Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B1836
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: REIVINDICAÇÃO
USUCAPIÃO
POSSE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
LIQUIDAÇÃO
LIQUIDAÇÃO EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA
OBJECTO DO RECURSO
AVISO DE RECEPÇÃO
QUESTÃO NOVA
Nº do Documento: SJ200709200018367
Data do Acordão: 09/20/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
1. Não tendo sido suscitada em primeira instância a questão da natureza de baldio de um prédio, não pode a mesma ser apreciada pela Relação, porque o recurso de apelação não se destina a julgar questões novas;
2. Os efeitos da usucapião retrotraem-se à data do início da posse;
3. Não é possível recorrer ao incidente da liquidação previsto no nº 2 do artigo 661º do Código de Processo Civil e aos artigos 3778º e segs. do mesmo Código para fixar o quantitativo da indemnização a pagar por danos não patrimoniais quando não foram alegados concretos que permitam essa quantificação.
Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. Em 1 de Outubro de 2004, AA e mulher, BB, instauraram no Tribunal Judicial de Arcos de Valdevez uma acção ordinária contra AA e mulher, CC na qual pediram que os réus fossem condenados a:
– reconhecer que eles, autores, são os proprietários do prédio rústico situado na freguesia de Mei, identificado como “-----, sito em ------ – Meio da Costa, a confrontar de norte, nascente e poente com o caminho público e do sul com DD, com a área de 900 m2, inscrito na matriz sob o artº 556º”, e que desse prédio faz parte uma parcela de terreno, com 125 m2, que os réus ocuparam quando alargaram o referido caminho público;
– construir um muro de suporte na linha divisória entre o seu prédio e o caminho público, por toda a estrema nascente do prédio, com capacidade para suportar o seu terreno, com determinadas características;
– recolocar no seu prédio as terras que dele retiraram e lançaram no caminho público ou noutros locais, de modo a que o prédio fique com a cota ao nível em que se encontrava antes da escavação feita pelos réus;
– indemnizar os autores pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que lhes causaram, com valor a liquidar.
Para o efeito, alegaram que, por si e pelos “seus antepossuidores, se encontram na posse do prédio há mais de 50 anos”, cultivando-o, pública e pacificamente, na convicção de serem seus proprietários, razão pela qual “invocam a usucapião como título de aquisição do seu direito de propriedade”; que os réus alargaram um caminho público que confronta com o referido prédio, do qual ocuparam indevidamente uma parcela, o que implicou a demolição de um muro que, juntamente com valados em terra rígida, suportava o terreno dos autores, situado numa cota superior ao leito do caminho público; o que provocou desabamentos de terras e os impediu de continuar a cultivar o terreno, assim sofrendo prejuízos. Para além disso, os réus causaram-lhes com este “abuso” e com o seu comportamento vários danos não patrimoniais, pelos quais querem também ser ressarcidos.
Atribuíram à acção o valor de € 20.000.
Contestando, os réus vieram afirmar que desconheciam todos os factos alegados pelos autores, que não tinham procedido ao alargamento de qualquer caminho, que apenas haviam deitado abaixo uma moradia que se encontrava no seu próprio prédio e procedido à remoção de terras para construir uma nova casa, conforme havia sido previamente licenciado; disseram ainda que o prédio de que os autores se consideram proprietários não está cultivado e que os terrenos que ficam em frente do seu são baldios.
Impugnaram o valor da acção, sustentando que “não deve ser superior a € 3.000”, impugnação que foi julgada improcedente pelo despacho de fls. 27.
Por sentença de 20 de Julho de 2006, de fls. 153, a acção foi julgada parcialmente procedente. Os réus foram condenados a reconhecer que os autores eram proprietários do prédio em questão, com a área de 900 m2, a recolocarem as terras que desse prédio retiraram, numa área de 102,96 m2, de forma a que o prédio volte a ficar com a cota ao nível anterior à obra de alargamento do caminho, a construir um muro com certas características e a pagar aos réus “indemnização por danos não patrimoniais sofridos com a actuação dos réus, a liquidar em execução de sentença”. Os réus foram absolvidos do pedido de indemnização por outros danos patrimoniais.
Os réus interpuseram recurso de apelação.

2. Por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11 de Janeiro de 2007, de fls. 189, foi negado provimento ao recurso.
Para o efeito, a Relação recusou a pretensão de alteração da decisão da matéria de facto, quanto a determinados pontos impugnados pelos réus, desatendeu a alegação de nulidade da sentença por falta de fundamentação, confirmou a verificação de danos não patrimoniais com gravidade que justifica a respectiva indemnização e terminou dizendo que “na improcedência das conclusões das alegações dos recorrentes, se acorda em negar provimento ao recurso, remetendo-se, no mais, para a douta sentença recorrida, nos termos do nº 5 do art. 713º do CPC".

