Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P2270
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: INCÊNDIO
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
CRIMES DE PERIGO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Nº do Documento: SJ200709120022703
Data do Acordão: 09/12/2007
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :
I - O art. 272.º do CP – primeiro do Capítulo III do referido diploma legal, sob a epígrafe «Dos crimes de perigo comum» – pune, entre outras condutas descritas, «quem provocar incêndio de relevo, nomeadamente pondo fogo a edifício ou construção, a meio de transporte, a floresta, mata, arvoredo ou seara», criando «deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado».
II - A norma define um crime de perigo comum e concreto:
- de perigo comum, porque, na construção do tipo, o «perigo» constitui elemento que deve resultar da acção, mas que se estende ou deve verificar-se ou produzir-se em relação a um número «indiferenciado e indiferenciável» de «objectos sustentados ou iluminados por um ou vários bens jurídicos»;
- de perigo concreto porque, na construção do tipo, o perigo vale o mesmo que o dano, porque é o perigo que constitui a forma de violação do bem jurídico; o perigo é elemento do tipo legal, sendo os bens jurídicos protegidos a vida, a integridade física e os bens patrimoniais de elevado valor.
III - O critério para determinar o significado da expressão «provocar incêndio de relevo» – inserta na al. a) do n.º 1 do art. 272.º do CP, preceito que nas als. a) a f) do seu n.º 1 define as modalidades da acção que são susceptíveis de criar perigo – é um critério quantitativo, como resulta da verificação empírica das regras de experiência. A qualificação do incêndio como «de relevo» partirá de um critério de dimensão e extensão e pressupõe «em definitivo uma tónica de excesso» (cf. Comentário Conimbricense ao Código Penal, tomo II, pág. 870).
IV - Mas à verificação do tipo não basta a existência e incêndio de relevo. É necessária a verificação do perigo. A noção de perigo é «uma categoria relacional» (ob. cit. pág. 875), devendo ser integrada «dentro da normatividade inerente ao direito penal» por critérios de «probabilidade racional». Haverá, assim, perigo sempre que, em dada situação, e através de formulações de prognose com base nas regras da experiência, a acção possa ser considerada como susceptível de produzir um resultado desvalioso para os bens que a lei refere.
V - Constando da factualidade apurada que:
- o arguido introduziu-se numa casa de habitação e «ateou lume» em duas divisões;
- em consequência, «as chamas propagaram-se por toda a habitação», atingindo «os móveis e o recheio da habitação, nomeadamente electrodomésticos», que «arderam na sua totalidade causando um prejuízo de pelo menos 50000 €»;
- era do conhecimento do arguido que na «altura, não se encontrava ninguém na residência»;
é de concluir que todos os elementos integrantes do crime de incêndio concorrem no caso, pois a natureza dos bens a que o arguido ateou fogo (edifício) e as consequências da conduta (o fogo «propagou-se por toda a habitação») integram a noção de «incêndio de relevo», que, nas circunstâncias, colocou em perigo e causou danos graves a bens materiais de elevado valor que constituíam o recheio da residência.
VI - Considerando, por um lado:
- as exigências de prevenção geral, que no crime de incêndio, como crime de perigo, são determinantes na fixação da medida concreta da pena, para aquietação da comunidade e afirmação de valores essenciais afectados por comportamentos que, antes e para além de causarem efectivos danos, são aptos a colocar em perigo bens jurídicos essenciais, tanto pessoais como patrimoniais de elevado valor.
