a cláusula resolutiva (devolvido que fosse o cheque por falta de provisão, como aconteceu), o que determinaria a extinção do contrato de compra e venda e do próprio contrato - promessa de compra e venda. E, extinguindo-se o contrato-promessa, uma das consequências seria a perda do sinal entregue.

Segundo as regras da experiência e a conduta que um cidadão normal adoptaria, naquelas circunstâncias, não se pode deixar de considerar que, sendo o EE, legal representante de uma imobiliária, encarregada de proceder à venda não apenas de uma fracção mas de um vasto conjunto de fracções da autora, e esta uma grande empresa de construção civil, aquele apenas entregaria as chaves da fracção, com autorização expressa ou tácita do proprietário, depois de satisfeito o preço.

Ora, se os réus estavam a ocupar a fracção e admitindo, por hipótese, que o EE ainda não tinha entregue à autora a importância de 105.000 euros que deles havia recebido, aquela cláusula era o meio adequado para salvaguardar os interesses da autora, ainda que espoliando os réus daquela importância.

No que diz respeito à condição resolutiva, a autora agiu assim com dolo eventual, já que admitiu a possibilidade da sua ocorrência e aceitou o facto em que consistia essa condição, o qual, não sendo desde logo ilícito, sê-lo-ia posteriormente, porque lhe possibilitaria – com a instauração da presente acção – resolver o contrato de compra e venda (e também a extinção do contrato-promessa), do que adviriam graves prejuízos para os ora recorrentes.

Deste modo, não só o EE, enquanto “gestor de negócios”, como também a autora, ao actuarem como actuaram, provocaram a verificação do facto resolutivo.

Ora, porque a ninguém é lícito tirar proveito dos actos que pratique, violando as regras da boa - fé, dispõe o artigo 275º nº 2 Código Civil que, se a condição for provocada contra as regras da boa - fé por aquele a quem aproveita, considera-se como não verificada.

Esta disposição revela que, “com a celebração do negócio condicional, nascem deveres secundários de conduta – de boa - fé – para as partes”[6], deveres que a autora e o referido EE não cumpriram, tendo pautado a sua conduta pela ilicitude.

Concluindo:

1ª – A obrigação de pagamento do preço no contrato de compra e venda encontra-se colocada em nexo de reciprocidade com a entrega da coisa, pelo que, constituindo a compra e venda um contrato sinalagmático, o não cumprimento da obrigação de pagamento do preço poderia dar fundamento à resolução do contrato por incumprimento, de acordo com o disposto no artigo 801º, n.º 2 do Código Civil.

2ª – O artigo 886º vem no entanto restringir consideravelmente esta faculdade, no caso de transmitida a propriedade da coisa ou o direito sobre ela e feita a sua entrega, de tal sorte que o vendedor não pode, salvo convenção em contrário, resolver o contrato por falta de pagamento do preço.

3ª – Assim, tendo havido traditio da fracção a favor dos réus, a cláusula resolutiva foi introduzida na escritura de compra e venda exclusivamente no interesse da autora, pois, sem ela, o alegado não cumprimento da obrigação do pagamento do preço não poderia dar fundamento à resolução do contrato.

4ª – Esta cláusula revertia ainda integralmente no interesse da autora, porquanto o gestor de negócios e a autora sabiam que a mesma não correspondia à vontade presumível dos réus, na medida em que já haviam pago a totalidade do preço da fracção ao EE, enquanto mediador imobiliário e que agora gestor de negócios.

5ª - Embora os réus houvessem ratificado o contrato de compra e venda, quiseram excluir esta cláusula, sendo certo que, ainda que a não tivessem excluído, não a podiam ratificar, sob pena de contradição insanável: estariam simultaneamente a ratificar o negócio e a sua resolução.

6ª – Esta cláusula é, pois, ineficaz em relação aos réus, não havendo, consequentemente, fundamento para a resolução do contrato.

7ª – Acresce que a resolução do contrato sempre teria de se considerar como não verificada, face ao disposto no artigo 275º, n.º 2 Código Civil.

5ª - Assim, não se operando o efeito resolutivo da dita cláusula, operou-se o efeito translativo do direito de propriedade para os ora recorrentes mercê da ratificação da gestão de negócios.

Improcedem, assim, as conclusões da recorrente.

6.

Pelo exposto, negando a revista, confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 29 de Março de 2012

Granja da Fonseca (Relator)

Silva Gonçalves

Ana Paula Boularot

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[1] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume III, 6ª edição, página 38.
[2] Inocêncio Galvâo Telles, Direito das Obrigações, 3ª edição, página 118.
[3] Inocêncio Galvão Telles, obra citada, página 122.
[4] Pessoa Jorge, Direito das Obrigações, Volume I, Lições Proferidas no Ano Lectivo 1971/1972, Edição dos Serviços Sociais da Universidade de Lisboa, página 241.
[5] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, páginas 216 e 254.
[6] Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, página 254.