3. Novamente recorreram os réus, agora para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas alegações que apresentaram, formularam as seguintes conclusões:
“1ª. Os recorrentes não se podem conformar com o acórdão proferido, que negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
2ª. O Acórdão recorrido conclui que: «… A natureza do terreno baldio não se encontra suscitada nos articulados, pelo que não tendo sido apreciada na sentença recorrida se terá de considerar questão nova, portanto fora do âmbito deste recurso».
3ª. Salvo o devido respeito, discordam os Recorrentes da posição defendida no douto Acórdão em crise, porquanto tal matéria só não foi alegada nos seus articulados porque apenas se suscitou no Recorrente com a realização do julgamento, sendo impugnada já em fase de recurso.
4ª. Todavia tais factos careciam, e carecem, de ser apurados, com vista a uma solução mais adequada, até para se apurar da conformidade do prédio referido nos autos com o que foi objecto de inspecção judicial, designadamente quanto às suas confrontações e áreas.
5ª. Ora, entendem os Recorrentes que não tendo tais factos sido devidamente apurados, incumbia ao Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no art. 712º, nº 3 do Código de Processo Civil, determinar a renovação dos meios de prova produzidos em 1ª Instância, para apuramento da verdade, relativamente à matéria de facto impugnada.
6ª. Conclui igualmente o Acórdão recorrido que não assiste razão aos Recorrentes, no que concerne ao momento da produção dos efeitos da declaração judicial da usucapião.
7ª. Se é certo que dispõe o artigo 1288º do C.Civil que invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse, tal preceito e a sua ratio legis visam tão somente conferir uma certa coerência entre o regime da figura da usucapião e os seus pressupostos.
8ª. Isto é, pretende-se validar os actos de posse pelos quais, associados à convicção do exercício de um direito próprio, conduzirão à declaração judicial da usucapião, o que não seria possível sem a protecção legal dos seus efeitos ab initio.
9ª. Não quis com isso o Legislador desproteger o terceiro que desconheça, sem culpa, a existência de tal direito: quer porque o mesmo nunca foi judicialmente reconhecido, quer porque não existia à data em que praticou os actos potencialmente lesivos por não haver decorrido o tempo necessário à aquisição, quer por não se encontrar registada a aquisição, quer porque não presenciou os actos de posse, quer por qualquer outro motivo que não lhe seja imputável.
10ª. Aliás, no caso dos Autos, os Réus/Recorrentes são inclusive emigrantes que esporadicamente passam por Portugal por curtos períodos de tempo, e não conheciam, nem tinham obrigação de conhecer o direito reclamado pelos Autores.
11ª. Tal situação afastaria, pelo menos, a culpa, não havendo lugar à condenação por factos ilícitos, atendendo que a responsabilidade independente de culpa só existe nos casos especificados na lei (artigo 443º do Código Civil).
12ª. O direito, agora judicialmente reconhecido, não se encontrava registado, não se fazendo qualquer publicidade ao mesmo, sendo que, se os Autores alegam que se encontram na sua posse há mais de 20 e 30 anos deveriam ter providenciado pela publicidade do seu direito.
13ª. Não dispunham os Autores de qualquer título, antes da declaração judicial que lhes reconheça o direito, pelo que, a solução defendida no douto Acórdão em crise não parece ser consentânea com o princípio da unidade da ordem jurídica.
14ª. Não poderia fazer-se recair sobre terceiros, aqui Recorrentes, uma responsabilidade que só emerge de um facto ulterior: a declaração judicial da usucapião, que é sempre suportada em prova testemunhal susceptível de merecer maior ou menor credibilidade, consoante o que resultar da individualidade da livre apreciação pelo Julgador.
Assim, o Acórdão recorrido violou, entre outros, o disposto nos artigos 483º, nºs 1 e 2, do Código Civil e o artigo 712º, nº 3, do Código de Processo Civil, pelo que deverá ser revogado e substituído por outro que absolva os Recorrentes dos pedidos formulados pelos Recorridos ou, se assim se não entender, reenvie o processo para realização de novo julgamento, com outro Colectivo de Juízes, o que se requer.”
Contra-alegaram os autores, sustentando a manutenção do acórdão recorrido.

