Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
| ||
| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | PEREIRA MADEIRA | ||
| Descritores: | FURTO APROPRIAÇÃO ILÍCITA POSSE APROPRIAÇÃO ILÍCITA POR ACHADO DETENÇÃO ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS | ||
| Nº do Documento: | SJ200310300032095 | ||
| Data do Acordão: | 10/30/2003 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | 2 J T CHAVES | ||
| Processo no Tribunal Recurso: | 490/02 | ||
| Data: | 05/14/2003 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REC PENAL. | ||
| Sumário : | I - Para efeito da previsão do artigo 209.º do Código Penal, não integra o conceito de «apropriação» qualquer mera omissão de entrega da coisa ao seu dono, ou, mesmo, de cumprimento das formalidades ou diligências que a lei - nomeadamente a lei civil - ponha a cargo do possuidor ou detentor no sentido de propiciar a entrega; se o possuidor ou detentor se limita a conservar a coisa à espera que ela seja reclamada, continuando a comportar-se relativamente a ela uti alienus, e não uti dominus, não existe aquela «apropriação» e por isso o tipo objectivo de ilícito não se encontra, nesta parte preenchido. II - O tribunal só é obrigado a cumprir o disposto no artigo 359.º do Código de Processo Penal quando se verifique uma «alteração substancial de factos», «alteração de factos», esta, que, por definição, há-de ter a virtualidade de imputar ao arguido um crime, embora diverso do da acusação, ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis - art.º 1.º, f), do Código de Processo Penal. III - Tal significa que se pressupõe nestes dois dispositivos - o artigo 1.º f), e o art.º 359.º citado - que o tribunal seja confrontado não, com meros indícios da prática de um qualquer crime, antes, com um facto criminalmente punível, enfim, já um crime, em qualquer das suas manifestações possíveis. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1. O Ministério Público na comarca de Chaves acusou o arguido RAMM, devidamente identificado, da prática, em autoria material e em concurso real, dos seguintes crimes: - 8 crimes de furto da previsão do art. 203° n° 1 do Código Penal; - um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, da previsão do art. 25° al. a) do DL. 15/93 de 22/01; - um crime de furto qualificado da previsão dos arts. 203° n° 1 e 204° n° 2 al. e) do Código Penal; - 2 crimes de burla da previsão do art.º 217° n° 1 do Código Penal. Efectuado o julgamento veio a ser proferida sentença em que, além do mais, foi decidido: Julgar a acusação improcedente por não provada quanto aos crimes: - de furto qualificado da previsão do art. 203° n° 1 e 204° n° 2 al. e) do Código Penal, praticado na casa de habitação de SCMB, - de furto simples (2) da previsão do art. 203° n° 1 do Código Penal, relativos ao processo de inquérito levado das instalações dos serviços do Ministério Público da comarca de Chaves e à subtracção da carteira de MFS, na Frutaria Barroso, e de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, da previsão do art. 25° al. a) do DL. 15/93 de 22/01, e absolver o arguido RAMM destes quatro crimes. Convolar a acusação: - do crime de furto qualificado anteriormente referido para o crime de furto simples da previsão do art. 203° n° 1 do Código Penal, e - do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, da previsão do art. 25° ai. a) do DL. 15/93 de 22/01, para o crime de consumo de estupefacientes da previsão do art. 40° n° 2 do mesmo decreto-lei. Inconformado recorre ao Supremo Tribunal de Justiça o Ministério Público, culminando a sua motivação com este teor conclusivo: 1. O arguido RAMM foi absolvido relativamente ao crime de furto simples que vinha acusado de ter cometido no dia 10 de Maio de 2002 nas instalações dos serviços do Ministério Público na comarca de Chaves. 