Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
22507/18.3YIPRT.P2.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
ERRO DE JULGAMENTO
RECONVENÇÃO
COMPENSAÇÃO
AMBIGUIDADE
OBSCURIDADE
NEGÓCIO JURÍDICO
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
TRANSPORTE DE PASSAGEIROS
PACTO DE PREFERÊNCIA
INCUMPRIMENTO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
PREJUÍZO
Apenso:
Data do Acordão: 02/27/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I.- As nulidades da sentença ou acórdão reconduzem-se a erros de actividade ou de construção da própria decisão e não podem confundir-se com o eventual erro de julgamento, de facto e /ou de direito.

II. - A qualificação de um negócio jurídico postula, antes de mais, um problema de interpretação sobre a inerente declaração de vontade, na sua dupla função ambivalente: como acto de comunicação interpessoal e como acto determinativo ou normativo.

III.- Tendo as partes firmado um acordo destinado a garantir um direito de preferência na distribuição dos serviços de transporte turístico, em subcontratação, pode qualificar-se como “pacto de preferência”, enquanto acordo instrumental que antecede a conclusão de um contrato definitivo, sendo que o direito dos beneficiários só nasce no caso do obrigado decidir celebrar o contrato relativamente ao qual tenha concedido a preferência.

IV.- O pacto de preferência é admissível em relação ao contrato de transporte ou no contrato derivado de subtransporte, pois o art. 423 CC legitima a obrigação de preferência a outros contratos (para além do de compra e venda) “com ela compatíveis”.

V.- Dada a natureza obrigacional da preferência, a sua violação pode implicar responsabilidade contratual, e, por conseguinte, indemnização pelos danos causalmente adequados.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO



1.1.- A Autora Clevertours – Viagens e Turismo, Lda. - requereu procedimento de injunção, posteriormente transformado em acção declarativa, com forma de processo comum, contra a Ré - Firstour, Lda.

Alegou, em resumo:

A Autora é uma sociedade comercial cuja atividade é o fornecimento de serviços de turismo, transporte de turismo.

No exercício da sua atividade, a Autora forneceu à Ré vários serviços de transporte de turismo (transfers), os quais foram realizados, aceites e sem qualquer tipo de reclamação. Por conta dos serviços prestados a Autora emitiu facturas, que identificou, que a Ré não pagou, importando o seu crédito em € 16.845,83.

Pediu a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de €14.718,01, a título de capital, €1724,82 a título de juros vencidos e € 250,00, esta última por força do disposto no artigo 7º do DL 32/2003 com a alteração introduzida pelo DL 62/2013, no valor total de € 16.845,83.

1.2.- A Ré contestou e deduziu reconvenção, alegando, em síntese.

Detém um crédito sobre a Autora no montante de € 21.924,20, valor que pretende ver compensado com o crédito reclamado pela Autora.

Desde Maio de 2017, a Autora não cumpriu o acordo, pois não adjudicou nenhum serviço à Ré.

No ano de 2016, a requerida facturou à Autora o valor de € 65.015,06 e ,nos meses de 2017 em que o acordo ainda foi cumprido (até Maio), a Ré faturou à Autora o valor de € 17.213,50.

Ora, tendo por base o referido período temporal, constata-se que a execução do acordo que se considera, importava um valor médio mensal de faturação da requerida à requerente no valor de € 5.481.04, o que libertaria uma margem de lucro nunca inferior a 40% (já depois de impostos).

Considerando a dita margem, o comportamento inadimplente da Autora causou à Ré, até ao presente momento, um prejuízo global de € 21.924,20;

Pediu cumulativamente:

Ser considerado parcialmente extinto por compensação o crédito da Autora e a Ré absolvida do pedido;

A condenação da Autora a pagar à Ré reconvinte o valor de € 5078,37, posteriormente ampliado para €74.187,15, acrescido dos juros que se vierem a vencer até integral e efetivo reembolso.

1.3. A Autora respondeu contraditando a reconvenção.

1.4. Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção e reconvenção, decidiu

“- julgar válida e relevante a compensação de créditos da Autora (no montante de € 14 718,01) e da Ré (no mesmo montante);

- Condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de € 1724,82 (mil setecentos e vinte e quatro euros e oitenta e dois cêntimos) a título de juros vencidos e a quantia de €40,00 (quarenta euros) ao abrigo do disposto no artigo 7º do DL 32/2003, absolvendo-se a Ré quanto ao restante peticionado.

- Condenar a Autora a pagar à Ré a quantia de €64 548,01 (sessenta e quatro mil quinhentos e quarenta e oito euros e um cêntimo) relativamente ao remanescente do crédito da Ré sobre a Autora não compensado, quantia essa acrescida de juros legais contados desde a data da presente sentença e até efectivo e integral pagamento.”

1.5. – Autora recorreu de apelação e a Relação, por acórdão de 30/5/2023, decidiu

“Pelo exposto, acordam as Juízas que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso, e em consequência, alteram a sentença, condenando a Ré no pagamento da quantia de €14.718,01 a título de capital, acrescida dos juros vencidos no montante de €1724,82 e dos juros vincendos à taxa legal até efectivo pagamento e a quantia de € 250,00, absolvendo a Autora do pedido reconvencional.

Custas pela Recorrida”.

1.6. – A Ré recorreu de revista, com as seguintes conclusões:

1)O âmago da questão decidenda residia em saber-se se existia, ou não, uma obrigação da Autora proceder a uma distribuição equitativa de determinados serviços de transporte pelas três empresas dos sócios da mesma, mesmo depois do sócio-gerente da Ré se ter desvinculado da relação societária que manteve com ela. E, naturalmente, em caso de resposta positiva, saber se a dita obrigação havia sido cumprida.

