Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B3247
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA BARROS
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO
Nº do Documento: SJ200611160032477
Data do Acordão: 11/16/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - O Supremo Tribunal de Justiça não é uma 3ª instância, mas sim um tribunal de revista, com competência limitada à matéria de direito (cfr. art.26º LOFTJ - Lei nº3/99, de 13/1), e, assim, como decorre do art.729º, nº1º, CPC, salvo o previsto no seu nº2º, que remete para o nº2º do art. 722º, a matéria de facto a considerar em recurso para ele interposto é tão sómente a fixada pelas instâncias.
II - A presunção estabelecida no art.7º do Cód. Reg. Predial não abrange a descrição - área e confrontações - do prédio constante do registo.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça :


Em 7/3/2003, AA e mulher BB e CC intentaram acção declarativa com processo comum na forma ordinária contra DD, que foi distribuída ao 3º Juízo Cível da comarca de Aveiro.

Alegando serem donos da faixa de terreno em questão (1) e que a Ré levou aí a efeito a construção do muro em referência, pediram a condenação desta a reconhecer o invocado direito de propriedade dos AA e a abster-se de o violar, a retirar o contador de água, a destruir, a suas expensas, o muro de tijolo e cimento por ela levantado na propriedade dos AA, colocando tudo na situação em que se encontrava, e a pagar-lhes indemnização não inferior a € 5.000 pelo facto de ter, sem comsentimento, invadido abusivamente a propriedade dos mesmos e procedido aí a obras lesivas dos interesses deles.

Contestando, a Ré arrogou-se a propriedade da faixa de terreno aludida, concluindo nessa base pela improcedência da acção.

Saneado e condensado o processo, veio, após julgamento, a ser proferida, em 29/6/2005, sentença do Círculo Judicial de Aveiro que, qualificando-a como de reivindicação, e com referência aos arts.1311º, nº1º, C.Civ. e 7º Cód. Reg. Predial, julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou a Ré a reconhecer que os AA são comproprietários do prédio em referência, em que se inclui a faixa de terreno em causa, com a configuração que lhe é dada nos autos, a retirar o contador da água, e a destruir, a suas expensas, o muro de tijolo e cimento por ela erguido no prédio dos AA, colocando tudo na situação em que se encontrava. No mais, isto é, quanto ao pedido de indemnização cumulado, a acção foi, por não provados danos, julgada improcedente, tendo a Ré, nessa parte, sido absolvida do pedido.

Por acórdão de 14/3/2006, a Relação de Coimbra julgou improcedente o recurso de apelação que a Ré interpôs dessa sentença, que confirmou.

É dessa decisão que vem, agora, pedida revista.

Em fecho da alegação respectiva, a Ré deduz as conclusões seguintes, delimitativas do âmbito ou objecto deste recurso, conforme arts.684º, nºs 2º a 4º, e 690º, nºs 1º e 3º, CPC :

1ª - Os factos assentes e a sentença confundem o murete de 20 cm com o muro que separa o prédio da Ré da Rua S. João de Deus.

2ª - O título de propriedade dos AA e a petição inicial não identificam a faixa de terreno em litígio como sendo a “ superfície descoberta “, o logradouro, ou o quintal.

3ª - A sentença fundamenta-se em factos que não foram trazidos ao processo por qualquer das partes em confronto.

4ª - Mostram-se violados, entre outros, os normativos constantes dos arts.655º e 664º, e as als. b), c) e d) do nº1º do art.668º CPC, e o nº1º do art.1311º C.Civ., havendo erro na apreciação das provas.

Houve contra-alegação, e corridos os vistos legais, cumpre decidir.

Convenientemente ordenada (2), a matéria de facto fixada pelas instâncias é como segue (vão referidas entre parênteses as correspondentes alíneas e quesitos e, onde disso caso, sem outra indicação, o aditado pela Relação ) :

( a ) - Os AA são, em compropriedade, donos de um prédio urbano sito na Rua de S. João de Deus - Bairro Ferroviário - Esgueira, a confrontar do norte com DD, sul com AA e CC, nascente com a Rua de S. João de Deus, e poente com o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social e o Estado Português, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 677, e descrito na Conservatória do Registo Predial com o nº 05 390(A).
( b ) - A qualidade de proprietários do referido imóvel adveio-lhes por sucessão, por óbito de seu pai, em 1950, tendo-lhes sido adjudicado por escritura de partilhas lavrada na Secretaria Notarial de Ílhavo em 23/3/93 e rectificada em 8/2/2002 ( B ).

