Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
461/2001. L.1. S.1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: VENDA DE BENS ALHEIOS
RESTITUIÇÃO DO PREÇO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 09/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

1. Há omissão de pronúncia com vício de limite previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil, quando o Tribunal incumpre, quanto aos seus poderes (e deveres) de cognição o disposto no n.º 2 do artigo 660.º do mesmo diploma.
2. São de desconsiderar no recurso as questões suscitadas pela primeira vez na alegação e que não tenham sido submetidas ao juízo “a quo” por o Tribunal “ad quem” ter de se limitar a reapreciar e escrutinar o já julgado.
3. Na fundamentação da sua convicção quanto aos factos, sujeita à regra da livre apreciação, o julgador deve limitar-se a indicar os elementos que permitam convencer da bondade da sua razão de ciência, não tendo de exaurir, e deixar expostos, todos os eventos processuais não anómalos, nem tecer considerações sobre a “impressão” que lhe causou o depoimento de uma testemunha contraditada.
4. Mas a única consequência de eventual omissão nessa área, seria a Relação, a requerimento da parte, determinar que a 1.ª Instância e se tal fosse possível, melhor fundamentasse tudo nos termos do n.º 5 do artigo 712.º do Código de Processo Civil.
5. A regra do n.º 1 do artigo 289.º do Código de Processo Civil, que impõe o efeito “ex tunc” da declaração de nulidade ou da anulação do negócio com restituição de tudo o que tiver sido prestado é inaplicável, tal qual, quando a nulidade ocorre por venda de coisa alheia.
6. Então, vale o artigo 894.º do Código Civil que nesta nulidade atípica (ou mista), exige a demonstração de boa fé do comprador para lograr a reposição “in pristinum”, a qual é, por consequência, potestativa.
7. A boa fé é aqui tomada em sentido psicológico ou ético.
8. Se o bem vendido pertence a duas pessoas, só um o tendo alienado e acção foi proposta pelo outro comproprietário, apenas contra o comprador, este para pedir a restituição do preço, teria de provocar a intervenção principal do vendedor como associado à demandante.
Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

AA e BB intentaram acção, com processo ordinário, contra o Município de Loures pedindo a declaração de nulidade de um contrato de compra e venda de um lote de terreno, celebrado entre CC e o Réu, alegando que o vendedor não era o único proprietário, sendo-o também a Autora.

Pediram, ainda, a condenação do Réu a restituir o bem ao património dos Autores.

Contestou o Réu, excepcionando a ilegitimidade dos Autores e alegando a convicção de o prédio ser pertença do vendedor.

Em reconvenção pediu o seu reconhecimento como dono invocando aquisição por usucapião.

No despacho saneador a excepção de ilegitimidade improcedeu.

Na Comarca de Loures, a acção foi julgada procedente nos seguintes termos:

- Declarada a nulidade da escritura pública de compra e venda, celebrada em 6 de Julho de 1984, relativa ao lote de terreno com a área de 15.202 m2, situada na freguesia de Santa Iria de Azóia, celebrada entre CC, como vendedor, e o Município de Loures, como comprador, por se tratar de venda de bem alheio;

- Determinar a restituição aos Autores desse lote de terreno, por o mesmo ser integrante do prédio misto denominado Terra dos Canos, situado em Pirescoxe;

- Absolver os Autores do pedido reconvencional.

O Réu apelou para a Relação de Lisboa que confirmou o julgado.

Pede, agora, revista assim concluindo:

1.ª Ao contrário do decidido pelo douto acórdão recorrido, tendo CC falecido em 1993 e não podendo fazer parte deste ou de qualquer outro processo e intervindo a A. mulher no processo ‘sub judice’ como herdeira daquele (encontrando-se nos autos a respectiva habilitação de herdeiros), então, têm os AA toda a legitimidade para restituir o preço do terreno.

2.ª Aliás, tal restituição é imposta pelo art.° 289°, n. ° 1, do C. Civil, pelo que o douto acórdão recorrido violou o presente dispositivo legal.

