Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A1004
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DE MATÉRIA
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
RELAÇÃO JURÍDICO-ADMINISTRATIVA
Nº do Documento: SJ200705080010041
Data do Acordão: 05/08/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário :
1) Na vigência do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002 de 19 de Fevereiro, na redacção da Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro, os tribunais administrativos são os competentes para as acções destinadas a efectivar a responsabilidade civil extra contratual de uma Freguesia, “ex vi” da alínea g) do nº 1 do artigo 4º.
2) Irreleva para a determinação de competência que os actos praticados sejam qualificados como de gestão pública ou de gestão privada, apenas bastando estar-se em presença de uma relação jurídico administrativa.
3) A Relação jurídico-administrativa é aquela em que pelo menos um dos sujeitos é a Administração, estando em causa um litígio regulado por normas de direito administrativo.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

O Dr. AA intentou no 2º Juízo no Tribunal Judicial da Covilhã, acção popular (com processo ordinário) contra a Freguesia de BB, representada pela respectiva Junta, pedindo a sua condenação a:
- retirar o muro e o passeio que edificou junto à Estrada Nacional 506 A, deixando uma margem de 6 metros a partir do eixo da via, como estatui o Regime Municipal das Edificações Urbanas;
- efectuar o tratamento dos esgotos vindos do parque e do restaurante, não os derivando directamente para o rio Zêzere;
- retirar todas as placas identificadoras do local com alusão à freguesia de BB, colocando placas identificando o local como da freguesia de CC;
- abster-se de construir qualquer edifício numa margem não inferior a 100 metros paralela ao rio Zêzere e a proceder a obras de protecção do rio de acordo com serviços do Estado;
- pagar à freguesia de CC uma indemnização não inferior a 50000,00 euros pelos danos causados ao meio ambiente e aos utilizadores da EN 506-A.
A 1ª instância julgou procedente a excepção de incompetência absoluta, por entender competentes os tribunais administrativos.
Recorreu o Autor tendo a Relação de Coimbra dado provimento ao agravo e julgado competente o tribunal escolhido “ab initio”.
Agrava a Ré, assim concluindo a sua alegação:
- A jurisdição comum não é materialmente competente para decidir da presente questão;
Nos termos da alínea g) do nº 1 do artigo 4º do ETAF que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2004 “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da
função legislativa”.
Todos os litígios que tenham por objecto qualquer tipo de responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas, onde se inclui o presente litigio, são da competência exclusiva dos tribunais administrativos.
Pelo que, e salvo o devido respeito o douto Acórdão, objecto do presente agravo, viola, designadamente, o disposto na alínea g) do nº 1 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, com a redacção dada, entretanto, pela Lei nº 107 D/2003 de 31 de Dezembro e artigo 105º, alínea a) do nº 1 do artigo 288º e nºs 1 e 2 do artigo 493º, alínea c) do artigo 494º e o artigo 495º do Código de Processo Civil.
Não se produziram contra alegações.
O Digno Magistrado do Ministério Público, em douto parecer, defendeu ser competente o foro comum.
Foram colhidos os vistos.
Conhecendo,
1- Competência dos Tribunais Administrativos.
2- Conclusões.
1- Competência dos Tribunais Administrativos.
1.1- É “thema decidendum” a fixação do tribunal competente em razão de matéria, nos termos do nº 1 do artigo 107º do CPC.
Há que ponderar, a montante, o pedido e a causa de pedir da acção onde foi excepcionada a incompetência absoluta.
Tendo a lide sido intentada em 12 de Janeiro de 2005 é aplicável o actual ETAF aprovado pela Lei nº 13/2002 de 19 de Fevereiro, na redacção da Lei nº 107-D/2003 de 31 de Dezembro.
A regra é a competência em razão da matéria ser distribuída por várias categorias de tribunais “que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre eles”, usando a noção do Prof. Antunes Varela (in “Manual de Processo Civil”, 2ª ed, 207).
A regra é ser competente o tribunal judicial (ou jurisdição comum), de acordo com o artigo 66º do CPC, que fixa o princípio da competência residual.
Aos tribunais administrativos – que são os que relevam na economia desta decisão – compete o julgamento dos litígios com origem na administração pública, “latu sensu”, ressalvadas excepções legais – cf. o artigo 1º do ETAF.
Mas sempre, e como atrás se acenou, considerando o “quid disputatum”, isto é a identidade das partes, os termos da pretensão (aqui incluindo o pedido e a “causa petendi”) – cf. Prof. Manuel de Andrade apud “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, 91.
