Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B395
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CUSTÓDIO MONTES
Descritores: COMPETÊNCIA TERRITORIAL
APREENSÃO DE VEÍCULO
LEI GERAL
LEI ESPECIAL
REVOGAÇÃO
VONTADE INEQUÍVOCA DO LEGISLADOR
Nº do Documento: SJ20080313003957
Data do Acordão: 03/13/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO, JULGANDO COMPET. O TRIB. CIV. LX.
Sumário :

1. Na determinação da competência territorial para a apreensão de veículo e acção conexa, o DL n.º 54/75, de 12.2 é lei especial relativamente à regra definidora da competência territorial prevista no art. 74.º,1 do CPC, que é lei geral.
2. Para além dos casos do n.º 2 do art. 7.º do CC, a lei geral não revoga a lei especial, a menos que outra seja a intenção inequívoca do legislador.
3. Para indagar essa intenção inequívoca do legislador, deve partir-se da letra da lei, exigindo-se ao intérprete que nessa indagação adquira uma particular certeza do sentido da lei.
4. À data da entrada em vigor do DL 14/2006, coexistiam dois regimes diferentes de determinação da competência territorial para a resolução do contrato por falta de cumprimento: o geral previsto no 74.º,1 do CPC e o especial para acções relativas a veículos apreendidos, incluindo as de resolução do contrato por falta de pagamento das prestações – art. 21.º do DL 54/75.
5. Tendo em conta o segmento da norma geral alterado – art. 74.º, 1 - pelo Lei n.º 14/2006, não resulta que tenha sido revogado o regime especial previsto no art. 21.º do DL 54/75 e muito menos inequivocamente.
6. Analisados os trabalhos preparatórios do Lei n.º 14/2006, deles também não resulta que tenha sido intenção inequívoca do legislador revogar o regime especial de atribuição de competência territorial previsto no mencionado art. 21.º do DL 54/75 para a apreensão de vínculos e acções conexas.
7. No caso dos autos, é, pois, competente para a apreensão do veículo e acção conexa, o tribunal da residência do proprietário do veículo, onde os mesmos foram intentados.

Decisão Texto Integral:
Acórdão no Supremo Tribunal de Justiça

Relatório

AA P.L.C.(1).

Intentou contra

BB

Providência cautelar de apreensão de veículo automóvel e respectivos documentos, nos termos do art. 15.º do DL 54/75, de 12.2, na comarca de Lisboa, em cuja Conservatória do Registo Automóvel foi constituída reserva de propriedade a favor da A.

O veículo foi vendido ao R., residente em Ílhavo, com recurso ao crédito, sendo constituída garantia por contrato de financiamento com garantia da referida reserva de propriedade.

O tribunal considerou-se incompetente em razão do território, por ter considerado que era competente o da residência do R., face ao disposto no art. 74.º do CPC, redacção do DL 14/2006, de 26.4, em vigor à data da instauração da providência cautelar, que revogou inequivocamente a lei especial que regulava a matéria – art. 21.º do DL 54/75.

A requente agravou para a Relação que confirmou a decisão recorrida.

Interpõe agora recurso de agravo para o STJ com fundamento na contradição de acórdãos – art. 754.º, 2, 2ª parte do CPC, formulando as seguintes

Conclusões

A. A Agravante requereu, nas Varas Cíveis de Lisboa, o presente procedimento cautelar nos termos do artigo 15.° do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, e ao abrigo do artigo 21.° do mesmo que determina que "o processo de apreensão e as acções relativas aos veículos apreendidos são da competência do tribunal da comarca em cuja área se situa a residência habitual ou a sede do proprietário".

B. Sendo que a Agravante é titular do registo de reserva de propriedade que impende sobre o veículo automóvel marca Peugeot 206 com a matrícula ..-..-.., e tem a sua sede em Lisboa.