( b 1 ) - Em 23/3/93, no Cartório Notarial de Ílhavo, foi celebrada uma escritura de partilha com os seguintes outorgantes : - EE, viúva, também conhecida por C.... C... D..., e ( os aqui AA ) AA e mulher BB, casados sob o regime de comunhão geral, (e) CC, divorciada, com as residências indicadas na mesma escritura.

( b 2 ) - Por essa escritura, procederam à partilha de um bem que pertencia ao dissolvido casal constituído pela primeira outorgante e seu falecido marido, que é o seguinte : prédio urbano, com-posto de casa de r/c e 1º andar, destinado a habitação, com área coberta de 82,80 m2, sito no Bairro Ferroviário, freguesia de Esgueira - concelho de Aveiro, a confinar de norte com FF, do sul com AA e CC, de nascente com a estrada e de poente com F.. e Irmão, Sucessores, inscrito na matriz respectiva sob o artigo 1249 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o nº 40.482, a fls.112 do Livro B- 106, registado a favor do autor da herança sob o nº 27.117.

( b 3 ) - Os outorgantes concordaram em adjudicar (3) o referido prédio aos filhos do autor da herança ( que era o pai dos AA, falecido em 5/11/50 Com prejuízo da discriminação - isto é, da indicação em separado - de facto e direito imposta pelo nº2º dos arts.659º e 713º CPC, a Relação refere este facto de envolta já com a apreciação de direito da matéria de facto apurada - cfr. fls. 12 do acórdão ora em recurso, a fls.218 dos autos.

( b 4 ) - Em 8/2/2002, no Cartório Notarial de Ílhavo, foi celebrada uma escritura de rectificação com os seguintes outorgantes : AA e mulher BB, casados sob o regime de comunhão geral, e CC (aqui AA ).

( b 5 ) - Os outorgantes declararam que por escritura de 23/3/93, exarada a folhas 91 vº e seguintes do livro de notas para escrituras diversas nº 80-C desse Cartório, os outorgantes AA e CC e sua falecida mãe EE procederam à partilha de um prédio proveniente da herança aberta por óbito de seu pai e marido, GG, que foi adjudicado, em comum e partes iguais, aos primeiro e segunda outorgantes ; que, no entanto, houve lapso na identificação do referido prédio, que se compõe de casa de r/c e 1º andar, destinado a habitação, com dependências, logradouro e quintal e não apenas com a área de implantação da casa como ficou a constar, devendo-se tal lapso a erro de medição aquando da organização da matriz ; que, em virtude de sua indicada mãe e sogra ter já falecido, como consta de escritura de habilitação lavrada, nesse mesmo dia, nesse Cartório, na escritura que imediatamente antecede esta, os outorgantes vieram proceder à rectificação daquela escritura de partilha, no sentido de a descrição do prédio ser a seguinte : - Prédio urbano, composto de casa de r/c e 1º andar, destinada a habitação, com a área coberta de 82,80 m2, logradouro com 20 m2, quintal com 280 m2, e ainda superfície descoberta com 17 m2, sito no Bairro Ferroviário, freguesia de Esgueira, concelho de Aveiro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o nº 5.390 e aí registado, em comum, a favor dos outorgantes, pela inscrição G-1, inscrito na matriz respectiva sob o artigo 677, com valor tributável de € 2293,59 ; e que, assim, fica rectificada aquela escritura de partilha, relativamente à área do prédio referido. (…).

( b 6 ) - Na Conservatória do Registo Predial de Aveiro encontra-se descrito sob o nº 05390/010 897, o prédio seguinte : Prédio urbano - Bairro Ferroviário - Casa de r/c e 1º andar - área 82,8 m2 - confrontações: norte, FF, sul, AA e CC; nascente, estrada, poente, Ferreira e Irmão, Sucessores - artigo: 677 (…).

( b 7 ) - Sob a Ap.04/261001, consta o Av. 2, do seguinte teor : “ Rectificação : é composto ainda de logradouro com 20 m2, quintal com 280 m2 e superfície descoberta : 17 m2 - norte, DD, nascente, Rua S. João de Deus, sul, CCe AA, e poente, Estado Português (Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social )”.

