Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1320/08.1YXLSB.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALVES VELHO
Descritores: ALUGUER DE LONGA DURAÇÃO
CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
AQUISIÇÃO
Data do Acordão: 10/25/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : O denominado “contrato de aluguer de longa duração (ALD)” configura um contrato atípico, integrado por estipulações dos contraentes no exercício da liberdade e autonomia contratual, que se caracteriza pela revelação de afinidades com o contrato de locação financeira, integrando-se sob os aspectos económico-financeiro e funcional no campo dos contratos de crédito ao consumo ou operações similares.

Só os contratos denominados de “ALD” em que exista estipulação que preveja o direito ou a obrigação de compra da coisa locada são havidos como contratos de crédito.

         Na ausência dessa estipulação, não se está perante “contrato de aluguer de longa duração” similar ao de locação financeira.

Inexistindo no misto contratual o fim indirecto ou a pluralidade contratual em coligação, visando a aquisição, a final, do bem locado, pelo locatário, não sobra mais que um aluguer, por mais longa que seja a sua duração estipulada.

Decisão Texto Integral:

         Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - O Ministério Público intentou contra “Banque AA (Sucursal em Portugal)” acção declarativa inibitória para condenação na abstenção do uso de cláusulas contratuais gerais constantes do “CONTRATO DE ALUGUER” que a Ré apresenta aos interessados que com ela pretendam contratar, pedindo que se declarassem nulas as cláusulas 3ª-2, na parte em que determina a perda da caução para o locador em caso de incumprimento por parte do locatário, 4ª, 12ª, 16ª, 17ª-2, 2ª parte, 18º-2 e 22ª, condenando-se a Ré a abster-se de as utilizarem contratos que venha a celebrar, bem como a dar publicidade a tal proibição.

Fundamentando os pedidos, o Autor alegou resumidamente: - a Cláusula 3ª-2 - “Condições de pagamento” revela-se manifestamente excessiva, sobretudo quando cumulada com a prevista na Cláusula 17.ª, sendo nula, nos termos do art. 19º, alínea c) do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25/10 (LCCG); - a Cláusula 4ª - “Impostos” viola a imperativa prevista no art. 36º-2, da Lei Geral Tributária (Decreto-Lei n.º 398/98, de 17-12) e o princípio da boa fé, sendo nula, por violação dos arts. 16º e 17º, do mesmo Decreto-Lei n.º 446/85; - a Cláusula 12ª - "Imobilização temporária" é nula nos termos do art. 18º, por afastar a responsabilidade do locador prevista no art. 1032º do Código Civil e vedar ao locatário a possibilidade de resolver o contrato com fundamento no incumprimento defeituoso; - a Cláusula 16ª - "Efeitos da caducidade do contrato (por perda total do veículo locado)" é absolutamente proibida nos termos do art. 21º- f) da LCCG, que proíbe a alteração das regras da distribuição do risco, sendo por isso, nula por via do seu art. 19º-c); - a Cláusula 17ª - "Rescisão por incumprimento", ao estabelecer uma cláusula penal que fixa antecipadamente o montante da indemnização devida em caso de incumprimento é nula de acordo com a mesma al. c) do art. 19º; - a Cláusula 18ª - "restituição do veículo" é ofensiva dos valores fundamentais defendidos pelo princípio da boa fé, por isso, nula; - a Cláusula 22ª - "Foro competente" é uma cláusula nula nos termos do disposto no artigo 19º- g) da mesma LCCG.

A Ré apresentou contestação.

Aceitou a procedência da pretensão do A. quanto à cláusula 3ª-2, bem como a nulidade do n.º 2 da cláusula 18º.