C. O Tribunal a quo manteve a decisão do Tribunal de 1.ª instância que se havia julgado territorialmente incompetente para a apreciação do Procedimento Cautelar intentado, fazendo uso da interpretação da Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, nos termos do n.º 1 do artigo 9.° e para efeito do n.º 3 do artigo 7.°, ambos do Código Civil, considerando assim revogado o referido artigo 21.° do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro;

D. Considerou o Tribunal a quo que a aludida revogação não afectava as finalidades procedimentais e de direito material que são visadas nos diplomas de natureza especial onde se consagra o especial regime de competência territorial.

E. Considerou assim inequívoca a intenção do legislador em revogar o referido artigo 21.°, dado que a alteração legislativa trazida pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril tem por base, a protecção do consumidor contratualmente mais desfavorecido bem como reduzir as consequências nocivas da litigância de massa.

F. Contudo, a expressão intenção inequívoca deverá reportar-se a situações que não se mostrem dúbias, que não sejam passíveis de várias interpretações ou que revelem claramente um determinado propósito, não suscitando, desse modo, dúvidas.

G. Na fixação da palavra inequívoca, deve o intérprete ser particularmente exigente.

H. Tal entendimento encontra-se plasmado de forma elucidativa no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.02.2007 (que serviu de fundamento para interposição do presente recurso, uma vez que se revela contraditório relativamente ao Acórdão ora recorrido), quando entende que "A existência de intenção inequívoca do legislador deve assentar em referência expressa na própria lei ou, pelo menos, em um conjunto de vectores incisivos que a ela equivalham, pelo que, quando se pretenda, através de uma regra geral revogar leis especiais, designadamente quando se vise firmar um regime genérico e homogéneo, há que dizê-lo, recorrendo à revogação expressa ou, no mínimo, a uma menção revogatória clara, do género, são revogadas todas as leis em contrário, mesmo as especiais. (Meneses Cordeiro, "Da aplicação da lei no tempo e das disposições transitórias, em Cadernos de Ciência da Legislação, INA, nº. 7, 1993, págs. 17 e ss, apud, Abílio Neto, Código Civil Anotado, 13.ª edição actualizada, 2001, pág. 20.4)"

I. No mesmo sentido também se pronuncia o Acórdão da Relação de Lisboa de 22.03.2007 quando diz que "Face a tais princípios, há desde logo e em primeiro lugar que ter presente que o legislador ao longo do tempo procedeu a várias alterações ao referido Decreto-Lei n°. 54/75 (Dec.Lei nº. 403/88, de 9.11, Dec.-Lei nº. 182/02 de 20.08 - com a Declaração de Rectificação nº. 31-B/2002 de 31.10 e Dec.-Lei nº. 178-A/2005 de 28.10) sendo certo que, querendo, poderia ter alterado a norma atributiva de competência territorial nele prevista, tanto mais que o último dos diplomas de alteração é quase contemporâneo com a Lei 14/2006(distam um da outra de cerca de seis meses), pelo que já então existiriam as razões que levaram às modificações introduzidas por tal Lei".

J. Mais recentemente, decidiu ainda o Tribunal da Relação de Lisboa, sobre esta questão, em douto Acórdão de 25.10.2007, no seguinte sentido: "Trata-se efectivamente duma lei especial que, não tendo sido expressamente revogada pela referida Lei 14/2006 no que ao artigo 21 ° diz respeito, mantém a regra de competência territorial ai prefigurada (sede da proprietária do veiculo/Lisboa) ".

K. "que se compreende, pois regulando o registo de propriedade automóvel, foi sucessivamente alterado pelos DL403/88 (de 9-11), DLl78A/05, (de 28-10), DLl82/02, (de 20-(8) - com a Declaração de Rectificação nº. 31 B/02 (de 31-10) e pelo DLl07-A/05 de 28-10, mas nunca in totum."

L. Concluindo que: " Por outro lado, no que se reporta ao artigo 2l.º desse diploma legal, nunca o mesmo sofreu qualquer alteração, o que não foi inocente".