2. Porém, a conduta do arguido que a douta decisão ora recorrida dá por provada integra a prática do crime de apropriação ilegítima de coisa achada p. e p. pelo artigo 209.º, n.º 1, do Código Penal. 3. Porque o processo de inquérito NUIPC 85/02.7PBCHV entrou na posse do arguido por erro e independentemente da sua vontade e este apropriou-se ilegitimamente do mesmo e decidiu guardá-lo no seu domicílio, como se fosse coisa sua, e não o restituir ao Ministério Público. 4. Ocorreu, assim, uma alteração substancial dos factos descritos na acusação que o douto Tribunal Colectivo deveria ter tido em conta, face ao disposto no artigo 359.º do Código de Processo Penal, como fez relativamente a dois outros crimes imputados ao arguido, que convolou para tipos legais diversos de furto qualificado para furto simples e de tráfico de estupefacientes de menor gravidade para o de consumo de estupefacientes. 5. Consequentemente, o douto Tribunal Colectivo deveria ter comunicado ao arguido e ao Ministério Público a sua decisão relativa à matéria de facto (de que resultou a alteração substancial relativamente à acusação) para que pudessem dar o seu acordo a que o julgamento continuasse por esses factos. 6. Obtido esse acordo, deveria o douto Tribunal Colectivo «a quo» ter levado em conta esses factos provados e condenado o arguido pela prática do crime previsto e punível nos termos do artigo 209.º do Código Penal. 7. Caso não fosse obtido o acordo, deveria o douto Tribunal Colectivo «a quo» comunicar a alteração substancial dos factos ao Ministério Público para que procedesse por esses factos contra o arguido. 8. Não o fazendo, o douto Tribunal Colectivo «a quo» violou o disposto no artigo 359.º do Código de Processo Penal. Face ao exposto, deverá o presente recurso ser julgado procedente e ser revogada a decisão ora recorrida na parte em que absolveu o arguido, pura e simplesmente, quanto ao crime de furto cometido nos serviços do Ministério Público na comarca de Chaves que lhe era imputado na acusação e, em alternativa, ser condenado o arguido como autor de um crime previsto e punível no artigo 209.º, n.º 1, do Código Penal, caso dê o seu acordo ao prosseguimento do processo (nos termos do artigo 359.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), ou ser comunicado ao Ministério Público que o julgamento não pode prosseguir e que não pode ser proferida sentença relativamente a esses factos, caso o arguido não dê o seu acordo e para que o Ministério Público possa promover o respectivo procedimento criminal em processo autónomo. Não foi apresentada qualquer resposta. Subidos os autos, manifestou-se o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no sentido de nada obstar ao conhecimento do recurso. A única questão a decidir consiste em saber se, no quadro de facto traçado, foi ou não desrespeitado pelo tribunal recorrido o disposto no artigo 359.º do Código de Processo Penal. 2. Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir. Factos provados 1) No dia 5/04/2002, por volta das 15,30 horas, o arguido deslocou-se à povoação de Santo António de Monforte, comarca de Chaves, para se encontrar com MSPF, então com a idade de 16 anos, filha de JALF e de MCPSD e residente com os seus pais na referida povoação. 2) O arguido já conhecia a MS desde algum tempo antes e esta já lhe tinha dado dinheiro por várias vezes. 3) Dirigindo-se à casa de habitação dos pais da MS, onde esta se encontrava apenas acompanhada da sua irmã JPF, de 9 anos de idade, o arguido pediu à MS que lhe desse dinheiro. 4) A MS disse-lhe que, naquele momento, não tinha dinheiro consigo. 