- as exigências de prevenção especial de socialização, que convivem mas não se sobrepõem à prevenção geral, e que, no caso, são relevantes, quando considerado o percurso pessoal do recorrente e a rebeldia que manifesta pela ofensa a valores comunitários com tutela penal, revelada pelas condenações anteriores [o arguido foi condenado: em 30-04-1992, como autor de um crime de furto qualificado, de um crime de introdução em casa alheia e de um crime de detenção ilegal de arma, na pena única de 20 meses de prisão, cuja execução foi suspensa por 2 anos; em 08-04-1993, como autor de um crime de furto qualificado, na pena de 18 meses de prisão; em 30-06-1993, como autor de um crime de furto qualificado e de um crime de falsificação, na pena única de 4 anos de prisão e 30 dias de multa, à taxa diária de PTE 200$00; em 15-07-1993, como autor de um crime de falsificação e de um crime de burla, na pena única de 21 meses de prisão e 20 dias de multa, à taxa diária de PTE 200$00; em 06-10-1993, como autor de um crime de furto qualificado, de um crime de condução ilegal de veículo, de um crime de burla para obtenção de transportes, de um crime de introdução em casa alheia e de um crime de homicídio qualificado, na pena de 20 anos de prisão e 40 dias de multa, à taxa diária de PTE 200$00; em 14-01-1994, como autor de um crime de desobediência, na pena de 4 meses de prisão e em 10 dias de multa, à taxa diária de PTE 300$00; em 27-04-1994, como autor de um crime de furto, na pena de 15 meses de prisão; em 31-05-1994, como autor de um crime p. e p. pelo art. 260.º do CP, na pena de 1 ano de prisão; em 06-10-1994, como autor de dois crimes de introdução em casa alheia, de dois crimes de ofensas corporais com dolo de perigo, de um crime de ofensas corporais graves, de um crime de dano e de um crime de coacção, na pena única de 15 anos de prisão; em 07-12-1994, como autor de um crime de falsificação e de um crime de burla, na pena única de 20 meses de prisão e 30 dias de multa, à taxa diária de PTE 300$00; em 24-01-1995, como autor de um crime de furto qualificado, na pena de 20 meses de prisão; em 07-05-1997, como autor de um crime de furto qualificado, de um crime de introdução em casa alheia e de um crime de roubo, na pena única de 9 anos de prisão; em 15-04-1998, como autor de um crime de dano e de um crime de furto qualificado, na pena única de 4 anos e 8 meses de prisão; em 29-09-2003 foi-lhe concedida a liberdade condicional];
- a culpa, acentuada, dado que o arguido actuou pré-ordenadamente com o propósito de vingança e de provocar constrangimento no proprietário dos bens afectados, movido por motivos em que manifesta futilidade e grave desconsideração por valores fundamentais de relação e de vivência em comunidade;
e ponderando, por outro lado, o sentido e os critérios da jurisprudência do STJ na determinação da pena em crimes de incêndio (cf., v.g., Acs. de 29-03-2007, Proc. n.º 1030/07, de 03-04-2003, Proc. n.º 467/02 e de 25-06-1997, Proc. n.º 271/97), mostra-se adequada a fixação da pena em 6 anos de prisão [assim se reduzindo em 1 ano a fixada pela 1.ª instância].
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA, nascido a 18/6/1974, filho de … e de …, natural da freguesia de …, concelho da Marinha Grande, solteiro, residente na rua .., n.º ..., …, …, foi acusado da prática de um crime de incêndio previsto pelo artigo 272º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
Na sequência do julgamento, a acusação foi julgada procedente e, em consequência, o arguido condenado como autor de um crime de incêndio previsto pelo artigo 272º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de sete (7) anos de prisão.
2. Não se conformando, recorre para o Supremo Tribunal, com fundamento da motivação que apresentou e que termina com a formulação das seguintes conclusões:
1ª.- Pelo douto acórdão recorrido foi o ora recorrente condenado como autor de um crime de incêndio previsto pelo art.°272°, n.° l, alínea a), do Código Penal, na pena de sete (7) anos de prisão.
2ª- A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função das exigências de prevenção, quer geral, quer especial, tendo a culpa do agente a função de indicar o limite máximo da pena, que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas
3ª- In casu, atentos os factos considerados provados pelos Juízes a quo, e salvo o devido respeito, e melhor opinião, sempre aquela pena deveria ter sido fixada num máximo de cinco anos e seis meses
4ª- Conforme consta do douto acórdão em crise, apesar de o arguido ter já sido condenado pela prática de diversos crimes, os mesmos têm natureza completamente diversa do aqui em causa e foram cometidos, na sua maioria, há mais de dez anos
5ª- O móbil desses outros crimes em nada é idêntico ao móbil no crime em apreciação, pois, não fora a circunstância de o ofendido sempre se ter oposto ao relacionamento do arguido com a sua filha, jamais aquele teria praticado tal crime.
6ª- As exigências de prevenção, quer geral, quer especial, aqui em causa são, salvo melhor opinião, menores que aquelas plasmadas no douto acórdão e das quais se serviram os Juízes a quo para determinar a pena concreta de sete anos de prisão.
7ª- Sendo este crime, repita-se, de natureza totalmente diversa, e com contornos perfeitamente distintos, daqueles pelos quais havia cumprido pena, a sua prática, por si só, não coloca em causa a satisfação das exigências de prevenção, que estiveram na base das anteriores condenações, e que por isso se mostram cumpridas.