Aqui o Autor pretende efectivar a responsabilidade extra contratual da Freguesia de BB por danos causados ao meio ambiente (destruição de uma linha de água, uma levada ou barroca, desviando águas pluviais, e outras, para o rio Zêzere; construção de ramais de esgotos a derivarem directamente para o rio Zêzere, sem qualquer tratamento; colocação de placas, induzindo em erro sobre a área da freguesia; provocar inundações do rio por implantação de obras em terreno de aluvião; contrariar pareceres da Reserva Agrícola Nacional, da Direcção Regional do Ambiente e do Ordenamento do Território e da CM da Covilhã; violação do Plano Director Municipal da Covilhã e o Regulamento Municipal das Edificações Urbanas e ao trânsito (construção de um muro e eliminação de um passeio pondo em risco a circulação automóvel na EN 506 A).
1.2- Nos termos do artigo 501º do Código Civil a responsabilidade civil do Estado e demais pessoas colectivas públicas era accionada nos tribunais judiciais quando o acto lesivo era praticado “no exercício de actividades de gestão privada”. Tratando-se do exercício de actividades de gestão pública, o ETAF que vigorava – DL nº 129/84, de 27 de Abril – consagrava a jurisdição administrativa.
Discutiam-se, então, os conceitos de actos de gestão pública e de actos de gestão privada, sendo, “grosso modo”, e respectivamente aqueles em que a administração intervém com as prerrogativas do poder público e a gestão privada se age, fundamentalmente, nos quadros do direito privado e a ele sujeito. (cf. v.g, o Prof. Marcello Caetano – “é gestão pública a actividade da Administração regulada pelo Direito Público e gestão privada a actividade da Administração que decorra sobre a égide do Direito Privado” – apud “Manual de Direito Administrativo, II, 1143; o Acórdão do STJ de 19 de Outubro de 1976 – BMJ 260-155 – “A gestão privada compreende a actividade do ente público subordinado à lei aplicável a quaisquer actividades análogas dos particulares; pelo contrário a gestão pública pressupõe o exercício do jus imperii”; o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 4 de Abril de 2006 – Pº 8/03 – “Actos de gestão pública são os praticados pelos órgãos e agentes da Administração no exercício de um poder público, isto é, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção; actos de gestão privada são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração em que esta aparece despida de poder e, portanto, numa posição de paridade com o particular ou particulares a que os actos respeitam, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular com inteira subordinação às normas de direito privado”; e ainda, v.g, os Acórdãos do Tribunal de Conflitos de 29 de Junho de 2004 – Pº 1/04 e de 12 de Janeiro de 1989 – Acórdãos Doutrinais do STA – 330-85).
Certo, porém, que, e como nota Georges Vedel, a distinção entre gestão pública e gestão privada apenas “definem uma directiva geral ou uma inspiração, mais do que um verdadeiro critério jurídico” (in “Droit Administratif”, 1968, 84; Prof. Vaz Serra, “Responsabilidade Civil do Estado e dos seus Órgãos ou Agentes” – BMJ 85-446 ss – RLJ 110-313; Prof. Afonso Queiró, RLJ, 121-237; Dr. J. Sinde Monteiro, “Actos de Gestão Pública – Erro de tratamento médico em Hospital” – CJ, XI, 4ª, 47 e ss; e Prof. Freitas do Amaral – “Direito Administrativo”, III, 493 – os actos “deverão qualificar-se como gestão pública se na sua prática ou no seu exercício forem de algum modo influenciados pela prossecução do interesse colectivo, ou porque o agente esteja a exercer poderes de autoridade ou porque se encontre a cumprir deveres ou sujeito a restrições especificamente administrativas, isto é, próprias dos agentes administrativos. E será gestão privada no caso contrário.”).
1.3- Era esta, no essencial, a jurisprudência e a doutrina produzidas durante a vigência da anterior redacção do ETAF (de 1984).
Actualmente, porém – e como se disse aplicável a esta lide, por em vigor desde 1 de Janeiro de 2004 – o artigo 4º nº1 alínea g) do ETAF (2002/2003) diz competir à jurisdição administrativa o julgamento das “questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa.”
Trata-se de procurar pôr termo à, muitas vezes difícil, inserção dos actos nos conceitos de gestão privada e de gestão pública e conceder em todos os casos de responsabilidade aquiliana assacada aos órgãos de Administração uma espécie de “foro especial”, subtraindo-os aos tribunais comuns.
