Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A3826
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: URBANO DIAS
Descritores: SONEGAÇÃO DE BENS
Nº do Documento: SJ20071113038261
Data do Acordão: 11/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
- Só há verdadeira sonegação quando a omissão seja dolosa.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I Relatório
AA intentou, no Tribunal Judicial de Torres Vedras, acção ordinária contra BB e mulher Cres, e os demandados BB e mulher, como promitentes-vendedores, e estes condenados a restituírem a quantia de 2.110.000$00 daqueles recebida, acrescida dos juros de mora vencidos desde meados de Março de 1990 e vincendos até efectivo pagamento ou, subsidiariamente, contados da citação;
b) A condenação dos demandados em segundo e terceiro lugares no pagamento ao de montante de 17.500.000$00 correspondente ao valor das benfeitorias efectuadas no prédio, acrescido dos juros de mora vencidos desde a data da citação e vincendos até integral pagamento;
c) A condenação da R. DD a perder em seu benefício o direito à sua parte no valor dos bens peticionados, por sonegação do mesmo;
d) Seja declarado compensado no valor peticionado em b) o crédito da R. DD sobre o A. no montante de 5.084.751$50 relativo a tornas que por ele lhe são devidas;
e) Seja declarado impugnado o contrato de doação outorgado pelos RR. BB e mulher a favor da R. DD e, bem assim, o de compra e venda celebrado entre esta e o R. EE em termos de o bem objecto dos mesmos ser restituído na medida do interesse e de acordo com o valor global dos créditos do A., incluindo os juros vencidos e vincendos.
Em síntese, alegou
- Ter sido casado com a R. DD, filha dos demandados BB e mulher.
- Na constância do matrimónio o casal então formado por ele e pela dita R. celebraram verbalmente contrato-promessa de compra e venda com os 2ºs. RR., nos termos do qual estes prometeram vender àqueles que, por seu turno, prometeram comprar, o lote de terreno para construção urbana que identifica no art. 3º da petição inicial, onde se encontrava em fase de acabamento um prédio de cave e de rés-do-chão.
- O referido lote integrava o acervo hereditário deixado por óbito de AJ, pai do R. BB, correndo à data no 3º juízo deste Tribunal uns autos de inventário para partilha da dita herança.
- Porque ele e a R. DD pretendiam levar a efeito obras no lote prometido vender, em ordem a ali edificarem a sua casa de habitação, os 2ºs RR. prometeram comprar aos demais interessados na herança o quinhão destes no aludido prédio os quais, a fim de viabilizarem o início das obras de construção, prestaram para tanto o seu consentimento.
- Ele e a R. DD entregaram ao R. BB o preço convencionado, cabendo a este efectuar o pagamento aos restantes interessados na herança de seu pai.
- E foi assim que as obras tiveram efectivamente lugar, tendo ele e a R. DD custeado a reconstrução de uma casa antiga ali existente, da qual foram aproveitadas apenas as paredes exteriores, no que despenderam o montante de 17.500.000$00.
- Todavia, e não obstante o acordo celebrado, dado o surgimento de desinteligências entre ele e a sua mulher, que culminaram em divórcio, degradaram-se também as suas relações com os RR. BB e mulher.
- Decretado o divórcio, os demandados em segundo lugar vieram a transmitir a propriedade do aludido prédio à filha DD, assim incumprindo o contrato-promessa ajustado verbalmente também consigo que, em todo o caso, é nulo por falta de forma, nulidade que expressamente invoca.
- Acresce que o património dos RR. AJ e mulher se viu injustamente enriquecido com o valor correspondente às benfeitorias incorporadas no imóvel, encontrando-se obrigados a restituir o valor correspondente, solidariamente com a R. DD, esta por força do disposto no n.º 2 do art. 481º do CC.
- A R. DD, tendo inicialmente acordado consigo na relacionação do invocado crédito, veio depois alegar, no inventário subsequente, que o demandante havia sido reembolsado das despesas efectuadas, tendo as partes sido então remetidas para os meios comuns.
- Por estarmos perante sonegação dolosa deverá ser aquela condenada no perdimento do direito que teria a parte do bem sonegado, como dispõem os arts. 2096º do CC e 1394º nº 4 do CPC.
- Este crédito reconhecido na partilha efectuada deverá ser compensado com aquele de que é titular.
- Visando defraudá-lo, inviabilizando a cobrança do crédito de que é titular, a R. DD veio a proceder à venda do prédio ao R. EE, a qual foi efectuada por valor que, por si só, espelha a má fé dos contraentes, sendo certo que o dito EE nunca habitou a casa, nela vivendo a vendedora DD com os filhos.
- Porque também os RR. BB e mulher não possuem bens que permitam ao A., através deles, obter a satisfação do seu crédito, são tais negócios impugnáveis na medida do necessário à realização do direito do demandante.