( b 8 ) - Sob a Ap.12/010897, consta a inscrição G-1, do seguinte teor : “ Aquisição a favor de AA, c.c. BB, na comunhão geral, Rua Gil Vicente, 177, Gafanha da Nazaré, Ílhavo, e CC, divorciada, Travessa das Marinhas, 171, Miramar - por partilha da herança de GG, que foi c. c. EE, na comunhão geral, Bairro do Vouga, Esgueira - Aveiro”.

( c ) - Entre a casa situada no prédio dos AA e uma outra, da Ré, situada ao lado, existe uma faixa de terreno delimitada por um muro, em que está colocado o contador da água da casa da Ré ( C e D ).

( d ) - Essa faixa de terreno integra o prédio atrás mencionado ( em ( a ), supra ) ( 1º).

( e ) - Em data não apurada, o pai dos AA vedou a faixa de terreno em questão ( 2º).

( f ) - Desde antes de 1950 que os AA, por si e antepossuidores, têm acesso a essa faixa de terreno, de modo contínuo, e sem oposição de quem quer que fosse, tendo-se essa situação mantido até 7/9/ 2002 ( 3º, 4º, e 5º).

( g ) - Desde data não apurada, a Ré, por si e antepossuidores, tem, por vezes, entrado na faixa de terreno referida, limpando-a, e o contador acima mencionado encontra-se ali desde data não apurada, o que acontece à vista de toda a gente, e sem oposição de quem quer que fosse ( até 7/9/2002 )
( 8º, 9º; 10º, e 12º).

( h ) - O muro referido foi deitado abaixo em 7/9/2002, e a Ré, sem licença dos AA, ergueu um muro novo de cimento e tijolo e recolocou o contador da água ( E ).

( i ) - Esse muro tapa o acesso do prédio dos Autores à faixa de terreno acima referida ( em ( c ), supra ) ( F ).

Pretende a recorrente, que litiga com benefício de apoio judiciário em ambas as suas modalidades, que este Tribunal, antes de mais, analise as fotografias juntas aos autos. Pois bem :

Tem-se constantemente lembrado que o Supremo Tribunal de Justiça não é uma 3ª instância (4), mas sim um tribunal de revista, com competência limitada à matéria de direito - cfr. art.26º LOFTJ - Lei nº3/99, de 13/1.

Como decorre do art.729º, nº1º, CPC, salvo o previsto no seu nº2º, que remete para o nº2º do art. 722º, a matéria de facto a considerar neste recurso (5) é, tão sómente, a fixada pelas instâncias.

Quer isto dizer que, expressamente julgado no acórdão impugnado (a fls.12 vº, 2ª parte, a fls.218 vº dos autos ) não ocorrer efectivamente a confusão em que se insiste na conclusão 1ª da alegação da recorrente entre o muro e o murete de 20 cm a que alude, essa é questão que de manifesto modo exorbita do âmbito da competência própria deste Tribunal. Com efeito, a tanto limitada a censura deste Tribunal de eventual erro na apreciação das provas (a que alude a conclusão 4ª da alegação da recorrente ), está longe de constituir matéria sujeita a prova vinculada ou em cujo julgamento se vislumbre desconsideração do valor legal das provas - desde logo sendo, pois, também com inteiro despropósito que se invoca o art.655º CPC.

Destarte arredada a primeira das quatro conclusões da alegação da recorrente, é, por igual, despicienda a seguinte. Com efeito :

Nada claramente dito pelas instâncias a esse respeito, fica, pelo menos, em dúvida terem estado efectivamente cientes e conscientes de que a presunção estabelecida no art.7º do Cód. Reg. Predial não abrange a descrição - área e confrontações - do prédio constante do registo (6)

Como quer que seja, a 1ª instância acabou por firmar a solução então alcançada na resposta dada ao quesito 1º, transcrita em (d), supra.

Sem também tomar posição clara a esse propósito, antes, por assim dizer, dando de barato tratar-se de resposta conclusiva ( a que, em entendimento comum, seria aplicável o disposto no art.646º, nº 4º, CPC ), a 2ª instância discorreu, utilmente, destre modo, bem que em ordem diversa :

A usucapião é uma forma de constituição de direitos reais que destrói quaisquer direitos em contrário, podendo o seu beneficiário, por força das regras da acessão na posse, começar a contar o respectivo prazo a partir da constituição da posse.

Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa - Assento STJ de 14/5/96, BMJ 457/55 ss (com referência ao disposto nos arts.481º, § 1º, C.Civ.1867 e 350º e 1252º do C.Civ.1966, ora vigente - v. 57 ).