M. Essa foi também a opinião do Tribunal da Relação de Lisboa no seu recente Acórdão de 4.12.2007 onde entende que "aquele artigo 21.º (do Decreto-Lei 54/75 de 12 de Fevereiro) nunca foi alterado por se ter revelado sempre actual e adequado às exigências de celeridade, eficácia e justiça que subjazem à especificidade da providência cautelar em causa"

N. Não poderá pois entender-se que houve, no caso em apreço, tal intenção inequívoca do legislador.

O. Assim, ponderando a natureza especial do supra referido diploma, e conjugando a análise dos artigos 21 ° e 15° do mesmo, apuramos que a intenção do legislador foi subordinar a competência em razão do território para as acções aí previstas ao local da residência do proprietário da viatura, e não ao local da residência do réu ou do credor, como o fez no artigo 74°, n.º. 1 do CPC.

P. O legislador terá assim optado por estabelecer uma regra de competência mais favorável ao proprietário da viatura, e não uma que beneficiasse a figura do réu, conforme fez no artigo 74°, n.º. 1 do CPC.

Q. Estamos deste modo perante formas diferentes de atribuição de competência, que se baseiam em realidades distintas, e que, nesse sentido, e na senda do já referido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.03.2007, " não permitem que se conclua que uma norma genérica como o nº. 1 do artigo 74° do CPC na redacção dada pela Lei 14/2006, possa vir derrogar a especificidade ínsita no apontado artigo 21.º do Decreto -Lei 54/75 de 12 de Fevereiro .... ".

R. Assim, não pode a alegada intenção do legislador com vista ao descongestionamento dos tribunais e à maior protecção do consumidor, colidir com a intenção anteriormente explanada no Decreto-Lei aqui em análise e cuja alteração expressa não foi efectuada apesar das diversas oportunidades.

S. In casu, com a entrada em vigor da Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, não há intenção do legislador em alterar o artigo 21.° do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, pelo que aquela não é inequívoca conforme arrogado na decisão ora recorrida e, consequentemente, não produz efeitos nos termos do n.º 3 do artigo 7.° do Código Civil.

T. Como de resto foi entendido pelo Venerando Juiz Desembargador Ferreira de Almeida na sua declaração de voto no acórdão ora recorrido e para a qual desde já se remete.

U. Assim, o Tribunal a quo, ao manter a decisão do Tribunal de la instância, e julgando territorialmente incompetente para apreciação do presente procedimento cautelar o Tribunal da Comarca da sede da Agravante, por entender que a Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril contém uma intenção inequívoca de revogação de todas as normas contrárias, mesmo as especiais, que atribuam competência territorial, violou o Decreto-Lei 54/75 de 12 de Fevereiro, que regula as providências cautelares de apreensão de veículos automóveis, designadamente a norma prevista no artigo 21.0 do mesmo, e o artigo 70 do Código Civil.

Termina, pedindo se julgue procedente o recurso.

Não foram oferecidas contra alegações.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

Matéria de facto a considerar:

1. AA P.L.C, subrogada nos direitos do alienante, intentou a presente providência cautelar de apreensão do veículo Peugeot 206, matrícula ..-..-.. em 11.5.2007, nas Varas Cíveis de Lisboa;

2. Conforme doc. junto com o requerimento inicial, o requerente financiou o requerido BB, residente em Ílhavo, na aquisição do referido veículo;

3. A requerente é representada pela Sucursal em Portugal, com sede em Lisboa;

3. Para garantia do reembolso do capital, foi constituída a favor da requerente a reserva de propriedade do veículo;

4. O requerido deixou de pagar as prestações a partir de 10.8.2006, não tendo posto termo à mora, após notificação da requerente;

O direito

Sendo, embora, muitas as conclusões da requerente, a única questão que se impõe decidir é a de saber se se mantém em vigor o art. 21.º da lei 54/75, de 12.2 – sendo competente o tribunal da residência do proprietário do veículo (2)”. - ou se, como se defende na decisão recorrida, esse normativo foi revogado pela Lei n.º 14/2006, de 26.11, que dando nova redacção ao art. 74.º, 1 do CPC, estabeleceu um regime geral, incompatível com aquela norma especial que remodelou o sistema de registo da propriedade automóvel.