Os RR. contestaram, por excepção, arguindo a ilegitimidade dos RR. DD e EE, e por impugnação, terminando por peticionar a improcedência da acção.

Replicou o A., defendendo a legitimidade dos RR. supra referidos.

Por ter falecido na pendência da acção o R. BB, foram habilitadas as RR. CC e DD e ainda MJ e MH.

Em sede de saneador, foi julgada improcedente a arguida ilegitimidade dos RR. DD e EE, foram seleccionados os factos, provados e a provar, e a acção seguiu para julgamento após o qual foi proferida sentença que:
- Declarou nulo o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre o A. e a R. DD, como promitentes-compradores, e os RR. BB (entretanto habilitado) e mulher, CC, como promitentes vendedores e, em consequência,
- Condenou estes RR. a restituírem ao A. a quantia de € 5.262,32 ou 1.055.000$0, acrescida dos juros de mora vencidos desde a data da citação e vincendos até integral pagamento, contados às taxas de 7% até 30/4/2003 e de 7% a partir de 1/5, absolvendo-os quanto ao mais que vinha peticionado em a);
- Condenou os mesmos RR. BB e mulher, CC, a pagarem ao A. metade do menor dos valores que se vierem a apurar como correspondentes ao custo das obras realizadas no imóvel e que hajam sido suportadas pelo casal então formado pelo A. e pela R. DD, ou valorização que para o prédio benfeitorizado resultou das mesmas, até ao montante máximo de € 87.289,63 (oitenta e sete mil, duzentos e oitenta e nove euros e sessenta e três cêntimos ou 17.500.000$00), cuja liquidação se remete para momento posterior, absolvendo-os do mais que vinha pedido em b;
- Condenou a R. DD no perdimento a favor do A. do seu direito a metade do crédito que venha a ser apurado nos termos prescritos em b), com o qual se declara compensado o crédito desta demandada sobre aquele, até ao montante máximo de € 25.362,63 ou 5.084.751$00, condenando-a no pagamento do remanescente, caso se apure, e absolvendo-a do mais que vinha pedido em b) e c).
Mais decidiu absolver todos os RR. do pedido contra eles formulado em e).

Inconformada, apelou a R. DD para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de fls. 828 e ss., deu parcial provimento ao mesmo, absolvendo a recorrente da condenação no pedido formulado sob a al. c) da petição.

