Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
650/12.2TBCLD-B.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: AUTORIDADE DO CASO JULGADO
INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
IMPUGNAÇÃO
VERIFICAÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
Data do Acordão: 10/23/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS / RESPOSTA À IMPUGNAÇÃO / SANEAMENTO DO PROCESSO.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018, 5.ª Edição, p. 67;
- Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, 2.ª Edição, p. 715;
- Carvalho Fernandes e João Labareda , Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE) Anotado. Legislação Complementar, Lisboa, Quid Juris, 2015, 3.ª Edição, p. 128, 528, 529 e 531;
- José Lebre de Freitas, Pedido de declaração de insolvência, Pedido de declaração de insolvência, in: AA. VV., Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações sobre o Anteprojecto de Código, Ministério da Justiça, Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 14 e 15;
- Luís Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Coimbra, Almedina, 2017, 9.ª Edição, p. 204 e 205;
- Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, p. 306-307;
- Mariana França Gouveia, Verificação do passivo, in: AA. VV., Themis, Edição Especial, Novo Direito da Insolvência, 2005, p. 58-159.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 131.º, N.º 3 E 136.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 25-11-2008, PROCESSO N.º 08A3102, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 12-07-2011, PROCESSO N.º 129/07.4TBPST.S1;
- DE 14-11-2013, PROCESSO N.º 22332/09.2T2SNT-ZV.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 30-09-2014, PROCESSO N.º 3045/12.4TBVLG-B.P1.S, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 18-10-2016, PROCESSO N.º 106/13.6TYVNG-B.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 30-03-2017, PROCESSO N.º 1375/06.3TBSTR.E1.S1;
- DE 22-06-2017, PROCESSO N.º 2226/14.0TBSTB.E1.S1.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

-DE 26-11-2013

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

-DE 8-05-2018

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

-DE 26-11-2013, PROCESSO N.º 710/11.7TJPRT-C.P1.
Sumário :

I. A autoridade de caso julgado da sentença restringe-se à decisão final, sem prejuízo do dever de interpretação do seu conteúdo.

II. Na hipótese de falta de resposta à impugnação da lista provisória de créditos, prevista no artigo 131.º, n.º 3, do CIRE, são necessariamente admitidos os factos alegados na impugnação, mas o juiz não fica dispensado de proceder às diligências necessárias e adequadas à verificação do crédito, nos termos do artigo 136.º do CIRE.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrente: AA

Recorrido: BB. S.A.

Nos autos de reclamação de créditos apensos à insolvência de ... Lda, veio AA, ora recorrente, reclamar um crédito no montante de €1.900.000,00 (um milhão e novecentos mil euros), por incumprimento de um contrato promessa de cessão de quota que celebrou em Setembro de 2008 com o insolvente, invocando direito de retenção sobre 20 fracções habitacionais de um prédio que a insolvente tinha em construção, denominado ..., ....

           O administrador da insolvência não reconheceu o crédito, com fundamento na invalidade do contrato, e, portanto, tão-pouco reconheceu o direito de retenção.

           Tal decisão foi impugnada pelo credor reclamante, nos termos do artigo 130.º do CIRE, devendo entender-se que, pelas vicissitudes relatadas nos autos, não houve resposta à impugnação.

Foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos e o crédito de AA não foi reconhecido.

Desta sentença apelou AA para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, em Acórdão de 26.11.2013 (transitado em julgado em 10.02.2016), deu razão ao apelante.

Foi proferida nova sentença de verificação e graduação de créditos, na qual o Tribunal de 1.ª instância decidiu, “[n]a sequência do douto Acórdão proferido pela decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, declarar verificado o crédito reconhecido ao credor AA sobre a insolvente, no valor € 1.900.000,00, com natureza garantida por força do direito de retenção sobre as fracções identificadas”.

Desta sentença de verificação e graduação de créditos apelou, por sua vez, o credor BB, S.A. (antes ...) para o Tribunal da Relação de Coimbra.

Atendendo às conclusões apresentadas pelo apelante, o Tribunal da Relação de Coimbra, em Acórdão de 8.05.2018 (Acórdão ora recorrido), entendeu que o recurso se circunscrevia à apreciação das seguintes questões:

1.ª - saber qual a interpretação a dar ao n.º 3 do artigo 131º do CIRE;

2.ª - saber se o acórdão da Relação de Lisboa de 26.11.2013 havia reconhecido o crédito do recorrido; e

3.ª - saber se este crédito estava garantido por direito de retenção sobre as 20 fracções integradas no património da insolvente.

Pronunciando-se sobre a 1.ª questão, entendeu o Tribunal da Relação de Coimbra que uma interpretação do n.º 3 do artigo 131.º do CPC, em que o juiz se limitasse a dar por reconhecido um crédito por não ter sido apresentada resposta à impugnação à lista de créditos não reconhecidos seria dificilmente sustentável no plano constitucional, por implicar um efeito cominatório pleno.

Quanto à 2.ª questão, considerou o Tribunal da Relação de Coimbra que o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa não se havia pronunciado sobre o mérito da impugnação apresentada pelo recorrido, determinando apenas que o crédito fosse verificado.

Vale a pena expor o raciocínio do Tribunal da Relação de Lisboa:

A fase da verificação de créditos inicia-se, como resulta do art. 128º, com a reclamação dos créditos sobre a insolvência. Ao administrador da insolvência cabe elaborar e apresentar uma lista dos créditos por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos (art. 129º), listas estas que podem ser alvo de impugnações nos termos previstos no art. 130º.