2)Ora, como conclusão relevante para as decisões que promove, entendeu o Tribunal Recorrido que não existia qualquer compromisso gerador da dita obrigatoriedade.

3) O Acórdão em crise promove asserções e dá como provados factos que contraditam, de forma inelutável, aquele alicerce do argumentário decisório. O Acórdão recorrido, a propósito desta questão essencial do litígio que se considera, prolata, de forma sucessiva, proposições absolutamente contraditórias entre si Revelando uma ambiguidade insuscetível de suprimento. Nenhuma dúvida subsistindo que a decisão prolatada está em frondosa oposição com uma parte substantiva do acervo factual dado como provado.

4)O que, nos termos incontornáveis do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do determina a nulidade do acórdão recorrido, o que, desde já se invoca, com as consequências legais imanentes.

5) Consigna o Acórdão recorrido: “Portanto da prova produzida podemos concluir que não foi firmado qualquer acordo entre as partes que vinculasse a Autora a solicitar à Ré a execução de serviços de transportes e muito menos após o sócio-gerente da Ré ter cedido a sua quota que detinha na Autora, como sucedeu.”. Resultando evidente que é esta asserção factual que oblitera – na tese do acórdão recorrido – a procedência do pedido reconvencional da Ré; Ocorre que a dita asserção – conforme se disse determinante da estrutura e da opção decisória do acórdão recorrido – contradiz CPC,

frontalmente a matéria de facto dada como provada pelo confuso aresto, desde logo, os seguintes pontos da mesma:

6)A Autora, no exercício da sua atividade, colaborou com outras três sociedades, entre outras, a saber:

- A N...Lda.., pessoa coletiva n.º ...51, que tem por objeto social a “Organização de circuitos turísticos nacionais e internacionais em viaturas ligeiras com condutor e, serviços de apoio a empresas e instituições, ligados à atividade turística. Transporte ocasional de passageiros em veículos ligeiros. Transportador rodoviário nacional e internacional de passageiros. Agência de viagens -, controlada pelo sócio da Autora AA;

- A F..., Lda., pessoa coletiva n.º ...87, que tem por objeto social o “Transporte ocasional de passageiros em veículos ligeiros. Agência de viagens e turismo, animação turística, nomeadamente exploração de atividades lúdicas, desportivas, culturais ou de lazer. Organização, promoção e realização de eventos. Transporte rodoviário nacional e internacional de passageiros, em viaturas com lotação até nove lugares”, controlada pelo sócio da Autora BB;

-E A FIRSTOUR, LDA., pessoa coletiva n.º ...62, que tem por objeto social a “Agência de viagens e turismo, transportes públicos de aluguer em veículos ligeiros de passageiros, transportes em táxis, animação turística, nomeadamente exploração de atividades lúdicas, culturais, desportivas ou de lazer”, controlada pelo ex sócio da Autora CC, também sócio-gerente da aqui Ré. As sociedades que se consideram dedicavam-se, essencialmente, aos serviços de transportes turísticos. Sendo certo que, enquanto a frota da Autora era exclusivamente composta por carrinhas (veículos com 8 ou 9 lugares), a frota das outras sociedades era exclusivamente composta por carros (veículos com 5 lugares).

7)Os termos do compromisso de preferência firmado entre a Autora e as referidas três sociedades, baseado no facto de os sócios da Autora serem sócios dessas sociedades, importava o seguinte: a) Sempre que à Autora fossem solicitados serviços de transportes com carros, deviam os mesmos, em termos equitativos, ser adjudicados às sobreditas sociedades, contra, como é óbvio, a necessária faturação. Sempre que às três empresas fossem solicitados serviços de carrinhas, deviam, os mesmos, ser adjudicados à Autora, contra a necessária faturação. Este procedimento importava uma conta corrente entre a Autora e as outras sociedades, sendo que essa conta corrente, implicava, na maior parte das vezes, um saldo credor favorável às sociedades dos sócios (e depois do ex sócio CC).

8)Chega a ser surpreendente a ligeireza evanescente como o Acórdão recorrido justapõe – com o mesmo propósito fundante – afirmações completamente contraditórias entre si. Repare-se que, depois de dizer que “…da prova produzida podemos concluir que não foi firmado qualquer acordo entre as partes que vinculasse a Autora a solicitar à Ré a execução de serviços de transportes e muito menos após o sócio-gerente da Ré ter cedido a sua quota que detinha na Autora, como sucedeu…”, declara como provado que (ponto 11 da matéria de facto dada como provada) “Os termos do compromisso de preferência firmado entre a Autora e as referidas três sociedades, baseado no facto de os sócios da Autora serem sócios dessas sociedades, importava o seguinte: a) Sempre que à Autora fossem solicitados serviços de transportes com carros, deviam os mesmos, em termos equitativos, ser adjudicados às sobreditas sociedades, contra, como é óbvio, a necessária faturação. Sempre que às três empresas fossem solicitados serviços de carrinhas, deviam, os mesmos, ser adjudicados à Autora, contra a necessária faturação.”

9)Ora, em primeiro lugar, o Acórdão recorrido, afirma que da prova produzida não pode concluir-se que foi firmado qualquer acordo entre as partes. E depois reconhece, de forma impressiva, provada a existência de um compromisso de preferência firmado entre a Autora e as referidas três sociedades. Ou seja, reconhece sem rebuço a existência do acordo em que a recorrente funda o seu pedido reconvencional, cuja procedência revogou, precisamente, invocando a inexistência do mesmo.