8ª- Refira-se, por fim, que os factos constantes destes autos ocorreram já no ano de 2004, pelo que, as exigências de prevenção, quer geral, quer especial, sempre serão cumpridas com a redução daquela pena de prisão à duração de cinco anos e seis meses.
Pede, em consequência, o provimento do recurso.
O magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu á motivação, entendendo que o recurso não merece provimento.
3. No Supremo Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto teve intervenção nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal, considerando que nada obsta ao conhecimento do recurso.
4. O tribunal colectivo julgou provada a seguinte matéria de facto:
1. No dia 4 de Agosto de 2004, pela manhã, o arguido dirigiu-se à residência de BB, sita na rua do …, n.º …, …, freguesia de …, concelho de Leiria.
2. Tal residência é uma moradia unifamilar constituída por rés do chão.
3. Aí chegado, o arguido introduziu-se na residência por uma das janelas que BB deixara aberta, mas com os estores corridos para baixo.
4. Uma vez no interior e por forma que em concreto não se logrou apurar, o arguido ateou lume num quarto, junto a um computador e a um sofá, no quarto de BB e num outro quarto junto da porta da entrada do mesmo.
5. Em consequência as chamas propagaram-se por toda a habitação ocasionando, assim, o incêndio da mesma.
6. As chamas atingiram os móveis e o recheio da habitação, nomeadamente electrodomésticos, os quais arderam na quase totalidade, causando um prejuízo a BB no valor de pelo menos 50 000 euros (cinquenta mil euros).
7. Na altura não se encontrava ninguém na residência, o que era do conhecimento do arguido.
8. Uns meses antes da ocorrência do incêndio, o arguido namorara com a filha de BB, CC.
9. O arguido não aceitou o fim da relação de namoro, culpando BB por essa ruptura.
10. A partir da ruptura da relação de namoro, o arguido começou a telefonar a BB dizendo-lhe que o “punha a rastejar”.
11. Entre as 11h30 minutos e as 12 horas do dia 4 de Agosto de 2004, numa altura em que o incêndio já estava extinto, o arguido telefonou a BB, perguntando-lhe se “ele estava satisfeito com a situação” e dizendo que “dependia dele (BB) parar a situação”.
12. Com tais expressões referia-se o arguido ao incêndio que provocara na residência de BB.
13. No dia 4 de Agosto de 2004, entre as 11 horas e as 11 horas e 30 minutos, o arguido telefonou a DD, ex-mulher de BB e mãe de CC, dizendo-lhe “a casa do BB está a arder”.
14. Posteriormente enviou a DD a seguinte mensagem “avisei-te”.
15. O arguido actuou deliberada e conscientemente com o propósito de pegar fogo à residência de BB, bem sabendo que a mesma lhe não pertencia e que agia contra a vontade do seu proprietário.
16. Previu que, ao deitar o fogo à residência, poderia criar perigo para os bens existentes no seu interior, conformando-se com tal resultado.
17. O arguido foi condenado:
- Em 30 de Abril de 1992, como autor de um crime de furto qualificado, de um crime de introdução em casa alheia e de um crime de detenção ilegal de arma, na pena única de 20 meses de prisão, cuja execução foi suspensa por 2 anos;
- Em 8 de Abril de 1993, como autor de um crime de furto qualificado, na pena de 18 meses de prisão;
- Em 30 de Junho de 1993, como autor de um crime de furto qualificado e de um crime de falsificação, na pena única de 4 anos de prisão e 30 dias de multa, à taxa diária de 200$00;
- Em 15 de Julho de 1993, como autor de um crime de falsificação e de um crime de burla, na pena única de 21 meses de prisão e 20 dias de multa, à taxa diária de 200$00;
- Em 6 de Outubro de 1993, como autor de um crime de furto qualificado, de um crime de condução ilegal de veículo, de um crime de burla para obtenção de transportes, de um crime de introdução em casa alheia e de um crime de homicídio qualificado, na pena de 20 anos de prisão e 40 dias de multa, à taxa diária de 200$00;
- Em 14 de Janeiro de 1994, como autor de um crime de desobediência, na pena de 4 meses de prisão e em 10 dias de multa, à taxa diária de 300$00;
- Em 27 de Abril de 1994, como autor de um crime de furto, na pena de 15 meses de prisão;
- Em 31 de Maio de 1994, como autor de um crime previsto pelo artigo 260º do C. Penal, na pena de um ano de prisão;
- Em 6 de Outubro de 1994, como autor de 2 crimes de introdução em casa alheia, de 2 crimes de ofensas corporais com dolo de perigo, de um crime de ofensas corporais graves, de um crime de dano e de um crime de coacção, na pena única de quinze anos de prisão;
- Em 7 de Dezembro de 1994, como autor de um crime de falsificação e de um crime de burla, na pena única de 20 meses de prisão e 30 dias de multa, à taxa diária de 300$00;
- Em 24 de Janeiro de 1995, como autor de um crime de furto qualificado, na pena de 20 meses de prisão;
- Em 7 de Maio de 1997, como autor de um crime de furto qualificado, de um crime de introdução em casa alheia e de um crime de roubo, na pena única de 9 anos de prisão;
- Em 15 de Abril de 1998, como autor de um crime de dano e de um crime de furto qualificado, na pena única de 4 anos e 8 meses de prisão.
