Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
21/14.6PELRA.C3.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: RECURSO PER SALTUM
PERDÃO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário :

I. Quando se diz, no n.º 4 do art. 3.º Lei 38-A/2023, que “em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”, está-se a considerar a pena única correspondente a crimes que beneficiam (todos eles) de perdão.

II. Com esta disposição quer-se esclarecer que, nos casos de concurso efectivo de crimes – de crimes que beneficiem, todos eles, de perdão -, o perdão se aplica uma única vez, à pena única, e não várias vezes, a cada uma das parcelares que a compõem. Ou seja, só concluído todo o processo de determinação da pena e encontrada e aplicada a pena “final”, então sim, há lugar a aplicação do perdão da Lei n.º 38-A/2023.

III. Mas há que compatibilizar o n.º 4 do art. 3.º com o art. 7.º da mesma lei, que determina as excepções ao perdão. Compatibilização que se realiza aplicando-se primeiramente o perdão à pena parcelar que dele beneficia, procedendo-se seguidamente a cúmulo jurídico do remanescente dessa parcelar com a outra pena parcelar, excluída do perdão).

Decisão Texto Integral:
Processo n.º 21/14.6PELRA.C3.S1

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1. Relatório

1.1. No Processo Comum Colectivo n.º 21/14.6PELRA, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, foi proferido acórdão de reformulação de cúmulo jurídico das penas em que o arguido AA fora condenado, com vista à aplicação do perdão da Lei n.º 38-A/2023, tendo-se aplicado a pena única de 5 (cinco) anos e 10 (dez) meses de prisão, à qual se declarou perdoado um ano, “nos termos do art. 3.º n.º 4 da Lei 38-A/2023, restando assim ao arguido cumprir a pena de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão”.

Inconformado com o decidido, o Ministério Público interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo:

“I – O presente recurso é interposto do douto Acórdão de Cúmulo Jurídico proferido no dia ... de ... de 2023, que ao cúmulo jurídico das penas em que o arguido AA foi condenado, por força da entrada em vigor da Lei n.º 38-A/2023, «na pena única de 5 (cinco) anos e 10 (dez) meses de prisão, e à qual é perdoado um ano, nos termos do artº 3º nº 4 da Lei 38-A/2023, restando assim ao arguido cumprir a pena de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão.»

II - Nos presentes autos, por acórdão transitado em julgado, o arguido BB foi condenado na pena única de 6 anos de prisão, resultante das seguintes penas parcelares:

a) Pela prática de em co-autoria material e sob a forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.°, n.° 1 do Decreto-lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C anexa a este diploma, ex vi artigo 13.°,14.°, n.° 1, alínea a) e artigo 26.° do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;

b) Pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3° n°s 1 e 2 do D.L n°2/98 de 3 de Janeiro, por referência ao artigo 121° n°1 do Código da Estrada, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;

c) Pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348° n° 1 al. b) do Código Penal, na pena de 5 (cinco) meses de prisão.

III - Por força da entrada em vigor da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, foi decidido declarar «extinta a responsabilidade criminal do arguido AA, relativamente ao crime de desobediência p. e p. pelo artº 348º nº 1 al. b) do C.P aplicando a Lei 38-A/2023, uma vez que o crime se mostra amnistiado nos termos do nº 4º e 7º, e artº 127 e 128º nº 2 do C.P.».

IV - Amnistiado o crime de desobediência, foi necessário reformular o cúmulo jurídico de penas, desta feita apenas considerando as penas parcelares aplicadas pela prática dos crimes de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21.º, do Decreto-Lei n.º 15/93 e condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punível pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98.

V - Fixada a pena única de 5 anos e 10 meses de prisão, nos termos do artigo 7.º, n.º 3 e 3.º, n.º 4, da Lei n.º 38-A/2023, decidiu-se a aplicação do perdão de um ano, determinando-se que o arguido tem a cumprir o remanescente de 4 anos e 10 meses de prisão.