10)Ou as partes não firmaram acordo algum, ou as partes firmaram o sobredito acordo de preferência. A compatibilização das duas hipóteses que o acórdão recorrido, milagrosamente, promove, constitui, conforme se disse e agora se reitera, contradição ontológica (e filosófica) insanável, insuscetível de ser suprida;

11)Mas o reconhecimento da existência do dito acordo resulta de outros pontos da matéria de facto que o acórdão recorrido dá como provada. Designadamente, das transações judiciais, cuja existência – Deus seja louvado – o acórdão recorrido não podia negar e que, nessa medida, estão referidas nos pontos 15 e 16 da matéria de facto provada, a saber:

“15 – No âmbito da transação outorgada, em 01 de Março de 2017, pela Autora no procedimento cautelar que correu termos no Juízo de Comércio de ... – Juiz..., sob o n.º 73/17.7..., esta comprometeu-se nos seguintes termos : “A Sociedade C..., Lda. enviará ao requerente até ao último dia de cada mês o mapa de escalas de distribuição de serviços entre as empresas N...Lda. e FIRSTOUR, por forma a permitir a este verificar o cumprimento do princípio da distribuição equitativa dos serviços.”

16 -Também na transação subscrita em 20 de Setembro de 2017, no âmbito da ação declarativa de condenação que correu termos no Juízo de Comércio de... – Juiz ..., sob o n.º 2568/17.3... a ora Autora assentiu expressamente que o teor da mesma não prejudicava os efeitos daqueloutra, consignando-se no ponto 6 da mesma que “O presente acordo não abrange a sentença proferida no processo cautelar n.º 73/17.3...…”.

12) Nos termos da transação referida no ponto 15 da matéria de facto provada, consignou-se, além do mais, que a AUTORA enviará ao requerente (sócio-gerente da recorrente) até ao último dia de cada mês o mapa de escalas de distribuição de serviços entre as empresas N...Lda. e FIRSTOUR, por forma a permitir a este verificar o cumprimento do princípio da distribuição equitativa dos serviços;

13) Ora, lida a referida transação, ressalta à saciedade que a obrigação do envio dos mapas se destinava a permitir o escrutínio do cumprimento do princípio da distribuição equitativa dos serviços;

14) O que significa, obviamente, que havia um compromisso firmado destinado a garantir a distribuição equitativa dos serviços; porquanto, se assim não fosse, a obrigação de envio dos mapas resultaria inócua e de nenhum sentido;

15)Pois, ainda assim, conseguiu o acórdão recorrido, a este propósito, concluir “Afigura-se-nos evidente que não se extrai, dos termos da transação, qualquer contrato de distribuição de serviço celebrado entre a Autora e a Ré…”;

Mas então se não havia o invocado acordo, para que quereria o gerente da recorrente ter acesso aos mapas de distribuição de serviços; De que lhe servia conhecer os termos da referida distribuição, se a sua representada não podia – em face da inexistência de acordo – reclamar uma fatia da mesma?Será que a dita transação pretendia apenas garantir ao sócio-gerente da recorrente um capricho de pura curiosidade?

16)Portanto, também aqui a decisão proferida contradita frontalmente os seus fundamentos, designadamente, os factos dados como provados no ponto 15 da matéria assente.

17) O que, naturalmente, também conduz à nulidade da decisão proferida, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC.

18) Mas o paroxismo do desacerto do acórdão recorrido surpreende-se nas conclusões que o mesmo retira do conteúdo da transação referida no ponto 16 dos factos provados. Reza assim o ponto 16 da matéria de facto provada: - Também na transação subscrita em 20 de setembro de 2017, no âmbito da ação declarativa de condenação que correu termos no Juízo de Comércio de ... – Juiz ..., sob o n.º 2568/17.3... a ora Autora assentiu expressamente que o teor da mesma não prejudicava os efeitos daqueloutra, consignando-se no ponto 6 da mesma que “O presente acordo não abrange a sentença proferida no processo cautelar n.º 73/17.3...…”.Ora, a leitura do sobredito ponto, demonstra que as partes consignaram, sem margem de dúvida, que o conteúdo desta especifica transação não prejudicava tudo quanto se havia consignado na transação anteriormente celebrada;

19)Traduzindo: que a circunstância do sócio-gerente da recorrente ceder a quota que detinha na Autora, não prejudicava as obrigações emergentes da primeira transação. Ou seja: que não obstante o sócio-gerente da recorrente deixar de ser sócio da Autora, esta mantinha a obrigação de enviar o mapa de serviços nos termos definidos, por forma a que aquele pudesse continuar a fiscalizar o cumprimento do princípio da distribuição equitativa dos mesmos;

20)Nenhuma dúvida pode, pois, subsistir acerca da circunstância de que as partes firmaram um acordo destinado a garantir um direito de preferência das sobreditas sociedades na distribuição dos serviços e que garantiram que essa preferência se mantinha independentemente da cessão de quotas ocorrida.

21)Mas, como não podia deixar de ser, o Acórdão recorrido conseguiu vislumbrar no dito ponto 16 da matéria assente e no conteúdo da transação a que o mesmo se reporta um sentido radicalmente diverso E desafiando toda a lógica plausível e toda a capacidade possível de compreensão, consignou da seguinte forma:

“CC impugnou judicialmente a sua destituição da gerência da Autora, tendo celebrado uma transação, em 20/09/2017, na qual declarou ceder a sua quota na Autora, tendo ficado consignado no ponto 6 que “O presente acordo não abrange a sentença proferida no processo cautelar n.º 73/17.3...…Portanto, nesta ocasião fundamental em que CC podia ter salvaguardado a Ré, acordando com a Autora que, apesar de deixar de ser sócio, tal circunstância não impedia de se continuar a cumprir com a referida prioridade de distribuição de serviços de distribuição de serviços de transporte para a Ré, da qual é sócio-gerente, a verdade é que nada ficou consignado a este respeito…”

22)Ora, aqui detetam-se dois pormenores escandalosos: Primeiro, a transação, como se viu, acautelou, de forma clara, a manutenção do acordo de distribuição; Ainda que o tenha feito de forma canhestra.Vejamos, se a primeira transação garantia o envio dos mapas, para escrutínio do cumprimento do acordo, era porque as partes reconheciam a existência do acordo. Nessa sequência, quando na segunda transação, as partes dizem que “o presente acordo não abrange a sentença proferida no processo cautelar n.º 73/17.3..., é óbvio que estão a dizer (reitera-se: ainda que de forma canhestra): a cessão de quotas ora contratualizada não prejudica o prosseguimento do acordo de distribuição e, nessa sequência, a obrigação de envio dos mapas de serviço.

