Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05A3958
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDES MAGALHÃES
Descritores: FALÊNCIA
ACTIVO
PASSIVO
Nº do Documento: SJ200601240039586
Data do Acordão: 01/24/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 164/05
Data: 05/19/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : - É considerada em situação de insolvência a empresa que se encontre impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações, em virtude de o seu activo disponível ser insuficiente para satisfazer o seu passivo exigível (art.º 3º CPEREF).
- O que verdadeiramente caracteriza a insolvência é a insuficiência do activo líquido face ao passivo exigível.
- O devedor pode ser titular de bens livres e disponíveis de valor superior ao activo, e mesmo assim, estar insolvente por esse activo não ser líquido e o devedor não conseguir com ele cumprir pontualmente as suas obrigações.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


A "A", Lda. vem no processo 57/01, do 1º Juízo do Tribunal da Comarca de Abrantes recorrer de revista do acórdão do Tribunal da Relação de Évora que confirmou a sentença daquele Juízo que decretou a sua falência a requerimento da B, Lda.
Formula nas suas alegações as seguintes conclusões:
I - O presente recurso vem interposto do Acórdão da Relação de Évora que considerou improcedente o recurso oportunamente apresentado da decisão de Embargos;
II - A Recorrente não obstante aceitar que se encontra em situação económica difícil, não aceita que esteja em situação de insolvência nem que estejam verificados os pressupostos para que seja declarada a falência.
DE FACTO,
III. Tem um activo provado em audiência de cerca de cinco vezes superior ao passivo.
IV. Activo esse traduzido em activos imobiliários cujo valor patrimonial atinge cerca de € 7.500.000,00, quando o passivo se situa próximo de € 1.500.000,00,
V. O que por si só era razão suficiente para o M.mo juiz determinar o prosseguimento dos autos como de Recuperação.
VI. O não cumprimento pontual das suas obrigações deve-se a imponderáveis que não dependem da vontade ou da gestão que tem sido promovida pelos gerentes da Requerida.
VII. Designadamente, o incumprimento deve-se ao facto de haver um claro e manifesto excesso das penhoras e das hipotecas relativamente aos montantes que garantem.
VIII. É incorrecta e ilegal, por falta de suporte legal e fáctico, a conclusão das Sentenças quando referem que pelo facto do património da Requerida se encontrar onerado, esta não pode dispor dele.
DE FACTO
IX. As garantias registadas determinam, tão só, o direito do credor a ser pago pelo montante garantido, assistindo-lhe o direito a seguir o bem até que esse pagamento se encontre efectuado,
X. Não determina qualquer impossibilidade ou limitação de disposição patrimonial, para além daquela que resulta da garantia do referido crédito.
ALÉM DISSO,
XI. È certo que a Requerida só não resolveu uma parte relevante do passivo reclamado porquanto durante sete anos esteve impedida de alienar "os lotes de terreno da urbanização" que promoveu exactamente para gerar receitas e, desse modo, liquidar parte do seu passivo.
DE FACTO
XII. Subjacente à promoção da urbanização está um contrato de associação em participação, que determinada, designadamente, a obrigatoriedade de intervenção de todos os parceiros no empreendimento para a venda dos lotes
XIII. Tendo falecido um desses parceiros (no caso o DR. C) e tendo-lhe sucedido um menor, a necessidade de autorização judicial para alienação dos lotes demorou três anos a ser conseguida pelos demais herdeiros;
XIV. E quando esta foi conseguida junto do Tribunal Judicial da Comarca de Cascais, o outro parceiro havia, entretanto, accionado a sociedade por incumprimento, o que determinou a condenação da requerida no pagamento do montante da dívida de capital para com este, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos á taxa legal em vigor.
