Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | MÁRIO CRUZ | ||
| Descritores: | RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA MATÉRIA DE FACTO PROVA EM MATÉRIA CIVIL PROVA VINCULADA VALOR PROBATÓRIO DOCUMENTO PARTICULAR | ||
| Nº do Documento: | SJ20071009027691 | ||
| Data do Acordão: | 10/09/2007 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA | ||
| Sumário : | I. Em matéria de sindicalização da prova fixada pela Relação o STJ tem apenas a competência residual prevista no art. 722.º-2 do CPC, ou seja, a de apreciar se foi violada qualquer norma de direito material ou processual probatório (prova vinculada ou que estabeleça um determinado meio de prova), ou nos casos previstos no art. 729.º-3, isto é, se verificar que se torna necessária a ampliação da matéria de facto ou existam contradições na matéria de facto. II. No domínio da prova livre a competência é das instâncias. III. Os cheques, quando assinados pelos respectivos sacadores, são instrumentos de prova vinculada, como documentos particulares assinados, comprovando plenamente o reconhecimento de obrigação (de pagamento ou garantia) prestada pelos sacadores, mas funcionam apenas como documentos particulares, de livre apreciação do julgador, no tocante às obrigações a que concretamente digam respeito, por neles não estar contida a concreta menção do negócio subjacente, causa de pedir da acção (prova livre) | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I. Relatório AA, Ld.ª intentou acção declarativa com processo ordinário contra BB, Ld.ª, pedindo - a condenação desta no pagamento da quantia de 23.337,60, acrescida de juros vencidos até à data da propositura da acção (que computa em € 1.6662,40) e vincendos até integral pagamento. Alegou para tanto a venda de produtos para actividade pecuária, consoante facturas que discriminou, pagamentos que no entanto a Ré não efectuou. A Ré contestou, alegando ter efectuado todos os pagamentos, à medida que os fornecimentos das mercadorias iam sendo feitos. Pediu por isso a condenação da A. como litigante de má fé. Replicou a A., concluindo como na petição inicial. Saneado, condensado e instruído o processo, seguiu ele para julgamento, sendo dada a resposta negativa ao único quesito da base instrutória, onde se perguntava “A Ré pagou as mercadorias referidas nos factos assentes?” Foi depois proferida Sentença. Nesta foi a acção julgada procedente, sendo condenada a Ré na quantia peticionada. Inconformada com a decisão recorreu a Ré, onde sustentou ter havido erros na apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, alegando ainda ter sido feita errada apreciação de todos os documentos incorporados no processo. A Relação no entanto julgou improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida. Na parte relativa à fundamentação do Acórdão encontra-se escrito o seguinte: “(...) Pretende a recorrente a alteração do decidido quanto à matéria de facto, que no seu entender foi incorrectamente julgada, no que concerne ao quesito único da Base Instrutória. O quesito único da base instrutória tem a seguinte redacção: “A Ré pagou as mercadorias referidas nos factos assentes?” A este quesito foi respondido «Não provado». Pretende a recorrente a alteração do decidido quanto a essa matéria. Como é sabido, a decisão do Tribunal de 1 ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação, nomeadamente se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690°-A, a decisão com base neles proferida, e se o recorrente apresentar documentos novos supervenientes que, por si só, legitimem a destruição das provas em que a decisão se fundamentou (art.º 712°, n° 1. alíneas a) e c) do CPC). Com efeito, analisando a decisão sobre a matéria de facto, verifica-se que o Mmo. Juíz fundamentou exaustivamente a mesma, aludindo de forma detalhada aos aspectos que influíram na formação da convicção, mostrando-se cumprido o disposto no art.