23)Resultando inacreditável que o acórdão recorrido o não tenha reconhecido; Mas ainda mais impressionante é que o Acórdão recorrido no afã de liquidar impiedosamente os direitos da recorrente - com a sobredita interpretação ininteligível da transação outorgada - reconhece a existência do acordo que garante a prioridade de distribuição de serviços de transporte para a Ré.

24)Ou seja, depois de ter declarado que as partes não firmaram acordo algum, agora vem dizer (mal) que o sócio-gerente da recorrente não cuidou de garantir, na dita transação, que o acordo se mantinha vigente depois de ceder a quota que detinha na autora; E a pergunta óbvia é a seguinte: se não havia acordo, a que propósito é que o sócio-gerente da requerente trataria de garantir a sobrevivência do mesmo;

25)Mais uma vez, resulta evidente que o acórdão recorrido evidencia contradições intrínsecas insuperáveis. Evidenciando manifesta ambiguidade e profunda obscuridade. Oque também determina a respetiva nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º1. alínea c), do CPC, o que se invoca para todos os efeitos juridicamente relevantes;

26)Por último, acrescente-se ainda o seguinte: tendo a Autora (então) recorrente manifestado o seu inconformismo com a resposta positiva aos factos constantes dos pontos 22, 23, 26, 27 e 28 que descrevem o prejuízo da Ré baseado numa estimativa do valor mensal da faturação, o acórdão recorrido negou-lhe a pretensão, não deixando, todavia, de acrescentar que não foi justificado o alegado lucro de 40% da faturação mensal, nem foi apresentado qualquer documento confirmativo. Olvidando que o dito lucro foi alegado no requerimento destinado à ampliação do pedido, que adita alegação não foi impugnada (com as naturais consequências legais) e que a decisão que determinou a ampliação já transitou em julgado.

27)Viola, pois, o acórdão prolatado, entre outos, os artigos 405.º, n.º 1 e 406.º, n.º 1, do Código Civil e ainda o artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil.

1.7. – A Autora contra-alegou no sentido da improcedência do recurso.


II - FUNDAMENTAÇÃO


2.1. – O objecto do recurso

As questões submetidas a revista, delimitada pelas conclusões, são as seguintes:

As nulidades do acórdão;

A compensação e a comprovação do (contra) crédito da Ré

2.2. – Os factos provados (descritos no acórdão)

1–A Autora é uma sociedade comercial cuja atividade é o fornecimento de serviços de turismo, transporte de turismo.

2-No exercício da sua atividade a Autora forneceu à Ré vários serviços de transporte de turismo (transfers), os quais foram realizados, aceites e sem qualquer tipo de reclamação.

3-Por conta dos serviços prestados a Autora emitiu as seguintes faturas, devidamente enviadas e aceites (porque não devolvidas nem reclamadas) pela Ré:

212/2016 26/10/2016 166 Fatura 885 /2016 44.80

Vencimento Data Nº Documento Débito

27/07/2017 27/06/2017 703 /2017 € 2,748.01

30/07/2017 30/06/2017 734 /2017 € 985.00

10/08/2017 11/07/2017 745 /2017 € 1,155.00

10/08/2017 11/07/2017 746 /2017 € 395.00

12/08/2017 13/07/2017 764 /2017 € 6,365.00

12/08/2017 13/07/2017 783 /2017 € 65.00

25/08/2017 26/07/2017 823 /2017 € 1,420.00

27/08/2017 28/07/2017 861 /2017 € 220.00

27/09/2017 28/08/2017 986 /2017 € 770.00

19/10/2017 19/09/2017 1109 /2017 € 595.00

Total Global de €14,718.01

4-Apesar de sucessivamente interpelada para proceder ao pagamento, a Ré não o fez.

5-Devido a este incumprimento, a Autora viu-se forçada a ter despesas com a cobrança, com serviços de contencioso, pesquisa de bens e situação cadastral, emissão de documentos, deslocações a escritório de mandatário, contratação de mandatário e respetivo pagamento de provisão de honorários, despesas essas no montante de € 250,00.

6 - Durante vários anos, o legal representante da Ré, CC foi, também, sócio-gerente da Autora, qualidade que partilhava com os atuais sócios daquela, a saber: AA, DD (casados entre si e que, em conjunto, detinham uma participação quantitativamente idêntica à dos outros dois) e BB.

7-O referido CC foi destituído da gerência da A. em 28 de dezembro de 2016 e viria a ceder a sua quota na Autora na sequência de transação outorgada no âmbito da ação declarativa de condenação que correu termos no Juízo de Comércio de ... – Juiz ..., sob o n.º 2568/17.3...