3.ª Para além da resposta (em sede da matéria de facto) a dar ao art.° 16 da base instrutória, o Recorrente alegou que existiam outros actos de posse desde Julho de 1984, onde se conta o próprio registo do terreno a favor do Município de Loures desde 16/07/1984, como, aliás, se encontra demonstrado nos autos, sendo que o próprio registo constitui, em si próprio, um acto de posse pública (atendendo à natureza do registo predial) e que foi pacífica ao longo de mais de quinze anos.

4.ª Assim, o início da contagem de tempo para efeitos de usucapião ocorreu, ‘in casu’, desde Julho de 1984, e não, apenas, desde a demarcação do terreno de 1991, existindo uma verdadeira aquisição por usucapião.

5.ª Ao não decidir assim, o douto acórdão recorrido violou as disposições legais que regulam a usucapião, designadamente, o art.° 1294°, do C. Civil.

6.ª Aliás, a interpretação que o douto acórdão recorrido faz destas regras transplantadas para o caso em apreço, é inconstitucional, na medida em que colide e viola o direito de propriedade privada previsto no art.° 62°, da CRP.

7.ª Caso assim não se entenda (o que não se concede), então, face à alegação de actos de posse desde 1984, no que se inclui o próprio registo do terreno a favor do Município de Loures, sempre ocorreria omissão de pronúncia geradora de nulidade, ‘ex vi’ o art.° 668°, n. ° 1, al. b), 1.ª parte, do CPC.

8.ª Apesar de contraditada a testemunha DD e recebida a respectiva contradita com inquirição da própria testemunha, a verdade é que na decisão sobre a matéria de facto o tribunal de 1.ª instância não faz qualquer referência nem à contradita, nem à credibilidade da testemunha, tendo o douto acórdão recorrido decidido que o princípio da livre apreciação da prova prevalecia na presente questão.

9.ª Porém, não é o princípio da livre apreciação da prova que está em causa, mas o facto de o tribunal de 1.ª instância ter ignorado completamente a contradita, não justificando a apreciação que faz da prova, pelo que, ao contrário do decidido pelo douto acórdão recorrido, verifica-se a nulidade prevista no art.° 668°, n. ° 1, al. d), 1.ª parte, do CPC.

 Não foram oferecidos contra alegações.

As instâncias deram por provados as seguintes factos:

- A Autora AA é filha de CC e de EE.

- Os pais da Autora foram casados no regime da comunhão geral de bens, desde o dia 19.06.1938.

- Por meio de escritura pública outorgada em 4 de Agosto de 1944, no Cartório Notarial de Loures, FF e mulher GG, HH e mulher II, JJ e mulher LL, MM, NN e mulher OO, PP, QQ e mulher RR, SS, TT, UU e mulher VV, XX, YY, ZZ e mulher AAA, BBB e mulher CCC, DDD e mulher EEE, e FFF, declararam vender a CC, e este declarou comprar, a propriedade rústica denominada ‘Terra dos Canos’, composta de terra de semeadura com oliveiras, situada no lugar de Pires-Coche, freguesia de Santa Iria de Azóia, concelho de Loures.

- Em 15/01/1946 foi inscrita na Conservatória do Registo Predial de Loures a transmissão do aludido prédio a favor do pai da Autora.

- Em 26 de Julho de 1968, faleceu a mãe da Autora, EE, tendo-lhe sucedido a Autora como única herdeira, sem testamento, tendo esta procedido à habilitação de herdeiros em 16/05/95.

- A mãe da Autora deixou como herança metade de um prédio misto, denominado Terra dos Canos, situado em Pirescoxe, com a área total de 22.478 m2, com inclusão de 305,36 m2 de parte urbana, inscrito na matriz sob os artigos 259 e 386 (anteriormente art. ° 66 secção B) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Loures sob o n. ° 833.

- Em 05/02/1969, o pai da Autora, CC, casou em segundas núpcias no regime de separação de bens, com GGG, vindo a falecer em 17.03.1993.

- O pai da Autora deixou como suas únicas herdeiras a sua mulher, GGG, e a Autora.