            Ora, o nº3 deste preceito dispõe que:

           “Se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação de créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste da lista.”

            Por sua vez, estatui o art. 131º:

           1. Pode responder a qualquer das impugnações o administrador da insolvência e qualquer interessado que assuma posição contrária, incluindo o devedor.

            2. (…).

           3. A resposta deve ser apresentada dentro dos 10 dias subsequentes ao termo do prazo referido no artigo anterior ou à notificação ao titular do crédito objecto da impugnação, consoante o caso, sob pena de a impugnação ser julgada procedente.

           Tem-se entendido e pensamos que bem, que o conceito de erro manifesto não se resume ao erro formal, podendo assumir natureza substancial por não ser possível deduzir a existência do crédito dos elementos de facto invocados. (Ac. Relação do Porto de 02.06.2014, P. 3953/12.2TBVNG-B.PI)

            Por outro lado,

           Uma interpretação do nº 3 do art. 131º, em que o juiz se limita dar por reconhecido o crédito por não ter sido apresentada resposta à impugnação à lista de créditos não reconhecidos, é dificilmente sustentável constitucionalmente, por implicar um efeito cominatório pleno, que foi afastado pelo Novo Código de Processo Civil, e que pode ser violador do acesso ao direito e à tutela jurisdicional fixada no art. 20º da CRP. Como bem refere Mariana França Gouveia, in Themis, edição especial 2005, 'Novo Direito da Insolvência', a 'Verificação do Passivo':

          'Os efeitos cominatórios plenos (ou semi-plenos) só se justificam quando não há contestação, quando não há litígio. E nos casos que tratamos, há já impugnação, o que significa que há um litígio trazido e apresentado ao tribunal. O litígio apenas pode ser resolvido pelo juiz e de acordo com o apresentado ao tribunal pelos sujeitos em discórdia.'

           Perfilhamos assim o entendimento propugnado por Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 2ª edição, pág. 555, para os quais o conceito de erro manifesto deve interpretar-se em termos amplos, devendo o juiz 'verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar'.

            Decidiram neste sentido os Acórdãos do STJ de 30.09.2014, P. 3045/12.4, e desta secção e Relação de 28.04.2015, CJ, ano XL, tomo, 2, pag.44, com o seguinte sumário: 'Apelando aos critérios interpretativos previstos no art. 9º do Cód. Civil, em especial à unidade do sistema jurídico, o disposto no art. 131º, nº3 do CIRE, deve interpretar-se restritivamente no sentido de consagrar um cominatório semipleno, solução que é harmónica com a inequívoca natureza declarativa da reclamação e graduação de créditos, com importação da disciplina do processo declarativo comum.'

           Atento o fim visado pelo processo de insolvência, de protecção e satisfação dos direitos dos credores (art. 1º do CIRE), conjugado com os princípios processuais gerais que conferem ao juiz poderes de gestão do processo, com vista a obter a 'justa composição do litígio' (art. 6º do CPC), não pode aceitar-se uma interpretação em que o juiz se limita a homologar 'cegamente' a lista por um eventual efeito cominatório pleno (Ac. do STJ de 30.09.2014 supra citado).

          Em suma, e com o devido respeito, carece de razão o Recorrido quando sustenta que o Acórdão da Relação de Lisboa de 26.11.2013 reconheceu o crédito por si reclamado.

Nem aquele acórdão nem o tribunal recorrido verificaram a validade do crédito reclamado, 'a conformidade substancial e formal dos elementos probatórios pertinentes ao crédito invocado”, pelo que não existe caso julgado formal que impeça a apreciação do crédito'.

Por fim, passando à apreciação do crédito, concluiu o Tribunal da Relação de Coimbra que, sendo o crédito respeitante ao incumprimento de um contrato promessa que estava ferido de nulidade, não existia qualquer crédito. Ainda que assim não fosse, nunca haveria direito de retenção.

 O Tribunal recorrido julgou, em suma, procedente o recurso interposto da sentença de verificação e graduação de créditos pelo credor BB SA, e, em consequência, revogou a sentença na parte em que reconheceu e graduou o crédito de AA.

Desta decisão do Tribunal da Relação de Coimbra vem agora AA interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, pedindo que esta decisão seja revogada e mantida a sentença de verificação e graduação de créditos proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.

Alega o recorrente, no essencial, que:

1.º - o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 8.05.2018, revogando a sentença de verificação e graduação de créditos na parte em que esta reconheceu e graduou o crédito do recorrente, ofendeu o caso julgado e a autoridade de caso julgado decorrente do trânsito em julgado, em 10.02.2016, do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.11.2013; e

- o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 8.05.2018, defendendo que o artigo 131.º, n.º 3, do CIRE tem um efeito cominatório semipleno e não, como afirmado noutra jurisprudência, designadamente o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26.11.2013 (Proc. 710/11.7TJPRT-C.P1), um efeito cominatório pleno, fez uma interpretação errada da lei.

Contra-alega o recorrido, no essencial, que:

1.º - o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 8.05.2018, ao revogar a sentença de verificação e graduação de créditos na parte em que esta reconheceu e graduou o crédito do recorrente, não ofendeu o caso julgado nem a autoridade de caso julgado, uma vez que aquele crédito não tinha ainda, até aí, o sido apreciado; e

2.º - o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 8.05.2018 interpretou correctamente o disposto no artigo 131.º, n.º 3, do CIRE, ao atribuir à falta de resposta à impugnação um efeito cominatório semipleno.