8-A Autora, no exercício da sua atividade, colaborou com outras três sociedades, entre outras, a saber:

-A N...Lda., pessoa coletiva n.º ...51, que tem por objeto social a “Organização de circuitos turísticos nacionais e internacionais em viaturas ligeiras com condutor, serviços de apoio a empresas e instituições, ligados à atividade turística. Transporte ocasional de passageiros em veículos ligeiros. Transportador rodoviário nacional e internacional de passageiros. Agência de viagens -, controlada pelo sócio da Autora AA;

-A F..., Lda., pessoa coletiva n.º

...87, que tem por objeto social o “Transporte ocasional de passageiros em veículos ligeiros. Agência de viagens e turismo, animação turística, nomeadamente exploração de atividades lúdicas, desportivas, culturais ou de lazer. Organização, promoção e realização de eventos. Transporte rodoviário nacional e internacional de passageiros, em viaturas com lotação até nove lugares”, controlada pelo sócio da Autora BB;

-E AFIRSTOUR, LDA., pessoa coletiva n.º ...62, que tem por objeto social a “Agência de viagens e turismo, transportes públicos de aluguer em veículos ligeiros de passageiros, transportes em táxis, animação turística, nomeadamente exploração de atividades lúdicas, culturais, desportivas ou de lazer”, controlada pelo ex sócio da Autora CC, também sócio-gerente da aqui Ré.

9–As sociedades que se consideram dedicavam-se, essencialmente, aos serviços de transportes turísticos.

10–Sendo certo que, enquanto a frota da Autora era exclusivamente composta por carrinhas (veículos com 8 ou 9 lugares), a frota das outras sociedades era exclusivamente composta por carros (veículos com 5 lugares).

11– Os termos do compromisso de preferência firmado entre a Autora e as referidas três sociedades, baseado no facto de os sócios da Autora serem sócios dessas sociedades, importava o seguinte: a) Sempre que à Autora fossem solicitados serviços de transportes com carros, deviam os mesmos, em termos equitativos, ser adjudicados às sobreditas sociedades, contra, como é óbvio, a necessária faturação. Sempre que às três empresas fossem solicitados serviços de carrinhas, deviam, os mesmos, ser adjudicados àAutora, contra a necessária faturação.

12– Este procedimento importava uma conta corrente entre a Autora e as outras sociedades, sendo que essa conta corrente, implicava, na maior parte das vezes, um saldo credor favorável às sociedades dos sócios (e depois do ex sócio CC).

13–Em 2016, cada uma das referidas sociedades, faturou à Autora os seguintes valores: - N...Lda. - € 58.385,00; - F..., Lda. - € 56.336,50 –; - FIRSTOUR, LDA. - € 66. 015,06.

14 –De tudo isto decorria que, quando o saldo credor fosse favorável a cada uma das sociedades que se consideram, estas, normalmente, não pagavam à Autora (em termos de procedimento formal) os serviços que lhe adjudicavam; ou seja, compensava-se o crédito de cada uma das sociedades com o crédito da Autora e quando daí resultasse um saldo credor a favor daquelas sociedades, a Autora procedia à respetiva liquidação.

15– No âmbito da transação outorgada, em 01 de Março de 2017, pela Autora no procedimento cautelar que correu termos no Juízo de Comércio de ... – Juiz..., sob o n.º 73/17.7..., esta comprometeu-se nos seguintes termos : “A Sociedade Clevertours – Viagens e Turismo, Lda., enviará ao requerente até ao último dia de cada mês o mapa de escalas de distribuição de serviços entre as empresas N...Lda., F..., Lda. FIRSTOUR, por forma a permitir a este verificar o cumprimento do princípio da distribuição equitativa dos serviços.”

16 -Também na transação subscrita em 20 de Setembro de 2017, no âmbito da ação declarativa de condenação que correu termos no Juízo de Comércio de ... – Juiz ..., sob o n.º 2568/17.3... a ora Autora assentiu expressamente que o teor da mesma não prejudicava os efeitos daqueloutra, consignando-se no ponto 6 da mesma que “O presente acordo não abrange a sentença proferida no processo cautelar n.º 73/17.3...…”.

17–Sendo certo que nunca, em momento posterior, a Autora emitiu qualquer declaração (mais ou menos formal) tendente à cessação da eficácia do compromisso assumido no âmbito da transação outorgada, em 01 de Março de 2017.

18–No ano de 2016, a Ré faturou à Autora o valor de € 65.015,06.

19-Sendo que, nos meses de 2017 em que o acordo de prioridade ainda foi cumprido, a Ré faturou à Autora o valor de € 17.213,50.

2.3. Os factos não provados (descritos no acórdão)

1-De acordo com o dito compromisso, cuja execução foi escrupulosamente cumprida durante vários anos, as quatro sociedades deviam atuar, como se de um agrupamento complementar de empresas se tratassem, através da prestação de serviços complementares.

2-A Autora não cumpre o referenciado acordo desde 31 de Maio de 2017, não tendo, nessa sequência, desde o dito momento, adjudicado à Ré os serviços que lhe caberiam por conta do sobredito compromisso.

3- Tendo por base o referido período temporal, a execução do acordo que se considera, importava um valor médio mensal de faturação da Ré à Autora no valor de € 5.481.04. Alterada para 1.912,61.

4- O que libertaria uma margem de lucro nunca inferior a 40% (já depois de impostos), a saber: o valor mensal de € 2.192, 42. -sem prova.

5- Atendendo aos termos do acordo existente – reconhecidos e reiterados na transação consignada no procedimento cautelar n.º 73/17.3..., datada de 01/03/2017 -, os serviços a que corresponderam a referida faturação, deviam ter sido objeto de distribuição equitativa pelas ditas entidades e pela ora Ré.

6-Assim sendo, os serviços que deviam ter sido adjudicados à Ré, teriam que corresponder a uma terça parte do seu montante global, a saber: € 185.470, 387.