XV. Estas circunstâncias alheias à vontade da Requerida, aliadas ao facto do Contrato de Associação em Participação não prever nenhum mecanismo para salvaguardar estas situações, determinaram a impossibilidade de alienação de lotes de terreno da urbanização e, consequentemente, determinaram o cerceamento da liquidez da requerida;
XVI. Não fora estas circunstâncias e a situação da Requerida seria, por certo, bem diferente, desde logo atento o valor dos lotes de terreno da urbanização, que ascendem a mais de € 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil euros), conforme avaliação dos autos
XVII. Situação esta tanto ou mais relevante quando é certo que uma parte relevante do passivo (a maior fatia do passivo) são os créditos reclamados pelos parceiros da Urbanização, que no conjunto ascendem, a cerca de € 1.000.000,00 (Um milhão de euros);
XVIII. Por fim a sentença peca por falta de fundamentação, tendo feito uma incorrecta análise e interpretação jurídica dos factos.
XIX. A situação da Requerida referida supra não traduz uma situação de insolvência (no sentido da empresa carecer, por completo, de meios próprios e de crédito, para cumprir as suas obrigações)
XX. Quando muito, traduz-se numa situação "económica difícil", evidenciada por ponderáveis dificuldades económicas ou financeiras que embaraçam o normal funcionamento da empresa).
XXI. O activo disponível da sociedade é, de facto, superior (aliás, substancialmente superior) ao passivo exigível.
XXII. Pelo que, tendo sido feita prova desta superioridade do activo e não obstante estar pedida a falência da Requerida, o despacho de prosseguimento dos autos deveria ser no sentido da recuperação e não da falência.
XXIII. Tendo indevidamente sido proferido o despacho de prosseguimento de falência e tendo-se verificado, em sede de julgamento, que o activo é substancialmente superior ao passivo e, sobretudo, que a empresa é viável, deveria Ter sido rejeitado o pedido declaratório falência.
ALIÁS,
XXIV. Dos autos não resulta em lugar algum que a empresa seja inviável, situação que aliás, seria contra procedente em face da superioridade do activo em face do passivo.
XXV. A sentença viola o princípio fundamental subjacente aos códigos dos Processos Especiais de Recuperação de Falência: O primado da Recuperação sobre a falência.
XXVI. Realça-se, a este particular o preâmbulo do Dec. - Lei n° 132/93, e também do Decreto Lei 315/98, no qual se refere, em termos categóricos, «a prioridade do regime de recuperação sobre o processo de falência conducente à extinção definitiva da empresa devedora»
XXVII. Subjaz, pois, ao diploma legal em questão toda uma filosofia em que a recuperação de empresa surge como objectivo primordial, devendo, assim, a interpretação das respectivas normas ser feita, "prima fade", em função daquele objectivo - o que não foi feito pela sentença que se recorre.
XXVIII. Assim, atento a evidente superioridade do activo em face do passivo e tratando-se, como se trata, de empresa viável, ao não decidir pela rejeição do pedido de falência em sede de embargos, o Tribunal a quo, interpretou deficientemente a prova produzida e, essencialmente, aplicou de forma incorrecta a lei pelo que, salvo melhor opinião, não decidiu em conformidade com o direito.
A decisão objecto do presente recurso violou as seguintes disposições:
I. Artigos 342.° do Código Civil
II. Artigos 264° e 664.° do Código de Processo Civil,
III. E, entre outros, os artigos 1.º, 3.°, 8.°, 23.°, 25.° dos CPEREF, bem como o espírito do diploma reflectido nos preâmbulos dos Decretos Lei 132/93 e 315/98.
IV. O Princípio da legalidade, constitucionalmente consagrado.
TERMOS EM QUE,
Deve ser concedido provimento ao presente Recurso e a douta sentença recorrida revogada e, sempre com o mui douto suprimento de V. Ex.as ser proferido douto acórdão, com todas as consequências legais
Corridos os vistos, cumpre decidir.
É a seguinte a matéria de facto provada:
A)- A requerida em por o tecto o exercício da exploração agro-pecuária e tem sede na herdade do Vale das Donas, S. Miguel do Rio Torto, Abrantes.
B)- A requerida encontra-se, actualmente, sem exercer a sua actividade.