Foi a vez de o A. discordar do sentenciado e pedir revista do aresto proferido a coberto da seguinte síntese conclusiva:
- Contrariamente ao que se lhe impunha, nos termos do disposto nos arts. 690° e 690º-A do CPC, nas suas conclusões de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, no que respeita à sua pretensão de ver revogada a decisão de 1ª instância que a condenou no perdimento de bens como consequência sancionatória da sonegação de bens prevista no art. 2.096.° do Código Civil, a R./Apelante, ora recorrida, não refere nem norma jurídica violada, nem o sentido com que, no entender da recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas, nem erro na determinação da norma aplicável, nem diz quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, nem quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria impugnada diversa da recorrida.
- Em consequência, sobre tal matéria, não deveria o Tribunal da Relação de Lisboa ter conhecido do recurso, pois assim o determina o nº 4 do art. 690° e o nº 1 do art. 690º-A citados.
- Assim não o tendo feito, o aresto em recurso haverá violado o disposto nas referidas disposições e enfermará da nulidade prevista na 2ª parte da alínea d) do nº 1 do art. 668° do CPC, por apreciar questão de que não podia tomar conhecimento.
- Porém, quando assim se não entenda – o que apenas se admite por cautela de patrocínio –, deverá:
- Atendendo aos seguintes factos:
- Em princípios de 1988, os ora recorrente e recorrida prometeram, por acordo verbal, comprar ao primeiro casal R, respectivamente, pais desta e sogros daquele, o prédio identificado nos autos, contrato esse que veio a ser declarado nulo.
- Em 1994.10.26, o A., ora recorrente, e DD, ora recorrida, apresentaram em juízo, para instrução do seu divórcio por mútuo consentimento, uma relação de bens comuns da qual fizeram constar o seu direito de crédito, ilíquido, proveniente de benfeitorias no prédio urbano identificado nos autos.
- Em 1996.01.17, o casal R de BB, pais da R, ora recorrida, e sua filha, em nome do qual se encontrava ainda o dito prédio, fizeram dele doação a esta sua filha.
- Em 1996.10.25, no inventário para separação de meações subsequente ao divórcio dos ora recorrente e recorrida, esta veio requerer a exclusão da verba respeitante ao sobredito direito de crédito ilíquido, alegando que o ora recorrente havia já sido reembolsado pelo sogro e 1º R. desse crédito.
- Em 1999.02.22, dada a falta de acordo quanto à inclusão da referida verba no inventário, vieram as partes a ser remetidas para os meios comuns.
- À data da sobredita doação a ora recorrida DD sabia que o crédito supra referido nunca fora saldado.
- A ora recorrida DD não logrou provar quanto alegara relativamente ao reembolso do ora recorrente pelo seu sogro e 1ºR..
- Em sede de alegações para o Tribunal da Relação, veio então afirmar a apelante, ora recorrida, DD que as benfeitorias foram mandadas efectuar por seu pai e não pelo apelado, ora recorrente.
Constata-se que:
- Aquando do divórcio, a R. DD reconheceu que o crédito do casal pelas benfeitorias levadas a efeito no prédio identificado deveria ser considerado bem comum (por isso, foi levado à relação de bens que instruiu o pedido de divórcio por mútuo consentimento);
- O prédio beneficiado encontrava-se ainda em nome dos pais da R. DD – por não ter chegado a ser cumprido o acordo que se concretizaria na transferência de propriedade para o extinto casal de A. e R..
- Entretanto, após o divórcio da filha, seus pais transferiram para ela a propriedade do mesmo, por doação.
- Então, aquando do inventário para separação de bens do extinto casal, a R. DD – como era a beneficiária das ditas benfeitorias, dado ter adquirido o prédio por doação dos seus pai, veio pugnar por que fosse excluída a verba respeitante ao crédito por essas benfeitorias, alegando o facto extintivo de que seu pai havia já procedido ao pagamento do invocado crédito ao seu ex-­marido.
- A R. DD não provou o facto extintivo que invocou, pelo contrário, ficou provado que à data da sobredita doação sabia que tal crédito nunca fora saldado.
- É óbvio que, com tal atitude a R. DD visava obter para si benefício a que sabia não ter direito, sendo, e bem, condenada em 1ª instância por negação dolosa do bem acusado e no perdimento do direito que no mesmo tinha a favor do A., ora recorrente.
- Depois, em sede de recurso, ao arrepio de quanto reconhecera ao afirmar que seu pai havia reembolsado o A. (isto é, de que fora este e não aquele quem mandara fazer as benfeitorias... mas, por tal, fora já reembolsado), a R.-apelante, ora recorrida, veio então afirmar, sem qualquer pundonor, que fora seu pai quem mandara efectuar as benfeitorias e não o apelado, ora recorrente e concluir-se que:
- Se a atitude da R., antes da apelação, era então indubitavelmente de subsumir à figura da sonegação de bens prevista no art. 2.096.° do C. Civil, como bem se terá entendido na decisão de 1ª instância, já o referido comportamento em sede recurso, não só confirmará o acerto daquela decisão, como revelará do uso manifestamente reprovável que a R. DD veio fazer dos meios processuais com vista a tentar ainda conseguir objectivo que sabia ilegal.
Respondeu a recorrida em defesa da manutenção do acórdão censurado.

