Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04A364
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: DIVÓRCIO
ADMINISTRAÇÃO DOS BENS DOS CÔNJUGES
PRESTAÇÃO DE CONTAS
LOCUPLETAMENTO À CUSTA ALHEIA
Nº do Documento: SJ200403250003646
Data do Acordão: 03/25/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 2531/02
Data: 07/02/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - Dissolvido o casamento por divórcio, o ex-cônjuge administrador que detenha a posse de bens comuns do casal e deles colha os seus frutos ou utilidades é obrigado a prestar contas ao outro ex-cônjuge, desde data da propositura da acção de divórcio .
II - O cônjuge administrador não pode beneficiar do lucro que lhe proporciona a utilização exclusiva dos prédios comuns, em prejuízo do outro ex-cônjuge.
III - O valor do uso desses prédios representa uma vantagem económica, que não pode deixar de ser considerado na prestação de contas, sob pena de injusto locupletamento à custa alheia e de um intolerável enriquecimento sem causa do cônjuge que os utiliza exclusivamente, em seu benefício .
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 23-4-97, A instaurou a presente acção especial de prestação de contas contra B, por dependência dos autos de inventário para partilha dos bens do dissolvido casal, que correu termos na sequência da sentença proferida na acção que decretou o divórcio entre a requerente e o requerido.
Para tanto, alega, em resumo, que os bens partilhados, que incluíam dois imóveis, sempre estiveram na posse exclusiva do réu, cabeça de casal no referido inventário, que os utilizou, sem nunca prestar contas, nem pagar qualquer renda, devendo agora prestá-las.
Citado, o réu apresentou contas, com um saldo negativo de 579.262$00, pedindo a condenação da autora a pagar-lhe metade desse saldo.
A autora contestou as contas oferecidas, sustentando que elas apresentam antes um saldo positivo de 22.950.000$00, sendo esta credora de 11.472.216$00, correspondente a metade do valor desse saldo.

O processo prosseguiu seus termos, com resposta da autora.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou prestadas as contas da administração do cabeça de casal, reportadas aos anos de 1990 a 1995, inclusive, com a existência de um saldo credor a favor da autora de 2.950.369$00, correspondentes a 14.716,38 euros.

Apelou o autor, mas sem êxito, pois a Relação de Lisboa, através do seu Acórdão de 2-7-03, negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida.
Continuando inconformado, o autor pede revista, onde resumidamente conclui:
1 - A sentença que decretou o divórcio transitou em julgado em 17-3-92.
2 - Para que os efeitos patrimoniais se retrotraiam à data da propositura da acção, tal deve ser requerido na própria acção e até ao momento da sua propositura.
3 - A recorrida nada requereu nessa matéria.
4 - As contas que o réu, como cabeça de casal, deve apresentar, só podem ter início a partir do momento em que aquele foi nomeado e ajuramentado como cabeça da casal.
5 - Os imóveis não estiveram arrendados, nem geraram quaisquer receitas.
6 - Não tendo sido provados efectivos rendimentos dos imóveis, não pode o recorrente ser condenado a pagar metade dos rendimentos virtuais desses mesmos bens, que nunca existiram ou foram gerados.
7 - O Acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por outro que dê como provadas as contas apresentadas pelo recorrente e que condene a recorrida a pagar-lhe metade do saldo negativo apurado nessas contas.
A autora não contra-alegou.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

Estão provados os factos seguintes, com interesse para a decisão:

1 - Em 10-11-89, o ora réu, B, intentou contra a ora autora, A, acção de divórcio litigioso, onde foi proferida sentença, transitada em julgado em 17-3-02, que decretou o divórcio entre eles, declarando dissolvido o casamento, por culpa exclusiva do aqui réu.

2 - Por apenso a essa acção de divórcio, correu termos o inventário para separação de meações, instaurado no ano de 1993, em que desempenhou as funções de cabeça de casal o indicado B.

3 - Conforme termo de transacção lavrado nesse inventário, foi adjudicado à autora e ao réu, em partes iguais, o prédio urbano sito na Rua Dr. Evaristo Sousa Gago, Bairro de S. João, em Grândola, inscrito na respectiva matriz sob o art. 5978, destinado a oficina e "stand" de veículos.

4 - Também foi adjudicado à autora e ao réu, em partes iguais, o prédio urbano sito na Rua Dr. Evaristo Sousa Gago, Bairro de S. João, em Grândola, inscrito na respectiva matriz sob o art. 5979, destinado a habitação.

5 - Desde que se separou da autora, o réu habita a referida casa e utiliza a mencionada oficina e "stand" de vendas, no exercício da sua actividade de comerciante.

6 - Desde que se separou da autora, o réu nunca lhe pagou qualquer quantia a título de utilização pelos ditos prédios.

7 - O réu pagou as despesas discriminadas nas respostas aos quesitos 1º a 12º, para que se remete e que aqui de dão por reproduzidas.

8 - A renda actualizada, reportada ao ano de 2002, da oficina e "stand", referidos no anterior nº3, é de 70.000$00 mensais.

9 - A renda actualizada, reportada ao ano de 2002, da casa de habitação identificada no anterior nº4, é de 80.000$00 mensais.