C)- Por sentença transitada em julgado, proferida em 22/10/2001, nos autos apensos de habilitação de cessionário n.° 57-A/2001 deste Tribunal, D foi declarado habilitado como cessionário dos créditos que a "B, CRL" era titular perante a requerida, e que esta ainda não pagou, no montante global de 159.410.799$00 (cerca de € 795.079,00).
D)- E é credor da requerida, no montante de 49.953.425$00 (€ 249.166,63 ), que inclui capital e juros contados até 30/1/2001.
E)- O "Banco F, S.A." é credor da requerida no montante de € 216.498,65.
F)- A herança de G é credora da requerida, no montante de € 598.556,40.
G)- "H, CRL", é credora da requerida, no montante de € 19.019,35.
H)- "I" é credor da requerida, no montante de € 26.628,65.
I)- J é credor da requerida, no montante de € 15.517,95.
J)- "K - Contabilidade e Organização de Empresas, L.da", é credora da requerida, no montante de € 8.509,21.
K)- A Direcção Geral do Tesouro é credora da requerida, no montante de € 5.689,60¬
L)- L é credora da requerida no montante de € 62.185,40, acrescido de juros vincendos, desde 9/9/2002, até integral pagamento, sobre o capital.
M)- M é credor da requerida, no montante de € 21.751,40.
N)- N é credor da requerida, no montante de € 19.333,28.
O)- "O" e P são credores da requerida, no montante de € 329.111,66, acrescido de juros a partir de 22/10/2002.
P) A requerida é proprietária dos seguintes bens imóveis:
- Herdade do Vale das Donas, sito em S. Miguel do Rio Torto, Abrantes, com 169,78 ha, composta de sobreiros, culturas arvenses e regadio, pinheiro manso, área de forragens e área social, descrita na Conservatória do Registo Predial de Abrantes com o n.° 01176/050595.
- Herdade dos ..., sita em São Miguel do Rio Torto, Abrantes, com 78,39 ha, composta de culturas arvenses e sobreiros, pinheiros mansos e bravos, área de forragens e área social, descrito na Conservatória do Registo Predial de Abrantes com o n.° 01896/291001.
Q)- A herdade do ... está hipotecada a favor de G e E (cota C-2, Ap. 10/071194 ) e encontra-se penhorada a favor de E (cota F¬3, Ap. 23/190201 ).
R)- A herdade dos Covões está hipoteca a favor da Fazenda Nacional ( cota C-2; Ap. 01/060493 ) e a favor de D ( cota C-1, Ap. 27/291001 ).
S)- A herdade do ... está avaliada em € 3.500.000,00 e a herdade dos ....está avaliada em € 4.000.000,00.
T)- Os lotes de terreno da urbanização sita na herdade do .... foram avaliados em € 1.228.500,00, a que haverá que descontar uma quantia de cerca de € 40.000,00, correspondente ao custo das obras em falta.
U)- A urbanização sita na herdade do Vale das... tem as respectivas obras paradas há, pelo menos, dois anos.
V)- Pelo menos em parte da urbanização, as obras de saneamento, água e electricidade encontram-se concluídas.
W)- Falta executar os arruamentos, os acessos e os passeios, que ainda não estão pavimentados, nem foi instalada guia no seu limite exterior.
X)- Existem, actualmente, cinquenta e três lotes para venda, nessa urbanização.
Y)- A requerida só conseguirá vender os lotes após os mesmos ficarem livres de ónus ou encargos.
Z)- A requerida apresentou, na Câmara Municipal de Abrantes, um pedido de viabilidade para o destaque de uma parcela de terreno e construção de um conjunto turístico, na Herdade do Vale das ..., em S. Miguel do Rio Torto.
AB)- A parcela de terreno a destacar situa-se parcialmente dentro do perímetro urbano em espaço de preenchimento e fora do perímetro urbano, em espaço agro-florestal.
AC)- Como a parcela de terreno a destacar não tem fins habitacionais com um máximo de dois fogos, não é possível o destaque.
AD)- Na herdade do Vale das...., existe uma nascente de água.
AE)- Esta água encontra-se classificada como água de nascente, pelo Instituto Geológico Mineiro, com potencialidades reais para ser engarrafada.