Não há divergência quanto a considerar que esta norma do CPC é uma norma geral e que a prevista na lei 54/75 é norma especial.

Na verdade, enquanto aquela constitui o regime-regra da atribuição de competência para o cumprimento da obrigação(3)”., esta (Lei n.º 54/75) é lei especial, que apenas rege para o sector nela mencionada, “…. consagrando neste sector restrito, por razões privativas dele, um regime oposto àquele regime-regra(4)..

A regra geral sobre a cessação da lei(5) é a de que a mesma só deixa de vigorar se for revogada por outra lei, podendo resultar de revogação expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior (6)

E, tratando-se, num caso, de uma lei geral e, noutro, de uma lei especial, temos de atentar na regra contida no n.º 3 do art. 7.º: “a lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador”.

Portanto, a regra é a de que, se não houver revogação nos termos do n.º 2 do art. 7.º, a lei geral não revoga a lei especial.

É que “a afirmação aparentemente lógica de que a lei geral, por ser mais extensa, incluirá no seu âmbito a matéria da lei especial, ficando esta revogada, não se sobrepõe à consideração substancial de que o regime geral não toma em conta as circunstâncias particulares que justificaram a emissão da lei especial. Por isso, não será afectada em razão de o regime geral ter sido modificado. Uma lei sobre o turismo não afectará uma lei especial sobre o turismo de montanha(7).

A excepção do n.º 3 do art. 7.º - intenção inequívoca do legislador – tem que ir buscar-se à interpretação da lei nova (8)., exigindo-se do “intérprete uma particular certeza na sua conclusão do sentido da lei”, porque não basta que, por interpretação, se chegue à conclusão de que houve intenção de revogar; é necessário que essa intenção se manifeste inequívoca(9)..

Na interpretação da lei, a sua letra é o ponto de partida (10), mas mesmo quando o seu texto seja claro, “não pode haver logo a segurança de que ele corresponde exactamente à vontade legislativa, pois é bem possível que as palavras sejam defeituosas ou imperfeitas (manchevole), que não reproduzam em extensão o conteúdo do princípio ou, pelo contrário, sejam demasiado gerais e façam entender um princípio mais lato do que o real, assim, como, por último, não é excluído o emprego de termos erróneos que falseiem abertamente a vontade legislativa. O sentido literal é incerto, hipotético, equívoco(11).

Por isso, deve indagar-se a vontade do legislador a partir da letra da lei, mas com recurso à sua interpretação lógica e racional, perscrutando as necessidades práticas da vida e a realidade social(12), atendendo ainda ao elemento histórico e aos trabalhos preparatórios, mas com a advertência deste autor(13) de que estes “amiúde não nos dizem nada ou são uma caótica mixórdia de teorias opostas em que todo o intérprete pode achar cómoda confirmação para as opiniões próprias”, devendo ser utilizados com cautela.

Analisemos, então, o texto do art. 74.º, 1 do CPC antes e depois da alteração nele introduzida pela Lei n.º 14/2006.

“A acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento(14).….”

Este trecho da lei manteve-se na nova redacção.

Foi alterado apenas o trecho que se segue.

Enquanto na redacção antiga se dizia: “…. será proposta, à escolha do credor, no tribunal do lugar em que a obrigação devia ser cumprida ou no tribunal do domicílio do réu”, na nova redacção diz-se que a mencionada acção “…. é proposta no domicílio do réu, podendo o credor…..”