10 - Na acção de divórcio, foi considerado provado que até finais de Abril de 1989, autora e ré viveram juntos na casa da Rua Dr. Evaristo Sousa Gago, data em que a ré saiu da referida casa, passando a viver sozinha, num quarto alugado na Rua Mouzinho da Silveira, em Grândola.

São duas as questões a decidir:

1 - A partir de que momento o réu está obrigado a prestar contas .
2 - Se, na prestação das contas, deve ser considerado o valor do uso dos dois prédios que vêm sendo utilizados, exclusivamente, pelo réu.

Vejamos:

1.
Momento a partir do qual o réu está obrigado à prestação de contas:

Está em causa a prestação de contas referente aos anos de 1990 a 1995, inclusive, como foi sentenciado em 1ª instância e confirmado pela Relação.
O recorrente entende que as contas que deve prestar, como cabeça de casal, só podem ter início a partir do momento em que foi nomeado e ajuramentado como cabeça da casal, no processo de inventário para separações de meações, ou seja, a partir do ano de 1993.
Mas sem razão.
O cabeça de casal, em inventário subsequente a divórcio para separação de meações, está sujeito à obrigação de prestar contas da sua administração, anualmente - art. 2093 do Cód. Civil.
Mas também o está, como administrador dos bens comuns, antes da sua investidura como cabeça da casal, se tiver essa administração após a dissolução do vínculo matrimonial.
É que a obrigação de prestar contas retrotrai-se à data da proposição da acção de divórcio, uma vez que, a essa data, se retrotraem os efeitos patrimoniais da dissolução do casamento, nos termos do art. 1789, nº1, do Cód. Civil.
Quanto a bens e no domínio das relações internas, a sociedade conjugal tem-se por terminada na data da propositura da acção de divórcio .
Por isso, dissolvido o casamento por divórcio, o ex-cônjuge administrador que detenha a posse de bens comuns do casal e deles colha os frutos é obrigado a prestar contas ao outro ex-cônjuge, desde a data da instauração da respectiva acção de divórcio.
Neste sentido também opina Abel Pereira Delgado (O Divórcio, 2ª ed., pág. 158/159) quando escreve:
"Temos assim, que, havendo divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, o cônjuge administrador tem obrigação de prestar contas da administração do casal, desde a data da propositura da acção ".
Compreende-se que assim seja.
Tem obrigação de prestar contas todo aquele que trata de negócios alheios ou de negócios próprios e alheios, qualquer que seja a fonte do facto dessa administração.
A obrigação de prestar contas decorre directamente da lei, de negócio jurídico ou mesmo do princípio geral da boa fé .
Quem administra coisa comum trata de negócios simultaneamente próprios e alheios .
E a intenção da lei, ao estabelecer no art. 1789, nº1, do C.C., que os efeitos do divórcio se produzem a partir do trânsito da sentença, mas se retrotraem à data da proposição da acção, quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges, " é a de evitar que um dos cônjuges seja prejudicado pelos actos de insensatez, de prodigalidade ou de pura vingança, que o outro venha a praticar, desde a proposição da acção, sobre valores do património comum " ( Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, Vol. IV, 2ª ed, pág. 561). Não há que chamar à liça o disposto no art. 1789, nº2, do C.C., pois a previsão do nº1, do citado art. 1789, é diversa da estatuição do nº2, do mesmo preceito, que se reporta àqueles casos em que um dos cônjuges pretende que os efeitos do divórcio se retrotraiam à data da falta de coabitação, quando esta é anterior á data da propositura da acção de divórcio .
Quando essa falta de coabitação entre os cônjuges estiver provada, qualquer deles pode, então, requerer que os efeitos do divórcio se retrotraiam à data, que a sentença fixará, em que a coabitação tenha cessado por culpa exclusiva ou predominante do outro - art. 1789, nº2.
Tal previsão não está agora em discussão .
Aqui, só há que aplicar a regra do art. 1789, nº1, do C.C.
Tanto basta para se poder concluir que, tendo a acção de divórcio sido proposta em 10-11-89, é lícita a exigência da prestação de contas desde o início do ano de 1990 .

2.
Se nas contas deve ser considerado, como receita, o valor da utilização que o réu vem fazendo dos bens comuns.

A Relação decidiu afirmativamente.
Com razão, diga-se.
Com efeito, desde que a autora deixou de viver com o réu (em data anterior à propositura da acção de divórcio), é este que utiliza, em seu exclusivo proveito, quer o prédio inscrito na matriz sob o art. 5979, para sua habitação, quer o prédio inscrito na mesma matriz sob o art. 5978, para oficina e "stand" de vendas, no exercício da sua actividade de comerciante.
O réu nunca pagou à autora qualquer quantia a título de utilização dos indicados prédios.
Ora, o valor do uso desses prédios representa uma vantagem económica, que não pode deixar de ser considerado na prestação de contas, sob pena de injusto locupletamento à custa alheia e de um intolerável enriquecimento sem causa do réu, que a lei não consente.
O réu não pode beneficiar do lucro que lhe proporciona a utilização exclusiva daqueles prédios comuns, em prejuízo da autora.
Assim, não tendo sido impugnado o valor locativo, correspondente ao valor da utilização, atribuído a cada um dos prédios, nada mais resta do que julgar improcedentes as conclusões do recurso e confirmar o Acórdão recorrido.
Termos em que negam a revista.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 25 de Março de 2004
Azevedo Ramos
Silva Salazar
Ponce Leão