Sendo o objecto do recurso, para lá das questões de conhecimento oficioso, delimitado pelas conclusões do recorrente, as questões a decidir, in casu, são duas:

1.ª – se existiu ofensa ao caso julgado e à autoridade de caso julgado; e

2.ª – se a norma do artigo 131,º, n.º 3, do CIRE consagra um efeito cominatório pleno ou um efeito cominatório semipleno.

                                                           *

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1. O ..., em 15.03.2012, propôs a presente acção especial de insolvência, requerendo a declaração de insolvência de “CC, Lda.”.

            2. Por sentença proferida a 19.10.2012, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência de “CC, Lda.”.

           3. Pelo Exmo. Administrador da Insolvência foram reconhecidos os créditos constantes da lista que apresentou nos autos a fls. 2 a 7, com o aí indicado montante e natureza, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

           4. Na sequência do acórdão proferido a 26.11.2013 pelo Tribunal da Relação de Lisboa encontra-se ainda reconhecido um crédito sobre a insolvente a favor de AA no valor de € 1.900.000,00, correspondente ao dobro do sinal constante do contrato-promessa outorgado entre a insolvente e AA em 16/09/2008.

            5. Nos termos da lista de credores apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência:

           a. Ao credor ... foi reconhecido um crédito no valor de € 13.219.409,62 qualificado como garantido por força das duas hipotecas voluntárias registadas sobre os prédios descritos sob os números 3316 e ...; e um crédito no valor de € 51.000,00 classificado como privilegiado por força do disposto no artigo 98.º, n.º1, do CIRE.

           b. Ao credor Instituto de Segurança Social, IP foi reconhecido um crédito no valor de € 11.552,88, classificado como privilegiado;

            c. Ao credor Fazenda Nacional foi reconhecido um crédito no valor global de € 12.531,13, classificado como privilegiado, sendo o remanescente classificado como crédito comum;

            d. Ao credor DD foi reconhecido um crédito no valor de € 75.848,76, classificado como garantido por força da hipoteca voluntária registada sobre a fracção “...” do prédio descrito sob o n.º...;

            e. À credora EE foi reconhecido um crédito no valor global de € 4.104,08, classificado como privilegiado (laboral), privilégio esse que incide sobre a fracção autónoma designada pela letra “A”, do prédio descrito sob o n.º ....

            f. Ao credor FF foi reconhecido um crédito no valor de € 649.640,11, classificado como crédito subordinado.

           g. Todos os demais créditos reconhecidos pelo Sr. Administrador da Insolvência foram classificados como créditos comuns.

            6. A massa insolvente é constituída pelos seguintes bens:

           a. Fracções autónomas designadas pelas letras: …, …, .., …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, … …, …, …, …, …,…,…,…,…,…,…,…,…, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, ..., …, …, …, …, …, …., …, …, …, …, …, …, …, …, …., …, …, …, …, …, …., … …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, … …, …, …, …, do prédio urbano sito na Urbanização ..., Rua ..., n.º , freguesia de ... – ..., descrito na CRP sob o n.º ....

           b. Prédio urbano – terreno para construção, sito na Avenida ..., ..., inscrito na matriz sob o artigo … e descrito na CRP sob o n.º ….

            c. Conjunto de 83 termoacumuladores melhor descritos a fls. 254 do auto de apreensão.

O DIREITO

1. Antes de se passar às normas directamente relevantes para a decisão das duas questões acima identificadas e objecto desta revista, cabe tratar uma questão prévia, que é abordada pelo recorrente nas suas alegações iniciais – a questão da admissibilidade do presente recurso.

Tratando-se, como se trata, de um apenso ao processo de insolvência, pode levantar-se o problema da interpretação da norma do artigo 14.º, n.º 1, do CIRE. Mais precisamente, pode levantar-se o problema de saber se, para aceder ao terceiro grau de jurisdição, é preciso demonstrar uma oposição entre o acórdão recorrido e um outro proferido por um tribunal da relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça não só no caso da sentença de declaração de insolvência e dos embargos à sentença de declaração de insolvência mas em todos os recursos do processo de insolvência, mesmo dos que corram por apenso (como a reclamação e a verificação de créditos), e ainda dos incidentes processados por apenso ao processo (como a qualificação da insolvência).

A letra da lei não é clara, referindo-se, por um lado, ao processo de insolvência – o que induz a concluir que estão abrangidos todos os seus apensos, incluindo os incidentes –[1] e, por outro, aos embargos opostos à sentença – o que induz a concluir que este é o único apenso que a lei quis abranger.

Por isso, existem dois entendimentos possíveis: um, que estende o âmbito de aplicação da norma, e outra, que o restringe.

Numa fase inicial, o Supremo Tribunal de Justiça propendeu, com ligeiras nuances, para a primeira posição[2].

E uma leitura integrada da norma do artigo 14.º, n.º 1, do CIRE, isto é, à luz do regime dos recursos e do regime do processo de insolvência na sua globalidade, favorece tal interpretação: em princípio, as regras aplicáveis, seja aos recursos, seja ao processo de insolvência, abrangem os apensos do processo de insolvência (cfr., respectivamente, o artigo 14.º, n.º 2, do CIRE, sobre o prazo dos recursos, e os artigos 7.º, n.º 3, e 9.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE, sobre a competência do juiz singular e sobre o carácter urgente do processo). Acresce que, como se disse, os apensos, mesmo aqueles que têm a natureza de incidentes, não deixam, em rigor, de fazer parte do processo de insolvência. Por fim, numa ponderação de tipo teleológico, dir-se-ia que não é fácil compreender que a lei condicione o recurso da sentença de declaração de insolvência (que tantos e tão gravosos efeitos tem sobre a pessoa do insolvente) e não o condicione em casos em que o objecto do litígio é, como no caso presente (apenso de reclamação e verificação de créditos), um simples direito de crédito.