II As instâncias fixaram o seguinte quadro factual:
A – O A. e a R. DD casaram um com o outro em 5/07/80, casamento celebrado sem convenção antenupcial que veio a ser dissolvido por sentença de divórcio já transitada em julgado e proferida em 29/11/94.

B – Os RR. BB e CC são pais da R. DD.

C – O A. e a R. DD, em princípios de 1988, por acordo verbal, prometeram comprar aos referidos BB e mulher, um lote de terreno para construção urbana, onde se encontrava em fase de acabamento um prédio de cave e de rés-­do-chão, com a área de 132 m2, designado por lote nº 8, sito na Rua ...., no lugar de Maceira, então freguesia de A-dos-Cunhados, deste concelho, confrontando do Norte com BB, do Sul com Diamantino de Sousa, e do Nascente e Poente com estrada, que era parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o nº 41.777, actualmente dele desanexado sob o nº 02636/920320, os quais, por sua vez, prometeram também verbalmente que lho venderiam.

D – O lote de terreno descrito na al. anterior fazia parte do acervo da herança deixada por AJ, pai do R. BB, por óbito do qual corriam, em 1988, autos de inventário obrigatório.

E – À data da celebração do acordo a que se refere a al. C) o R. BB era apenas co-titular do lote, e sem determinação de parte ou direito, com os demais interessados na herança, seus oito irmãos.

F – Para cumprir o prometido, o A. e a R. DD, por um lado, pretendendo iniciar obras no lote, e os RR. BB e mulher, por outro, acordaram que estes prometeriam comprar aos casais de seus irmãos ML, JS e AJ o direito de cada um deles sobre o lote, os quais por sua vez prometeriam vender-lhos.

G – Combinaram ainda que os demais interessados, sabendo do negócio efectuado entre aqueles co-herdeiros, declarariam o seu consentimento e autorizariam as obras que se entendesse convenientes no lote.

H – Por acordo celebrado em 17/03/88 ML e marido, FC, JS e mulher, MS, e AJ e mulher, AM, declararam prometer vender a BB, casado com CC, e estes declararam prometer comprar, o direito de cada um deles sobre o lote, tendo já recebido cada um dos primeiros a quantia de 527.500$00 por parte destes últimos.

I – Nesse acordo reduzido a escrito e constante de fls. 29 e 30 consignou-se que já havia sido acordado verbalmente entre todos os interessados na herança aberta por óbito de AJ que o lote em causa viria a ser adjudicado na conferência de interessados a BB e esposa, ML e marido, JS e esposa, e AJ e esposa.

J – Na sequência do acordado o A., ainda no estado de casado com a R. DD, entregou a cada um dos herdeiros identificados na al. anterior a parte do preço correspondente ao quinhão que lhes cabia, considerando o preço fixado, no valor de 2.110.000$00.

L – Na sequência dos referidos acordos o prédio sofreu obras de ampliação, com a construção de, pelo menos, uma nova garagem, e ainda de reconstrução.

M – Distribuída por dois pisos, a casa veio a ser dividida para três quartos, duas casa de banho, sala e cozinha, despensa e duas garagens.

N – Foi-lhe colocado telhado novo de duas águas.

O – Todas as janelas e portas exteriores foram feitas em caixilharia de alumínio, colocadas cantarias e aplicados estores.

