Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1008/14.4YRLSB.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: ARBITRAGEM INTERNACIONAL
ACÇÃO DE ANULAÇÃO
AÇÃO DE ANULAÇÃO
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 09/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática:
DIREITO ARBITRAL - ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA / ARBITRAGEM INTERNACIONAL / IMPUGNAÇÃO DA SENTENÇA ARBITRAL.
Doutrina:
- A. P. Pinto Monteiro, «Da Ordem Pública no Processo Arbitral», 663 e ss..
- Assunção Cristas e Mariana França Gouveia, «A violação da ordem pública como fundamento de anulação de sentenças arbitrais – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.7.2008, Proc. 1698/08», Cadernos de Direito Privado, n.º 29, Janeiro/Março 2010, 41 a 56.
- Baptista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, 3.ª ed., 1992, 259 e ss..
- Ferrer Correia, Direito Internacional Privado - Alguns Problemas, 1991, 126; Lições de Direito Internacional Privado, Vol. I.
- Lima Pinheiro, «Apontamento sobre a impugnação da decisão arbitral», R.O.A., Ano 2007 - Vol. III - Dez. 2007; Direito Internacional Privado, I, 2014, 659, 663, 666.
- M. Pereira Barrocas, «A Ordem Pública na Arbitragem», in Separata da Rev. da Ordem dos Advogados, Ano 74, Jan./Mar, .2014, 129 e ss.; Manual da Arbitragem, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, 682 e 687.
- Moura Ramos, Direito Internacional Privado e Constituição, ed. de 1991, 251 e 252, bem como a citação que o mesmo Autor faz de Ferrer Correia.
- Oliveira Ascensão, Parecer publicado na CJ, X, 4.º/23 e ss.
- Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, 1990, 725, 728.
- Robin de Andrade, «Decisão arbitral e ordem pública» (intervenção no Colóquio “A arbitragem em movimento”, realizado no Porto, em 27-09-2010), disponível em http://arbitragem.pt/noticias/2010/2010-09-27--ordem-publica.pdf .
- Sampaio Caramelo, «Anulação de sentença arbitral contrária à ordem pública», R.M.P., 126, ano 32, Abril-Junho 2011, 155-198; O reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras, Almedina, Coimbra, 2016, 211, 663.
Legislação Nacional:
LEI N.º 63/2011, DE 14-12 (LAV): - ARTIGOS 46.º, N.ºS 1 E 3, B), II), 9, 49.º.
Referências Internacionais:
RECOMENDAÇÕES DA ASSOCIAÇÃO DE DIREITO INTERNACIONAL (ILA) SOBRE A APLICAÇÃO DA ORDEM PÚBLICA COMO MOTIVO DA RECUSA DE RECONHECIMENTO OU DE EXECUÇÃO DE DECISÕES ARBITRAIS INTERNACIONAIS (ADOPTADAS EM 2 A 6 DE ABRIL DE 2002, NA 70.ª CONFERÊNCIA DA ASSOCIAÇÃO, EM NOVA DELI), ACOLHIDAS PELO ICCA (INTERNATIONAL COUNCIL FOR COMMERCIAL ARBITRATION).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 28-06-2001, P. N.º 1846/01, DE 8-05-2003, P. N.º 1123/03 E, DE 8-07-2003, P. N.º 03B2106.
-DE 22-09-2011, P. N.º 1772/06.4TVLSB.L1.S1, DE 14-03-2013, P. N.º 7328/10.0TBOER.L1.S1, E DE 23-10-2014, P. N.º 1036/12.4YRLSB.S1.
-DE 10-11-2016, P. N.º 1052/14.1TBBCL.P1.S1.
-DE 14/03/2017, P. N.º 103/13.1YRLSB.S1.
Jurisprudência Internacional:
ACÓRDÃOS DO TJUE:

-DE 28-03-2010 (P. C-7/98 - KROMBACH), DE 16-07-2015 (P. C-681/13 - DIAGEO BRANDS) E CASO ECO SWISS CHINA TIME, LTD. VS. BENETTON.
Sumário :
1 - Aos termos da acção de anulação de acórdão proferido no âmbito de arbitragem que, embora realizada em Portugal, deva considerar-se internacional, por ter posto em jogo interesses do comércio internacional, são aplicáveis as disposições da LAV (Lei 63/2011) relativas à arbitragem interna, podendo tal decisão ser anulada se o tribunal estadual competente verificar que o seu conteúdo ofende os princípios da ordem pública internacional do Estado português.

2 - A ordem pública internacional tem como características: (i) a imprecisão; (ii) o cariz nacional das suas exigências (que variam de Estado para Estado, segundo os conceitos dominantes em cada um deles); (iii) a excepcionalidade (por ser um limite ao reconhecimento de uma decisão arbitral putativamente estribada no princípio da autonomia privada); (iv) a flutuação e a actualidade (intervém em função das concepções dominantes no tempo do julgamento, no país onde a questão se põe); e (v) a relatividade (intervém em função das circunstâncias do caso concreto e, particularmente, da intensidade dos laços entre a relação jurídica em causa e o Estado português).

3 - Trata-se, assim, de um conceito indeterminado que, como os demais, em qualquer ordem jurídica, terá de ser concretizado pelo juiz no momento da sua aplicação, tomando em conta as circunstâncias particulares do caso concreto; porém, a sua actuação positiva sobre o resultado obtido pela decisão arbitral não comporta qualquer juízo sobre a adequação da aplicação nela feita do direito tido por aplicável: a acção preclusiva da ordem pública internacional incide unicamente sobre os efeitos jurídicos que, para o caso, defluem da decisão.

4 - O controlo que o juiz tem de fazer para aquilatar da ofensa da ordem pública internacional do Estado não se confunde com revisão: o juiz não julga novamente o litígio decidido pelo tribunal arbitral para verificar se chegaria ao mesmo resultado a que este chegou, apenas deve verificar se a sentença, pelo resultado a que conduz, ofende algum princípio considerado como essencial pela ordem jurídica do foro; ainda assim, quando o controlo se destina a verificar se o resultado da decisão é manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado, poderá não bastar a análise do dispositivo da sentença por este ser, em geral, neutro, se desligado da vistoria ao raciocínio até ele percorrido pelo tribunal.

5 - Mesmo que não seja possível determinar, a priori, o conteúdo da cláusula geral da ordem pública internacional, é latamente consensual a ideia de que o mesmo é enformado pelos princípios estruturantes da ordem jurídica, como são, desde logo, os que, pela sua relevância, integram a Constituição em sentido material, pois são as normas e princípios constitucionais, sobretudo os que tutelam direitos fundamentais, que não só enformam como também conformam a ordem pública internacional do Estado, o mesmo sucedendo com os princípios fundamentais do Direito da União Europeia e ainda com os princípios fundamentais nos quais se incluem os da boa-fé, dos bons costumes, da proibição do abuso de direito, da proporcionalidade, da proibição de medidas discriminatórias ou espoliadoras, da proibição de indemnizações punitivas em matéria cível e os princípios e regras basilares do direito da concorrência, tanto de fonte comunitária, quanto de fonte nacional.

6 - Considerando, porém, que os aludidos princípios possuem um conteúdo normativo amplo ou indeterminado, a invocação da sua violação, como fundamento da anulação de sentença arbitral, terá de ser sujeito a acentuadas restrições e daí que a contrariedade à ordem pública internacional do Estado português, a que alude o art. 46.º, n.º 1, 46º, nº 3, b), ii), da LAV, pressuponha que essa decisão conduza a um resultado intolerável e inassimilável pela nossa comunidade, por constituir um patente, certo e efectivo atropelo grosseiro do sentimento ético-jurídico dominante e de interesses de primeira grandeza ou princípios estruturantes da nossa ordem jurídica.