No mais, defende que o contrato denominado de "contrato de aluguer" não é um aluguer puro e simples de um veículo automóvel, pois que é estabelecido um valor residual, que corresponde ao valor a pagar a final para aquisição do veículo, correspondendo os contratos celebrados a um financiamento da aquisição de uma viatura. Assim, acrescenta, aquando da celebração do contrato de aluguer as partes acordam ainda numa promessa de compra e venda da viatura no final do prazo acordado. O contrato celebrado pela Ré tem fins económicos idênticos aos da locação financeira, sendo a tal equiparado para efeitos legais, contabilísticos e fiscais, pelo que deve o locatário suportar os encargos, nos quais se incluem contribuições, impostos, taxas, prémios de seguro, não lhe sendo aplicável o disposto no artigo 1032.º do Código Civil.

Consequentemente, as restantes cláusulas não violam quaisquer normas ou princípios de natureza imperativa.

         Julgada a causa, a sentença declarou “proibidas as seguintes cláusulas constantes do formulário do contrato de aluguer elaborado pela Ré Banque AA, S. A.:

a) Cláusula 3.ª Condições de pagamento

“2. Simultaneamente com o pagamento da primeira renda, o Locatário entrega ao Locador uma caução no valor indicado nas Condições Particulares, que este poderá, sem prejuízo dos direitos que para ele decorrem da lei e do presente contrato, fazer sua ocorrendo incumprimento por parte do Locatário, e que lhe será devolvida no termo do contrato no caso de este ter sido pontualmente cumprido e de não ser devida qualquer quantia ao Locatário, nos termos, nomeadamente, do disposto na cláusula 17.ª das condições gerais”.

         b) Cláusula 12.ª Imobilização temporária

“A imobilização do veículo locado, por avaria mecânica, acidente ou outra causa, não obriga o Locador à sua substituição nem exime o Locatário à obrigação de pagar pontualmente as rendas de aluguer, com excepção de imobilização que decorra de acidentes de que resulte perda total do veículo, situação em que está aplicável, nomeadamente, o disposto na cláusula 14.ª e 15.ª”.

         c) Cláusula 16.ª Efeitos da caducidade

         “No caso de extinção por caducidade do presente contrato nos termos da alínea a) do artigo anterior, é devida pelo Locatário ao Locador uma indemnização igual a 80% da diferença entre o valor indemnizatório recebido da seguradora do veículo e o valor das rendas vincendas no momento da caducidade do contrato.”

         d) Cláusula 17.ª Rescisão por incumprimento

         - n.º 2, 2ª parte: “No caso de rescisão por incumprimento, deverá o Locatário pagar ao Locador uma indemnização igual a 80% do valor das rendas vincendas e as rendas vencidas e não pagas, acrescidas de juros de mora à taxa legal, devendo ainda suportar integralmente o custo da reparação de qualquer avaria ou dano que o veículo locado apresente”.

         e) Cláusula 18.ª Restituição do veículo

“1- Findo o contrato, por qualquer causa, incluindo a rescisão por incumprimento do Locatário, e com excepção da perda ou destruição total, o veículo locado deverá ser restituído no local e perante a entidade identificada na Cláusula 4ª das Condições Particulares”

         2- A não restituição do veículo locado no prazo de 24 horas a contar da data do final do contrato ou da data em que produzir efeito a rescisão por incumprimento fará incorrer o locatário na prática do crime de “Furto de Uso de Veículo” ou outro que por lei venha a ser tipificado, presumindo-se que a detenção do veículo para além daquela se processa contra a vontade do Locador.”

         f) Cláusula 22.ª Foro

“Qualquer litígio emergente do presente contrato será definitivamente dirimido pelo Foro da Comarca de Lisboa, com expressa exclusão de qualquer outro.”; e,

- condenou a Ré “a abster-se do uso, em qualquer contrato, das cláusulas supra mencionadas”, bem como “a dar publicidade à parte decisória da presente sentença, no prazo de 20 dias, desde o trânsito em julgado, através de anúncio de dimensão não inferior a ¼ de página, a publicar em dois jornais diários de maior tiragem, que sejam editados em Lisboa e Porto, em 3 (três) dias consecutivos, comprovando o acto nos presentes autos, até 10 (dez) dias após a última publicação”.