P – Procedeu-se no interior a toda a carpintaria em madeira, instalação de canalização de água e instalação eléctrica.

Q – Todas as paredes, pelo interior e exterior, foram rebocadas ou estucadas e pintadas.

R – Foram colocados mosaicos, azulejos, louças sanitárias nas casas de banho e equipamento de cozinha.

S – Com referência ao ano de 1999 o custo das obras, com exclusão do relativo a eventuais demolições, parte do qual foi suportado pelo A., foi calculado em € 50.592,22.

T – O lote de terreno veio a ser adjudicado por partilhas ao casal BB e mulher, CC, tendo sido a correspondente aquisição inscrita na Conservatória do Registo Predial através da Ap. 36/921203.

U – Posteriormente ao divórcio entre o A. e a R. DD, os RR. BB e esposa declararam, através de escritura pública celebrada em 17 de Janeiro de 1996, doar à R. DD, que declarou aceitar tal doação, o prédio acima referido, tendo tal aquisição sido inscrita na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras através da Ap. 38/970731.

V – Da relação de bens comuns apresentada em juízo em 26/10/94 pelo A. e pela R. DD para instrução do seu divórcio por mútuo consentimento consta o direito de crédito, ilíquido, proveniente de benfeitorias feitas no prédio urbano sito no lugar da Maceira, freguesia de A-dos-Cunhados, concelho de Torres Vedras, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° 2 636/A-dos-Cunhados, e inscrito na respectiva matriz sob o art. 2.287, adjudicado a BB por partilha de 26/03/92.

X – No subsequente inventário para separação de meações por apenso aos autos de divórcio, a R. DD veio requerer a exclusão da verba que a tal dizia respeito, alegando que o aí requerente e cabeça-de-casal, ora A., havia já sido reembolsado pelo sogro, ora também R. BB, da totalidade das despesas.

Z – Dada a falta de acordo quanto à inclusão da referida verba no inventário vieram as partes a ser remetidas para os meios comuns.

AA – Nesse inventário para separação de meações, o requerente, aqui A., ficou obrigado a dar tornas à requerida no valor de 5.084.751$50.

AB – Por escritura pública de compra e venda outorgada em 25 de Setembro de 1997, DD declarou vender a EE, que declarou comprar, o prédio acima referido por 2.916.000$00, valor inferior ao valor patrimonial do prédio.

AC – O R. EE nunca habitou na casa em causa nem nunca foram passados em seu nome os contratos de fornecimento básicos (v.g. água, electricidade ou telefone).

AD – A R. DD, ao aceitar a doação referida em U), tinha perfeita consciência de tudo quanto fora ajustado entre ela, o A. e seus pais, bem como de todas as obras efectuadas.

AE – Sabia que o crédito referido em V) nunca fora saldado.

AF – No momento da celebração da escritura pública referida em AB), EE tinha conhecimento do direito de crédito do aqui A..

AG – O EE, após a celebração da escritura a que alude a al. AB), cedeu a casa à DD para que esta aí vivesse com os filhos.

AH – Ao tempo da doação descrita em U) a R. DD não dispunha de casa própria onde pudesse viver com os filhos.

AI – Nessa data os lºs RR. possuíam outros bens de valor igual ou superior ao montante do alegado crédito.

AJ – Após a separação do casal formado pelo A. e pela R. DD esta enfrentou dificuldades financeiras.

IIIQuid iuris?

Duas questões são colocadas pelo recorrente à nossa consideração, uma de natureza puramente formal ou adjectiva, outra de natureza substantiva.

Curiosamente, com ambas procurou o recorrente a mesma solução para os interesses defendidos, qual seja a de repristinar a decisão da 1ª instância na parte em que proclamou o perdimento por parte da R. DD, aqui recorrida, a seu favor, do seu direito a metade do crédito que venha a ser apurado.