18. Em 29 de Setembro de 2003 foi-lhe concedida a liberdade condicional.
5. Nas conclusões da motivação, o recorrente limita o objecto do recurso à questão da determinação da medida da pena, defendendo que não deve ser superior a cinco anos e seis meses de prisão.
O recorrente vem condenado pelo crime 272º, nº 1, alínea a), do Código Penal.
O artigo 272º, primeiro do Capítulo III do Código Penal («Dos crimes de perigo comum»), pune entre outras condutas descritas, «quem provocar incêndio de relevo, nomeadamente pondo fogo a edifício ou construção, a meio de transporte, a floresta, mata, arvoredo ou seara», criando «deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado».
A norma define, assim, um crime de perigo comum e concreto.
De perigo comum, porque, na construção do tipo, o «perigo» constitui elemento que deve resultar da acção, mas que se estende ou deve verificar-se ou produzir-se em relação a um número «indiferenciado e indiferenciável» de «objectos sustentados ou iluminados por um ou vários bens jurídicos».
De perigo concreto porque, na construção do tipo, o perigo vale o mesmo que o dano, porque é o perigo que constitui a forma de violação do bem jurídico; o perigo é elemento do tipo legal, sendo os bens jurídicos protegidos a vida, a integridade física e bens patrimoniais de elevado valor.
Na conformação do tipo como crime de perigo concreto, as modalidades da acção que são susceptíveis de criar perigo vêm descritas nas alíneas a) a f) do nº 1 do artigo 272º do Código Penal.
No que respeita à alínea a), vem referido provocar incêndio e relevo. O critério do «relevo», como resulta da verificação empírica das regras de experiência, é um critério quantitativo; a qualificação do incêndio como «de relevo» partirá de um critério de dimensão e extensão e pressupõe «em definitivo uma tónica de excesso» (cfr. “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Tomo II, p. 870). Por isso, as modalidades de acção que a lei indica – incêndio em edifício, meio de transporte, floresta, mata ou arvoredo ou seara; incêndio será o fogo que lavra com intensidade ou extensão. Diversamente, não será incêndio, no sentido conceitual-normativo, mas uma outra realidade do mundo das coisas, uma combustão de elementos que, embora volátil, não se apresenta, no contexto, como indomável ou incontrolável.
Mas, à verificação do tipo não basta a existência e incêndio de relevo. É necessária a verificação do perigo.
A noção de perigo é «uma categoria relacional» (cfr. “Comentário” cit., p. 875), devendo ser integrada «dentro da normatividade inerente ao direito penal» por critérios de «probabilidade racional». Haverá, assim, perigo sempre que, em dada situação, e através de formulações de prognose com base nas regras da experiência, possa ser considerada como susceptível de produzir um resultado desvalioso para os bens que a lei refere.
O resultado de perigo ocorrerá, na formulação de FARIA COSTA, (“Comentário”, cit., p. 875), «sempre que no cotejo entre a produção do resultado material desvalioso (o chamado resultado de dano-violação) e a sua não produção interceda um juízo de forte e marcada probabilidade de produção do resultado».
Todos os elementos integrantes do crime de incêndio concorrem no caso.
O recorrente, com efeito, introduziu-se numa casa de habitação, «ateou lume» em duas divisões; em consequência, «as chamas propagaram-se por toda a habitação», atingindo «os móveis e o recheio da habitação, nomeadamente electrodomésticos» que «arderam na sua totalidade causando um prejuízo de pelo menos 50000 €».