Assim entende o Prof. João Caupers (in “Introdução ao Direito Administrativo”, 7ª ed, 2003, 265); o Cons. Santos Serra (in “A Nova Justiça Administrativa e Fiscal Portuguesa”, no Congresso Nacional e Internacional de Magistrados na VI Assembleia da Associação Ibero americana dos Tribunais de Justiça Fiscal e Administrativa”, México, 2006); Dr.s Mário Esteves de Oliveira e R. Esteves de Oliveira, “Código do Processo nos TA e ETAF – Anotados, I, 59; e Dr. Mário Araso de Almeida, in “Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, 4ª ed, 99).
Poderia, assim, e sem mais, concluir-se pela competência da jurisdição administrativa.
Mas deve ponderar-se que o nº 3 do artigo 212 da Constituição da República refere serem competentes os tribunais administrativos e fiscais para acções “que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.” (e, a final, o nº 1 do artigo 1º do ETAF).
Daí que o artigo 4º nº 1 g) da ETAF tenha de ser lido à luz desta norma constitucional, em termos de a responsabilidade delitual dos órgãos da administração só seja conhecida no foro administrativo se a comissão do acto ilícito estiver no âmbito de relações jurídicas administrativas.
Este conceito não se confunde com acto de gestão pública, sendo antes, um conceito quadro muito mais amplo.
Assim será, sob pena do ETAF de 2002 nada ter inovado, frustrando-se a intenção do legislador.
Precisemos então o conceito.
1.4- Crê-se que na base estará uma perspectiva jurídico material, tendo de existir uma controvérsia resultante de relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo.
É que podem assim existir relações jurídicas materialmente administrativas sem que tenham como titulares órgãos da administração.
Na opinião dos Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa – Anotada”, 3ª ed, 815) “Estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico administrativas (ou fiscais) (nº 3 in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: 1- as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); 2- as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico civil”. Em termos positivos, um litigio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.”
O Cons. Fernandes Cadilha (no seu recente “Dicionário de Contencioso Administrativo”, 2007, p. 117/118) refere: “Por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, intradministrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou inter orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa colectiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem. Por outro lado as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica (quanto às características de uma relação jurídica deste tipo, Gomes Canotilho, “Relações jurídicas poligonais, ponderação ecológica de bens e controlo judicial preventivo”, Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, nº1, Junho 1994, pags. 55 e ss.)
Em consequência, e ainda com este autor, o artigo 4º nº 1 alínea g) abrange todos os casos de responsabilidade civil extra contratual da Administração “independentemente de se tratar de danos resultantes de actos de gestão pública ou de gestão privada (neste sentido, avulta não apenas o elemento
histórico de interpretação, visto que essa possibilidade é expressamente mencionada na exposição de motivos, como o elemento literal, dado que a alínea g) do nº 1 deixou de fazer qualquer distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada.” e ainda, “as acções de responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime especifico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas públicas” (ob. cit. 115).
Aceita-se, sem quaisquer reservas que assim seja, mas só por ter sido propósito do legislador confiar à jurisdição administrativa os litígios emergentes da responsabilidade extra contratual da Administração (quiçá por os tribunais administrativos estarem mais vocacionados, e até tenham maior sensibilidade, para lidar com questões que envolvam aplicação do direito público e com a Administração pública) mas também por querer arredar de vez a velha dicotomia gestão pública – gestão privada, tantas vezes de difícil caracterização e com linhas de demarcação muito ténues, e fonte de conflitos doutrinários entre administrativos e civilistas.
Assim sendo, e no caso em apreço, tratando-se de ter de efectivar a responsabilidade aquiliana de uma Autarquia, e ainda estando em causa a aplicação de normas de direito administrativo, tal como ressalta da matéria articulada na petição, são competentes os tribunais administrativos.
2- Conclusões.
Pode, desde já, concluir-se:
a) Na vigência do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002 de 19 de Fevereiro, na redacção da Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro, os tribunais administrativos são os competentes para as acções destinadas a efectivar a responsabilidade civil extra contratual de uma Freguesia, “ex vi” da alínea g) do nº 1 do artigo 4º.
b) Irreleva para a determinação de competência que os actos praticados sejam qualificados como de gestão pública ou de gestão privada, apenas bastando estar-se em presença de uma relação jurídico administrativa.
c) A Relação jurídico administrativa é aquela em que pelo menos um dos sujeitos é a Administração, estando em causa um litígio regulado por normas de direito administrativo.
Nos termos expostos, acordam dar provimento ao agravo, revogando o Acórdão recorrido, mantendo-se o decidido na 1ª Instância.
Custas pela recorrida.
Lisboa, 8 de Maio de 2007

Sebastião Póvoas
Moreira Alves
Alves Velho