Na verdade, a 1ª instância considerou que, face à matéria de facto apurada, era permitido concluir que “a ré DD, de forma intencional, pugnou pela exclusão da relação de bens de verba que sabia dever ser partilhada, tendendo obter para si benefício a que sabia não ter direito”.

Esta posição não obteve consagração por parte da Relação de Lisboa que considerou que da matéria provada “apenas se pode afirmar com segurança, que após a dissolução do casamento do A. e da 1ª R., foi apresentado pelo primeiro, enquanto cabeça-de-casal, uma relação de bens em que aquele indicou o crédito por benfeitorias realizadas no imóvel em apreciação, crédito esse que foi impugnado pela ora Apelante e, na sequência do qual, foi proferido despacho a remeter as partes para os meios comuns”.

E, concluiu, desta forma:

“A existência desta situação, que processualmente tem tramitação legal própria não determina, por si só, qualquer cominação que possa ser enquadrada como de sonegação. Contrariamente ao decidido, não há qualquer automatismo entre a discussão da natureza de um bem e a sonegação do mesmo, independentemente da natureza do inventário”.

É precisamente este segmento decisório que é censurado, na dupla vertente assinalada, em favor do que a 1ª instância julgara.

Vejamos, então, o mérito das propostas do recorrente.

Comecemos, naturalmente, pela apreciação das razões de natureza adjectiva.

Neste campo, o recorrente apelidou o aresto sob censura de nulo por o mesmo ter decidido de questões que não devia, facto que se enquadra na previsão da 2ª parte da al. d) do nº 1 do art. 668º do CPC.

E porquê?

Porque, na sua maneira de ver, não indicou a recorrente apelante qualquer norma jurídica violada, nem apontou erro na aplicação da norma aplicável, nem indicou os factos concretos incorrectamente julgados nem tão-pouco os meios concretos de prova que impunham decisão sobre os pontos da matéria impugnada diversa da recorrida.

Tudo isto, na óptica do recorrente, deveria ter conduzido a Relação a abster-se de emitir pronúncia sobre tal matéria, de acordo com as regras dos arts. 690º, nº 4 e 690º-A, nº 1, ambos do CPC.

Que dizer desta argumentação?

Desde logo, impõe-se uma chamada de atenção para o facto de a apelante nas suas conclusões não ter posto em crise o juízo probatório firmado pela 1ª instância, malgrado ter manifestado discordância no corpo da sua alegação, facto que determinou a rejeição do recurso nesta parte, em perfeita consonância com a chamada de atenção do apelado.

Já no que ao art. 690º, nº 2, al. a) do mesmo diploma legal diz respeito, verdade seja dita que a recorrente, ao longo de todas as suas conclusões, não fez, como devia, a indicação da norma jurídica que entendeu ter sido violada.

A indicação da norma violada quando o recurso verse sobre matéria de direito justifica-se perfeitamente no quadro do dever de cooperação (cfr. art. 266º do CPC), da mesma forma que, no campo da petição inicial a mesma exigência é feita (cfr. art. 467º, nº 1, al. d) do mesmo Código), mas a sua omissão não determina a aplicação de qualquer sanção, antes obriga o relator ao convite ao recorrente no sentido de ser sanada a falta apontada. Este é, aliás, o sentido do nº 4 do art. 690º do CPC: perante a deficiência em causa, o relator deve convidar a parte recorrente a supri-la. Se o não fizer, então sim, haverá lugar à aplicação da sanção, ao não conhecimento do recurso.

In casu, o Exº Juiz Relator não formulou nenhum convite à apelante no sentido de colmatar a falha em causa e a Conferência acabou por conhecer da questão da sonegação. Fê-lo no sentido já apontado da sua não verificação, contrariando, dessa forma, a tese formulada pela 1ª instância.

A apreciação desta questão, a partir do momento em que o Relator omitiu o convite referido (convite que podia mui bem ter surgido por sugestão de qualquer dos adjuntos, ut nº 1 do art. 708º do CPC), tornou-se obrigatória, de tal modo que, se não o tivesse feito, então sim, haveria lugar a uma nulidade por omissão de pronúncia, tal como está previsto na 1ª parte da al. d) do nº 1 do art. 668º do CPC.