Decisão Texto Integral:

Revista nº 1008/14.4YRLSB.L1.S1

                       

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

           

 “AA SA e BB SA instauraram a presente acção contra CC SA (adiante abreviadamente denominada sociedade concessionária), BANCO DD SA, BANCO EE SA, BANCO FF, BANCO GG SA (anteriormente denominada por “BANCO HH”), BANCO II (anteriormente denominada BANCO JJ SA), BANCO KK (anteriormente denominado BANCO LL), BANCO MM e BANCO NN, visando a anulação do acórdão proferido no âmbito da arbitragem realizada em Lisboa e requerida pelas aqui AA e outros (entre os quais a OO SA) contra a R sociedade concessionária e outros, com o objectivo de dirimir o litígio resultante da divergência de interpretação das partes sobre o conteúdo e alcance da obrigação de aportação de fundos próprios, através da realização de prestações acessórias, no contexto da concessão do Túnel do ….

Mediante tal acórdão, fora decidido (com um voto de vencido) condenar as AA a pagar à R CC, a título de prestações acessórias, as quantias correspondentes à diferença entre o valor que já haviam pago a tal título e o valor máximo que estavam obrigadas a pagar, acrescidas de juros sobre os valores em causa desde 17-05-2012 até à data de pagamento, com os seguintes montantes: € 25.319.314,41 (a A AA) e € 468.876,19 (a A BB).

Para alicerçar a respectiva pretensão, as AA invocaram, em síntese, a falta de fundamentação da decisão arbitral bem como a sua violação da ordem pública do Estado português, por constituir um grave desequilíbrio na regulação dos interesses das partes e uma intolerável violação dos princípios da boa-fé, da liberdade de estabelecimento e de iniciativa económica, do abuso de direito e da autonomia da vontade, ao impor soluções desproporcionais e desequilibradas atentatórias do princípio da justiça material e implicar a atribuição integral do risco de frustração de uma actividade a uma das partes, uma responsabilidade insuportável dos accionistas que estes jamais assumiram expressamente e a desconsideração ilegítima da personalidade da sociedade concessionária.

As RR BANCO DD, BANCO NN e BANCO EE, adiante conjuntamente identificadas como “bancos”, deduziram oposição, defendendo, em suma, que a fundamentação da acção não é apta a consubstanciar qualquer ofensa dos princípios de ordem pública internacional do Estado português ou falta de fundamentação, esgotando-se na discordância relativamente à decisão arbitral. A essa oposição aderiram as RR BANCO FF, BANCO II, BANCO KK e BANCO MM.

A Relação de …, julgando a acção improcedente, absolveu as RR do pedido.

As AA interpuseram recurso desse acórdão da Relação, que designaram de apelação mas que foi recebido neste Tribunal como sendo de revista, cujo objecto delimitaram com as seguintes conclusões:

«A. O presente recurso deve ser admitido como de apelação, em razão de o Tribunal a quo ter julgado a ação de anulação em primeira instância.

B. Caso assim não se entenda, por aplicação do princípio da equiparação das decisões arbitrais às decisões judiciais, sempre deve o presente recurso ser admitido como de revista, não se aplicando, nesta hipótese, a limitação decorrente da chamada “dupla, conforme”;

C. A decisão arbitral objeto de impugnação no âmbito da ação de anulação viola o princípio da boa-fé ao impor uma solução desequilibrada e injusta ao exigir aos promotores que, não obstante a frustração do projeto, realizem os seus fundos próprios com o único objetivo de minorar as perdas dos bancos financiadores, eximindo-os, assim, em certa medida, do risco que assumiram e que não acautelaram;

D. O princípio da boa-fé impõe que se alcance uma solução justa, sobretudo quando a mesma é imposta pelo tribunal face à ausência de regulamentação expressa das partes contratantes. A boa-fé exige que as soluções impostas sejam efetivamente avaliadas de acordo com as consequências que as mesmas acarretam;

E. A decisão arbitral objeto de impugnação no âmbito da ação de anulação viola o princípio da autonomia privada ou da autonomia da vontade;

F. A decisão arbitral, ao sujeitar as Autoras ao cumprimento de uma obrigação que não declararam, quando essa declaração expressa se revelaria essencial, restringe a sua liberdade contratual.

G. Trata-se de uma obrigação imposta ou ditada sem correspondência na vontade expressa, declarada, do contraente. A decisão arbitral modela o conteúdo da obrigação sem correspondência com a vontade expressa do contraente, quando a mesma é, ou devia ser, fundamental à sua existência. Nesta medida, a decisão arbitral viola o princípio da autonomia privada ou da autonomia da vontade;

H. Ao contrário do que é afirmado no acórdão recorrido, as Recorrentes não pugnam por uma solução em que todos perdem muito, menos elas, que perdem pouco ou nada.

I. A decisão arbitral conduziu a um resultado manifestamente desequilibrado, ao condenar os promotores no cumprimento da obrigação de realizar as prestações acessórias, apesar de o projeto se ter impossibilitado;

J. Uma vez concluído que o quadro contratual não previa uma resolução para o problema, não se poderia ter chegado ao desequilíbrio manifesto pela via da integração de lacunas.

K. A sentença arbitral violou, assim, princípios da ordem pública internacional do Estado Português, como o princípio da boa-fé e o princípio da autonomia da vontade, sendo, por essa razão, anulável em face do disposto no artigo 46.°, n." 3, al. b), ii) da LAV;

L. Os princípios da boa-fé e da proporcionalidade, assim como o princípio da autonomia da vontade, integram a ordem pública internacional do Estado Português, e que, uma vez violados, acarretam a anulabilidade da decisão proferida.

M. A sentença arbitral constitui entende-se, pelas razões expostas, uma violação inadmissível da liberdade de iniciativa económica, expressa no artigo 61º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, entendida como a liberdade de reger livremente a organização em que assenta a empresa constituída para a prossecução de uma atividade.».

As RR recorridas (donas de bancos) apresentaram contra-alegações.

*

A este Tribunal impõe-se o enquadramento fáctico considerado fixado e relevante pela Relação na apreciação da decisão arbitral, entre o qual emergem os seguintes elementos:

1. - O Caso Base integrado no Contrato de Concessão contempla o «Equity Bridge Facility» do «Facility Agreement» e a «Part D Loan» do «EIB Facility Agreement»;

- O Caso Base integrado no Contrato de Concessão considera o «Equity Bridge Facility» do «Facility Agreement» e a «Part D Loan» do «EIB Facility Agreement» como Fundos Próprios, para efeitos da relação entre Fundos Próprios e Fundos Alheios.

2. Do Caso Base integrado no Contrato de Concessão resulta que o reembolso da «Equity Bridge Facility» seria feito com dinheiros pagos a título de Prestações Acessórias (nele designadas como «Prestações Suplementares»).

3. Do Caso Base integrado no Contrato de Concessão resulta que o reembolso da «Part D Loan» do «EIB Facility Agreement» seria feito com dinheiros pagos a título de Prestações Acessórias.

4. Do Caso Base resulta que, no final de cada um dos semestres do período de construção, as percentagens de Fundos Próprios e de Fundos Alheios seriam as seguintes:

Fundos Próprios

Fundos Alheios
30-06-200818,80%81,20%
31-12-200817,56%82,44%
30-06-200920,55%79,45%
31-12-200917,66%82,34%
30-06-201016,61%83,39%
31-12-201016,14%83,86%
30-06-201115,89%84,11%
31-12-201115,73%84,27%
30-06-201215,52%84,48%

5. O Caso Base integrado no Contrato de Concessão é uma previsão do desenvolvimento financeiro do projecto em causa, pressupondo a execução desse projecto.