º 653°, n° 2 do CPC. O n° 1 do art° 655° do CPC consagra o princípio da livre apreciação da prova pelo tribunal: «O Tribunal aprecia livremente as provas e responde segundo a convicção que tenha formado acerca de cada facto quesitado». Os documentos são meios de prova submetidos à livre apreciação do julgador, o qual decidiu, de harmonia com o artigo 655°, n.º1 do CPC, segundo a sua prudente convicção. É regra do nosso direito processual civil a da imodificabilidade das respostas do colectivo, regra que apenas sofre as excepções indicadas no art° 712° do CPC O poder concedido ao Tribunal da Relação de alterar a decisão da 1.ª instância acerca da matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão. Só um erro notório na apreciação das provas, ostensivamente revelado por depoimentos ou documentos mal avaliados, poderá levar o Tribunal da Relação a modificar o juízo formulado pela 1.ª instância em relação à matéria de facto dada como provada. E, nesta parte, após análise e valoração da prova que foi gravada, designadamente, dos depoimentos das testemunhas Hugo Ribeiro e Sérgio Manuel Ribeiro Alves de Sousa, e do seu confronto com os documentos juntos aos autos, não vemos razões decisivas para alterar a decisão sobre a matéria de facto, no sentido apontado pela apelante, pois os mesmos sustentam com razoabilidade a decisão proferida no tocante ao ponto concreto da matéria de facto impugnado, pelo que não merece aquela decisão qualquer alteração. E por outro lado, nem a recorrente apresentou documento novo superveniente que, por si só legitime a destruição das provas em que tal decisão se fundamentou. Assim, não ocorrendo nenhuma das situações referidas no art.º 712° do CPC, susceptíveis de implicar a sua alteração, aceita-se e mantém-se a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal de 1.ª instância. Em sede de mérito, o êxito do recurso passava pela procedência da impugnação da matéria de facto. Tendo o recurso, nessa parte, improcedido, terá de ser mantida a decisão recorrida, que faz correcta interpretação e aplicação do Direito aos factos julgados provados. Na verdade, incumbia à Ré, segundo as regras do ónus da prova (art. 342°, n.º 2 do CC) fazer a prova do pagamento do preço. No caso vertente, a Ré não logrou fazer a prova do pagamento do preço em causa. Tem, assim, a autora o direito a haver da ré o montante peticionado, correspondente ao preço dos materiais por si vendidos, acrescido dos juros de mora, pelo que nenhuma censura merece a sentença recorrida. (...)” A Ré continuou inconformada. Interpôs recurso para este Supremo Tribunal Apresentou alegações que concluiu pela forma seguinte: “CONCLUSÕES: 1.ª - Está documentado nos autos que o primeiro fornecimento da A. à Ré ocorreu em Janeiro de 2003 e o último fornecimento ocorreu em Maio de 2004; 2.ª- Durante o período em que ocorreram aqueles fornecimentos está abundantemente documentado nos autos que a Ré emitiu a favor da A. os cheques que se encontram incorporados no processo em fotocópia, cheques esses todos sacados sobre uma conta da Ré, todos eles emitidos à ordem da AAo, Lda; 3.ª- Acontece que a A. ao ser confrontada com a junção daqueles cheques, veio alegar nos autos que as quantias tituladas nos cheques não correspondiam aos valores efectivamente creditados, tendo a A. necessidade de efectuar depósitos na conta da Ré para possibilitar o seu desconto; 4.ª- Acrescentando ainda a A. que, devido àquele procedimento ainda continuava a existir uma dívida no montante de 13.000,00 €; 5.ª- Perante tal alegação, veio a Ré juntar comprovativos bancários da emissão e desconto de letras, todas elas a favor da AA, Lda, no montante total de 10.000,00 €; 6.ª- Assim se demonstrando que a A. mentia, ocultando a verdade sobre aquelas letras e assim desmascarando o seu reprovável comportamento processual; 7.ª- Toda a prova produzida composta, sobretudo, por aqueles cheques e letras, sendo estes títulos todos sacados da conta à ordem da Ré e emitidos a favor da A., ajuda a compreender o pagamento dos fornecimentos em causa; 8.ª- Não se apresentado como credível nem razoável que todos aqueles títulos de crédito se destinassem a pagar dívidas de outra entidade, deixando por pagar e avolumar uma dívida da Ré; 9.