Mantendo-se o mesmo trecho do normativo, no segmento da norma que se refere às acções de resolução do contrato por falta de pagamento e, sabendo-se que a lei 54/75, ao prever no art. 21.º que “o processo de apreensão e as acções relativas aos veículos apreendidos são da competência do tribunal da comarca….” se quer referir a todas as acções subsequentes à apreensão de veículo, nelas se incluindo as acções de resolução do contrato por falta de pagamento das prestações, como, claramente, flúi dos arts. 15.º e segts, designadamente do art. 18.º do menciono DL 54/75, então, logo se vê que o legislador, com a lei 14/2006 não englobou na norma geral os casos de resolução já previstos no DL 54/75.

Apenas quis estatuir para os casos de resolução do contrato, por falta de pagamento do preço, previstos no art. 74.º.

Só para estes muda a regra da competência: deixa de ser escolhido o foro pelo credor e passa a ser o do tribunal da residência do réu.

Não há dúvidas de que, antes da alteração introduzida pela Lei 14/2006, as acções de resolução do contrato por falta de pagamento do preço, não abrangiam as acções previstas no DL 54/75.

E depois da entrada em vigor daquela Lei, nenhuma alteração se tendo verificado nesse segmento da norma, nada indica, muito menos inequivocamente, que o legislador terá querido abarcar no seu contexto as acções previstas naquela lei especial.

Aliás, nos casos previstos no art. 21.º do DL 54/75, nunca o credor podia escolher o foro, sendo o mesmo definido pelo legislador: o da residência do proprietário do veículo.

E se, na interpretação da lei, a sua letra é o ponto de partida, bastaria o exposto para se concluir que a nova redacção do art. 74.º se destinou apenas aos casos nela previstos já antes; não também aos casos previstos no DL 54/75.

Mas aduz-se na decisão recorrida que as razões que presidiram à alteração do art. 74.º - descongestionamento dos tribunais, com maior racionalização e aproveitamento do parque judiciário (questão de interesse e ordem público) e a protecção do consumidor – fazem concluir inequivocamente que foi vontade do legislador revogar o art. 21.º citado.

Foi, de facto, intenção do legislador, ao introduzir alterações ao art. 74.º, impedir

- que os grandes litigantes promovam frequentemente acções nos tribunais onde lhes é mais conveniente e barato litigar;

- que a litigância de massa se continue a concentrar nos mesmos locais, congestionando por isso os respectivos tribunais;

- que os consumidores sejam protegidos para não continuarem a ser obrigados a grandes deslocações para poderem contestar essas acções.

E foi também vontade do legislador acabar com os pactos de aforamento, como se conclui da circunstância de na reunião de 1.3.2006, da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, ter sido proposta a alteração dos arts. 100.º e n.º 1, a) do art. 110.º do CPC, por forma a permitir o conhecimento oficioso da competência territorial, que não estava prevista na proposta de lei, o que a acontecer, diz-se aí, “as acções continuariam a decorrer onde tivessem sido propostas, (continuando a sobrecarregar os tribunais de Lisboa e do Porto), uma vez que o tribunal não poderia conhecer oficiosamente da excepção da sua incompetência territorial”.

Foi, pois, objectivo do legislador acabar com a “colonização” dos tribunais dos grandes centros urbanos – Lisboa e Porto – pelos cobradores de créditos mal parados.

Aliás, a tudo isto não foi alheio o sentimento geral da nossa comunidade de responsabilizar quem concede o crédito, muitas vezes em autêntica publicidade enganosa, criando necessidades nos consumidores que eles, muitas vezes, só descobrem por causa dessa publicidade, sendo esse um dos principais processos de endividamento das famílias.