6. Os valores dos Fundos Próprios e os Fundos Alheios da CC (tal como definidos no Caso Base integrado no Contrato de Concessão) e a relação entre os mesmos, desde 31 de maio de 2008 até 31 de maio de 2012, foram os seguintes (valores em €):

PrópriosAlheiosPrópriosAlheios
27-05-2008500.0000,00100%0,0%
17-06-20084.500 0000,00100%0,0%
30-06-20086.251.888,324.260.700,4259,5%40,5%
31-10-200810.101.888,338.510.700,4254,3%45,7%
04-02-200913.601.888,338.510.700,4261,5%38,5%
31-03-200914.882.914,8119.069.850,4243,8%56,2%
31-07-200915.829.036,3928.331.205,9935,8%64,2%
21-12-200918.112.380,7241.270.157,0230,5%69,5%
30-12-200918.382.380,7241.270.157,0230,8%69,2%
31-12-200918.612.380,7241.270.157,0231,1%68,9%
30-11-201020.637.380,7241.270.157,0233,3%66,7%
02-12-201023.112.380,7241.270.157,0235,9%64,1%
18-02-201123.337.380,7241.270.157,0236,1%63,9%
25-02-201223.612.380,7241.270.157,0236,4%63,6%
31-05-201126.912.380,7241.270.157,0239,5%60,5%
01-06-201129.612 380,7241.270.157,0241,8%58,2%
21-05-201240.899.761,4441.270.157,0249,8%50,2%
31-05-201240.899.761,4441.270.157,0249,8%50,2%

7. Nesse período os fundos próprios dividiram-se do seguinte modo (valores em €):

Equity Bridge

Facility

Parte  D

Loan

Capital

Social

Prestações

Acessórias

Total
31-05-20080,000,00500.0000,00500.000
17-06-20084.000.0000,00500.0000,004.500.000
30-06-20085.000.000751.888,32500.0000,006.251.888,32
31-10-20088.100.0001.501.888,33500.0000,0010.101.888,33
04-02-200911.600.0001.501.888,33500.0000,0013.601.888,33
31-03-200911.600.0002.782.914,81500.0000,0014.882.914,81
31-07-200911.600.0003.729.036,39500.0000,0015.829.036,39
21-12-200911.600.0006.012.380,72500.0000,0018.112.380,72
30-12-200911.600.0006,012.380,72500.000270.00018.382.380,72
31-12-200911.600.0006.012.380,72500.000500.00018.612.380,72
30-11-201011.600.0006.012.380,72500.0002.525.00020.637.380,72
02-12-201011.600.0006.012.380,72500.0005.000.00023.112.380,72
18-02-201111.600.0006.012.380,72500.0005.225.00023.337.380,72
25-02-201211.600.0006.012.380,72500.0005.500.00023.612.380,72
31-05-201111.600.0006.012.380,72500.0008.800.00026.912.380,72
01-06-201111.600.0006.012.380,72500.00011.500.00029.612.380,72
21-05-201211.600.0006.012.380,72500.00022.787.380,7240.899.761,44
31-05-20121.111.731,80576.220,24500.00038.711.809,4040.899.761,44

8. Os fundos alheios (não incluindo neles a Equity Bridge Facility e a Part D Loan) dividiram-se do seguinte modo (valores em €):

Long Term

Facility A

Long Term

 Facility B

    Part A

     Loan

      Part A

 Loan

Total

31-05-20080,000,000,000,000,00
17-06-20080,000,000,000,000,00
30-06-20080,000,001.746.887,172.513.813,254.260.700,42
31-10-20080,000,003.489.387,175.021.313,258.510.700,42
04-02-20090,000,003.489.387,175.021.313.258.510.700,42
31-03-20093.300.0000,006.465.638,679.304.211,7519.069.850,42
31-07-20093.300.0003.900.0008.663.794,4512.467.411,5428.331.205,99
21-12-20093.300.0003.900.00013.968.764,3720.101.392,6541.270.157,02
30-12-20093.300.0003.900.00013.968.764,3720.101.392,6541.270.157,02
31-12-20093.300.0003.900.00013.968.764,3720.101.392,6541.270.157,02
30-11-20103.300.0003.900.00013.968.764,3720.101.392,6541.270.157,02
02-12-20103.300.0003.900.00013.968.764,3720.101.392,6541.270.157,02
18-02-20113.300.0003.900.00013.968.764,3720.101.392,6541.270.157,02
25-02-20123.300.0003.900.00013.968.764,3720.101.392,6541.270.157,02
31-05-20113.300.0003.900.00013.968.764,3720.101.392,6541.270.157,02
01-06-20113.300.0003.900.00013.968.764,3720.101.392,6541.270.157,02
21-05-20123.300.0003.900.00013.968.764,3720.101.392,6541.270.157,02
31-05-20123.300.0003.900.00013.968.764,3720.101.392,6541.270.157,02

9. As Demandantes OO contrataram com o BANCO PP os dois financiamentos referidos nos n.°s 102 a 106 dos «Factos não Controversos» ([1]), que vencem juros nos termos aí referidos;

- Nos termos desses contratos, as Demandantes OO estão obrigadas ainda a pagar ao banco financiador comissões de gestão, à taxa anual de 0,5% sobre o capital financiado;

- Sobre o valor dos financiamentos, o dos respectivos juros e o da comissão de gestão incide imposto de selo, às taxas legais;

- A execução das garantias bancárias, nomeadamente por ter levado a um aumento do endividamento, numa óptica consolidada, do grupo societário que as Demandantes OO integram, contribuiu tendencialmente para o agravamento do custo do financiamento do mesmo grupo societário;

- As Demandantes OO partilham os custos dos financiamentos obtidos por uma das sociedades holding do grupo que integram de que beneficiam.

10. Por carta datada de 11 de julho de 2012, a Demandada CC desencadeou arbitragem contra o Concedente com o objectivo de, além do mais, ver declarado (i) o incumprimento definitivo pelo Concedente da obrigação de proceder à reposição do equilíbrio financeiro do Contrato de Concessão e, subsidiariamente, (ii) a impossibilidade definitiva de cumprimento das obrigações emergentes do Contrato de Concessão, por motivos não imputáveis à Concessionária e (iii) a resolução do Contrato de Concessão;

11. Por despacho do Secretário de Estado das Finanças e do Secretário de Estado das Obras Públicas de 17 de junho de 2013, com o n.° 7841-C/2013, o Estado decidiu rescindir o Contrato de Concessão";

12. Em 31.12.2011, os contratos de cobertura de cobertura de risco de taxa de juro celebrados pela Demandada CC tinham um valor negativo potencial de 79.042.179,007';

13. Os valores reclamados à Demandada CC pelos Hedging Banks em agosto de 2012 com base na «early termination» dos contratos de cobertura de risco de taxa de juro somavam € 98.159.731,12.

*

Cumpre decidir.

A decisão objecto de impugnação por via da presente ação foi proferida no âmbito de arbitragem que, embora realizada em Lisboa, deve considerar-se internacional, por ter posto em jogo interesses do comércio internacional, atendendo à localização dos interesses de uma parte das empresas (bancos financiadores) nela envolvidas. Por isso, nos termos do art. 49º da LAV (Lei 63/2011), são-lhe aplicáveis as disposições desta lei relativas à arbitragem interna.

Não obstante essa natureza (internacional) da arbitragem, flui, necessariamente, do antecedentemente relatado que o litígio que lhe foi submetido tinha uma conexão substancial quase total – não meramente intensa – com o território nacional, onde a mesma foi localizada. As recorrentes visaram a anulação do acórdão proferido no âmbito dessa arbitragem, invocando, para estribar essa sua pretensão: i) a falta de fundamentação da decisão; ii) e a violação pela mesma da ordem pública do Estado Português, por ofender os diversos princípios arrolados.

Como se verifica pela leitura das conclusões delimitadoras do objecto do recurso, a pretensão das recorrentes circunscreve-se, agora, apenas ao segundo desses fundamentos cujo preenchimento as mesmas se propuseram demonstrar com o putativo atropelo dos princípios da boa-fé, da proporcionalidade, da autonomia da vontade e da liberdade de iniciativa económica e de estabelecimento.

Perante os termos da pretensão anulatória, que constitui o objecto deste recurso de revista, constata-se que, realmente, o art. 46º, nº 3, b), ii), da LAV, estatui que a sentença arbitral pode ser anulada se o tribunal estadual competente verificar que o conteúdo da sentença ofende os princípios da ordem pública internacional do Estado português.

O princípio da autonomia privada reconduz-se a uma permissão genérica de conduta a todos os sujeitos da ordem jurídica, possibilitando-lhes estabelecer os efeitos jurídicos que se irão repercutir na sua esfera jurídica, através da liberdade de celebração do contrato e de fixação de conteúdo do mesmo. Porém, a constatação de ter havido um abuso ou um aproveitamento excessivo da autonomia privada implica o reconhecimento de que o contrato não assentou numa igualdade jurídico-económica, ou seja, afinal, em tal autonomia, o que conduz à contenção da liberdade contratual, mediante a intervenção do Estado, no interesse colectivo, munido dos comandos resultantes, tanto da falada cláusula da “ordem pública”, como dos da boa-fé e dos “bons costumes”.