VI - Nos termos do artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 38-A/2023, a exclusão do perdão previsto no n.º 1 e 2 do mesmo preceito, não prejudica a aplicação daquele a outros crimes cometidos.

VII - A situação em apreço é precisamente a dos autos, o arguido foi condenado pela prática de um crime não excluído do perdão (condução sem habilitação legal) e um crime de tráfico de estupefacientes, previsto no artigo 21.º, do Decreto-Lei n.º 15/93, excluído do perdão.

VIII - Sendo a pena parcelar do crime excluído do perdão de 5 anos e 6 meses de prisão, não pode o remanescente da pena perdoada ser inferior a esta tal como decidido no acórdão.

IX - Ao aplicar o perdão de um ano na pena única de 5 anos e 10 meses, sendo o remanescente a cumprir da pena de 4 anos e 10 meses, é afectada a pena parcelar do crime não perdoável – 5 anos e 6 meses pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, previsto no artigo 21.º, do Decreto-Lei 15/93 – que o legislador expressamente excluiu daquela graça.

X - Caso o arguido apenas tivesse praticado o único crime de tráfico de estupefacientes, previsto pelo artigo 21.º, do Decreto-Lei n.º 15/93, condenado na pena de 5 anos e 6 meses de prisão, não veria a sua situação penal desagravada, precisamente porque o crime em causa está excluído do perdão.

XI - O perdão a aplicar no presente caso, determinado pela prática do crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, tem de ter por limite a pena não perdoável pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, ou seja, computa-se em 4 meses, resultante da diferença entre a pena única de 5 anos e 10 meses e a pena parcelar de 5 anos e 6 meses de prisão.

XII - Ao decidir da forma descrita em I, foi violado o disposto nos artigos 3.º, n.º 4 e 7.º, n.º 3, da Lei n.º 38-A/2023, devendo ser revogado e substituído por outro decidindo-se que à pena única de 5 anos e 10 meses aplicada, deverão ser perdoados 4 meses e determinado o cumprimento da pena de 5 anos e 6 meses de prisão».”

O arguido respondeu ao recurso, contrapondo:

“Por acórdão proferido no âmbito dos presentes autos, foi o arguido condenado nas seguintes penas parcelares:

- pela prática de um crime de tráfico de produtos estupefacientes, p.p. pelo art. 21º do dec. Lei 15/93 de 22 de Janeiro, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão;

- pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 3° n°s 1 e 2 do D.L n°2/98 de 3 de Janeiro, por referência ao artigo 121° n°1 do Código da Estrada, na pena de 1 no e 6 meses de prisão.

Efectuado o cúmulo jurídico o Tribunal Colectivo decidiu aplicar ao arguido uma pena única de 5 anos e 10 meses de prisão, pena esta a que foi aplicada a lei n.º 38-A/23, determinando-se o cumprimento de uma única de 4 anos e 10 meses de prisão.

Em síntese, vem o Ministério Público interpor recurso, da decisão do Tribunal a quo, que determinou a aplicação da lei n.º 38-A/2023, e na sequência desta aplicação foi perdoado um ano na pena única alcançada através da realização do cúmulo jurídico.

Entende o Ministério Público que in casu, não poderá ser aplicado o perdão de um ano, porquanto o perdão assim aplicado abrange uma das penas parcelares, a saber, a pena parcelar atinente ao crime de trafico de produtos estupefacientes, crime este que se encontra excluído do âmbito de aplicação da referida lei.

Considerando o disposto nos artigos 3.º, n.º 4 e 7.º, n.º 3, da Lei n.º 38-A/2023, “o perdão não é afastado pela circunstância de no cúmulo jurídico estarem englobadas, para além de penas parcelares aplicadas por crimes dele não excluídos, pelo menos outra pena parcelar aplicada por crime dele excluído”.