5) Então o arguido, aproveitando-se da ausência dos pais da menor, começou a procurar, pelos móveis da casa, dinheiro de que pudesse apropriar-se. 6) Não tendo encontrado dinheiro, o arguido,. na presença e com o conhecimento da menor MS, apropriou-se de dois cartões Visa Electron com os respectivos códigos secretos, sendo um deles, em nome do pai da menor, JALF, relativo à conta n° 5180700125 da agência de Chaves do Banco Sotto Mayor, e o outro, em nome da mãe da menor, MCPSD, relativo à conta n° 5180619891 da mesma agência bancária. 7) Na posse dos referidos cartões, o arguido passou a usá-los para fazer levantamentos de dinheiro em caixas do Multibanco, que gastou em seu proveito pessoal, e para fazer pagamentos de diversas compras em estabelecimentos comerciais diversos, da cidade de Chaves e de localidades vizinhas de Espanha, sem o conhecimento dos titulares desses cartões e contra a sua vontade. 8) Assim, no período compreendido entre o dia 5/04/2002 até ao dia 10/05/2002, data em que foi feito o cancelamento dos respectivos cartões, o arguido, através do uso dos referidos cartões, retirou da conta n° 5180700125, em nome de JALF, o montante global de 1.640,71 (mil seiscentos e quarenta Euros e setenta e um cêntimos), e da conta n° 5180619891, em nome de MCPSD, retirou a totalidade do saldo existente, no montante de 922,20 (novecentos e vinte e dois mil e vinte cêntimos). 9) Ao agir como descrito, o arguido quis apropriar-se de dinheiro que não lhe pertencia, sabendo que o fazia sem autorização e contra a vontade dos respectivos donos. 10) No dia 10/05/2002, o arguido esteve no interior das instalações onde funcionam os serviços do Ministério Público da comarca de Chaves, a prestar declarações no âmbito de uns autos de inquérito em que o ora arguido figurava como ofendido. 11) Tinha levado consigo uma revista e um jornal, os quais, no decurso daquela diligência, colocou por cima de um monte de processos de inquérito que se encontravam sobre uma secretária. 12) Finda aquela diligência, o arguido, ao agarrar na sua revista e no seu jornal, também agarrou, inadvertidamente, no processo de inquérito que estava no cimo daquele monte, o qual, sem se aperceber, levou consigo para a casa onde então residia, colocando-o no cimo do guarda fatos do seu quarto de dormir. 13) Tratava-se do processo de inquérito com o n° 176/2002, NUIPC 85/02.5PBCHV, instaurado por queixa apresentada por RAF contra SMAB, por crime de abuso de confiança. 14) No dia 1/07/2002, quando o arguido deixou de residir na casa referida em 3), o processo foi entregue pelo inquilino da referida casa, JCGMT, na esquadra da Polícia de Segurança Pública de Chaves, que, por sua vez, o entregou nos serviços do Ministério Público da comarca de Chaves no dia 8/07/2002. 15) No dia 11/06/2002, cerca das 14,45 horas, o arguido entrou no estabelecimento comercial denominado "Pizzaria Napolitana", sito na Av. da Raposeira, em Chaves, o qual se encontrava aberto ao público. 16) Dirigindo-se ao dono desse estabelecimento comercial, DLF, disse-lhe que era dirigente da claque do Grupo Desportivo de Chaves, que andava a angariar fundos para o clube e que, se contribuísse com uma quantia superior a 25,00 (vinte e cinco Euros), tinha direito a entrada grátis num jogo de futebol no campo do Desportivo e a publicidade do seu estabelecimento comercial nas camisolas da dita claque. 17) Para o fazer acreditar da sua invocada qualidade de dirigente, exibiu-lhe o cartão que consta a fls. 12 dos autos de inquérito com o n° 620/2002, apensos sob a letra J, cujo teor foi dado por integralmente reproduzido. 18) O DLF acreditou que o arguido andava a angariar fundos para o Grupo Desportivo de Chaves e, com essa finalidade, entregou ao arguido a quantia de 50,00 (cinquenta Euros). 19) Todavia, o arguido não andava a angariar fundos para o Grupo Desportivo de Chaves e a invocação de tal qualidade, bem como a exibição do cartão referido em 8), foram um mero expediente para induzir o DLF a entregar-lhe o dinheiro, de que se apropriou em seu beneficio exclusivo. 