Ora, a constatação de a arbitragem, em si mesma, ter como corolário o princípio da autonomia privada – que rege as relações dos particulares entre si, fundadas na sua igualdade jurídica e na sua autodeterminação – não colide com a aplicação de tal cláusula ao resultado de uma decisão arbitral com que se tenha pretendido solucionar um litígio emergente de uma situação da vida real, porquanto a reserva por ela imposta visa, precisamente, estabelecer limites a essa autonomia face a outros princípios ou valores que o ordenamento quer preservar. Com efeito, a ordem pública é um elemento limitador da liberdade das partes em contratar.

Deparamos, pois, com uma cláusula geral cuja actuação, à partida, não pode ser arredada apenas por estar em causa a “confirmação” de uma decisão com origem na autonomia privada, tanto quanto ao seu desencadeamento como ao mecanismo nela usado para solucionar o litígio que lhe foi submetido.

Com efeito, uma interpretação que fosse ao ponto de, quaisquer que fossem os particulares contornos dum caso em apreciação, considerar vedada a intervenção da reserva da ordem pública internacional em relação ao resultado da aplicação do contratualmente estipulado pelas partes no âmbito da respectiva autonomia conduzir-nos-ia, na prática, não apenas à proscrição da citada norma – porque a mesma, evidentemente, só se justifica para limitar, precisamente, a autonomia privada diante de outros princípios ou valores que o ordenamento jurídico quer preservar ([2]) – como à eventual afronta de princípios e valores fundamentais plasmados na nossa Constituição, de cujo primado já decorre a informação e a conformação de tal reserva ([3]).

Trata-se, portanto, de um conceito indeterminado, que, como os demais, em qualquer ordem jurídica, terá de ser concretizado pelo juiz no momento da sua aplicação, tomando em conta as circunstâncias particulares do caso concreto ([4]).

Estão profusamente exibidos nestes autos, nomeadamente na decisão recorrida, os múltiplos contributos, abstractamente, oferecidos pela jurisprudência ([5]) e pela doutrina na difícil tentativa de atenuar a vaguidade e a fluidez do conceito da “ordem pública internacional”. Não se justificando a inútil reprodução desses contributos, salientaremos apenas alguns dos pontos desse tema com mais estreita pertinência ao caso concreto, com a consciência de que se procura, não uma definição mas, sim, o estabelecimento, com valor aproximativo, de critérios de orientação.

Contudo, pensamos não poder ser dispensada a referência às recomendações da Associação de Direito Internacional (ILA) ([6]), para a atenção dos tribunais estaduais, a fim de facilitar a consistência e previsibilidade na interpretação e aplicação da ordem pública, por reconhecer a importância da finalidade na arbitragem, mas também o papel da ordem pública na defesa de princípios fundamentais. De entre tais recomendações, destacamos as seguintes:

- A finalidade das decisões obtidas no âmbito da arbitragem comercial internacional deve ser respeitada excepto em circunstâncias excepcionais, que podem advir, em particular, de o reconhecimento ou a execução da sentença arbitral internacional ser contra a ordem pública internacional (1, a e b).

- A expressão “ordem pública internacional” é usada nas recomendações para designar o conjunto de princípios e regras reconhecidas por um estado, que, pela sua natureza, pode impedir o reconhecimento ou a execução de uma sentença arbitral proferida no âmbito da arbitragem comercial internacional, quando o reconhecimento ou a execução da referida sentença implique a sua violação por conta do procedimento nos termos do qual ele foi processado (ordem pública processual internacional) ou de seu conteúdo (ordem pública substancial internacional) (1, c).

- A ordem pública internacional de qualquer estado inclui: (i) os princípios fundamentais, relativos à justiça ou moral, que o estado deseja proteger mesmo quando ele não está directamente em causa (ii) regras concebidas para servir os interesses políticos, sociais ou económicos essenciais do estado, sendo estas conhecidas como “lois de police” ou “regras de ordem pública” (1, d).

- Um exemplo de um princípio fundamental substantivo é a proibição de abuso de direito (1, e).

- A fim de determinar se um princípio que faça parte do seu sistema jurídico deve ser considerado suficientemente fundamental para justificar a recusa do reconhecimento de uma sentença, o tribunal deve levar em conta, por um lado, o carácter internacional do caso e sua conexão com o sistema jurídico do foro e, por outro lado, a existência ou não de um consenso entre a comunidade internacional no que se refere o princípio em questão (convenções internacionais podem evidenciar a existência de tal consenso) 2(b).

- O tribunal só deve recusar o reconhecimento de uma sentença que poria em prática uma solução proibida por uma regra de ordem pública, formando parte do seu próprio sistema jurídico quando: (i) o escopo da referida regra se destina a abranger a situação em apreço; e (ii) o reconhecimento da sentença manifestamente perturbaria essenciais interesses políticos, sociais ou económicos, protegidos pela regra (3, b).

- Quando a violação de uma regra de ordem pública do foro não poder ser verificada através da mera revisão da sentença, só se tornando aparente após um exame minucioso dos factos do caso, o tribunal deve ser autorizado a realizar tal reavaliação dos factos (3, c).

Em termos muito genéricos, o conceito da ordem pública internacional caracteriza-se pela sua já referida imprecisão, pelo cariz nacional das suas exigências – que variam de estado para estado, segundo os conceitos dominantes em cada um deles –, pela excepcionalidade – por ser um limite a uma decisão arbitral putativamente estribada no princípio da autonomia privada –, pela flutuação e pela actualidade – intervém em função das concepções dominantes no tempo do julgamento, no país onde a questão se põe – e pela relatividade – intervém em função das circunstâncias do caso concreto e, particularmente, da intensidade dos laços entre a relação jurídica em causa e o Estado português.

Realçaremos a importância deste último vector, também reconhecida nas citadas recomendações da ILA (2-b), com o apoio do pensamento de Baptista Machado ([7]):

«Da função assinalada à o. p. podemos já concluir que ela se flecte à curvatura concreta da situação, que leva em si uma medida que varia conforme as circunstâncias concretas do caso.

Ora, segundo a doutrina dominante, a dita excepção ou reserva vê-se desde logo balizada na sua intervenção pelo facto de o juiz a não poder fazer valer senão “quando uma ligação estadual de intensidade 'primária' torne efectiva a dissonância entre a lex fori e a lei estrangeira” (GUTZWILLER). O caso deveria apresentar uma ligação suficientemente estreita com a ordem do foro para que se justificasse a intervenção da ordem pública. É este também um dos importantes ensinamentos de KAHN. A existência de uma conexão com o Estado local (“Binnenbeziehung”, “Inlandsbeziehung”) importaria de maneira decisiva para a intervenção da ordem pública.

Este ponto de vista merece ser acolhido, em princípio. Como afirma NIEDERER, a questão da exigência ou não exigência de uma conexão do caso com a lei do foro depende em última análise de se identificar o objecto tutelado pela ordem pública, os princípios e ideais da própria ordem jurídica, com o conceito de uma justiça absoluta em si ou com o conceito de uma justiça apenas relativa. Partindo do único suposto razoável “de que nenhum humano sentimento jurídico, por mais perfeito que seja, pode valer como expressão da justiça divina absoluta” (NIEDERER), de que, portanto, esse sentimento jurídico depende do tempo, lugar e outras circunstâncias; deverá afirmar-se a exigência de uma ligação da hipótese à ordem jurídica do foro como pressuposto da intervenção da o. p.

Com efeito, é somente então, dada essa conexão com a lex fori, seja ela qual for (nacionalidade ou domicílio/de uma das partes, etc), que o caso virá a ter impacto no ordenamento da lex fori, enquanto, ordem jurídica efectiva (…); ganhando, assim, aquela divergência entre, a lex fori e a lei estrangeira relevância decisiva, em virtude de se poder vir a criar uma situação jurídica que, como corpo estranho e inassimilável, ficaria a “poluir” o dito ordenamento do foro.