Apesar de tudo, milita no sentido de uma interpretação mais restritiva um argumento (mais) ponderoso, relacionado com o elemento sistemático da interpretação e com o dever, de que nunca se pode olvidar o intérprete, de não restringir garantias constitucionais onde tal restrição não resulte inequívoca da lei, ou seja, de se esforçar por fazer uma interpretação conforme (ou o mais conforme possível) à Constituição da República.

Saliente-se ainda que o fundamento da restrição geral do direito de recurso a um único grau – inequívoca nas hipóteses de recurso da sentença de declaração de insolvência e de oposição de embargos a esta sentença – não é o mais “convincente”, uma vez que faz prevalecer a celeridade sobre a verdade material. Afirma-se, com efeito, no ponto 16 do Preâmbulo do diploma legal que aprova o CIRE (Decreto-lei n.º 53/2004, de 18 de Março) que foi “a necessidade de rápida estabilização das decisões judiciais” – portanto, a celeridade – que motivou a opção do legislador. Não se vê, por conseguinte, motivos ponderosos (e, por isso, não existe motivação) para estender o regime do artigo 14.º, n.º 1, do CIRE a situações não inequivocamente abrangidas por ele, restringindo a mais casos do que os indiscutivelmente previstos o acesso ao terceiro grau de jurisdição.

Foi a segunda interpretação (mais restritiva) que vingou no Supremo Tribunal de Justiça, dando origem a uma jurisprudência que pode já considerar-se estável, nomeadamente nesta 6.ª Secção Cível[3].

Pelas razões expostas, é ela que se opta aqui por seguir.

2. Dito isto passa-se a apreciar as duas questões que são objecto da presente revista.

Trata-se, em primeiro lugar, de saber se existiu ofensa ao caso julgado e à autoridade de caso julgado, como alega o recorrente.

Como ensina Manuel de Andrade, o caso julgado (fórmula abreviada de “caso que foi julgado”) encontra a sua razão de ser na necessidade de salvaguarda do prestígio dos tribunais e da certeza e da segurança jurídicas[4].

Na expressão “caso julgado” cabem, em rigor, a excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado, muitas vezes designadas, respectivamente, como a “vertente negativa” e a “vertente positiva” do caso julgado[5].

A excepção de caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer uma decisão anterior. Nesta vertente, o caso julgado compreende limites (subjectivos e objectivos): pressupondo o caso julgado uma repetição de causas, a repetição pressupõe, por sua vez, identidade dos sujeitos, identidade do pedido e identidade da causa de pedir (cfr. artigo 581.º do CPC).

Ora, é visível que, no caso presente, não se verificava identidade do pedido (não se pretendia obter o mesmo efeito jurídico) e nem da causa de pedir (a pretensão deduzida nas duas acções não procedia do mesmo facto jurídico).

No recurso apreciado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, o recorrente, AA, pedia a revogação do despacho proferido pelo Tribunal de 1.ª instância em 11.07.2013, que determinava: “Notifique os demais credores para se pronunciarem, querendo, sobre as impugnações apresentadas. Para o mesmo fim, notifique o administrador da insolvência para, caso entenda serem de acolher as razões apresentadas pelos impugnantes, alterar a lista apresentada nos autos“, fundado na ausência de resposta à impugnação por ele deduzida à lista de credores.

No recurso apreciado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, o recorrente (ora recorrido), BB, S.A., pedia a revogação da sentença de verificação e graduação de créditos na parte em que reconheceu e graduou o crédito do recorrido, AA, fundado na invalidade do contrato a cujo incumprimento era imputado o crédito deste último.

Da excepção de caso julgado deve distinguir-se aquilo que o recorrente também invoca, ou seja, a autoridade de caso julgado. Esta tem o efeito positivo de impor a decisão e por isso constitui a “vertente positiva” do caso julgado.

Diversamente da excepção de caso julgado, a autoridade de caso julgado pode funcionar independentemente da verificação daquela tríplice identidade mas nunca pode impedir que se volte a discutir e dirimir aquilo que ela mesmo não definiu. Por outras palavras, e como se depreende do disposto nos artigos 91.º e 581.º do CPC, a autoridade do caso julgado restringe-se à decisão contida na sentença. Ora, é visível que a decisão proferida, ou seja, a resposta final dada à pretensão na primeira causa é distinta da resposta final dada na segunda. Se não, veja-se.

A decisão do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.11.2013 tem o seguinte teor: “Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, decidindo-se revogar a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que verifique o crédito do apelante e proceda, na devida oportunidade, à respectiva graduação”.