7 -Considerando que essa faturação implicaria um lucro de 40% do referido valor, já depois de impostos, o prejuízo da Ré nesse período ascendeu a € 74.187, 15.

2.4. – A compensação e a comprovação do (contra) crédito da Ré

A Ré alegando um contra-crédito sobre a Autora no valor de €74.187,15, acrescido dos juros que se vierem a vencer até integral e efetivo reembolso, invocou a compensação de créditos, pedindo a condenação da Autora no remanescente.

A sentença julgou procedente a reconvenção e, sem explicitar o crédito da demandada, argumentou apenas verificar-se a compensação de créditos “nos termos peticionados pela Ré”, condenado a Autora a pagar o remanescente do crédito no valor de € 64.548,01.

A Autora recorreu de apelação, impugnando de facto e de direito.

A Relação julgou não provados determinados factos (inicialmente provados na sentença) e julgou improcedente a reconvenção, com a seguinte fundamentação:

“No que respeita ao contrato que constitui a causa de pedir da presente acção e respectivo incumprimento, apenas resta confirmar a sentença, em relação à qual se adere.

Ao invés, a Ré, a quem incumbia o ónus da prova (cfr. art. 342.º, n.º 1 e 2 do CC) do alegado acordo celebrado com a Autora, ao abrigo da liberdade contratual (art. 405.ºCC), nos termos dos quais esta última se obrigou a distribuir, de forma equitativa, por três sociedades do mesmo ramo de actividade, entre as quais a Ré, serviços de transportes com carros, contra facturação, não alcançou tal desiderato na medida em que ficou apenas provada a prioridade que a Autora concedia àquelas sociedades controladas pelos sócios da Autora.

Como acima salientámos, a prioridade dada pela Autora à Ré bem como às outras duas empresas, assentava no facto dos sócios da Autora também serem sócios daquelas.

De qualquer modo, mesmo que tivesse demonstrado o mencionado acordo, não provou os prejuízos alegados de forma conclusiva.

Consequentemente, não tendo a Ré qualquer crédito sobre a Autora, não opera a invocada compensação (arts. 847.º e 848.º do CC), improcedendo in totum o pedido reconvencional.”

As nulidades do acórdão

Conforme jurisprudência firmada, as nulidades da sentença ou acórdão reconduzem-se a erros de actividade ou de construção da própria decisão e não podem confundir-se com o eventual erro de julgamento, de facto e /ou de direito (cf., por ex., Ac STJ de 31/1/2023 (proc. nº 43/07.3TBVRS.E1. S1), Ac STJ de 23/11/2023 (proc nº 1097/18.2T8VNF.D1. S1), em www dgsi.pt).

Não raras vezes sucede que a coberto da arguição de nulidades se está a invocar erro de julgamento, como é aqui o caso.

A nulidade cominada no art.615 nº1 c) CPC (fundamentos em oposição com a decisão) verifica-se quando os fundamentos de facto e de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão. Trata-se de um vício estrutural da sentença, por contradição entre as suas premissas, de facto e de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso. Porém, esta nulidade não abrange o erro de julgamento, seja de facto ou de direito, designadamente a não conformidade da sentença com o direito substantivo.

O acórdão recorrido julgou improcedente o pedido reconvencional com base em dois fundamentos:( i) Ré não provou o alegado acordo nos termos do qual a Autora se obrigou a distribuir de forma equitativa, por três sociedades do mesmo ramo de actividade, entre as quais a Ré, serviços de transportes com carros, contra facturação, pois apenas se provou que a Autora dava prioridade; (ii) a ausência de prejuízo.

Ora, estes dois fundamentos conduzem logicamente à decisão absolutória, pelo que não ocorre o imputado vício da contradição.

Ao alegar que perante os factos provados está provado o acordo, ou seja, um contrato inominado, a Ré está a invocar erro de julgamento, a não conformação da decisão com o direito substantivo. Isto é, saber se os factos provados, descritos no acórdão, consubstanciam o acordo alegado entre as partes (acordo de distribuição de transportes) ou a interpretação da transacção, convoca eventual erro de julgamento, o que tanto basta para a improcedência da nulidade.

Por outro lado, a nulidade prevista no art.615 nº1 alínea c) (2ª parte) CPC pressupõe que a sentença ou acórdão contenha alguma ambiguidade ou obscuridade que torne ininteligível a decisão.

Tem-se entendido que “a ambiguidade ou a obscuridade prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 615.º só releva quando torne a parte decisória ininteligível e só torna a parte decisória ininteligível “quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do Código Civil, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar” (Ac STJ de 20/5/2021 (proc nº 69/11.2TBPPS.C1), em www dgsi.pt).

Sucede que a recorrente revela entender perfeitamente o teor do acórdão, tanto assim que dele discorda, o que tanto basta para postergar a imputada nulidade (cf., por ex., Ac STJ de 31/1/2023 (proc nº 2759/17.7T8VNG.P2. S1), em www dgsi.pt).

Além disso, a recorrente a coberto das nulidades, a recorrente acaba por impugnar o julgamento de facto feito pela Relação, mas como é jurisprudência constante (cf., por todos, Ac STJ de 17/1/2023 (proc nº 286/09), em www dgsi) o Supremo Tribunal de Justiça conhece apenas de direito e não julga de facto, a não ser em situações excepcionais, conforme impõe o art. 46.º da Lei n.º 62/2013, de 26-08 e positivamente se expressa nos arts. 662.º, n.º 4, 674.º n.º 3, e 682.º, n.º 2, CPC, e, por isso, não pode interferir no juízo que a Relação faz com base na reapreciação dos meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação, como os depoimentos testemunhais, documentos sem força probatória plena ou uso de presunções judiciais.