Por outro lado, reconhecida a relatividade do conceito de justiça, já estará certo exigir do juiz que renuncie ao seu próprio sentimento jurídico, local e temporalmente condicionado, sempre que a hipótese não apresente qualquer relação com as circunstâncias de lugar e de tempo nas quais e das quais nasceu, afinal, tal conceito de justiça.».

Como se vê, o conceito indeterminado, caracterizado como noção funcional, opera, simplesmente, ao nível do caso concreto – e em função dos seus particularismos – e a sua actuação positiva sobre o resultado obtido pela decisão arbitral não comporta qualquer juízo sobre a adequação da aplicação nela feita do direito tido por aplicável: a acção preclusiva da ordem pública internacional incide unicamente sobre os efeitos jurídicos que, para o caso, defluem da decisão.

 Depois, não se confunde com revisão o controlo que o juiz tem de fazer para aquilatar da ofensa da ordem pública internacional do Estado do foro: o juiz, ao apreciar a sentença arbitral em questão, não julga novamente o litígio decidido pelo tribunal arbitral para verificar se chegaria ao mesmo resultado a que este chegou, apenas deve verificar se tal sentença, pelo resultado a que conduz, ofende algum princípio considerado como essencial pela ordem jurídica do foro: «O tribunal estadual que anule a sentença arbitral não pode conhecer do mérito da questão ou questões por aquela decididas», como estatui o art. 46º nº 9 da LAV ([8]), pelo que, a apreciação de uma alegada violação de ordem pública internacional, não podendo envolver um reexame do mérito da decisão, deve limitar-se, numa avaliação prima facie, aos casos de aparente ou manifesta contradição com os princípios que integram essa ordem, ponderando a situação que a decisão estabelece e não os fundamentos em que esta assenta.

Ainda assim, convém esclarecer que, tratando-se de se verificar se o resultado da decisão é manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado, poderá não bastar a análise do dispositivo da sentença, por este ser, em geral, neutro, se desligado da vistoria ao raciocínio até ele percorrido pelo Tribunal. Tendo a aludida contrariedade natureza, necessariamente, substancial, não se alcança a sua constatação sem que tal exame passe também pelo raciocínio trilhado até ao dispositivo da sentença – o que, evidentemente, não se identifica com um novo julgamento do litígio, ou um reexame dos respectivos fundamentos de facto e de direito. É o que, afinal, também sugere a ILA ([9]), como acima se viu (recomendação 3-c) ([10]).

Por fim, está pacificamente adquirido que a cláusula geral da ordem pública internacional veicula princípios e normas fundamentais em que se baseia a ordem jurídica, económica, social e ética da comunidade (do foro), fazendo actuar os valores aos mesmos imanentes de modo a impedir a consagração de uma determinada decisão arbitral.

Contudo, não sendo possível determinar, a priori, o conteúdo dessa cláusula ([11]), manifestam-se algumas nuances na formulação do conjunto de regras que a delimitam, assim como em relação à interpretação sobre o grau de contrariedade do que resultaria da “ratificação” da decisão arbitral à ordem pública internacional do Estado impetrado, até porque, como se disse, só perante as concretas circunstâncias do caso se poderá aferir a intolerabilidade da violação de um determinado princípio ou norma fundamental. E, realmente, tratando-se de um conceito abstracto, a avaliação a incidir sobre tais princípios e normas fundamentais deve centrar-se mais na sensibilidade axiológica do que na tentativa da sua evidenciação positiva ([12]).

De todo o modo, é latamente consensual a ideia de que o conteúdo dessa cláusula é enformado pelos princípios estruturantes da ordem jurídica, como são, desde logo, os que pela sua relevância, integrem a constituição em sentido material, pois são as normas e princípios constitucionais, sobretudo, os que tutelam direitos fundamentais, que não só informam mas também conformam a ordem pública internacional: a Constituição reflecte os valores mais importantes que conformam o plano estrutural ou a ordem jurídica fundamental de uma comunidade nacional, pelo que é nas normas de hierarquia constitucional que repousa a ordem pública internacional do Estado, como já anotámos supra ([13]).

O mesmo sucede, entre nós, com os princípios fundamentais de Direito da União Europeia. E são, ainda, referenciados como integrando a ordem pública internacional de cada Estado, princípios fundamentais como os da boa-fé, dos bons costumes, da proibição do abuso de direito, da proporcionalidade, da proibição de medidas discriminatórias ou espoliadoras, da proibição de indemnizações punitivas em matéria cível ([14]) e os princípios e regras basilares do direito da concorrência, tanto de fonte comunitária ([15]) quanto de fonte nacional ([16]). Porém, dado possuírem um conteúdo normativo amplo ou indeterminado – ainda que mais nuns casos do que noutros –, a invocação da sua violação, como fundamento da anulação de sentença arbitral, terá de ser sujeito a acentuadas restrições ([17]).

E é esse o sentido interpretativo que, de um modo ou outro, vinha e vem sendo apontado, em geral, pela jurisprudência ([18]) e pela doutrina. Para além dos que já foram sendo referenciados ([19]), vejamos alguns outros exemplos:

Baptista Machado: «resultado intolerável [traduzido, no plano psicológico, por uma reacção fortemente desaprovadora do seu espírito de jurista, formado no estudo do direito interno], “quer do ponto de vista do comum sentimento ético-jurídico ('bons costumes'), quer do ponto de vista dos princípios fundamentais do direito português: algo de inconciliável com as concepções jurídicas que alicerçam o sistema” [Cfr. FERRER CORREIA, Anteprojecto de 1951, nota ao art. 34.° («Boletim do Min. da Justiça», nº 24)]» ([20]).

Ferrer Correia: «(…) produziria um resultado absolutamente intolerável para o sentimento ético-jurídico dominante, ou lesaria gravemente interesses de primeira grandeza da comunidade local» ([21]); «(…) um resultado intolerável» ([22]).

Oliveira Ascensão: [princípio que] «aos olhos da comunidade nacional será considerado como essencial para a vida colectiva (…) valorações económicas, sociais e políticas de que a sociedade não pode prescindir, mas operando em cada caso concreto para afastar os resultados chocantes eventualmente advenientes da aplicação da lei estrangeira» ([23]).

Robin de Andrade: «(…) se essa violação for patente, ou aparente, na própria sentença» ([24]).

As linhas orientadoras com que nos balizamos, sinopticamente expostas, permitem agora afirmar que a sentença arbitral, que constitui o objecto desta acção, não conduz a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado português, pelo que deve ser recusado o pedido da sua anulação, razão pela qual deve ser confirmada a decisão recorrida. Concretizando:

Como se disse, não se cuida aqui de especular sobre uma hipotética divergência entre as regras de direito que foram utilizadas na decisão arbitral e as que seriam aplicadas pelos tribunais estaduais ou de aquilatar da adequação da fundamentação de facto ou de direito por estes usada na concretização das estatuídas consequências do (declarado) incumprimento pelas AA da obrigação de aportação de fundos próprios – através da realização de prestações acessórias –, não obstante o colapso do projecto (construção) em causa, nem, também, de aferir da bondade do entendimento expresso na questionada decisão de que, tendo em conta o fim e o papel de cada uma das parceiras na economia do contrato, a solução nela definida procurou o equilíbrio das prestações ou a justiça contratual e corresponderia ao que as contraentes teriam estipulado, à luz dos ditames da boa-fé, se tivessem previsto e regulado a hipótese de fracasso de tal projecto.

É indiferente o direito aplicado ao fundo da causa na sentença em questão, já que se trata apenas de saber se o respectivo resultado afronta, pelo seu conteúdo, princípios estruturantes da nossa ordem jurídica, a ponto de esta não poder tolerar que ela constitua solução válida e vinculativa para o litígio sobre que versou ([25]).