- O pai da Autora, CC, desanexou do prédio identificado em 7. um lote de terreno com a área de 15.202 m2, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Loures sob o n.° 13.476, fls. 53 B-46, ficha 634, da freguesia de Santa Iria de Azóia, inscrito na matriz predial urbana sob o art. 3112 da mesma freguesia, e vendeu-o ao Município de Loures, para equipamentos colectivos, pelo valor de Esc. 4.560.600$00 (quatro milhões quinhentos e sessenta mil e seiscentos escudos), o equivalente a € 22.748,18 (vinte e dois mil setecentos e quarenta e oito euros e dezoito cêntimos), por escritura pública celebrada em 06/07/1984 no Cartório Notarial do Município de Loures.

- Só intervieram na celebração da escritura pública de compra e venda do prédio desanexado, com a área de 15.202 m2, o pai da Autora, CC, no estado de casado, em segundas núpcias e sob o regime da separação de bens, com GGG, e o Presidente da Câmara Municipal de Loures, HHH, em representação do Município, ora réu.

- O R. registou a transmissão do lote de terreno referido em 9. a seu favor.

- O pai da A. celebrou a escritura pública de compra e venda, referida em 9., sem o consentimento dos AA., que se encontravam ausentes na Austrália.

- O pai da Autora recebeu o dinheiro, fazendo-o seu, sem dar conhecimento à Autora.

- O Presidente da Câmara Municipal de Loures, HHH, conhecia a GGG, tendo travado conhecimento com o pai da Autora, em data posterior a 05/02/1969, sendo visita da casa deles.

- O Presidente da Câmara Municipal de Loures, HHH, sabia que a mencionada GGG estava casada com o pai da Autora em segundas núpcias.

- O Presidente da Câmara Municipal de Loures, HHH, sabia que a mãe da A. tinha falecido e deixado como herdeira a sua filha, ora A.

- Sabia que o prédio identificado em 6, de onde foi desanexada a parcela que o Município adquiriu, era propriedade dos pais da Autora à data da morte da mãe dela.

- O mesmo sabia que a Autora, filha do Sr. CC, também era proprietária do referido terreno por herança da falecida mãe.

- À data da celebração da escritura de compra e venda, aquele sabia que a Autora se encontrava ausente de Portugal, e sem notícias, devido à ocupação do território de Timor pela Indonésia.

- O Presidente da Câmara Municipal de Loures, HHH, antes da celebração do negócio da parcela de terreno identificada em 9., e da respectiva escritura pública, foi alertado dos factos atrás descritos.

- Em momento posterior ao seu regresso a Portugal e à tomada de conhecimento da venda do lote referido em 9. ao Município de Loures, a Autora diligenciou junto deste, por carta junta a fls. 33 e 34, no sentido de se encontrar uma solução extra-judicial, sem contudo obter êxito.

- O R. procedeu à demarcação do referido terreno, pela primeira vez no decurso do ano de 1991, e, no decurso do ano de 1996, deu início a obras de saneamento referentes à rede de esgotos e águas pluviais do Bairro do Alto do Convento, levadas a cabo pelos Serviços Municipalizados de Loures, que, em 1998, se mostravam já concluídas, com conhecimento de todos e sem oposição de ninguém.

Tendo parte do terreno servido de estaleiro para as referidas obras.

Foram colhidos os vistos.

O Recorrente limitou o objecto do recurso às seguintes questões: restituição do preço, nos termos do n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil, a ser suportado também pela mulher do vendedor, entretanto, falecido; início da contagem do prazo da usucapião, com interpretação a contender com o disposto no artigo 62.º da Constituição da República; omissão de pronúncia quanto à eficácia do registo; fundamentação com ausência da referência à contradita da testemunha DD o que integraria também a referida nulidade.

Passemos, então, ao conhecimento das questões acima elencadas, embora pela ordem que nos parece mais curial.

1- Omissões de pronúncia.

2- Usucapião.

3- Restituição do preço.

4- Inconstitucionalidade.

5- Conclusões.

1. Omissões de pronúncia

Os vícios de limite assacados à deliberação recorrida, na óptica do recorrente, seriam inseríveis na primeira parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 688.º do Código de Processo Civil.

Tal acontece quando o Tribunal incumpre o n.º 2 do artigo 660.º do mesmo diploma deixando por resolver as questões – ou alguma delas – que as partes tenham submetido à sua apreciação, com excepção das que considere prejudicadas pela solução de outras.