AF)- Em 10/3/1997, faleceu G, o qual havia sido um dos subscritores do contrato de associação em participação, nos termos do qual se associou, à ora embargante, na concretização do projecto da urbanização sita na herdade do Vale das ....
AG)- Tendo-lhe sucedido um menor, a mãe deste pediu autorização judicial para, em conjunto com os demais herdeiros do falecido C, proceder ao distrate ou à extinção gradual das hipotecas que, a favor deste último, se encontravam registadas sobre o prédio denominado "Herdade do Vale das ....", onde estava prevista a construção da urbanização.
AH)- O credor E instaurou, no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, uma acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra a ora embargante, por esta não estar a cumprir os objectivos da parceria da urbanização.
E foram dados como não provados os seguintes factos:
A)- que a venda dos cinquenta e três lotes importe uma quantia superior a € 2.000.000,00 ( resposta negativa ao n.° 5 da base instrutória dos autos apensos de falência).
B)- que a concretização do novo loteamento possibilite, à requerida, um encaixe não inferior a € 500.000,00 (resposta negativa ao n.° 10 da base instrutória dos autos apensos de falência ).
C)- Que os incêndios ocorridos no último Verão impossibilitassem a conclusão da urbanização já existente e impedissem a construção do novo loteamento (resposta negativa ao n.° 11 da base instrutória dos autos apensos de falência ).
Feita esta enumeração, e delimitado como está o objecto do recurso pelas conclusões das alegações da recorrente começaremos por dizer que ela carece de razão.
Com efeito, esta com os embargos que deduziu não logrou por em causa o decretamento da sua falência.
Preceitua o art.º3 nº1 C.P.E.R.E.F., (aplicável ao caso presente,) que "é considerada em situação de insolvência, a empresa que se encontre impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações, em virtude de o seu activo disponível ser insuficiente para satisfazer o seu passivo exigível".
Comentando esta disposição legal diz João Labareda, CPEREF, 3ª edição, pág. 69, que o legislador foi infeliz nos termos utilizados, pois, na verdade, não é pela insuficiência do activo disponível face ao passivo exigível que, em rigor, se caracteriza a insolvência; é sim insuficiência do activo liquido, o que é coisa bem diferente!
É que devedor pode ser titular de bens livres e alienáveis disponíveis, portanto! - de valor superior ao passivo e, mesmo assim, estar insolvente, exactamente porque esse activo não é líquido e o devedor não consegue, com ele, cumprir pontualmente as suas obrigações.
Ora no caso "sub judice" sucede que, efectivamente, a recorrente não tem um activo liquido que lhe permita cumprir as suas obrigações.
Na verdade, os seus débitos ascendem a mais de um milhão e quinhentos mil euros, enquanto o seu activo, por se encontrar imobilizado e insusceptível de rendimento, se revela insuficiente para satisfazer o passivo exigível.
Como se sabe o conteúdo da noção de insolvência à luz do aplicável e citado art.º 3 do CPEREF traduz-se na ausência de meios próprios da empresa para levar a cabo o cumprimento das obrigações assumidas, independentemente do saldo patrimonial.
E, assim, insolvabilidade é a impossibilidade de cumprir com pontualidade.
Essa impossibilidade está patente no caso presente, apesar de a recorrente ter dois imóveis no valor de 7.500.000 €.
Como salienta o Ministério Público nas suas alegações, "a recorrente faltou ao cumprimento das suas obrigações, por carência de meios, revelando uma incapacidade generalizada de solver os seus compromissos e sem recuperação económica".
O seu activo encontra-se numa situação de falta de capacidade produtiva, não gera rendimentos que possam fazer face às dividas contraídas, e a recorrente também não tem capacidade creditícia.
Por tudo o exposto, e sem necessidade de mais amplas considerações, improcedem as conclusões das alegações da recorrente, sendo de manter o decidido no acórdão recorrido, que não violou quaisquer disposições legais, "maxime" as mencionadas pela recorrente.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 24 de Janeiro de 2006
Fernandes Magalhães
Azevedo Ramos
Silva Salazar