ª- Como também não tem qualquer lógica que a A. efectuasse fornecimento à Ré desde Janeiro de 2003 até Maio de 2004 (17 meses), sem lhe exigir qualquer pagamento, prestando-se a fornecê-la por tanto tempo; 10.ª- O Mmo Juiz que julgou em 1.ª instância partiu de um equívoco, tendo-se deixado enganar pela A. e pelo seu representante legal que tentaram confundir as sociedades comerciais em causa, apresentando-as como entidades iguais e colaborantes; 11.ª- Não se pode imaginar, por isso, que os pagamentos documentados nos autos através daqueles cheques e letras fossem para liquidar dividas de outra entidade que não as contraídas pela própria pagadora, a ora Recorrente; 12.ª- O que acarreta, consequentemente, a improcedência da acção; 13.ª- A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 342.º, 352.º e 376.º do Código Civil.” II. Âmbito do recurso Como podemos ver face à matéria alegada, a recorrente assenta o seu recurso em erro de julgamento por, em seu entender, a) se ter o Tribunal equivocado, ao considerar, por um lado, que todos os cheques e efeitos descontados se destinassem a pagar dívidas de outra entidade que não a Ré; b) por se ter deixado enganar pelas declarações do representante legal da A.- que apresentou as sociedades comerciais em causa como sendo iguais e colaborantes, quando não o eram; c) pelo facto de não ser crível nem razoável que todos os títulos de crédito se destinassem a pagar dívidas de outra entidade, deixando por pagar e avolumar uma dívida da Ré. d) Pelo facto de os cheques e letras entregues e descontados serem documentos particulares assinados que fazem força probatória plena III- Fundamentação III-A) Os factos Foram considerados provados nas instâncias e fixados na Relação os factos seguintes: 1 °- A autora dedica-se à venda de produtos para a actividade de agro-pecuária, exercendo a ré a actividade agro-pecuária - A; 2.º No desenvolvimento da sua actividade, a autora vendeu à ré, a pedido desta, mercadorias nas seguintes datas (correspondentes às datas das facturas) e dos seguintes valores: - em 13/01/03, no montante de 1.955,93€, - - em 14/01/03, no montante de 863,97€, - - em 14/01/03, no montante de 1.854,10€, - - em 14/01/03, no montante de 1.982,61€, - - em 16/01/03, no montante de 2.511,40€, - - em 22/01/03, no montante de 1.278,90€, - - em 24/01/03, no montante de 1.470,89€, - - em 10/02/03, no montante de 609-,53€, - - em 21/02/03, no montante de 1.391,04€, - - em 21/03/03, no montante de 1.088,64€, - - em 31/03/03, no montante de 5,99€, - - em 17/04/03, no montante de 769,23€, - - em 23/04/03, no montante de 1.195,74€, - - em 30/04/03, no montante de 1.409,94€, - - em 9/05/03, no montante de 163,88€, - - em 4/06/03, no montante de 1.187,55€, - - em 11/06/03, no montante de 591,95€, - - em 21/10/03, no montante de 518,91€, - - em 27/10/03, no montante de 1.401,98€, - - em 13/04/04, no montante de 41, 70€, - - em 29/04/04, no montante de 67,22€, - - em 21/05/04, no montante de 976,50€ - B; 3°- O pagamento do preço devia ser efectuado em trinta dias a contar da data da emissão das facturas - C. III-B) Apreciação do recurso De acordo com o disposto no art. 722.º-2 do CPC., só cabe recurso de revista para o STJ a respeito de erros na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais em causa se houver ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. – Por outras palavras: Em matéria de apreciação da prova, podemos dizer, que o STJ só tem competência para apreciar, em sede de recurso, erros atinentes à violação na aplicação ou interpretação do Direito material ou probatório. Fora desse âmbito, a competência última é da Relação. (1)rtigo. Há que determinar, portanto, qual a força probatória de cheques descontados, assinados pela R. e emitidos em favor da A., no tocante ao pagamento das dívidas aqui em causa. Esta questão coloca-nos perante a situação de documento particular assinado pelo devedor. De acordo com o disposto no art. 376.