Entende o Ministério Público que “ A questão controversa, e de fundo, salvo o devido respeito por entendimento diverso, relaciona-se com o facto de saber se no caso de cúmulo jurídico de penas parcelares, em que apenas um deles está excluído do perdão, o remanescente da pena única, após a aplicação do perdão de um ano, pode ser inferior à pena parcelar aplicada ao crime excluído do perdão”.

Salvo o devido respeito, entendemos que o Tribunal não violou qualquer disposição legal, uma vez que a o legislador na lei n.º 38-A/2023, não estabeleceu – o que poderia ter feito – que em casos como o dos autos, o perdão não poderia ser de um ano, mas outrossim, teria que se cingir ao “limite” imposto pela medida da pena parcelar atinente ao ilícito não abrangido.

Em suma, consideramos que bem andou o Tribunal Colectivo na decisão proferida, não tendo sido violado qualquer comando legal.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, referindo, designadamente:

“Conforme previamente referido, o arguido BB nasceu em ... de ... de 1990 e cometeu o crime de tráfico de estupefacientes do art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, pelo qual foi condenado na pena de 5 anos e 6 meses, entre ... e ... de ... de 2015, e o crime de condução de veículo sem habilitação legal do art. 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, pelo qual foi condenado na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, entre ... de ... de 2015 e ... de ... de 2015, em ambos os casos quando tinha 24 anos.

Em cúmulo jurídico destas duas penas e numa moldura penal que tinha como limite mínimo 5 anos e 6 meses de prisão e como limite máximo 7 anos de prisão, o tribunal coletivo

condenou-o na pena única em 5 anos e 10 meses de prisão.

O crime de tráfico de estupefacientes não beneficia do perdão (artigo 7.º, n.º 1, alínea f), subalínea ix), da Lei n.º 38-A/2023) mas isso não pode prejudicar a sua aplicação ao crime

de condução sem habilitação legal que dele não está excluído (artigo 7.º, n.º 3, que remete para o «perdão previsto no artigo 3.º (…) relativamente a outros crimes cometidos»).

Diante disso, a medida do perdão a incidir sobre a pena única (artigo 3.º, n.º 4, da Lei n.º 38-A/2023), terá forçosamente de ser encontrada a partir da pena concreta deste último crime.

Se o arguido, por exemplo, tivesse sido condenado na pena de 8 meses de prisão pela condução sem habilitação legal, seria nessa exata dimensão que beneficiaria do perdão.

Tendo sido condenado, como foi, na pena de 1 ano e 6 meses, não se vislumbram razões para que não beneficie de 1 ano de perdão (artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023).

Esta é, salvo o devido respeito por entendimento oposto, a leitura mais conforme à Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, e aos critérios específicos de interpretação a que obedecem as Leis de Amnistia.

Nenhuma censura nos merece, por isso, o acórdão recorrido.”

O arguido nada acrescentou, o processo foi aos vistos e teve lugar a conferência.

1.2. O acórdão recorrido é o seguinte:

“I – RELATÓRIO:

O arguido AA, foi por acórdão transitado em julgado condenado, nos seguintes termos:

- Pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, do Decreto-Lei n.º 15/93, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão;

- Pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, praticado no período compreendido entre ... de ... de 2015 a ... de ... de 2015;

- Pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pena de 5 meses de prisão, praticado no dia ... de ... de 2015;

- Condenando na pena única, operado o cúmulo jurídico das penas parcelares descritas, de 6 anos de prisão.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

O arguido nasceu em ...-...-1990, pelo que na data da prática dos factos contava com 24 anos de idade.

Nos termos do artigo 4.º, da Lei 38-A/2023 foram amnistiados os crimes cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou 120 dias de multa.

Foi o caso do crime de desobediência pelo qual o arguido foi condenado, cuja responsabilidade criminal do arguido foi extinta

O artigo 3.º, nº 1, dispõe que, sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.

No caso em apreço apenas beneficia do perdão o crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-lei n.º 2/98 e está excluído da aplicação do perdão o crime de tráfico de estupefacientes previsto e punível pelo artigo 21.º, do Decreto-Lei n.º 15/93 - artigo 7.º, n.º 1, al.) ix.