20) Sabia que o DLF não iria beneficiar das regalias referidas em 7) e que, dessa forma, o prejudicava. 21) Na mesma ocasião e lugar, o arguido, aproveitando um momento de distracção do DLF, agarrou num telemóvel da marca Motorola a este pertencente, no valor de 200,00 (duzentos Euros), e, se autorização do dono, levou-o consigo, com a intenção de o fazer seu, como fez. 22) Sabia que o telemóvel não lhe pertencia e que agia contra a vontade do respectivo dono. 23) No dia 19/07/2002, cerca das 17,00 horas, o arguido deslocou-se ao apartamento de SCMB, sito na Praceta do Emigrante, em Chaves. 24) Havia falado previamente com a referida SC, que lhe entregou as chaves e o autorizou a entrar no apartamento na sua ausência. 25) No interior do referido apartamento, o arguido retirou e levou consigo, sem autorização e contra a vontade da respectiva dona, os seguintes bens, de que se apropriou: - uma aliança em ouro amarelo e um fio de prata com uma cruz, ambos no valor de 50,00 (cinquenta Euros); - 475,00 (quatrocentos e setenta e cinco Euros) em dinheiro. 26) O arguido sabia que os referidos bens não lhe pertenciam e que, ao apropriar- se deles, agia contra a vontade da respectiva dona. 27) No dia 29/07/2002, pelas 20,45 horas, na cidade de Chaves, o arguido tinha na sua posse dois pedaços de um produto de cor acastanhada, designado por "haxixe", com o peso líquido de 14,103 gramas, cujo exame laboratorial revelou tratar-se de resina de Canabis. 28) O referido produto foi encontrado na posse do arguido por agentes da Polícia de Segurança Pública de Chaves, na sequência de uma revista que lhe fizeram por suspeitas de furto de um telemóvel. 29) Fazia parte de uma quantidade de 15 gramas que o arguido tinha comprado dois dias antes, pelo preço global de 40,00 (quarenta Euros), para o seu consumo pessoal, de que já tinha consumido uma pequena quantidade, correspondente á diferença de 0,897 gramas. 30) O arguido conhecia as características estupefacientes do referido produto, o qual destinava exclusivamente ao seu consumo pessoal, 31) Sabia que a sua detenção e consumo são proibidos por lei. 32) No período a que respeitam as datas referidas nas alíneas anteriores, o arguido era consumidor de produtos estupefacientes, designadamente haxixe e heroína. 33) Por esse motivo e em consequência da separação dos pais, saiu de casa da residência familiar e passou a viver por sua conta, em quartos alugados. 34) Também por motivos relacionados com o consumo de estupefacientes, perdeu o emprego que tinha como pintor de construção civil, onde auferia a remuneração mensal de 450,00, e ficou sem qualquer outra fonte de rendimentos. 35) Praticou os factos descritos sob as als. 1) a 9) e 15) a 26) para obter dinheiro para as suas necessidades básicas, designadamente alimentação, e para comprar os estupefacientes que consumia. 36) Entretanto, durante o período de prisão preventiva já sofrido, deixou de consumir estupefacientes e pretende voltar a trabalhar e refazer a sua convivência com a sua mãe e os seus irmãos. 37) Em audiência, o arguido confessou os factos aqui descritos como provados, pediu desculpa aos ofendidos que compareceram em audiência, a quem também manifestou o propósito de ressarcir, e mostrou arrependimento por esses factos. 