Tudo isto para dizer que não foi cometida a nulidade de decisão apontada por parte da Relação de Lisboa quando tomou conhecimento da aludida questão da sonegação, perfeitamente desenhada nas conclusões.

O que se poderá discutir é se a opção aí tomada está certa, mas isso tem a ver com o fundo da questão, com eventual erro de julgamento e nunca com nulidades da decisão.

É precisamente aqui o ponto óptimo para fazer a ponte entre a 1ª questão (já analisada) e a 2ª, a tal de natureza substantiva.

E nesta, com vista a encontrar a sua solutio, é determinante saber, antes de mais, se a matéria dada como provada e trazida aqui à colação pelo recorrente é suficiente para podermos concluir pela sonegação de bens por parte da recorrida.

Impõe-se, previamente, uma breve nota sobre o conceito legal de sonegação.

Preceitua o nº 1 do art. 2096º do CC:

“O herdeiro que sonegar bens da herança, ocultando dolosamente a sua existência, seja ou não cabeça-de-casal, perde em benefício dos co-herdeiros o direito que possa ter a qualquer parte dos bens sonegados, além de incorrer nas sanções que forem aplicáveis”.

Da leitura atenta deste dispositivo legal, uma conclusão se tira imediatamente, qual seja a da verificação necessária de dolo por parte do interessado ocultador de bens para que se possa falar com propriedade de sonegação.

Lopes Cardoso, no âmbito da aplicação do CPC de 61, fazia notar que para a procedência do incidente de declaração de sonegação, só relevava a que tivesse sido praticada com dolo, mas já não a omissão negligente na relacionação ou fundada na convicção de que não podem relacionar-se os bens em falta por não pertencerem à herança ou juridicamente questionáveis, sendo necessário que “aquele que tem por obrigação relacioná-lo tenha em vista o apossamento ilícito ou fraudulento deles em detrimento dos demais herdeiros” (in As Partilhas Judiciais, Volume I – 4ª edição -, pág. 572).

Conjugando o preceito do CPC então vigente e hoje revogado (art. 1343º) com a norma do CC supra citada (art. 1096º, nº 1), também Capelo de Sousa sublinha que, para que se possa falar de sonegação, é necessário que exista uma ocultação dolosa (in Lições de Direito das Sucessões, Volume II, pág. 85).

Pires de Lima e Antunes Varela, depois de chamarem a atenção para o facto de a sonegação ser um fenómeno de ocultação de bens (pressupondo um facto negativo, ou seja, a omissão de uma declaração, cumulado com um facto jurídico de carácter positivo, o dever de declarar por parte do omitente), não deixam de enfatizar que “só há verdadeira sonegação quando a omissão (ou mesmo ocultação) seja dolosa”, sendo de considerar “não só as manobras activas (sugestões ou artifícios) tendentes a induzir ou manter em erro os destinatários da relação de bens, quanto à existência de certos bens hereditários, como a atitude (passiva) da dissimulação do erro, em que o herdeiro se aperceba de que o cabeça-de-casal está laborando” (in Código Civil Anotado, Volume VI, pág. 157).

Também José Oliveira Ascensão não deixa de chamar a atenção para o facto de a sonegação ser “um acto doloso de ocultação de bens da herança” (in Direito Civil - Sucessões – 5ª edição – pág. 495).

Ora bem.

Perante as exigências legais apontadas, importa saber se, face à matéria de facto apurada pelas instâncias, é licito concluir que houve da parte da recorrida DD sonegação.

É altura, pois, de nos interrogarmos sobre o que ela fez de concreto e qual a sua verdadeira intenção.