E, depois, na cobrança dos seus créditos, valendo-se de contratos de adesão, onde incluíram cláusulas de aforamento, condicionadoras da concessão do crédito, passaram a congestionar os tribunais dos grandes centros, especialmente Lisboa e Porto, onde têm a sua sede e os escritórios dos seus advogados, obrigando o consumidor a grandes deslocações, com acumulações de gastos que os parcos rendimentos, absorvidos pelo crédito concedido, muitas vezes não suportam nem lhes permite até contestar as acções com esse acréscimo de custos.

Por isso, a alteração legislativa parece ter sido oportuna, traduzindo a realização de um interesse geral da sociedade, em defesa do consumidor, não representado em grande prejuízo para quem concede o crédito, sempre mais forte economicamente do que aquele.

No entanto, se estas razões são válidas para os casos previstos no art. 74.º do CPC, não se vê que destes trabalhos preparatórios(15) se possa tirar a conclusão de que se pretendeu também incluir aí as acções a que se refere o art. 21.º do DL 54/75.

Na verdade, a grande litigância de massas tem mais a ver com as empresas de âmbito nacional, concentradas em Lisboa e Porto e com publicidade abrangente a todo o País: bancos, sociedades financeiras, empresas de telecomunicações.

Essas empresas, dotadas de contratos de adesão, incluíam neles cláusulas com pactos de aforamento, concentrando as acções nas suas sedes, em Lisboa e Porto, congestionando e “colonizando” os tribunais cíveis aí sedeados, sendo por essa razão que foi legislado se conhecesse oficiosamente a competência.

Mas mesmo considerando que nessa litigância de massas se enquadrem as empresas de concessão de crédito para compra de automóveis, como acontece com a A., as razões que determinaram a elaboração da lei especial em análise não foram modificadas com as alterações introduzidas pela Lei 14/2006.

Com efeito, na base da apreensão de veículos está a reserva de propriedade(16)., justificando-se que a apreensão do veículo e respectiva acção sejam intentadas na residência do proprietário.

E, não tendo sido alterada essa regra substantiva nem resultando das razões apontadas para a elaboração da Lei 14/2006 que fosse intenção inequívoca do legislador proceder a uma regulamentação geral da competência que abarcasse também as acções de resolução do contrato de veículo com reserva de propriedade, temos de concluir que aquela Lei geral não revogou o art. 21.º da referida Lei especial n.º 54/75.

Aliás, embora sendo argumento de menor valor, nas várias alterações introduzidas no DL 54/75 – sucessivamente actualizado(17) - nunca essa regra especial de competência foi revogada ou sequer alterada.

E, já após a publicação da Lei 14/2006 e do acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ de 18.10.2007, proferido no processo 2775/2007(18)., foi publicada mais uma alteração(19). sem que tenha havido qualquer modificação no referido normativo.

Concluímos, pois, que se mantém em vigor o art. 21.º do DL 54/75, de 12.2, sendo, por isso competente para a apreensão do veículo e respectiva acção o tribunal da comarca de Lisboa, merecendo provimento o agravo(20).

Decisão

Pelo exposto, dá-se provimento ao agravo, revogando-se a decisão recorrida, julgando-se competente para o procedimento cautelar intentado o tribunal cível de Lisboa, onde o mesmo foi intentado.

Sem custas.

Lisboa, 13 de Março de 2008

Custódio Montes (Relator)