Para a recorrente essas invalidades seriam duas.

1.1-A primeira consistiria no silenciar da questão suscitada com “a alegação de actos de posse desde 1984, no que se inclui o próprio registo do terreno” a seu favor.

Sem razão, porém.

Na linha do julgado pela 1.ª instância, que exaustivamente analisou as consequências do registo, seus objectivos e finalidade, além de, em sede de matéria de facto, ter fixado uma data, para o inicio da posse, a Relação também reapreciou estas questões, “maxime”, e como ponto de partida, o facto (e ulterior resposta) vertido no artigo 16.º da Base Instrutória, sendo que, em consequência, não omitiu o conhecimento das questões que lhe foram submetidas.

Note-se, outrossim, que na sua apelação, e para além do questionar aquele “terminus a quo”, a recorrente limitou-se a manifestar a sua discordância quanto à matéria de facto dada por assente e respectiva fundamentação. (cfr. fls. 481 a 484).

Todas as outras questões suscitadas neste segmento por novas são de desconsiderar neste recurso que tem como escopo primeiro corrigir/alterar o já julgado pela Relação, que não reapreciar “ex novo” o que a essa instância não foi submetido.

Inexiste a primeira omissão de pronúncia imputada ao Acórdão.

1.2-A segunda consistiria em não ter sido referida (na decisão sobre a matéria de facto da 1.ª instância) a contradita e a inquirição de uma testemunha e que não tenha sido feita qualquer referência à sua credibilidade.

Obviamente que, também neste caso, não se perfila omissão de pronúncia.

Muito no limite, tratar-se-ia de falta, ou de insuficiência, de fundamentação da decisão de facto pela 1.ª instância.

Mas, se tal acontecesse, a única consequência seria que a Relação, a requerimento da parte, determinasse que o primeiro julgador melhor fundamentasse, se tal fosse possível.

É o que resulta do n.º 5 do artigo 712.º do Código de Processo Civil.

Transcrevemos, a propósito, e com inteira adesão, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2006 – 06 A1994 – relatado pelo, ora, 2.º Adjunto, que assim considerou:

“Tal disposição não encontra correspondência quando a Relação, por sua vez, reapreciando a matéria de facto não indique os fundamentos da alteração ou da manutenção do decidido pela 1.ª instância.

Porém, a diferença de regimes compreende-se pela clara razão, já apontada, de que a Relação é chamada a controlar a decisão sobre a matéria de facto, reapreciando o julgado da Instância recorrida e substituindo-se-lhe na fixação do quadro factual, actividade em que reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, devendo atender aos elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão — art. 712°-2 CPC – donde a necessidade de conhecer esses fundamentos para se colocar em posição tão próxima quanto possível da do tribunal recorrido.

O mesmo não sucede com o julgamento de reapreciação, ao abrigo do disposto no art. 712° em que a motivação já não se destina a qualquer controlo de tribunal superior (no caso o STJ), pela óbvia razão de a decisão que modifique ou mantenha a matéria de facto, em consequência da valoração de depoimentos ou outros elementos de prova sujeitos à livre apreciação, não poder ser objecto e recurso ou censura.

É o que acontece, paralelamente, com as decisões da 1.ª instância de que não seja admissível recurso. Também neste caso da eventual ausência ou insuficiência de motivação da decisão de facto não decorrerão quaisquer consequências, por nunca ser caso de aplicação do art. 712°-3.”

Também, e no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 2010 – 476/99. P.1. S.1 – desta Conferência, julgou-se que:

“ A fundamentação das respostas aos quesitos — quer quanto aos provados, quer quanto aos que quedaram improvados — basta-se com uma explicação sucinta do “iter” lógico-dedutivo que levou à conclusão encontrada.

O princípio da livre apreciação das provas para a formação da convicção do julgador implica que, na fase da ponderação, decorra um processo lógico-racional que conduza a uma conclusão lógica, sensata e prudente.