4. Estão assim, em causa no âmbito deste recurso as seguintes questões:
– Saber se deveria ter sido considerada pelo tribunal recorrido a questão de determinar se o prédio de que os autores foram considerados proprietários era ou não baldio;
– Saber se os réus podem ser responsabilizados por factos lesivos do direito dos autores, praticados anteriormente à sentença que reconheceu o seu direito de propriedade.

5. Encontra-se definitivamente provada a seguinte matéria de facto, como se pode ler no acórdão recorrido:
“A) Encontra-se inscrito no art. 556º da matriz predial respectiva o prédio rústico sito no lugar de ---------, em Mei, Arcos de Valdevez, composto de mato, com a área de 900 m2, a confrontar do norte, nascente e poente com caminho público e do sul com DD.
(...) Desde há mais de trinta anos, ininterruptamente, que os Autores, por si e seus antecessores, exploram o prédio aludido em A) e dele retiram as respectivas utilidades, designadamente colhendo o mato e o tojo, o que fazem à vista e com o conhecimento de toda a gente, sem a oposição de quem quer que seja, na convicção de que não lesam o direito de outrem e de que exercem um direito próprio.
(…) O prédio descrito em A) confronta do nascente com o caminho público.
(…) Tal confrontação tem a extensão de cerca de 46.80m.
(…) Em 2004, os Réus alargaram esse caminho público em cerca de 2,20m, tendo ocupado uma parcela com cerca de 102,96 m2 do prédio descrito em A).
(…) Os Réus soterraram uma parte do caminho com terras do prédio descrito em A).
(…) Os Réus deitaram abaixo algumas pedras que ajudavam a suportar o prédio referido em A) junto ao caminho, e demoliram os valados em terra compactada que suportavam o mesmo prédio.
(…) Do lado nascente, o prédio aludido em A) ficou sem suporte, pelo que ocorreram e poderão ocorrer desabamentos de terra.
(…) Para suportar as terras do prédio referido em A) junto ao caminho, é necessário construir um muro em pedra ou em betão com altura de 1,50 m junto ao caminho municipal alcatroado, subindo até 2.20 m de altura e descendo depois até à cota do caminho, com o comprimento de 46,80 m.
(…) Esse muro necessita de uma fundação.
(…) A construção deste muro tem de ser precedida de um estudo técnico.
(…) Como consequência directa e necessária da conduta dos Réus, os Autores sentem desgosto e sentem-se amargurados e deprimidos.”

6. Quanto à primeira questão a apreciar, o acórdão recorrido pronunciou-se nos seguintes termos:
“Alegam os recorrentes que existe erro notório na apreciação da prova, porquanto a parcela em referência nos autos é contígua a um terreno baldio, também baldia, sendo terreno inculto, de mato, conforme as fotografias junto aos autos e não, como alegaram os Autores, terreno onde cultivam cereais, conforme o fizeram para fundamentar a sua posse.
A natureza do terreno baldio não se encontra suscitada nos articulados, pelo que não tendo sido apreciada na sentença recorrida se terá de considerar questão nova, portanto, fora do âmbito deste recurso”.
Os recorrentes opõem que só posteriormente aos articulados tiveram “dúvidas” sobre esta matéria, e portanto vieram suscitá-la “já em fase de recurso”, até porque necessita de ser apurada, nomeadamente para efeitos de certeza nas confrontações do prédio.
A questão da natureza “baldia” do prédio não foi, na verdade, suscitada perante o tribunal de 1ª instância; na contestação, os réus apenas disseram que a acção tinha sido proposta devido à “inimizade” existente entre autores e réus e que esta surgira “porque os Réus os denunciaram que estavam a ocupar terrenos baldios com carros velhos”.
Não tendo sido apreciada em 1ª instância, não podia ter sido conhecida pela Relação, porque o recurso de apelação não se destina a julgar questões novas, como se sabe, mas apenas as que foram colocadas ao tribunal de que se recorre. Assim resulta claramente da forma como a lei delimita a função e o objecto dos recursos, em geral, no nº 1 do artigo 676º e no nº 2 do artigo 684º do Código de Processo Civil.
Note-se, aliás, que a alegação de factos que eventualmente houvessem de ser considerados para que esta questão pudesse (e devesse) ter sido apreciada, desde logo em 1ª instancia, teria de respeitar as regras definidas para a alegação de matéria de facto, e para a admissibilidade de dedução de factos supervenientes (objectiva ou subjectivamente), constantes dos artigos 489º e 506º do Código de Processo Civil.
Assim, nenhuma censura merece o acórdão recorrido neste ponto.