º do CC., fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento. As “declarações do respectivo autor” são o reconhecimento de dívida, na qualidade de devedor, pelo montante indicado no documento. Donde efectivamente resulta, através da prova plena dos documentos apresentados, que a Ré reconheceu dívidas para com a A. no montante assinalado nas ordens de pagamento dos cheques. Acontece, no entanto, que tais documentos não indicam a que dívida se referem, pelo que desses documentos não se impõe a conclusão (prova plena) que respeitassem aos montantes de dívida aqui em causa, designadamente ao pagamento das importâncias atinentes aos fornecimentos a que respeitam as facturas apresentadas. Dos documentos apresentados não resulta sequer valor confessório atinente ao pagamento dos montantes das dívidas aí tituladas, porque o A. não aceita o seu efectivo recebimento na medida em que enuncia que teve de provisionar a conta em determinados montantes, a pedido da Ré, para conseguir levantar as importâncias enunciadas nos cheques, que haviam sido emitidos com pre-datação, como exigência/garantia para a R. poder continuar a receber fornecimentos da A., já que havia dívidas atrasadas por saldar. A isto acresce a circunstância de não constarem de tais títulos a sua efectiva correspondência aos fornecimentos cujo pagamento aqui é reclamado – o que equivale a inexistência de confissão (art. 352.º e 376.º do CC) Não vem impugnado, por outro lado, qualquer outro eventual erro, de direito material ou probatório, ficando-se o recurso no âmbito do errado julgamento assente em equívoco convencimento do Juiz e na valoração de provas que não impõe decisão vinculada. E, assim sendo, entra-se no campo da livre apreciação da prova – art. 655.º-1 do CPC, onde o Juiz julga segundo a sua prudente convicção a respeito de cada facto. Pois bem: O despacho da primeira instância que fundamentou a resposta negativa ao único quesito da base instrutória faz uma explanação muito pormenorizada sobre o que se passou em matéria de prova, fazendo acompanhar essa explanação de uma análise crítica e detalhada de toda ela, vindo assim a exteriorizar de uma forma prudente e robusta as causas que o levaram a criar a convicção do Juiz para a resposta negativa que foi dada ao quesito formulado. No domínio da prova livre – campo em que se entra após a verificação que se está já fora da prova vinculada – o convencimento do Juiz é que é determinante para considerar um facto como provado ou não. Como se costuma dizer: O que torna um facto provado é o facto de o Juiz, apreciada a prova, se convencer da sua verificação. Por isso, alegado e aceite pela Ré o fornecimento dos materiais em causa, para obter a sua absolvição, teria a R., de provar o pagamento.- art. 342.º-2 do CC. A Ré no entanto não apresentou em seu favor a confissão da A. ou uma sua declaração confessória atinente ao recebimento das quantias em causa (documento de quitação respeitante a tais facturas), nem convenceu o Juiz de que os cheques que foram entregues e descontados foram destinados ao pagamentos dos fornecimentos aqui em causa e que nada mais havia a pagar. Por outro lado, como já dissemos, os cheques em causa só por si não demonstram o pagamento das concretas dívidas referentes às facturas apresentadas. Ora, não havendo críticas a fazer à decisão das instâncias no tocante à aplicação das regras de direito probatório, e não tendo o STJ competência para exercer a sua função fiscalizadora sobre a decisão da matéria de facto fixada pela Relação quando esta se situe no domínio da prova livre, uma única conclusão se impõe: a improcedência do recurso. IV. Deliberação Em face do exposto, nega-se a revista e condena-se a Ré nas custas. Lisboa, 09 de Outubro de 2007 Mário Cruz (relator) Faria Antunes Moreira Alves _________________________ (1) De acordo com o disposto no art. 712.º-6 do CPC, são também irrecorríveis para o STJ as decisões da Relação que alterem a matéria de facto no âmbito das previsões contidas nos números antecedentes desse artigo |