De acordo com o artigo 7.º, nº 3, a exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos.

Nos termos do artigo 3.º, nº 4, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.

Ora, no caso dos autos estamos perante uma pena perdoável (condução de veículo automóvel) e uma pena não perdoável (tráfico de estupefacientes do artigo 21.º, do Decreto-Lei 15/93).

Acresce que a pena perdoável é superior ao limite do perdão fixado (1 ano).

Outrossim, nos termos dos artigos 3º, nº 4 e 7º, nº 3, ambos da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, o perdão a aplicar ao aludido crime de condução sem habilitação legal, incide sobre a pena única, pelo que terá de ser reformulado o cúmulo jurídico das penas parcelares efectuado e, depois, efectuar o cúmulo jurídico da pena parcelar aplicada ao dito crime de condução sem habilitação legal (1A 6M), com a pena parcelar aplicada ao crime de crime de tráfico de estupefacientes (5A 6M), por forma a encontrar-se a pena que ao arguido resta cumprir e, em consequência, aplicar o perdão que incide sobre a condenação de que o arguido foi alvo pelo crime de condução sem habilitação legal.

Assim sendo a soma de ambas as penas parcelares é de 7 Anos de prisão, sendo que a pena mínima é de 5A e 6M, pelo que consideramos uma pena única de 5 anos e 10 meses, considerando que a pena única anteriormente aplicada era de 6 anos, sendo que àquela há-de ser aplicado o perdão de um ano, restando assim ao arguido cumprir a pena de 4Anos e 10 meses de prisão.

III – DECISÃO:

Pelo exposto, acordam as juízas que constituem este Tribunal Coletivo em, considerando as penas parcelares aplicadas, condenar o arguido AA na pena única de 5 (cinco) anos e 10 (dez) meses de prisão, e à qual é perdoado um ano, nos termos do artº 3º nº 4 da Lei 38-A/2023, restando assim ao arguido cumprir a pena de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão.”

2. Fundamentação

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas respectivas conclusões (art. 412.º, n.º 1, do CPP), a questão a apreciar circunscreve-se unicamente à aplicação do perdão da Lei n.º 38-A/2023 à pena única de 5 anos e 10 meses de prisão.

Esta pena única resultou da adição de duas penas parcelares: 5 anos e 6 meses de prisão, correspondente a um crime de tráfico de estupefacientes do art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, e 1 ano e 6 meses de prisão, correspondente a um crime de condução de veículo sem habilitação legal, do art. 3.º, n.ºs 1 e 2, do Dec.-Lei n.º 2/98.

No acórdão concluiu-se que à pena única de 5 anos e 10 meses de prisão seria perdoado um ano, nos termos do art. 3.º n.º 4 da Lei 38-A/2023, restando assim ao arguido cumprir a pena de 4 anos e 10 meses de prisão.

Sucede que esta decisão não pode estar correcta, desde logo porque um dos crimes cujas penas se cumularam se encontra excluído do perdão da Lei n.º 38-A/2023, e a esse crime correspondeu uma pena parcelar superior à agora resultante da pena única, final.

Justificou-se no acórdão que “assim o determina o art. 3.º, nº 1, da Lei do Perdão, que dispõe que, sem prejuízo do disposto no art. 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos”.

No entanto, não deixou de se notar, acertadamente, que no caso presente apenas beneficiaria do perdão o crime de condução sem habilitação legal, estando excluído da aplicação do perdão o crime de tráfico de estupefacientes.

Mas considerou-se que, se de acordo com o artigo 7.º, n.º 3, a exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão relativamente a outros crimes cometidos, e se nos termos do art. 3.º, n.º 4, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única, e se in casu estamos perante uma pena perdoável (condução de veículo automóvel) e uma pena não perdoável (tráfico de estupefacientes do art. 21.º, do Decreto-Lei 15/93) e a pena perdoável é superior ao limite do perdão fixado (um ano), então seria de aplicar o perdão de um ano à pena única de 5 anos e 10 meses.