Mota Miranda

Alberto Sobrinho


__________


(1) -Subrogada nos direitos do alienante de veículo com reserva de propriedade._
(2)-Aqui se incluindo o titular da reserva de propriedade, não sendo objecto do recurso a questão de saber se o termo proprietário inserto no art. 21.º da lei n.º 54/75 se refere apenas ao proprietário ou, neste conceito, se abarca também o titular da reserva de propriedade; mas no caso dos autos, o problema que se poderia pôr era tão só o de saber se é válida a transmissão da garantia, pois vem referido no contrato que “o vendedor registado cedeu ou cederá ….. a titularidade de tal reserva de propiedade”.
(3)-“A acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana”.
(4)-Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pág. 94.
(5)- Art. 7.º do CC.
(6)- N.ºs 1 e 2.
(7)- Oliveira Ascensão, O direito, Introdução e Teoria Geral, 13.ª ed., pág. 534; ou “a revogação da lei geral sobre turismo não afectará uma eventual lei especial sobre o turismo no Algarve – mesmo A. in O Direito Introdução e Teoria Geral - uma perspectiva luso-brasileira, 2.ª ed., pág. 263
(8)-Com ensina Vaz Serra, RLJ Ano 99, pág. 334, “o problema é, pura e simplesmente, de interpretação da lei posterior, resumindo-se em apreciar se esta quer ou não revogar a lei especial anterior”.
(9)-Ol. Ascensão, Ob. Cit., pág. 536; “o art. 7.º, 3 impõe uma presunção no sentido da subsistência da lei especial – mesmo A. ob. cit 2.ª ed., pág. 263.
(10)-Batista Machado, Ob. cit., pág. 188.
(11)-Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, tradução de Manuel de Andrade, pág. 140.
(12)-Ferrara, Ob. cit., pág. 141.
(13)-Ob. cit., pág. 146..
(14)- Realçado nosso.
(15)- Analisados à luz dos ensinamentos e precauções de Ferrara, acima mencionadas.
(16)-Art. 15.º do DL 54/75

(17)-Decreto-lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro de 1975

Modificações:
1 Alterados os arts 3º, 10º e 11º do presente diploma, na redacção do Dec Lei 178-A/2005 de 28-Out, pelo DEC LEI.20/2008.31.01.2008;2 Alterado o art. 5º do presente diploma, com a redacção introduzida pelo Dec Lei 178-A/2005 de 28-Out, pelo DEC LEI.85/2006.23.05.2006;3 Alterados os arts. 1.º (na redacção do Dec Lei 242/82 de 22-Jun), 2.º, 3.º, 5.º, 7.º, 9.º, 10.º, 11.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 23.º e 28.º, aditado o art. 27º-J e revogados os arts 12º e 13º todos do presente diploma, pelo DEC LEI.178-A/2005.28.10.2005;
4 Alterado o art. 27º e aditados os arts 27º-A e 27º-I do presente diploma, pelo DEC LEI.182/2002.2002.08.20;5 Revogada toda a legislação anterior que contrarie as matérias abrangidas pelo Código do Registo de Bens Móveis, exceptuando o nº 3 do art. 2º, e arts 15.° a 23.° do presente diploma, pelo DEC LEI.277/95.25.10.1995;
6 Revogados os artigos 24.º e 25.º pelo DEC LEI.403/88.09.11.1988.MJ;
7 Alterado o artigo 27.º, com a redacção introduzida pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 242/82, de 22 de Junho, pelo Dec. Lei 217/83.25.05.1983.MJ;
8 Alterados os artigos 1.º e 27.º, pelo DEC LEI.242/82.22.06.1982;
9 Alterados os art 1 e 27 pelo dec lei 242/82 de 22.jun; alterado o art 27 pelo dec lei 54/85 de 04-mar, com a redacção introduzida pelo art 1 do dec lei 242/82 22-jun e pelo art único do dec lei 217/83 de 25-mai; revogados os art 24 e 25 pelo dec lei 403/88 de 09-nov; alterado o art 27 pelo dec lei 217/83 de 25-mai, com a redacção introduzida pelo dec lei 242/82 de 22-jun; substituída a tabela de emolumentos do registo de automóveis, pelo dec lei 31/78, de 09-fev.
(18)-Dgsi proc. n.º 07B2775.
(19)-DL n.º 20/2008, de 31.1.
(20)-O pacto de aforamento fixado está em conformidade com a regra do art. 21.º, pois, caso contrário, ele não seria permitido, mesmo que firmado antes da entrada em vigor da Lei 14/2006, contrariamente ao entendimento da recorrente, como decorre do acórdão de uniformização de jurisprudência já citado.