38) Não tem antecedentes criminais. Factos não provados: - que o arguido tenha agarrado voluntariamente no processo supra identificado na al. 13) do número anterior e que o tenha levado consigo com a intenção de o subtrair ao poder público do Ministério Público e de se apropriar do referido o processo; - que o processo tenha sido encontrado pela companheira de JCGMT apenas no dia 1/07/2002, quando limpava o pó e arrumava o quarto onde tinha dormido o arguido; - que no dia 9/07/2002, pelas 12,30 horas, o arguido tenha entrado no estabelecimento comercial denominado "Frutaria Barroso", sito na Quinta das Eras, Edifício Nova Era, em Chaves, e tenha daí retirado uma carteira do tipo porta moedas, no valor de 30,00 (trinta Euros), pertencente a MFS, contendo vários documentos pessoais desta e a quantia de 160,00 (cento e sessenta Euros) em dinheiro; - que o arguido tenha entrado no apartamento de SCMB sem autorização e contra a vontade desta, saltando para uma varanda do dito apartamento e penetrando para o seu interior através de uma janela que estava aberta. Nesta matéria de facto não se vislumbram vícios capazes de a afectarem nem, de resto, lhe são imputados. Tem-se, assim, por definitivamente adquirida. A única questão aqui trazida pelo recorrente, consiste, como se viu, em saber se o tribunal recorrido deveria ou não ter seguido o ritualismo a que se reporta o artigo 359.º do Código de Processo Penal. Pugna ele pela afirmativa, uma vez que, em seu entendimento, os factos provados integram a previsão típica do artigo 290.º, n.º 1, do Código Penal, prefigurando-se, assim, uma alteração substancial de factos, que importaria o cumprimento daquele ritualismo processual. Vejamos. "Quem se apropriar ilegitimamente de coisa alheia que tenha entrado na sua posse ou detenção por efeito de força natural, erro, caso fortuito ou por qualquer maneira independente da sua vontade é punido com pena de prisão até 1 ano ou com multa até 120 dias" - artigo 209.º, n.º 1, do Código Penal. No que ao presente recurso importa, o que aconteceu foi que no dia 10/05/2002, o arguido esteve no interior das instalações onde funcionam os serviços do Ministério Público da comarca de Chaves, a prestar declarações no âmbito de uns autos de inquérito em que o ora arguido figurava como ofendido. Tinha levado consigo uma revista e um jornal, os quais, no decurso daquela diligência, colocou por cima de um monte de processos de inquérito que se encontravam sobre uma secretária. Finda aquela diligência, o arguido, ao agarrar na sua revista e no seu jornal, também agarrou, inadvertidamente, no processo de inquérito que estava no cimo daquele monte, o qual, sem se aperceber, levou consigo para a casa onde então residia, colocando-o no cimo do guarda fatos do seu quarto de dormir. Tratava-se do processo de inquérito com o n° 176/2002, NUIPC 85/02.5PBCHV, instaurado por queixa apresentada por RAF contra SMAB, por crime de abuso de confiança. No dia 1/07/2002, quando o arguido deixou de residir na casa referida em 3), o processo foi entregue pelo inquilino da referida casa, JCGMT, na esquadra da Polícia de Segurança Pública de Chaves, que, por sua vez, o entregou nos serviços do Ministério Público da comarca de Chaves no dia 8/07/2002 - factos 10 a 14 supra transcritos. Consta ainda, por força de inclusão nos factos não provados que, a tal propósito, não se provou: - que o arguido tenha agarrado voluntariamente no processo supra identificado na al. 13) e que o tenha levado consigo com a intenção de o subtrair ao poder público do Ministério Público e de se apropriar do referido o processo; - que o processo tenha sido encontrado pela companheira de JCGMT apenas no dia 1/07/2002, quando limpava o pó e arrumava o quarto onde tinha dormido o arguido; Este enunciado de facto já permite fazer alguma luz sobre o caso. E não favorece o recorrente. Desde logo, porque o crime do artigo 209.º do Código Penal é um crime só punível a título de dolo embora se baste com o dolo eventual. (1) Portanto está excluída a punição do agente a título de mera negligência - art.º 13.