Só que esse processo, insondável e íntimo, não tem de ser transposto para a motivação, que se limita a elencar críticamente as provas consideradas credíveis, sendo que o meio e momento imediatos de reacção contra o incumprimento destes princípios é o do n.° 4 do artigo 653.° do Código de Processo Civil. (...)

Porém, se vício surge alegado na Relação, será caso de aplicação do n°5 do artigo 712°, a consagrar a definitividade da decisão sobre a relevância da fundamentação das respostas.

E se a Relação fixa os mesmos factos da 1.ª instância não tem de fundamentar a matéria de facto, pois o STJ não pode controlar a bondade dessa fixação.”

Finalmente, também o Acórdão deste Supremo Tribunal de 11 de Julho de 2006 – 06 A1865 – de relato do, agora, 2.ª Adjunto, afirmou:

“ A prova há de ser sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, tudo se resolvendo, afinal, na formação de juízos e raciocínios que, tendo subjacentes as ditas regras, conduzem a determinadas convicções reflectidas na decisão dos pontos de facto sob avaliação. Deve, ela, ainda ser considerada globalmente, conjugando todos os elementos disponíveis e atendíveis (art. 515° CPC).

Como corolário da sujeição das provas à regra da livre apreciação, deve o julgador indicar os fundamentos da sua convicção por forma a permitir o controlo da razoabilidade da decisão mediante a intervenção das mesmas regras da ciência, lógica e experiência, tudo tendente a dotá-la de força persuasiva e a convencer da bondade do acerto do decidido.”

Tudo, porém, sem que deva exaurir, e deixar expostos, todos os incidentes, eventos processuais não anómalos, ou considerações sobre a “impressão” deixada por certa testemunha.

2-Usucapião.

Nesta parte, devida e correctamente apreciada no aresto recorrido, para cujos termos não nos repugna remeter (nº 5 do artigo713º CPC,  na redacção aplicável) diremos apenas que não ficou demonstrado qualquer facto material que prove ter  o Réu exercido actos de posse conducentes àquela forma originária de adquirir.

Só por si o acto de registo é um acto jurídico, que não um acto material que consubstancie a posse por não preencher os requisitos dos artigos 1251ºe seguintes do Código Civil.

 Já quanto ao “terminus a quo” do respectivo prazo, deixámos acima dito ter havido suficiente. clara e correcta pronúncia.

É que uma situação é a parte discordar do julgado e imputar-lhe erro, outra, bem diferente, é assacar-lhe vício gerador de invalidade.

Este, notóriamente, não ocorreu e aquele não se vislumbra.

 A questão foi posta em sede de matéria de facto (alteração da resposta ao quesito 16.º) que a Relação definitivamente arrumou.

3- Restituição do preço

Como resulta do acervo conclusivo, o Réu refere que, tendo o CC falecido em 1993, e intervindo a Autora-mulher no processo, como sua herdeira (aliás, de acordo com documento constante dos autos) devem os Autores restituir o preço de acordo com o imposto pelo n.º 1 do artigo 289.º, do Código Civil.

Consideremos, recordando.

A acção foi intentada por AA e seu marido BB, pedindo a declaração de nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre CC – como vendedor – e o Réu – Município de Loures – como comprador – sob a alegação de se ter tratado de venda de coisa alheia já que o imóvel vendido era, também, pertença da Autora.

O vendedor, que entretanto falecera, não foi parte na acção não tendo, em consequência, sido habilitados seus herdeiros para, em sua substituição, prosseguirem na lide.

A Autora é filha do vendedor e intentou a acção apenas por si (e seu marido) não tendo demandado o vendedor mas, e apenas, o comprador.

E embora se encontre nos autos uma certidão de habilitação de herdeiros, da qual consta como herdeira do vendedor sua viúva, esta não foi demandada, quer por si, quer como herdeira do CC que, insiste-se, nunca também fora demandado.

Dispõe o n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil que “tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado, ou se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.”

É, pois, a invalidade a operar “ex tunc” e, segundo o Prof. Manuel de Andrade – apud “Teoria Geral da Relação Jurídica”, 442 – tanto em relação às partes como em confronto de terceiros (“in rem” e não apenas “in personam”).