Improcede a arguição das nulidades.

A negociação entre as partes e o crédito da Ré

Coloca-se a questão de saber se foi celebrado algum negócio jurídico entre Autora e Ré, de modo a legitimar, pelo incumprimento, o alegado direito de crédito da Ré.

O acórdão recorrido considerou não se provar o alegado contrato, porque “ficou apenas provada a prioridade que a Autora concedia àquelas sociedades controladas pelos sócios da Autora”.

A qualificação de um negócio jurídico postula, antes de mais, um problema de interpretação sobre a inerente declaração de vontade, na sua dupla função ambivalente: como acto de comunicação interpessoal e como acto determinativo ou normativo.

E a interpretação dos negócios jurídicos rege-se pelas disposições dos arts.236 a 238 do CC, que consagram de forma mitigada o princípio da impressão do destinatário. Por conseguinte, na interpretação dos contratos prevalecerá, em regra, a vontade real do declarante, sempre que for conhecida do declaratário. Faltando esse conhecimento, o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um destinatário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Neste âmbito, deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações a determinados tópicos, ou seja, à “ordem envolvente da interacção negocial”, como a letra do negócio, as circunstâncias do tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as respectivas negociações, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei, os usos e costumes por ela recebidos, bem assim o comportamento posterior dos contraentes.

Interpretar uma declaração negocial é actividade tendente a determinar o que as partes quiseram ou declararam querer. E, como se viu, esta vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante.

Demonstra-se que a Autora, no exercício da sua actividade, colaborou com três sociedades, que se dedicavam essencialmente ao serviço de transportes turísticos, porque os sócios eram os mesmos, entre as quais a sociedade Ré.

Em que consistia essa colaboração?

A sentença deu como provado que:

“9 - Com efeito, de acordo com o dito compromisso, cuja execução foi escrupulosamente cumprida durante vários anos, as quatro sociedades deviam atuar, como se de um agrupamento complementar de empresas se tratassem, através da prestação de serviços complementares.

12 – Os termos do compromisso firmado, importava o seguinte: a) Sempre que à Autora fossem solicitados serviços de transportes com carros, deviam os mesmos, em termos equitativos, ser adjudicados às sobreditas sociedades, contra, como é óbvio, a necessária faturação.

13 – Este procedimento importava uma conta corrente entre a Autora e as outras sociedades, sendo que essa conta corrente, implicava, na maior parte das

vezes, um sado credor favorável às sociedades dos sócios (e depois do ex sócio

CC)”.

A Relação, alterando os factos, deu como provado que

“11– Os termos do compromisso de preferência firmado entre a Autora e as referidas três sociedades, baseado no facto de os sócios da Autora serem sócios dessas sociedades, importava o seguinte: a) Sempre que à Autora fossem solicitados serviços de transportes com carros, deviam os mesmos, em termos equitativos, ser adjudicados às sobreditas sociedades, contra, como é óbvio, a necessária faturação. Sempre que às três empresas fossem solicitados serviços de carrinhas, deviam, os mesmos, ser adjudicados à Autora, contra a necessária faturação.

12– Este procedimento importava uma conta corrente entre a Autora e as outras sociedades, sendo que essa conta corrente, implicava, na maior parte das vezes, um saldo credor favorável às sociedades dos sócios (e depois do ex sócio CC).”

Verifica-se que, contrariamente à decisão da 1ª instância, a Relação, modificando a matéria de facto, deu como provado um acordo de preferência (“compromisso de preferência” ) que justificou do seguinte modo:

“O exercício da actividade comercial da Autora, no seu ramo de fornecimento de serviços de transporte de turismo, contava com a colaboração (na qualidade de cliente e também de fornecedor) de três sociedades, identificadas no ponto 8, controladas pelos sócios da Autora.

As sociedades dedicavam-se, essencialmente, a prestar serviços de transportes turísticos, sendo certo que, enquanto a frota da Autora era exclusivamente composta por carrinhas (veículos com 8 ou 9 lugares), a frota das outras sociedades era exclusivamente composta por carros (veículos com 5 lugares) -pontos 10 e 11.

Segundo os depoimentos das mencionadas testemunhas, apesar de outras empresas fornecerem à Autora veículos para a execução dos designados transfers, quando era necessário, a preferência da Autora era dada às referidas sociedades controladas pelos sócios da Autora justamente por terem essa qualidade.

Concretizando, dos mencionados depoimentos e das próprias declarações dos representantes legais das partes, resultou, de forma clara e evidente, que cada sócio da Autora também era sócio de uma empresa que actuava no mercado com o mesmo ramo de actividade. A única diferença entre a Autora e as demais empresas residia na dimensão dos veículos.

A testemunha EE, técnico administrativo da Autora, testemunha comum, explicou, com precisão e naturalidade, que era ele quem procedia à distribuição dos serviços de carros da Autora pelas outras três sociedades, obedecendo a uma escala consoante a facturação anual de cada empresa, sendo que essas sociedades nas quais a Ré se incluía, tinham prioridade em relação a outras sociedades. Só na hipótese de não terem capacidade de resposta, solicitavam os serviços de carro a outras sociedades.

Aliás, conjugando as declarações dos legais representantes não há dúvida que confirmaram os depoimentos das mencionadas testemunhas no sentido de que a Autora dava prioridade, na distribuição dos serviços de transporte, à Ré e às outras duas sociedades cujos sócios também detinham essa qualidade na Autora.

Portanto, da prova produzida podemos concluir que não foi firmado qualquer acordo entre as partes que vinculasse a Autora a solicitar à Ré a execução de serviços de transportes e muito menos após o sócio-gerente da Ré ter cedido a sua quota que detinha na Autora, como sucedeu.