º do Código Penal. No caso, torna-se claro que não resulta provada qualquer actuação dolosa, mesmo eventual, do arguido. Ele levou consigo, inadvertidamente, sem disso se aperceber, o processo em causa, sendo, de resto, inteiramente verosímil o modo como as coisas decorreram, tanto mais que não se vê nem alegado vem que o arguido algum interesse tivesse no processo referido. Nem sequer se vislumbra qualquer intuito de o descaminhar, o que, aparentemente, teria sido muito fácil, a partir do momento em que, mesmo sem o saber, o levou consigo. Além disso, não ficou provada qualquer intenção de subtracção ou de apropriação, ou mesmo, consciência de que o acto assumiria esse significado. Por outro lado, dos factos não era - à data do julgamento - com o não é hoje, possível a conclusão de que houve apropriação relevante do processo, pesem, embora, os factos provados. Como ensina o Prof. Figueiredo Dias (2), «diferentemente do que dispunha o art.º 423.º do CP de 1886, não integra este elemento típico qualquer mera omissão de entrega da coisa ao seu dono, ou mesmo de cumprimento das formalidades ou diligências que a lei - nomeadamente a lei civil - ponha a cargo do possuidor ou detentor no sentido de propiciar a entrega.». E vai mesmo mais longe: «V.g., se o possuidor ou detentor se limita a conservar a coisa à espera que ela seja reclamada, continuando a comportar-se relativamente a ela uti alienus, e não uti dominus, não existe apropriação e por isso o tipo objectivo de ilícito não se encontra, nesta parte preenchido. Mas já assim não será naqueles casos em que, não tendo o agente adquirido a propriedade logo por efeito da acessão ou da ocupação, ele recusa a restituição da coisa, uma vez esta validamente solicitada ou exigida: em tais casos verificar-se-á já, em princípio, um acto concludente de apropriação». Vale isto por dizer in casu, que a omissão do arguido ao não ter, logo, restituído o processo em vez de o colocar sobre o guarda-fatos, não significa, só por si, apropriação relevante. Tanto mais que, sempre seria de questionar aqui, se ao aperceber-se da detenção do processo, o arguido sabia efectivamente o valor jurídico daquele amontoado de papéis. O que mais uma vez permite questionar da existência do elemento subjectivo, sabendo-se que, nestes casos, a dúvida funciona pro reo. Aqui chegados, logo se atinge a improcedência da pretensão do recorrente, na certeza de que o tribunal só é obrigado a cumprir o disposto no artigo 359.º do Código de Processo Penal quando se verifique uma «alteração substancial de factos». Alteração de factos esta que, por definição, há-de ter a virtualidade de imputar ao arguido um crime, embora diverso do da acusação, ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis - art.º 1.º, f), do Código de Processo Penal. O que significa que se pressupõe nestes dois dispositivos - o artigo 1.º f), e o art.º 359.º do CPP - que o tribunal seja confrontado não, com eventuais indícios da prática de um qualquer crime, antes, com um facto já criminalmente punível, enfim, já um crime, em qualquer das suas manifestações possíveis. O caso dos autos, ao menos com os elementos de facto disponíveis, está longe de assim se oferecer. Nem crime nem sequer tentativa. O que não significa, obviamente, que o recorrente, se assim o julgar necessário e ou conveniente, não possa desenvolver, por si, as diligências que estão ao alcance da sua alçada funcional, para melhor esclarecer(-se) sobre a totalidade da actuação do arguido quanto ao ponto focado. O que não pode é exigir do tribunal que vá além do que a lei lhe impõe. Não é preciso ir mais longe para demonstrar que o recurso não logra provimento. 3. Termos em que, negando provimento ao recurso, confirmam a bem fundamentada decisão recorrida. Sem tributação. Honorários de tabela à Ex.ma defensora oficiosa aqui nomeada. Supremo Tribunal de Justiça, 30 de Outubro 2003. Pereira Madeira (relator) Simas Santos Costa Mortágua Rodrigues da Costa ------------------- (1) Neste sentido, cfr., por todos, Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, II, págs. 156. (2) Ob. cit., págs. 154 |