E tendo o negócio sido cumprido a reposição é “in pristinum” para alcançar o “statu quo ante”, sendo de observar o disposto no artigo 290.º, que impõe a simultaneidade dos deveres recíprocos de restituição (cfr. os Profs. Rui de Alarcão, in “Invalidade dos Negócios Jurídicos” – BMJ 89-235 e 241, 242 e Vaz Serra (a propósito da similitude com a resolução do contrato) in BMJ – 68.

As regras da inadimplência são aplicáveis a este princípio do cumprimento simultâneo.

Mas tratando-se, “in casu”, de nulidade por venda de bens alheios, há que atentar no disposto no artigo 894.º do Código Civil que, “em certa medida”, afasta os princípios gerais do artigo 289º (cfr. Profs. Pires de Lima e A. Varela – “Código Civil Anotado”, II, 3.ª ed., 191).

3.1 Duas questões podem pôr-se: se nos casos de invalidade em que, como aqui sucede, uma das partes a invoca e pede a restituição do que prestou, a reintegração no património do despendido pela parte contrária opera automaticamente ou é potestativa; e se, no caso de venda de coisa alheia em que o vendedor não está na lide de invalidade, terá o comprador direito a ali ser restituído.

A esta segunda pergunta a resposta será, claramente, afirmativa.

Só que, para lograr esse objectivo terá de provocar a intervenção principal como associado do demandante, nos termos dos artigos 325.º e seguintes da lei processual, não se tratando de intervenção acessória pois o vendedor sempre teria legitimidade para intervir como parte principal (n.º 1 do artigo 330.º do Código de Processo Civil).

 Mas não o tendo feito, não pode, nesta lide, obter a restituição do preço que pagou.

De todo o modo, a questão da legitimidade dos Autores e de eventual preterição de litisconsórcio, foi definitivamente arrumada em despacho não impugnado e, portanto, com caso julgado formal.

Fica, em consequência, prejudicada a análise das várias posições  da doutrina onde os Profs. P. de Lima e A. Varela (ob. cit. II), Vaz Serra (RLJ 106.º - 26), Raul Ventura (ROA – 40-307), Menezes Leitão (“Direito das Obrigações”, III, 98) e o Dr. Carneiro da Frada (“Direito das Obrigações”, III, 52) surgem a defender que a nulidade só pode ser invocada pelos contraentes e Profs. Romano Martinez (ob.abaixo  cit. 113) e Diogo Bartolo (ob. abaixo cit. IV – 401) insistindo, na linha do Prof. Galvão Telles – BMJ 83. 138) em poder ser invocada por qualquer interessado, tese adoptada pelo aresto ora sob escrutínio.

3.2 Mas mesmo que assim não fosse entendido, sempre, e como acima se insinuou, teriam de conjugar-se as regras dos artigos 289.º, n.º 1 do Código Civil – norma geral para as situações de nulidade ou de anulabilidade do negócio jurídico – e 894.º do mesmo diploma – especifica para a nulidade da venda “a non domino” e reportada a situação em que o comprador procedeu de boa fé.

Ou seja, e como ensinam os Profs. P. de Lima e A. Varela (ob. vol. cit, 192), “se o comprador tiver agido de má fé, isto é, com conhecimento de que a coisa era alheia, não pode, por argumento a contrário, pedir a restituição integral do preço.

Apenas tem o direito de pedir, com base nos artigos 473.º e seguintes, aquilo com que o vendedor se locupletou.”

Permitimo-nos discordar desta última conclusão, sabido que a restituição resultante da invalidade do negócio não se aplicam as regras do enriquecimento “uma vez que não se dá então uma atribuição patrimonial sem causa, mas sim uma nulidade ou anulabilidade, com as quais os efeitos do negócio se não produzem ou podem não se produzir” (Prof. Vaz Serra, in “Enriquecimento sem causa”, nota 34, BMJ 81).

O que sucede é que a nulidade resultante da compra e venda de bens alheios integra uma invalidade atípica (ou nulidade mista). Isto porque, e por um lado, o vendedor não pode opor a invalidade ao comprador de boa fé (artigo 892.º do Código Civil) o que representa uma limitação ao regime regra do citado artigo 286.º (tal como o comprador de má fé não pode opô-lo ao vendedor de boa fé); de outra banda é sanável “ex vi” do artigo 895.º do Código Civil.