E, por idênticas razões, também não cabe nesta averiguação o mérito da avaliação feita pela maioria dos árbitros quanto ao equilíbrio dos interesses em jogo perante a substancial disparidade das contribuições para o projecto esperadas, por um lado, das AA – empresárias, investidoras e promotoras do projecto (construção) – e, por outro, das RR (bancos) – que, sendo, essencialmente, mutuantes ou financiadoras, não controlavam a construção, onde o projecto colapsou. Realmente, visitando o raciocínio percorrido nessa decisão, constata-se que nela se chegou ao enunciado desfecho condenatório com considerandos da seguinte ordem (sic):

«(…) É certo que todas essas contribuições pretendiam concorrer para o êxito do Projecto, mas não é menos certo que:

- As Demandantes desempenhavam, no essencial, o papel de empresárias-investidoras, investindo capitais cuja remuneração estava indexada ao grau de êxito do Projecto;

- Os Demandados Bancos desempenhavam, no essencial, o papel de mutuantes, investindo capitais cuja remuneração não estava indexada ao grau de êxito do Projecto;

O facto de, no project finance geral e no caso concreto, os financiadores confiarem em que o projecto (gera(ria) os meios financeiros necessários ao reembolso dos seus créditos não retira a tais créditos o essencial da natureza de mútuos, até porque, no project finance em geral e no caso concreto, os financiadores não renuncia(ra)m totalmente ao “recurso” sobre o património dos promotores;

A ligação contratualmente estabelecida entre as contribuições das Demandantes e as dos Demandados Bancos não respeitava ao risco. Na esfera do risco (incluindo proveito potencial) não havia igualdade, mas a diversidade que ficou assinalada.».

«(…) do conjunto de contratos em causa não resulta que as Demandantes, por um lado, e os Demandados Bancos, por outro, fossem parceiros em igualdade de condições (rectius, com o mesmo tipo e qualidade de risco e retorno esperado), pois a natureza da suas contribuições era diversa – às das Demandantes estavam associados riscos e proveitos de certo tipo e às dos Demandados Bancos estavam associados riscos e proveitos de tipo diverso. Na esfera do risco (e também do proveito potencial) não havia igualdade, mas a diversidade que ficou assinalada (cabendo às Demandantes, no essencial, o papel de empresárias-investidoras e aos Demandados Bancos, no essencial, o papel de mutuantes)».

Ora, só com uma avaliação que nos reconduzisse a um remate radicalmente diferente poderia fazer sentido admitir a ponderação da assacada incompatibilidade do dispositivo da decisão, cuja anulação se pretenderia, com a ordem pública internacional do Estado português. Não devendo ser controlada a exactidão das apreciações de facto ou de direito inerentes a esse raciocínio ou o eventual erro que possa ter afectado a avaliação em que se ancorou a decisão ([26]), não se vislumbra como se configuraria o alegado atropelo manifesto dos princípios da boa-fé, da proporcionalidade, da autonomia da vontade e da liberdade de iniciativa económica e de estabelecimento, invocados pelas recorrentes.

Com tal pressuposto, o efeito jurídico que a aplicação de tal raciocínio produziu não é incompatível – muito menos, manifestamente – com os postulados basilares da ordem pública internacional do Estado português, quaisquer que sejam as luzes ou os termos usados para preencher tal conceito indeterminado.

Relembre-se: está em causa a condenação das AA a pagar à CC, a título de prestações acessórias, as quantias de € 25.319.314,41 e € 468.876,19, correspondentes à diferença entre o valor que já haviam pago a tal título e o valor máximo que estavam obrigadas a pagar, no contexto da concessão do Túnel do Marão e na sequência na frustração de tal projecto.

Trata-se de montantes que não colidem estrondosamente com os nossos bons costumes, pois atingem uma ordem de grandeza que não pode ser considerada absolutamente desproporcionada aos riscos inerentes à obtenção dos compreensíveis proveitos que as AA poderiam esperar do investimento a que, consciente e deliberadamente, se dedicaram, no exercício da sua própria autonomia privada e da liberdade de iniciativa económica, com a decorrente liberdade de regerem livremente a organização em que assentavam as empresas por elas constituídas para a livre prossecução das suas atividades.

No caso, atendendo às descritas circunstâncias, não é “gritante” nem “salta aos olhos” – como se preferir – que tais montantes são opressivamente desmesurados ou exagerados, com frontal desrespeito por um dos mais basilares princípios estruturantes da nossa comunidade juridicamente organizada, o da proporcionalidade (ou da proibição do excesso), que também abarca os princípios ou ideias da conformidade ou adequação de meios e da necessidade ([27]).

O que também significa que a decisão criticada pelas recorrentes – cujo raciocínio nos limitámos a percorrer – não gera qualquer inquietação nem a solução nela assumida se pode encarar como sendo desequilibrada e injusta a um ponto que a torne inconciliável «com superiores ditames de justiça material, com o princípio da boa fé (art. 762.°, n.° 2), designadamente» ([28]) e, por isso, não acomodável na nossa ordem jurídica.

Na nossa perspectiva, atendendo, apenas, à solução adoptada – sem cuidar da sua adequação ao direito que teve por aplicável –, consideramos, pois, já suficientemente assente que, não sendo patente, certo e efectivo qualquer atropelo grosseiro do sentimento ético-jurídico dominante e de interesses de primeira grandeza da nossa comunidade, a questionada sentença arbitral não conduziu a um resultado chocante, intolerável e inassimilável pela ordem pública internacional do Estado português.

Tudo visto e com a fundamentação exposta, o recurso improcede.

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Síntese conclusiva:

1 - Aos termos da acção de anulação de acórdão proferido no âmbito de arbitragem que, embora realizada em Portugal, deva considerar-se internacional, por ter posto em jogo interesses do comércio internacional, são aplicáveis as disposições da LAV (Lei 63/2011) relativas à arbitragem interna, podendo tal decisão ser anulada se o tribunal estadual competente verificar que o seu conteúdo ofende os princípios da ordem pública internacional do Estado português.

2 - A ordem pública internacional tem como características: (i) a imprecisão; (ii) o cariz nacional das suas exigências (que variam de Estado para Estado, segundo os conceitos dominantes em cada um deles); (iii) a excepcionalidade (por ser um limite ao reconhecimento de uma decisão arbitral putativamente estribada no princípio da autonomia privada); (iv) a flutuação e a actualidade (intervém em função das concepções dominantes no tempo do julgamento, no país onde a questão se põe); e (v) a relatividade (intervém em função das circunstâncias do caso concreto e, particularmente, da intensidade dos laços entre a relação jurídica em causa e o Estado português).

3 - Trata-se, assim, de um conceito indeterminado que, como os demais, em qualquer ordem jurídica, terá de ser concretizado pelo juiz no momento da sua aplicação, tomando em conta as circunstâncias particulares do caso concreto; porém, a sua actuação positiva sobre o resultado obtido pela decisão arbitral não comporta qualquer juízo sobre a adequação da aplicação nela feita do direito tido por aplicável: a acção preclusiva da ordem pública internacional incide unicamente sobre os efeitos jurídicos que, para o caso, defluem da decisão.

4 - O controlo que o juiz tem de fazer para aquilatar da ofensa da ordem pública internacional do Estado não se confunde com revisão: o juiz não julga novamente o litígio decidido pelo tribunal arbitral para verificar se chegaria ao mesmo resultado a que este chegou, apenas deve verificar se a sentença, pelo resultado a que conduz, ofende algum princípio considerado como essencial pela ordem jurídica do foro; ainda assim, quando o controlo se destina a verificar se o resultado da decisão é manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado, poderá não bastar a análise do dispositivo da sentença por este ser, em geral, neutro, se desligado da vistoria ao raciocínio até ele percorrido pelo tribunal.

5 - Mesmo que não seja possível determinar, a priori, o conteúdo da cláusula geral da ordem pública internacional, é latamente consensual a ideia de que o mesmo é enformado pelos princípios estruturantes da ordem jurídica, como são, desde logo, os que, pela sua relevância, integram a Constituição em sentido material, pois são as normas e princípios constitucionais, sobretudo os que tutelam direitos fundamentais, que não só enformam como também conformam a ordem pública internacional do Estado, o mesmo sucedendo com os princípios fundamentais do Direito da União Europeia e ainda com os princípios fundamentais nos quais se incluem os da boa-fé, dos bons costumes, da proibição do abuso de direito, da proporcionalidade, da proibição de medidas discriminatórias ou espoliadoras, da proibição de indemnizações punitivas em matéria cível e os princípios e regras basilares do direito da concorrência, tanto de fonte comunitária, quanto de fonte nacional.