Da conjugação de todos os meios de prova decorre, com evidência, que a prioridade, dada pela Autora à Ré e às outras duas empresas, assentava no facto dos sócios da Autora também serem sócios daquelas e por isso, tinham interesse, nessa preferência”.

Ainda que não seja nos extactos termos em que foi alegado, pois não se provou que as quatro sociedades devessem actuar como se de um agrupamento complementar de empresas se tratassem, através da prestação de serviços complementares, a verdade é que houve um acordo entre a Autora e a Ré, que foi motivado pela circunstância de os sócios serem os mesmos.

Neste contexto, e provando-se que a Autora colaborou com as três sociedades, designadamente com a sociedade Ré, no âmbito dessa colaboração as partes celebraram um contrato (art.405 CC), nos termos do qual as partes se obrigaram reciprocamente a dar de preferência na subcontratação dos seus serviços de transporte turístico.

Note-se que no âmbito dos transportes é frequente a cooperação interempresarial de colaboração de transportadores, que pode assumir diversas modalidades, entre as quais o subtransporte.

A Autora obrigou-se a dar de preferência às três sociedades, de forma equitativa, a subcontratação dos serviços de transporte turísticos com carros que lhe fossem solicitados. As três sociedades obrigaram-se a preferir subcontratar à Autora os serviços de transporte turísticos de carrinhas. Para tanto, esse procedimento era registado em conta-corrente não se tratando de um contrato comercial de conta corrente (art.344 do Código Comercial) mas antes de um método contabilístico de deve e haver.

Sendo assim, é legítimo afirmar-se que as partes firmaram um acordo destinado a garantir um direito de preferência das sobreditas sociedades na distribuição dos serviços em subcontração e não em regime de exclusividade.

Perante a factualidade apurada, em face da modificação de facto operada pela Relação, o acordo entre as partes parece reconduzir-se a um “pacto de preferência”, que costuma ser definido como contrato pelo qual alguém assume a obrigação de, em igualdade de condições, escolher determinada pessoa (a outra parte ou terceiro) como seu contraente, no caso de se decidir a celebrar determinado negócio (cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol.1º, 7ª ed., pág. 356).

Muito embora o art.414 do CC expresse o pacto de preferência em relação ao contrato de compra e venda, a verdade é que é admissível quanto ao contrato de transporte ou no contrato derivado de subtransporte, pois o art. 423 CC legitima a obrigação de preferência a outros contratos “com ela compatíveis”, como é o caso.

Neste contexto, trata-se de um acordo instrumental que antecede a conclusão de um contrato definitivo, distinguindo-se, porém, dos acordos pré-contratuais, como por exemplo, os acordos de negociação, ou mesmo do contrato promessa, pois do pacto de preferência não resulta a obrigação e contratar, mas a obrigação de dar preferência, sendo que o direito dos beneficiários só nasce no caso do obrigado decidir celebrar o contrato relativamente ao qual tenha concedido a preferência.

Dada a natureza obrigacional da preferência, a sua violação pode implicar responsabilidade contratual, e, por conseguinte, indemnização pelos danos causalmente adequados.

Vejamos se está comprovado o alegado (contra)crédito da Ré para legitimar a compensação.

A compensação (art.847 CC) é uma forma de extinção das obrigações, no caso de créditos recíprocos, em que o credor de uma delas é devedor na outra e o credor desta última é devedor na primeira. Ou seja, se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem. Pressupõe a reciprocidade dos créditos, a validade, exigibilidade e exequibilidade do contra-crédito, a fungibilidade e homogeneidade das prestações, a existência e validade do crédito principal.

Ela efectiva-se mediante declaração de uma das partes à outra (art.848 nº1 CC), mas por força da retroactividade (art.854 do CC) considera-se extinta a dívida quando se tornam compensáveis. O regime da compensação é, assim, erigido com base no direito potestativo (“declaração de compensação”) e na retroactividade (“situação de compensação”), adoptando-se o sistema da declaração com eficácia retroactiva.

Competia à Ré, como facto constitutivo da excepção, a prova do crédito sobre a Autora, no valor de €74.187,15, mas que não logrou demonstrar, como se evidencia pelos factos não provados.

Para além de não estar sequer provado que a Autora (obrigada à preferência) tivesse subcontratado, pressuposto da preferência, não estão demonstrados os danos, o alegado o prejuízo económico.

Diz, no entanto, a recorrente que “o dito lucro (de 40% da facturação mensal) foi alegado no requerimento destinado à ampliação do pedido, que adita alegação não foi impugnada (com as naturais consequências legais) e que a decisão que determinou a ampliação já transitou em julgado”.

Só que esta alegação carece de fundamento, pois tanto a ampliação, como a factualidade a ela subjacente, foram expressamente impugnadas. Desde logo o valor global facturado (arts.25 a 29 da resposta ao requerimento da ampliação), como do alegado lucro (arts.30 a 34 da resposta), que veio a ser julgado como não provado.

Por outro lado, o trânsito julgado formal do despacho de admissibilidade da ampliação do pedido reconvencional significa apenas isso mesmo, que o pedido foi admitido, mas não a sua procedência.

Conclui-se, então, não estar demonstrada a violação da obrigação de preferência, nem o prejuízo económico, ou seja, a Ré não comprovou o contra crédito, impondo-se a improcedência da revista.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decidem:

1)


Julgar improcedente a revista e confirmar o acórdão recorrido.

2)


Condenar a recorrente nas custas

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 27 de Fevereiro de 2024.


Jorge Arcanjo (Relator)

Manuel Aguiar Pereira

Pedro de Lima Gonçalves