Enquanto isso, a decisão do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 8.05.2018 tem o seguinte teor: “Pelo exposto, decide-se (…):

- Julgar procedente o recurso interposto da sentença de verificação e graduação de créditos pelo credor BB SA, e, em consequência revogar a sentença na parte em que reconheceu e graduou o crédito do Recorrido AA, graduando-se agora os créditos nos termos seguintes:

           1. Homologa-se a lista de credores reconhecidos apresentada pelo Exmo. Administrador da insolvência.

           2. Graduar todos os créditos verificados pela seguinte ordem:

            A - Pelo produto da venda dos bens móveis:

            - Em 1.º lugar: O crédito privilegiado da trabalhadora;

            -Em 2.º lugar: O crédito privilegiado do Estado Português – Fazenda Nacional relativo a impostos de IRS e IRC (constituídos dentro dos 12 meses antes da data do início do presente processo de insolvência) a par do crédito Instituto de Segurança Social, I.P., Centro Distrital de Leiria, por contribuições obrigatórias e juros de mora, no valor total de € 11.552,88;

            - Em 3.º lugar: O crédito privilegiado do credor GG, PLC, (art. 98.º, do CIRE);

            Em 4.º lugar: Os créditos comuns (rateadamente).

           -Em 5.º lugar: Os créditos subordinados, incluindo os juros de mora vencidos e vincendos após a declaração de insolvência

           B - Pelo produto da liquidação das fracções autónomas designadas pelas letras: fracção … do Bloco …; fracção … do Bloco …; fracção … do Bloco …; fracção … do Bloco …; fracção … do Bloco …; fracção … do Bloco ..; fracção … Bloco …; fracção …do Bloco …; fracção … do Bloco …; fracção … do Bloco …; fracção … do Bloco …; fracção … do Bloco …; fracção … do Bloco …; fracção … do Bloco …; fracção … do Bloco …; fracção … do Bloco …; fracção … do Bloco …; fracção … do Bloco …; fracção … do Bloco … e fracção … do Bloco … do prédio urbano sito na Urbanização ..., Rua ..., n.º., freguesia de ... – ..., descrito na CRP sob o n.º .... –

           Em 1.º lugar: O crédito garantido por hipoteca do credor GG, PLC (até ao limite máximo assegurado pela sua hipoteca voluntária, acrescido de juros e demais acessórios do crédito que foram levados a registo relativos a 3 anos);

            - Em 2.º lugar: O crédito Instituto de Segurança Social, I.P., Centro Distrital de Leiria, por contribuições obrigatórias e juros de mora, no valor total de € 11.552,88;

            - Em 3.º lugar: O crédito privilegiado do Estado Português – Fazenda Nacional relativo a impostos de IRS e IRC (constituídos dentro dos 12 meses antes da data do início do presente processo de insolvência).

            - Em 4.º lugar: Os créditos comuns (rateadamente).

           -Em 5.º lugar: Os créditos subordinados, incluindo os juros de mora vencidos e vincendos após a declaração de insolvência.

           C - Pelo produto da liquidação da fracção autónoma designada pela letra A, do prédio urbano sito na Urbanização ..., Rua ..., n.º…, freguesia de ... – ..., descrito na CRP sob o n.º ....         - Em 1º lugar: O crédito privilegiado da trabalhadora S....

            - Em 2º lugar: O crédito garantido por hipoteca do credor GG, PLC (até ao limite máximo assegurado pela sua hipoteca voluntária, acrescido de juros e demais acessórios do crédito que foram levados a registo relativos a 3 anos);

            - Em 3º lugar: O crédito Instituto de Segurança Social, I.P., Centro Distrital de Leiria, por contribuições obrigatórias e juros de mora, no valor total de € 11.552,88;

            - Em 4º lugar: O crédito privilegiado do Estado Português – Fazenda Nacional relativo a impostos de IRS e IRC (constituídos dentro dos 12 meses antes da data do início do presente processo de insolvência).

            Em 5º lugar: Os créditos comuns (rateadamente).

            Em 6.º lugar: Os créditos subordinados, incluindo os juros de mora vencidos e vincendos após a declaração de insolvência.

           D - Pelo produto da liquidação da fracção autónoma designada pela letra ..., do prédio urbano sito na Urbanização ..., Rua ..., n.º…, freguesia de ... – ..., descrito na CRP sob o n.º ....

- Em 1.º lugar: O crédito garantido por hipoteca do credor GG, PLC (até ao limite máximo assegurado pela sua hipoteca voluntária, acrescido de juros e demais acessórios do crédito que foram levados a registo relativos a 3 anos);

            - Em 2.º lugar: O crédito garantido por hipoteca do credor DD (até ao limite máximo assegurado pela sua hipoteca voluntária, acrescido de juros e demais acessórios do crédito que foram levados a registo relativos a 3 anos);

             - Em 3.º lugar: O crédito Instituto de Segurança Social, I.P., Centro Distrital de Leiria, por contribuições obrigatórias e juros de mora, no valor total de € 11.552,88;

             - Em 4.º lugar: O crédito privilegiado do Estado Português – Fazenda Nacional relativo a impostos de IRS e IRC (constituídos dentro dos 12 meses antes da data do início do presente processo de insolvência).

            - Em 5.º lugar: Os créditos comuns (rateadamente).

             - Em 6.º lugar: Os créditos subordinados, incluindo os juros de mora vencidos e vincendos após a declaração de insolvência.

           E - Pelo produto da liquidação dos restantes imóveis apreendidos:

             - Em 1.º lugar: O crédito garantido por hipoteca do credor GG, PLC (até ao limite máximo assegurado pela sua hipoteca voluntária, acrescido de juros e demais acessórios do crédito que foram levados a registo relativos a 3 anos);

            - Em 2.º lugar: O crédito Instituto de Segurança Social, I.P., Centro Distrital de Leiria, por contribuições obrigatórias e juros de mora, no valor total de € 11.552,88;

            - Em 3.º lugar: O crédito privilegiado do Estado Português – Fazenda Nacional relativo a impostos de IRS e IRC (constituídos dentro dos 12 meses antes da data do início do presente processo de insolvência).