6 - Considerando, porém, que os aludidos princípios possuem um conteúdo normativo amplo ou indeterminado, a invocação da sua violação, como fundamento da anulação de sentença arbitral, terá de ser sujeito a acentuadas restrições e daí que a contrariedade à ordem pública internacional do Estado português, a que alude o art. 46.º, n.º 1, 46º, nº 3, b), ii), da LAV, pressuponha que essa decisão conduza a um resultado intolerável e inassimilável pela nossa comunidade, por constituir um patente, certo e efectivo atropelo grosseiro do sentimento ético-jurídico dominante e de interesses de primeira grandeza ou princípios estruturantes da nossa ordem jurídica.

*

Decisão:

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelas recorrentes.       

Lisboa, 26/9/2017

Alexandre Reis - Relator

Lima Gonçalves

Cabral Tavares

_______________________________________________________________

[1] Cujo teor é:

«- Com data de 26 de junho de 2012, a OO celebrou com o BANCO PP um “Contrato de Crédito”, na modalidade de crédito em conta corrente, até ao valor de € 3.500.000,00 - doc. incluído no doc. junto à p.i. das Demandantes OO sob o n.° 56;

- Com data de 14 de julho de 2012, a OO e o BANCO PP celebraram um «aditamento ao“Contrato de Crédito” de 26 de junho de 2012 - doc. incluído no doc. junto à p.i. das Demandantes OO sob o n.º 56;

- Com data de 26 de junho de 2012, a OO celebrou com o BANCO PP um “Contrato de Crédito”, na modalidade de crédito em conta corrente, até ao valor de € 12.350.000,00 - doc. incluído no doc, junto à p.i. das Demandantes OO sob o n.° 57;

- Com data de 14 de julho de 2012, a OO e o BANCO PP celebraram um “aditamento ao Contrato de Crédito” de 26 de junho de 2012 - doc. incluído no doc. junto à p.i. das Demandantes OO sob o n.° 57

- Nos termos dos Contratos de Crédito celebrados com o BANCO PP, as Demandadas OO estão obrigadas a pagar ao mesmo Banco juros calculados à taxa Euribor a 3 meses, acrescidos de uma margem de 5,75% até 14 de julho de 2012 e de 6,25% a partir daí - docs. incluído nos docs. junto à p.i. das Demandantes OO sob o n.°s 56 e 57».

[2] «Embora a arbitragem voluntária seja fortemente dominada pelo princípio da autonomia privada, é óbvio que existem limites à autodeterminação das partes. Estas não podem, através do recurso à arbitragem, derrogar, contornar, atenuar e/ou fugir à aplicação de normas e princípios de ordem pública» (A. P. Pinto Monteiro, no cit. artigo “Da Ordem Pública no Processo Arbitral”, p 672). Também M. Pereira Barrocas, in “A Ordem Pública na Arbitragem”, in Separata da Rev. da Ordem dos Advogados, Ano 74, Jan./Mar.2014, exibe «cautelas a observar na aplicação do critério super restritivo».

[3] «Tende hoje a entender-se que as normas e princípios constitucionais, principalmente os que tutelam direitos fundamentais, não só informam mas também conformam a ordem pública internacional» (Sampaio Caramelo – “O reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras”, Almedina, Coimbra, 2016, p. 663).

[4] «Só perante das circunstâncias do caso concreto se pode dizer se uma determinada violação de um princípio ou norma fundamental é intolerável» (Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, I, 2014, p. 659).

[5] Passamos a seguir de perto o acórdão proferido por esta mesma Secção (e parcial composição desta Conferência) no p. nº 103/13.1YRLSB.S1, no passado dia 14/3.

[6] Sobre a aplicação da ordem pública como motivo da recusa de reconhecimento ou de execução de decisões arbitrais internacionais (adoptadas em 2 a 6 de Abril de 2002, na 70ª Conferência da Associação, em Nova Deli), acolhidas pelo ICCA (International Council For Commercial Arbitration).

[7] “Lições de Direito Internacional Privado”, 3ª ed., 1992, 262 e s.

[8] «É, assim, admissível a revista interposta do acórdão da Relação que apreciou a referida acção anulatória - não incluindo, porém, o seu objecto qualquer reapreciação do mérito da causa, vedado aos Tribunais estaduais pelo art. 46º, nº 9, da LAV, destinando-se o recurso, apenas e estritamente, a apurar da verificação ou inverificação dos específicos fundamentos de anulação da sentença arbitral, invocados pelo autor», como se lê no sumário do acórdão deste Tribunal de 10-11-2016 (p. 1052/14.1TBBCL.P1.S1 – Lopes do Rego), esclarecendo-se, na respectiva fundamentação, que «tal pretensão não envolve um amplo conhecimento do mérito da decisão que se pretende anular, estando a competência do tribunal estadual circunscrita à matéria da verificação do específico fundamento da pretendida anulação, cabendo, mesmo nos casos em que proceda a pretensão anulatória, a reapreciação do mérito a outro tribunal arbitral, nos termos do n° 9 do citado art. 46º».

[9] Embora sobre a aplicação da ordem pública como motivo da recusa de reconhecimento ou de execução de decisões arbitrais internacionais.

[10] Cf. Sampaio Caramelo, in “O reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras”, Almedina, Coimbra, 2016, p., p. 211. Neste sentido, os acórdãos deste Tribunal de 28-06-2001 (p. 1846/01 - Quirino Soares), de 8-05-2003 (p. 1123/03 - Ferreira de Almeida) e, aparentemente, o de 8-07-2003 (p. 03B2106 - Oliveira Barros).

Já A. P. Pinto Monteiro, no cit. artigo “Da Ordem Pública no Processo Arbitral”, p 663 e s, e, sobretudo, Assunção Cristas e Mariana França Gouveia, in “A violação da ordem pública como fundamento de anulação de sentenças arbitrais – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.7.2008, Proc. 1698/08”, Cadernos de Direito Privado, n.º 29, Janeiro/Março 2010, p. 41 a 56, sustentam, abertamente, que a apreciação da violação da ordem pública implica a apreciação do mérito, pois só perante a decisão e os seus fundamentos se poderá determinar se houve ou não aplicação de normas fundamentais do nosso ordenamento jurídico, pelo que, a análise deste fundamento implica a análise do mérito da decisão arbitral, embora apenas para aferir se foram postergadas as mais importantes regras do nosso ordenamento jurídico.

[11] É o que, em muito mais felizes termos, explica Baptista Machado (ob. cit., p. 259 e s.): «O problema não se resolve com uma definição, pois a ordem pública é indefinível conceitualmente, como indefinível é o “estilo” ou a “alma” de uma ordem jurídica. Por isso a noção de ordem pública não é unívoca, se bem que o seja a sua função. Por outro lado, todos os conceitos substitutivos valem o mesmo em última análise: eles apenas nos darão, como diz KAHN, “no melhor dos casos, valores aproximados para a grande incógnita: sentido e espírito de uma determinada ordem jurídica”. A ordem pública escapa aos maiores refinamentos da análise, porque transcende sempre, em último termo, as coordenadas analíticas com que a tentamos apreender. É que não se trata de um valor jurídico entre muitos outros, mas – digamos – do lugar geométrico de todos os valores jurídicos. Importaria acordar para a vida, no substracto étíco-jurídico da comunidade, historicamente sedimentado, os radicais ou “étimos” do sistema para nos assegurarmos daquilo que a sua dinâmica interna (o seu “metabolismo”) rejeita como inassimilável».

[12] «apenas pela via da sensibilidade valorativa é possível chegar a uma conclusão fundamentada do conteúdo da ordem pública internacional de uma determinada comunidade nacional (…) são valores que importam ao Direito os relativos ao conteúdo e aos princípios da ordem pública» (Pereira Barrocas, no artigo acima citado, “A Ordem Pública na Arbitragem”, p 129 e s).