Demonstrada a usucapião, a reivindicação procede, uma vez que, por ela, se extinguem todos os direitos anteriores em contrário - Menezes Cordeiro, “ Direitos Reais “, II (1979), 848.

Tendo o pai dos AA, falecido em 5/11/50, como consta da escritura referida em (b), e sendo o direito de tapagem uma das faculdades que, consoante art.1356º C.Civ., integra o conteúdo do direito de propriedade (7) vedou-a necessariamente, antes daquela data - a faixa de terreno em questão, conforme (e), supra. (Diga-se ainda que, nas concretas circunstâncias deste caso, necessariamente também que à vista de toda a gente - cfr. arts.523º C.Civ. de 1867 e 1297º C.Civ. 1966 ).

Está ainda provado que os AA, por si e antepossuidores, têm acesso a essa faixa de terreno, de modo contínuo e sem oposição de quem quer que fosse, desde antes de 1950 - idem, (f).

Concluiu-se, deste jeito, que o (invocado) direito de (com)propriedade sobre a faixa de terreno aludida tinha sido adquirido por usucapião, de acordo com o art.1287º C.Civ. ( cfr. ainda art. 1296º).

Quanto, então, à conclusão 3ª da alegação da recorrente, referível ao art.664º CPC, dir-se-á ser in-sofismável que o acórdão recorrido se limitou a analisar os factos julgados provados, designadamente por documentos autênticos, como é o caso das escrituras e do registo predial ( cfr., ainda, arts.515º, 1ª parte. 659º, nº3º, e 713º, nº2º, CPC ), e, por outro lado, se cingiu à consideração das questões colocadas pelas partes, bem assim, pois, não ocorrendo o excesso de pronúncia invocado na conclusão 4ª com referência à al.d) do nº1º do art.668º CPC.

Não há também contradição alguma na matéria de facto assente ; e nem, por fim, ocorrem as demais nulidades reclamadas naquela mesma conclusão, com referência às als.b) e c) da disposição por último referida.

Na realidade, entende-se mal a que (des)propósito, sem, sequer, correspondência no texto dessa alegação, se vem arguir a falta absoluta de fundamentação de facto ou de direito do acórdão recorrido prevenida naquela al.b), ou a contradição, prevista na al.c), entre os fundamentos adiantados e a decisão alcançada nesse acórdão, que, na realidade, decorre deles com lógica incontestável, tendo-se julgado de harmonia com o disposto no nº1º do art.1311º C.Civ.

Breve, deste modo, se chega à decisão que segue :

Nega-se a revista.

Custas pela recorrente ( sempre sem prejuízo do benefício de que goza nesse âmbito ).
Oliveira Barros (relator)

Salvador da Costa

Ferreira de Sousa

_____________________________

(1) Existente entre o prédio dos AA e o prédio da Ré e que a a inspecção judicial efectuada revelou ter 9 m de compri-mento por cerca de 50 cm de largura.
(2) V.,a propósito, Antunes Varela, RLJ, 129º/51.
(3) Com prejuízo da discriminação - isto é, da indicação em separado - de facto e direito imposta pelo nº2º dos arts.659º e 713º CPC, a Relação refere este facto de envolta já com a apreciação de direito da matéria de facto apurada - cfr. fls. 12 do acórdão ora em recurso, a fls.218 dos autos.
(4) V. Reis, “ Anotado “, VI, 28.
(5) De revista, que não de revisão, como em contra-alegação ( cabeçalho e 1º par. do texto ) mal se repete ( cfr. arts.676º, nº2º, 721º, e 771º CPC ).
(6) Há mesmo um trecho, a fls.12 vº do acórdão recorrido ( fls.218 vº dos autos, 3º e 4º par. ), que leva a crer ter-se então entendido o contrário. É este : “ Para além da usucapião, os Autores têm a seu favor o registo, gozando da presunção da titularidade do direito. E, sendo assim, incumbia à Ré, ora apelante, provar a inexactidão do registo em causa. “. Que a presunção do art.7º do Cód.Reg.Predial se limita ao direito inscrito, não abrangendo a descrição é o que, nomea-damente elucidam Acs.STJ de 27/1 e de 11/5/93, de 11/5/95, e de 17/6/97, CJSTJ, I, 1º, 100, e 2º, 95-I e 96, III, 2º, 75 e V, 2º, 126-II, respectivamente.
(7) Esse artigo reza assim : “A todo o tempo o proprietário pode murar, valar, rodear de sebes o seu prédio, ou tapá-lo de qualquer modo”.