            - Em 4.º lugar: Os créditos comuns (rateadamente).

            - Em 5.º lugar: Os créditos subordinados, incluindo os juros de mora vencidos e vincendos após a declaração de insolvência”.

Veja-se que o Tribunal da Relação de Lisboa de 26.11.2013 apenas ordenou a revogação do despacho em que se mandava notificar os credores para responderem dentro de certo prazo à impugnação (por ser um acto não previsto na lei) e a sua substituição por outro despacho em que se considerava a impugnação procedente (por ser um acto previsto na lei). Quer dizer: o Tribunal da Relação de Lisboa não foi instado a apreciar o crédito e por isso não procedeu à sua verificação e muito menos à sua graduação.

Poderá dizer-se – e é verdade – que a eficácia do caso julgado não se limita rigorosamente à decisão final. Como afirmam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “[e]mbora se aceite que a eficácia de caso julgado não se estende aos motivos da decisão, é ponto assente na doutrina que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado”[6]. Não pode, com efeito, ter-se uma visão tão formalista, devendo entender-se que é preciso proceder à interpretação do conteúdo da sentença, incluindo os fundamentos que aí se apresentem como pressupostos da decisão[7].

Ora, o pressuposto central do Tribunal da Relação de Lisboa, em que se apoia a sua decisão – e o único pressuposto absolutamente coerente com tal decisão –, é o de que não podia fazer-se tábua rasa do disposto no artigo 131.º, n.º 3, do CIRE, de que a impugnação não respondida devia ser julgada procedente e, por isso, o crédito que, não obstante não ter sido incluído na lista, havia “surgido”, depois, por impugnação, não podia ser desconsiderado.

No mais, remeteu o Tribunal da Relação de Lisboa para o tribunal da insolvência, ao qual continuou confiada a actividade destinada ao apuramento dos créditos.

Repare-se que, mesmo antes do proferimento da decisão, se conclui dizendo que o crédito deve ser tratado “como os demais créditos reclamados”. Encontra-se aqui uma espécie de critério geral que esclarece definitivamente qualquer ambiguidade que pudesse existir quanto ao decidido concretamente pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

Como é sabido, nem todos os créditos reclamados num processo de insolvência são reconhecidos e graduados, cabendo sempre – devendo sempre caber – a palavra final ao juiz. É ele quem, na sequência da actividade jurisdicional destinada à apreciação dos créditos, prevista e regulada nos vários n.ºs do artigo 136.º do CIRE, declara o seu reconhecimento (aquilo a que os processualistas italianos chamam “accertamento”) na sentença de verificação e graduação de créditos[8].

Decidiu, assim, bem o Tribunal recorrido quando entendeu que o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.11.2013 (transitado em julgado em 10.02.2016) não se havia pronunciado sobre o mérito da impugnação apresentada pelo recorrido, determinando apenas que o crédito fosse verificado e, concluindo que não existia caso julgado formal que impedisse a apreciação do crédito, procedeu a tal verificação.

2. Esclarecida esta primeira questão, é possível passar à segunda, que é a de saber se a norma do artigo 131,º, n.º 3, do CIRE consagra um efeito cominatório pleno, como alega o recorrente, ou um efeito cominatório semipleno, como entendeu o Tribunal recorrido.

Esta segunda questão obriga a concentrar a atenção na parte final da norma do artigo 131.º, n.º 3, in fine, do CIRE, determinando que “a reclamação deve ser apresentada (…) sob pena de a impugnação ser julgada procedente[9].

A cominação contida na parte final da norma foi introduzida pelo DL n.º 200/2004, de 18 de Agosto. Com esta alteração, quis o legislador “esclarecer que todas as impugnações das reclamações de créditos serão imediatamente consideradas procedentes quando às mesmas não seja oposta qualquer resposta, assim obviando a eventuais dúvidas que a anterior redacção pudesse suscitar” (cfr. Preâmbulo do DL n.º 200/2004, de 18 de Agosto).

Apesar desta alteração, continuaram a dizer Carvalho Fernandes e João labareda que a norma não é suficientemente esclarecedora e que as dúvidas que a norma suscite quanto às consequências da falta de resposta devem ser encontradas nas regras do processo ordinário de declaração e que, designadamente, “em geral, os factos alegados na impugnação não contraditados na resposta ter-se-ão por admitidos e isso será tomado em conta na selecção da matéria de facto assente e na fixação da base instrutória, a não ser que se verifiquem as circunstâncias que excepcionam esse efeito cominatório”[10]. Segundo os autores, o disposto no artigo 131.º, n.º 3, do CIRE não dispensa, portanto – continua a não dispensar, mesmo depois daquela alteração – o juiz de desenvolver a típica actividade jurisdicional tendente a verificar os créditos, não devendo, portanto, associar-se à falta de resposta à impugnação um efeito cominatório pleno.

A mesma ideia é formulada pelos mesmos autores, ainda mais claramente, a propósito do artigo 130.º, n.º 3, do CIRE, que regula os efeitos da ausência de impugnações: “deve interpretar-se em termos amplos o conceito de erro manifesto, não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar, para o que pode solicitar ao administrador da insolvência os elementos de que necessite”[11].