E tal explica o regime de excepção daquele artigo 894.º, sendo sempre potestativa a restituição integral do preço que tem como pressuposto a alegação, e a prova, da boa fé do comprador.

Boa fé que, aqui, é tomada no sentido psicológico (cf. Prof. Pedro Romano Martinez, in “Direito das Obrigações” (Parte Especial) – Contratos, 2.ª ed., 115, nota 3; cf., ainda, sobre o instituto, Dr. Nuno Oliveira – Contrato de Compra e Venda – Noções Fundamentais, 2007, e Dr. Diogo Bartolo, “Venda de bens alheios” in Estudos em Homenagem ao Prof. Galvão Telles).

Ora, da matéria de facto provada, resultou que o representante do Réu que outorgou a escritura (o Presidente da Câmara Municipal de Loures) sabia que o prédio não era só do vendedor, mas também pertença da sua filha o que, em principio, afastaria a sua boa fé em sentido ético (cf., v.g., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Junho de 2008 – 08 A1736).

 Só que tal questão, não será de exaurir nesta lide pois a Ré não formulou o pedido de restituição de preço, e essa restituição é, como se disse, potestativa e não automática. no caso concreto.

4 – Inconstitucionalidade

Finalmente, o recorrente refere que a interpretação que o acórdão recorrido faz das “disposições legais que regulam a usucapião designadamente, o artigo 1294.º do Código Civil” é inconstitucional por violação do artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa.

Este preceito garante o direito à propriedade privada.

Ora, não se alcança, nem o recorrente o explica no corpo da sua alegação, em que medida o artigo 1294.º do Código Civil, norma aplicada pelas instâncias, tal como os artigos 1287.º e 1268.º contendem com aquele artigo 62.º da lei fundamental.

Não serão necessárias mais considerações para concluir pela não razão deste segmento recursório.

5-Conclusões.

Pode concluir-se que:

a) Há omissão de pronúncia, com vício de limite previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil, quando o Tribunal incumpre, quanto aos seus poderes (e deveres) de cognição, o disposto no n.º 2 do artigo 660.º do mesmo diploma.

b) São de desconsiderar no recurso as questões suscitadas pela primeira vez na alegação e que não tenham sido submetidas ao juízo “a quo” por o Tribunal “ad quem” ter de se limitar a reapreciar e escrutinar o já julgado.

c) Na fundamentação da sua convicção quanto aos factos, sujeitos à regra da livre apreciação, o julgador deve limitar-se a indicar os elementos que permitam convencer da bondade da sua razão de ciência, não tendo de exaurir, e deixar expostos, todos os eventos processuais não anómalos, nem tecer considerações sobre a “impressão” que lhe causou o depoimento de uma testemunha contraditada.

d) Mas a única consequência de eventual omissão nessa área, seria a Relação, a requerimento da parte, determinar que a 1.ª Instância e se tal fosse possível, melhor fundamentasse, tudo nos termos do n.º 5 do artigo 712.º do Código de Processo Civil.

e) A regra do n.º 1 do artigo 289.º do Código de Processo Civil, que impõe o efeito “ex tunc” da declaração de nulidade ou da anulação do negócio com restituição de tudo o que tiver sido prestado é inaplicável, tal qual, quando a nulidade ocorre por venda de coisa alheia.

f) Então, vale o artigo 894.º do Código Civil que, nesta nulidade atípica (ou mista), exige a demonstração de boa fé do comprador para lograr a reposição “in pristinum”, a qual é, por consequência, potestativa.

g) A boa fé é tomada em sentido psicológico ou ético.

h) Se o bem vendido pertence a duas pessoas, só um o tendo alienado e acção foi proposta pelo outro comproprietário, apenas contra o comprador, este para pedir a restituição do preço, teria de provocar a intervenção principal do vendedor como associado à demandante.

Nos termos expostos, acordam negar a revista.

Custas pelo recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 14 de Setembro de 2010

Sebastião Póvoas (Relator)

Moreira Alves

Alves Velho