[13] Cf. nota 3. Também merece devido destaque o entendimento que, nesse sentido, Moura Ramos explanou na sua obra “Direito Internacional Privado e Constituição”, ed. de 1991, designadamente a pp 251 e 252, bem como a citação que o mesmo Autor faz de Ferrer Correia (“A revisão do Código Civil e o direito internacional privado”, in Estudos Vários de Direito, Coimbra, 1982, “Por Ordem da Universidade”, p. 300): «os direitos e liberdades fundamentais garantidos na Constituição figuram indiscutivelmente entre os mais proeminentes do quadro axiológico do Estado português. Logo, eles pertencem indiscutivelmente à esfera em que a chamada ordem pública internacional é solicitada a intervir».

Por fim, evocamos o que escreve Lima Pinheiro (ob. cit., p. 663.): «a ordem pública internacional constitui um reduto de princípios e normas do ordenamento do foro de cuja aplicação esta ordem jurídica não abdica (…). Tende hoje a entender-se que as normas e princípios constitucionais, principalmente os que tutelam direitos fundamentais, não só informam mas também conformam a ordem pública internacional». O mesmo Autor, em “Apontamento sobre a impugnação da decisão arbitral”– ROA  Ano 2007 - Vol. III - Dez. 2007, expôs: «Na medida em que a ordem pública constitui também um veículo para a actuação dos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, o controlo da conformidade da decisão com a ordem pública internacional é imposto pela própria Constituição (JORGE MIRANDA – Manual de Direito Constitucional, IV – Direitos Fundamentais, 3ª ed., 2000, 263, observa que os tribunais arbitrais não podem “atingir a definição de direitos fundamentais em concreto, sob pena de violação do art. 20.º” da Constituição.)».

[14] Segundo Pereira Barrocas (“Manual da arbitragem”, 2ª ed., LAV de 2011, Almedina, Coimbra, 2013, pp 682 e 687), os grandes princípios gerais de direito aceites pela comunidade internacional praticamente sem discussão, como o pacta sunt servanda, a proibição e o sancionamento do abuso do direito e o princípio da boa-fé objectiva, embora concebidos e aplicados com major ou menor amplitude em diversos países, têm um largo crédito de aceitação generalizada e constituem traves mestras da ordem pública transnacional. O mesmo Autor, no artigo acima citado (“A Ordem Pública na Arbitragem”, a p. 134), informa que «Alguma jurisprudência mais representativa tem afirmado que a ofensa da ordem pública internacional deve ser flagrante, efetiva, real e concreta (jurisprudência francesa); ou constituir ofensa grave (jurisprudência alemã); ou a necessidade de se tratarem de princípios fundamentais ou essenciais da ordem jurídica (jurisprudência suíça); ou a execução da sentença se revelar claramente ofensiva do bem público ou que a sua execução se torna totalmente ofensiva para o senso de um homem comum bem informado (doutrina inglesa de Burrogh J.)».

[15] O TJUE considerou as normas comunitárias disciplinadoras da concorrência integrantes da ordem pública internacional de todos os países comunitários (caso Eco Swiss China Time, Ltd. vs. Benetton).

[16] Segundo Jacob Dolinger, «a ordem pública se afere pela mentalidade e sensibilidade médias de determinada sociedade em determinada época. Aquilo que for considerado chocante a esta média será rejeitado pela doutrina e repelido pelos tribunais. Em nenhum aspecto do direito o fenômeno social é tão determinante como na avaliação do que fere e do que não fere a ordem pública. Compatível ou incompatível com o sistema jurídico de um povo – eis a grande questão medida pela ordem pública – para cuja aferição a Justiça deverá considerar o que vai na mente e no sentimento da sociedade.».

Também Lima Pinheiro (ob. cit., p. 666) esclarece: «Mas nem a cláusula de ordem pública internacional se tem acantonado aos valores ético-juridicos, nem a realidade das normas suscetíveis de aplicação necessária se circunscreve a fins económicos, sociais e políticos. A ordem pública internacional é apta para veicular todos os princípios e normas fundamentais da ordem jurídica do foro que tenham aplicação a situações transnacionais. Não pode fazer-se uma limitação a princípios ético-jurídicos. Também podem ser veiculados, como vem sendo reconhecido pela jurisprudência, princípios e normas que prosseguem finalidades económico-sociais, políticas ou outras».

[17] Neste sentido, sobre a anulação da decisão, Sampaio Caramelo – “Anulação de sentença arbitral contrária à ordem pública”, R.M.P., 126, ano 32, Abril-Junho 2011, p. 155-198. Também Pereira Barrocas, no artigo já cit., “A ordem pública na arbitragem”, embora pronunciando-se sobre o art. V da Convenção de Nova Iorque, considerou: «a Convenção não visa obter uma harmonização do conceito de ordem pública porque evitou a questão de saber qual o conteúdo da ordem pública universal, pelo que cada ordem pública de cada Estado pode divergir na sua definição ou na caracterização do conceito, conteúdo e sua extensão; porém, resulta dos trabalhos preparatórios que, face à finalidade de protecção e desenvolvimento do comércio internacional, a sua interpretação impõe aos estados subscritores um sentido restritivo da excepção de ordem pública».

[18] Cf. os acs. deste STJ respeitantes exclusivamente, a decisões arbitrais, de 22-09-2011, p. 1772/06.4TVLSB.L1.S1 - Silva Gonçalves, de 14-03-2013, p. 7328/10.0TBOER.L1.S1 - Sérgio Poças e de 23-10-2014, p. 1036/12.4YRLSB.S1 - Granja da Fonseca («manifestamente intolerável»).

Também o TJUE, no acórdão de 28-03-2010 (P. C-7/98 - KROMBACH), ponderou: «O recurso à cláusula de ordem pública (…) só é concebível quando o reconhecimento ou a execução da decisão proferida noutro Estado contratante viole de uma forma inaceitável a ordem jurídica do Estado requerido, por atentar contra um princípio fundamental. A fim de respeitar a proibição de revisão de mérito da decisão estrangeira, esse atentado devia constituir uma violação manifesta de uma regra de direito considerada essencial na ordem jurídica do Estado requerido ou de um direito reconhecido como fundamental nessa ordem jurídica.». E, mais recentemente, no acórdão de 16-07-2015 (P. C-681/13 - DIAGEO BRANDS) entendeu que «a infração deve constituir uma violação manifesta de uma regra jurídica considerada essencial na ordem jurídica do Estado requerido ou de um direito reconhecido como fundamental nessa ordem jurídica».

[19] Baptista Machado: «corpo estranho e inassimilável»; «atropele grosseiramente a concepção de justiça de direito material, tal como o Estado do foro a entende»; «comova ou abale os próprios fundamentos da ordem jurídica interna (pondo em causa interesses da maior transcendência e dignidade), que ele seja de molde a “chocar a consciência e provocar uma exclamação”».

A. P. Pinto Monteiro: «intolerável ofensa da harmonia jurídico-material interna ou uma contradição flagrante com os princípios fundamentais da sua ordem jurídica».

[20] Ob. cit. p. 261.

[21] “Direito Internacional Privado - Alguns Problemas”, 1991, p 126.

[22] “Lições de Direito Internacional Privado”, Vol. I.

[23] Parecer publicado na CJ, X, 4º/23 e ss.

[24] “Decisão arbitral e ordem pública” (intervenção no Colóquio “A arbitragem em movimento”, realizado no Porto, em 27-09-2010), disponível em http://arbitragem.pt/noticias/2010/2010-09-27--ordem-publica.pdf.

[25] Cf. Sampaio Caramelo na cit. ob. “Anulação de sentença arbitral contrária à ordem pública”.

[26] Cujo mérito, repete-se, não pode aqui discutir-se, nem, sequer, para poder confirmar se a solução acolhida pelo tribunal arbitral foi a que conduziu ao maior equilíbrio das prestações.

[27] Com assento constitucional (nº 2, 2ª, parte do art. 18º, da CRP).

[28] Pinto Monteiro, in “Cláusula Penal e Indemnização”, 1990, p. 725, que também defende que, para salvaguardar a genuinidade da própria autonomia privada, deve impedir-se a «injustiça a que uma incontrolada liberdade das partes podia conduzir» (ibidem, p. 728).