Quer dizer: nem mesmo na hipótese prevista no artigo 130º. n.º 3, do CIRE (em que não há impugnações da lista de créditos), o juiz fica dispensado de desenvolver uma mínima actividade jurisdicional, devendo proceder à apreciação dos créditos antes de declarar o seu reconhecimento. Além de impor que a comissão de credores emita um parecer sobre os créditos, a lei previne os riscos do (eventual) reconhecimento “cego” assegurando que os créditos incluídos na lista de créditos (examinados e previamente reconhecidos pelo administrador da insolvência) não serão definitivamente reconhecidos em caso de erro manifesto[12] (cfr. artigos 130.º, n.º 3, e 136.º, n.º 1, do CIRE). Isto comprova que o juiz nunca está dispensado de proceder à apreciação dos créditos antes de declarar o seu reconhecimento em definitivo.

Concretamente, no caso de falta de resposta à impugnação, os factos alegados nesta devem, é certo, ser admitidos mas não pode o crédito deixar de ser objecto de apreciação judicial.

É esta a interpretação adequada do artigo 131.º, n.º 1, do CIRE.

É esta a única solução compaginável, aliás, como o disposto no n.º 5 da norma (geral) do artigo 136.º do CIRE, que é aplicável a todos os créditos com excepção dos incluídos na lista e não impugnados (e, ainda assim, quando o juiz não encontre erro manifesto) (cfr. artigo n.º 1 do artigo 136.º do CIRE) e dos que mereçam a aprovação de todos os presentes na tentativa de conciliação (cfr. n.º 3 do artigo 136.º do CIRE). Diz-se aí que “[só] se consideram ainda reconhecidos os demais créditos que possam sê-lo em face dos elementos de prova contidos nos autos”.

Se não fosse aquela a interpretação do artigo 131.º, n.º 1, do CIRE, qualquer sujeito que se arrogasse a titularidade de um direito de crédito sem dispor de título válido conseguiria ver a sua pretensão acolhida por mero efeito da inércia dos contrainteressados. Constituir-se-ia um crédito onde só existia um crédito fictício, o que não pode ser um resultado pretendido ou tolerado pelo Direito. Em caso algum o valor (formal) da celeridade ou outros valores do tipo podem prevalecer sobre valores de natureza diversa (substancial) como o apuramento da verdade e a justiça material.

Note-se ainda que, como bem alega o recorrido, é bem possível que a inércia dos contrainteressados se deva à convicção de que, tendo sido os motivos justificativos do não reconhecimento expostos, como manda o artigo 129.º, n.º 3, do CIRE, em momento anterior, a resposta à impugnação seja redundante. No quadro normativo actual, é defensável que exista mesmo um dever de abstenção da prática de certos actos em certas circunstâncias (quando os actos sejam inúteis) à luz do dever de gestão processual que a lei atribui ao juiz mas para cuja realização as partes devem contribuir.

Uma interpretação da qual resulte do artigo 131.º, n.º 3, do CIRE um efeito cominatório pleno é, além do mais, e como argumentou o Tribunal recorrido, dificilmente sustentável no plano constitucional, por implicar, justamente, um efeito cominatório pleno, que é susceptível de violar o acesso ao direito e à tutela jurisdicional fixados no artigo 20.º da CRP.

Há – é certo – quem, apesar de reconhecer estas reservas e criticar, por isso, a norma, lhe impute a consagração de um efeito cominatório pleno. Neste grupo integra-se, entre outros, Mariana França Gouveia. Diz a autora que “[c]omo comentário a esta norma, deve, em primeiro lugar, estranhar-se a consagração de um efeito cominatório pleno. Sabe-se que o CIRE, enquanto projecto, continha diversas normas restaurando o efeito cominatório pleno, efeito que foi eliminado, por considerado inconstitucional, do Código de Processo Civil na reforma de 95/96. Estas normas, criticadas pela doutrina, desapareceram do texto final do Código da Insolvência, tendo sido substituídas pela regra geral da admissão (…). Mais uma vez, o objectivo parece ser o de aliviar o trabalho do juiz – se não há impugnações homologa-se a lista; se há, mas não há respostas 'homologa-se' as impugnações. Este raciocínio é de admissibilidade discutível e suporta dificilmente as teias da constitucionalidade. E não falamos tão-só do direito de defesa, que estará em causa quanto a credores prejudicados pela não respostas, mas também do princípio constitucional da reserva de função jurisdicional, nos termos do qual cabe ao tribunal resolver os litígios entre as partes de acordo com o direito”[13].

Subscrevendo a tese e os argumentos da inconstitucionalidade do efeito cominatório pleno aduzidos pela autora, recorda-se que, em face da evolução legislativa, os casos (remanescentes) de efeito cominatório pleno são excepcionais e devem ser tolerados apenas quando a lei expressamente o preveja. Ora, nem expressis verbis nem por outra via alude a norma do artigo 131.º, n.º 3, do CIRE a um efeito cominatório pleno, dispondo somente, como se viu, que a impugnação seja “julgada procedente”. Existe, pois, margem para uma interpretação diversa daquela – uma interpretação (mais) conforme à Constituição – e, existindo esta, está o intérprete constituído no dever de a adoptar.

Andou, pois, mais uma vez, bem o Tribunal recorrido, ao recusar-se a interpretar o n.º 3 do artigo 131.º do CIRE com o sentido de vincular o juiz a dar por reconhecido o crédito pelo mero facto de não ter sido apresentada resposta à impugnação e a desenvolver, finalmente, a actividade jurisdicional devida no que àquele crédito dizia respeito.