Esta interpretação não colhe.

Na interpretação prosseguida no acórdão, a pena única a cumprir seria então de 4 anos e 10 meses de prisão, ou seja, numa medida inferior à pena parcelar correspondente ao crime de tráfico de estupefacientes, que se encontra excluído do perdão.

Como bem refere o recorrente Ministério Público, “sendo a pena parcelar do crime excluído do perdão de 5 anos e 6 meses de prisão, não pode o remanescente da pena perdoada ser inferior a esta, tal como decidido no acórdão”.

E assiste-lhe igualmente razão quando prossegue que “ao aplicar o perdão de um ano na pena única de 5 anos e 10 meses, sendo o remanescente a cumprir da pena de 4 anos e 10 meses, é afectada a pena parcelar do crime não perdoável (…) que o legislador expressamente excluiu daquela graça”.

E se é certo que a aplicação do perdão não pode abranger - e, logo, não pode realmente afectar - a parcelar de 5 anos e 6 meses de prisão, já não se acompanha o Ministério Público recorrente quando conclui que “à pena única de 5 anos e 10 meses aplicada, deverão ser perdoados 4 meses e determinado o cumprimento da pena de 5 anos e 6 meses de prisão.”

O quadro legal que ora releva é o seguinte:

Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto:

Artigo 3.º Perdão de penas 1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos. (…) 4 - Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.

Artigo 7.º Exceções 1 - Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei: (…) f) No âmbito dos crimes previstos em legislação avulsa, os condenados por: (…) ix) Crimes de tráfico de estupefacientes, previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que aprova o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas; (…) 3 - A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos.

A primeira nota a realçar é a de que, quando se diz, no n.º 4 do art. 3.º, que “em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”, está-se a considerar a pena única correspondente a crimes que beneficiam (todos eles) de perdão. Com isto quer a lei esclarecer que, nos casos de concurso efectivo de crimes – de crimes que beneficiam, todos eles, de perdão -, o perdão se aplica uma única vez, à pena única, e não várias vezes, a cada uma das parcelares que a compõem.

Só concluído todo o processo de determinação da pena e encontrada e aplicada a pena “final”, então sim, há lugar a aplicação do perdão. É o que significa o dispositivo legal “Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”.

Em caso de condenação em cúmulo jurídico o perdão incide sempre sobre a pena única. Mas há que compatibilizar então este preceito, com aquele que determina as excepções ao perdão (art. 7.º). O que, no presente caso, se realiza do modo seguinte: procede-se primeiramente à aplicação do perdão à única pena parcelar que dele beneficia; procede-se seguidamente a cúmulo jurídico do remanescente dessa pena com a outra pena parcelar, excluída do perdão.

Tendo o arguido sido condenado em 1 ano e 6 meses de prisão pelo crime de condução sem habilitação legal, beneficia esta pena de um ano de perdão (art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023). Procede-se depois ao cúmulo jurídico dos 6 meses remanescentes com a pena de 5 anos e 6 meses de prisão, correspondente ao crime de tráfico de estupefacientes, que não beneficia do perdão (art. 7.º, n.º 1, al. f), ix), da Lei n.º 38-A/2023).

Ponderando todas as concretas circunstâncias já referidas no acórdão aquando da ponderação sobre a pena do concurso de crimes, que não se encontram impugnadas no recurso, sempre na reavaliação dos factos em conjunto com a personalidade do arguido (art. 78.º do CP), a pena deve agora ser fixada em 5 anos e 7 meses de prisão. O que se determina.

3. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente o recurso, fixando-se a pena única aplicada no acórdão em 5 anos e 7 meses de prisão.

Sem custas.

Lisboa, 20.03.2024

Ana Barata Brito, relatora

Teresa de Almeida, adjunta

Teresa Féria de Almeida , adjunta