Em causa está, como resulta do enunciado, um crédito que o A.-recorrente diz ser pertença dele e de sua ex-mulher, a aqui recorrida, em relação aos seus sogros, pais da sua ex-mulher, correspondente ao valor de benfeitorias realizadas num terreno que era deles e que tinha sido objecto de um contrato-promessa firmado no qual figuravam como promitentes-compradores não só o recorrente como a aqui recorrida, contrato esse que veio a ser declarado nulo.

Esse crédito começou por ser relacionado no processo de inventário subsequente ao divórcio, mas depois foi impugnado pela aqui recorrida, o que motivou a remessa dos interessados para os meios comuns.

Já no decurso deste processo veio a dar-se como provado que a recorrida DD sabia que o dito crédito nunca fora saldado.

Qual a verdadeira razão da mudança de atitude da recorrida em relação ao dito crédito?

Não sabemos. Sabemos apenas que o impugnou em sede de inventário e que depois se provou que ela sabia da sua existência.

Isto é de per se insuficiente para podermos dizer que a recorrida procurou ocultar o crédito: desde logo, o recorrente sempre teve à sua inteira disposição possibilidade de discutir e afirmar a sua existência, como acabou por acontecer.

Poder-se-á dizer que a atitude da recorrida, perante todo o manancial fáctico post divórcio, não se terá pautado pela lisura de processos, mas não cabe aos tribunal emitir juízos de censura sobre comportamentos não tipificados como ilícitos.

Mesmo a conduta da R. DD desenhada neste longo de já demorado processo (a acção deu entrada em juízo em Novembro de 1999) não se poderá catalogar como sendo de má fé só pelo facto de, ao contrário do que por ela foi alegado, ter ficado provado que sabia da existência do crédito e que o mesmo não tinha sido saldado pelos seus pais.

Ao cabo e ao resto, ela com a prova desse mesmo crédito acaba também por ser favorecida, já que metade lhe pertencerá.

Ilegítima, pois, porque despida de qualquer suporte fáctico a cimentá-la, a presunção tirada pela 1ª instância no sentido de que “a ré DD, de forma intencional, pugnou pela exclusão da relação de bens da verba que sabia dever ser partilhada”.

Ao invés, merece todo o nosso aplauso a decisão censurada que frisou bem que “apenas se pode afirmar, com segurança, que após a dissolução do casamento do A. e da 1ª Ré., foi apresentado pelo primeiro, enquanto cabeça de casal, uma relação de bens em que indicou aquele crédito por benfeitorias realizadas no imóvel em apreciação, crédito esse que foi impugnado pela ora Apelante e, na sequência do qual, foi proferido despacho a remeter as partes para os meios comuns.

A existência desta situação, …, não determina, por si só, qualquer cominação que possa ser enquadrada como de sonegação. Contrariamente ao decidido, não há qualquer automatismo entre a discussão da natureza de um bem e a sonegação do mesmo, independentemente da natureza do inventário.

E, em reforço da bondade desta posição, não deixou de realçar que a prova do conhecimento de que o crédito nunca fora saldado “vem na sequência temporal do facto que constitui o Ponto 27 dos factos provados – à data da doação do imóvel (17 de Janeiro de 1996) a Apelante «tinha perfeita consciência de tudo o quanto fora ajustado entre ela, o A. e seus pais, bem como todas as obras efectuadas”.

Certo que nesta data – vincou ainda o aresto sob censura – a apelante tinha conhecimento de certos factos respeitantes ao imóvel que se reportavam aos acordos que determinaram a celebração do contrato promessa verbal.

As premissas salientadas levam à conclusão certa:

“A Apelante limitou-se, pois, a defender o seu ponto de vista, apoiada em posição que lhe foi transmitida pelo 1º Réu (seu pai) …”.

Pelo que fica exposto, não merece acolhimento a tese do recorrente.

IVDecisão

Nega-se a revista e condena-se o recorrente no pagamento das respectivas custas.

Lisboa, aos 13 de Novembro de 2007

Urbano Dias (relator)

Paulo Sá

Mário Cruz