«Na altura, não se encontrava ninguém na residência», o que era do conhecimento do recorrente – pontos 3 a 7 da matéria de facto.
A natureza dos bens a que o recorrente ateou fogo (edifício), as consequências (o fogo «propagou-se por toda a habitação»), integram a noção de «incêndio de relevo» que, nas circunstâncias, colocou em perigo, e causou danos graves a bens materiais de elevado valor que constituíam o recheio da residência.
6. O recorrente discute a medida da pena.
Dispõe o artigo 40° do Código Penal que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» - n° 1, e que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» - n° 2.
Não tendo o propósito de solucionar por via legislativa a questão dogmática dos fins das penas, a disposição contém, no entanto, imposições normativas específicas que devem ser respeitadas; a formulação da norma reveste a «forma plástica» de um programa de política criminal cujo conteúdo e principais proposições cabem ao legislador definir e que, em consequência, devem ser respeitadas pelo juiz (cfr., Anabela Miranda Rodrigues, "O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena privativa de liberdade", in Problemas Fundamentais de Direito Penal, Colóquio Internacional de Direito Penal em Homenagem a Claus Roxin, págs. 179 e segs.).
A norma do artigo 40° condensa, assim, em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, senda a culpa o limita da pena mas não seu fundamento.
Neste programa de política criminal, a culpa tem uma função que não é a de modelar previamente ou de justificar a pena, numa perspectiva de retribuição, mas a de «antagonista por excelência da prevenção», em intervenção de irredutível contraposição à lógica do utilitarismo preventivo (cfr. idem, ibidem).
O modelo do Código Penal é, pois, de prevenção, em que a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do artigo 40° determina, por isso, que os critérios do artigo 71° e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição; no (actual) programa político criminal do Código Penal, e de acordo com as claras indicações normativas da referida disposição, não está pensada uma relação bilateral entre culpa e pena, em aproximação de retribuição ou expiação.

O modelo de prevenção - porque de protecção de bens jurídicos - acolhido determina, assim, que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

O conceito de prevenção significa protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada (cfr. Figueiredo Dias, "Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime", pág. 227 e segs.).
A medida da prevenção, que não podem em nenhuma circunstância ser ultrapassada, está, assim, na moldura penal correspondente ao crime. Dentro desta medida (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.
Por seu lado, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há-de ser, em cada caso, prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.
Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71° do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
No crime de incêndio, como crime de perigo, as exigências de prevenção geral são determinantes na fixação da medida concreta da pena, para aquietação da comunidade e afirmação de valores essenciais afectados por comportamentos que, antes e para além de causarem efectivos danos, são aptos a colocar em perigo bens jurídicos essenciais, tanto pessoais como patrimoniais de elevado valor.
As exigências de prevenção especial de socialização, que convivem mas não se sobrepõem à prevenção geral, são, no caso, relevantes, quando considerado o percurso pessoal do recorrente e a rebeldia que manifesta pela ofensa a valores comunitários com tutela penal, revelada pelas condenações anteriores.
A culpa é, por seu lado, acentuada. O recorrente actuou pré-ordenadamente com o propósito de vingança e de provocar constrangimento no proprietário dos bens afectados, movido por motivos em que manifesta futilidade e grave desconsideração por valores fundamentais de relação e de vivência em comunidade.
Não concorrem, por outro lado, circunstâncias do elenco do artigo 71º do Código Penal que possam ser de valorar favoravelmente.
Deste modo, ponderando o sentido e os critérios da jurisprudência do Supremo Tribunal na determinação da pena em crimes de incêndio (cfr. v. g. acórdãos de 29/Março/2007, proc. nº 1030/07; de 3/Abril/2003, proc, nº 467/02 e de 25/Junho/1997, proc. nº 271/97), e tendo em consideração, no caso, das especiais exigências de prevenção especial, fixa-se a pena em seis anos de prisão.
7. Nestes termos, na procedência parcial do recurso, condena-se o recorrente pelo crime de incêndio previsto no artigo 272º, nº 1, alínea a) do Código penal, na pena de seis anos de prisão.

Supremo Tribunal de Justiça, 12 de Setembro de 2007

Henriques Gaspar (Relator)
Soreto de Barros
Armindo Monteiro
Santos Cabral (tem voto de vencido quanto à medida concreta da pena, pois manteria a pena estabelecida