7. Relativamente à segunda questão, o acórdão recorrido decidiu o seguinte:
“Alegam também os recorrentes que tendo os recorridos invocado a usucapião como título de aquisição do seu direito de propriedade, só após a declaração judicial é que viram reconhecido um direito que os recorrentes desconheciam.
(…) dizem os recorrentes que só com a prolação da sentença em crise viram os Autores reconhecido um direito que os Réus desconheciam, não podendo estes ser condenados por facto que se reportam a momento anterior.
Mas sem razão, porquanto encontra-se alegado e provado que os AA, por si e antepossuidores, estavam na posse do prédio em causa há mais de 30 anos, à vista e com conhecimento de toda a gente…
Nesta expressão «toda a gente» estão incluídos naturalmente os recorrentes.
E nos termos do art. 1288º do CC, os efeitos da usucapião retrotraem-se à data do início da posse”.
Cabe começar por observar que também vale aqui a observação acabada de fazer quanto à oportunidade de alegação de matéria de facto, o que torna por exemplo impossível que o Supremo Tribunal de Justiça determine qualquer ampliação da matéria de facto (cfr. nº 3 do artigo 729º do Código de Processo Civil) para averiguar a condição de emigrantes dos recorrentes, ou se estes “não conheciam, nem tinham obrigação de conhecer o direito reclamado pelos Autores”, como sustentam nas alegações da revista.
De qualquer forma, também não têm razão os recorrentes quando sustentam que não podem ser responsabilizados por actos seus “potencialmente lesivos” do direito de propriedade que foi reconhecido os autores.
Na verdade, e independentemente de quaisquer outras considerações, há que recordar que, ao julgar que os autores adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade do prédio em causa nesta acção (questão não impugnada no presente recurso, e portanto definitivamente assente) – as instâncias deram como provada a existência, por mais de 30 anos, de uma relação de facto entre os autores e o prédio, pública, pacífica e continuada, idêntica à que se estabelece entre o proprietário e a coisa. Ou seja, consideraram demonstrada a posse correspondente ao direito de propriedade por mais de 30 anos, nas condições indicadas.
Ora, ao praticarem os actos considerados definitivamente provados, relacionados com o alargamento do caminho que ladeia o prédio dos autores, os réus lesaram, de qualquer forma, um direito dos autores: a posse.
Nem é pois necessário observar que a aquisição por usucapião tem efeitos retroactivos para fundamentar a condenação dos réus “a recolocarem as terras que retiraram do prédio dos Autores…” e “a construírem (…) um muro…”, nos termos constantes da sentença e confirmados pelo acórdão recorrido.

8. O mesmo se não pode dizer, todavia, quanto à condenação na indemnização por danos não patrimoniais.
Quanto a este ponto, há que lembrar que, tendo a acção sido proposta em 1 de Outubro de 2004 (e bastaria, aliás, que a sentença não tivesse sido proferida antes de 15 de Setembro de 2003), seria aplicável o novo regime previsto para os casos em que, como aqui ocorreria, não havia, na altura da condenação, elementos para fixar o quantitativo da indemnização a pagar, nos termos constantes da actual redacção do nº 2 do artigo 661º e dos artigos 378º e segs. do Código de Processo Civil, introduzida pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março.
Sucede, no entanto, que, tal como se verificava no domínio do regime anterior (condenação em execução de sentença, nos termos então previstos no nº 2 do artigo 661º do Código de Processo Civil), não tendo sido alegados factos concretos que permitam determinar a extensão dos danos não patrimoniais sofridos, não é possível proceder à respectiva alegação “para tornar líquido o pedido genérico (…)” relativo “às consequências de um facto ilícito”.

9. Nestes termos, decide-se:
a) Revogar o acórdão recorrido na parte em que condenou os réus no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais, a liquidar, assim se absolvendo os réus do correspondente pedido;
b) Quanto ao mais, negar provimento à revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas por ambas as partes, na proporção do seu decaimento. Quanto aos recorridos, a concessão e apoio judiciário de que beneficiam torna inexigível o respectivo pagamento, nos termos do disposto no artigo 13º da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho.

Determina-se ainda o pagamento de 9 UR ao advogado dos recorridos, nos termos do disposto no ponto 1.3.1 da tabela anexa à Portaria nº 1386/2004, de 10 de Novembro.

Lisboa, 20 de Setembro de 2007

Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Adjuntos: Cons. Salvador da Costa
Cons. Ferreira de Sousa