Uma única (e final) observação se impõe a propósito do facto, referido pelo Tribunal recorrido, de o efeito cominatório pleno ter sido eliminado pelo Código de Processo Civil na revisão de 2013. A isto contrapõe o recorrente que, atendendo às regras de aplicação da lei no tempo, o novo regime não se aplica à presente verificação de créditos, pelo que o Tribunal teria cometido um erro manifesto de determinação da norma aplicável. Ora, o valor argumentativo do facto referido não depende da aplicação in casu do novo Código de Processo Civil – e nem terá sido essa a intenção do Tribunal recorrido. Aquilo que o facto demonstra é a resolução do legislador em eliminar, de vez, em 2013[14], o efeito cominatório pleno do ordenamento jurídico português, da qual resulta o dever, para o aplicador do Direito, de interpretar todas as normas em conformidade com isso, a partir daí.

A circunstância de no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26.11.2013 (Proc. 710/11.7TJPRT-C.P1), junto aos autos pelo recorrente, se fazer uma interpretação diversa da norma, só mostra que o carácter indesejável do efeito cominatório pleno não era ainda, antes da revisão do Código de Processo Civil pelo DL n.º 41/2013, de 26.11, absolutamente visível para todos. Terá sido, por isso, extremamente oportuna esta tomada de posição inequívoca do legislador.


                                                           *

III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.

                                                           *

Custas pelo recorrente.

                                                           *

                        LISBOA, 23 de Outubro de 2018

                                                            

Catarina Serra (Relatora)

Salreta Pereira

Fonseca Ramos

__________________
[1] É este o raciocínio de Carvalho Fernandes e João Labareda [Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado. Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE) Anotado. Legislação Complementar, Lisboa, Quid Juris, 2015 (3.ª edição), p. 128]. Sublinham os autores que o processo de insolvência é unitário e que mesmo os incidentes “integram, formal e estruturalmente, o próprio processo, ainda que com tramitação específica”.
[2] Cfr., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.11.2013, Proc. 22332/09.2T2SNT-ZV.L1.S1 (disponível em http://dgsi.pt). Para um elenco das posições e das nuances que as distinguem cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), p. 67 (nota 103).
[3] Cfr., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.2016, Proc. 106/13.6TYVNG-B.P1.S1 (disponível em http://dgsi.pt).
[4] Cfr. Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, pp. 306-307.
[5] Além de ser utilizada na doutrina, a distinção é habitual na jurisprudência. Cfr., por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.03.2017, Proc. 1375/06.3TBSTR.E1.S1, e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 22.06.2017, Proc. 2226/14.0TBSTB.E1.S1.
[6] Cfr. Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985 (2.ª edição), p. 715 (itálicos dos autores)
[7] Cfr., neste sentido, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.07.2011, Proc. 129/07.4TBPST.S1.
[8] A sentença de verificação de créditos pode ter lugar logo após a reclamação de créditos mas isso só ocorre na hipótese de não haver impugnações (cfr. artigo 130.º, n.º 3, do CIRE), o que não é, manifestamente, o caso dos autos. Contudo, mesmo naquela hipótese, a lei prevê a junção de um parecer por parte da comissão de credores e previne os riscos de um eventual reconhecimento “cego” dos créditos incluídos na lista de créditos: estes créditos (que já foram objecto de uma primeira apreciação pelo administrador da insolvência e por isso incluídos na lista) não serão reconhecidos em caso de erro manifesto (cfr. artigo 136.º, n.º 1, do CIRE). É visível, em conclusão, que o juiz nunca fica dispensado de proceder à apreciação dos créditos antes de declará-los reconhecidos por sentença.
[9] Itálicos nossos.
[10] Cfr. Carvalho Fernandes / João labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado. Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE) Anotado. Legislação Complementar, cit., p. 531.
[11] Cfr. Carvalho Fernandes / João labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado. Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE) Anotado. Legislação Complementar, cit., pp. 528-529. Cfr. ainda, em sentido muito próximo, Maria José Costeira, pp. 252-253. Na jurisprudência, entre os numerosos acórdãos referidos pelo recorrido, destacam-se os Acórdãos do STJ de 25.11.2008, Proc. 08A3102, e de 30.09.2014, Proc. 3045/12.4TBVLG-B.P1.S1 (ambos disponíveis em http://dgsi.pt).
[12] Sustentam Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado. Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE) Anotado. Legislação Complementar, cit., p. 529), “pode acontecer que o erro consista em o crédito estar indevidamente incluído na lista de créditos reconhecidos. Se este for o caso, tal implica que o crédito deve ser considerado como não reconhecido”.
[13] Cfr. Mariana França Gouveia, “Verificação do passivo”, in: AA. VV., Themis, Edição Especial — Novo Direito da Insolvência, 2005, pp. 158-159. Manifesta plena concordância Luís Menezes Leitão [Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Coimbra, Almedina, 2017 (9.ª edição)pp. 204-205].
[14] As primeiras iniciativas para a eliminação geral do efeito cominatório pleno remontam, em rigor, a momento anterior, designadamente à revisão da lei processual de 1995-96. Cfr. José Lebre de Freitas, “Pedido de declaração de insolvência”, “Pedido de declaração de insolvência”, in: AA. VV., Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas — Comunicações sobre o Anteprojecto de Código, Ministério da Justiça, Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, pp. 14-15.