         A Relação confirmou o sentenciado.

         Confrontada com a situação de “dupla conforme”, Ré interpôs, então, recurso de revista excepcional, que como tal lhe foi admitido pela Formação a que se refere o n.º 3 do art. 721º CPC, que teve como verificado o requisito previsto na al. a) do n.º1 do mesmo preceito quanto à questão de “apurar a natureza jurídica, regulamentação legal, e admissibilidade de inclusão, nele, de diversas cláusulas determinadas, nomeadamente em atenção ao princípio da autonomia contratual, do contrato atípico denominado de aluguer de longa duração (de veículo automóvel sem condutor)”.

 

         Insistindo na tese da errada qualificação e inerente regime jurídico do contrato, bem como na validade das cláusulas 12ª, 16ª, 17 e 22º, a Recorrente pede a revogação do acórdão, para o que argumenta no texto que submete à epígrafe “Conclusões”:

a) O presente recurso vem interposto do douto Acórdão (…) que negou provimento ao recurso e confirmou a decisão da 1 a instância de considerar nulas as cláusulas 12ª, 16ª, 17ª e 22ª constante do clausulado usado pela recorrente nos contratos de aluguer que celebra.

b) A recorrente considera e com todo o respeito devido pelas instâncias que já se pronunciaram sobre esta matéria que há uma errada determinação das normas legais a aplicar ao caso concreto a decidir, o que prejudica a boa aplicação do direito,

c) Com efeito, a maioria da doutrina que se pronunciou sobre a questão dos contratos de aluguer celebrados por instituições financeira, considera que a sua natureza e efeito prático estão fora do regime da locação civil constante do nosso código civil.

d) A jurisprudência tem considerado que apesar de se tratar de um contrato atípico o regime aplicável é a locação civil.

e) A recorrente considera que dos argumentos apresentados pelas instâncias resulta que é desvalorizada a componente financeira do contrato celebrado pela ré e consequentemente se erra na aplicação das normas da locação civil para apreciação de validade das cláusulas contratuais, violando o disposto nos art° 9°, 10°, 236° e 238° do C.C.

f) Com efeito, interpretar e aplicar ao contrato de aluguer celebrado pela recorrente as normas do Código Civil para a locação é absolutamente redutor e desajustado quer às circunstâncias em que é celebrado o contrato e à vontade real e concordante das partes.

g) De facto, estamos perante um contrato em que as cláusulas se encontram pré-estabelecidas pela recorrente enquanto locadora, duma forma geral e abstracta, com redução a escrito em impressos disponíveis aos aderentes locatários, concluindo-se o contrato em concreto com o ajuste e preenchimento das cláusulas particulares, respeitantes à identificação do locatário, à identificação do veículo, duração, ao montante das rendas, ao tempo dos pagamentos, às garantias a prestar pelo locatário, estas condições supra referidas, indicadas nas condições particulares, resultam sempre da prévia negociação com os aderentes, pois dependem do veículo que escolhem e da disponibilidade financeira mensal de cada um.

h) O artigo 10° do Decreto-Lei n. ° 446/85, de 25 de Outubro, consagra como princípio geral de interpretação quê: "As cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam."

i) Ou seja, a natureza e o fim do contrato assumem relevância na interpretação das cláusulas gerais inseridas no mesmo.

j) Várias têm sido as teses doutrinais acerca da natureza do contrato de aluguer, todas concluindo que não se pode aplicar o regime da locação civil por absoluta falta de identidade.

K) Destacamos duas posições por nos parecerem bastante esclarecedores da realidade em análise:

i) "Os contratos vulgarmente designados de aluguer de veículo automóveis de longa duração, ALD, não são de mera locação, nem de compra e venda com reserva de propriedade, mas antes um contrato misto, indirecto." cfr. Ac. RP de 19/04/1999 in Col. Jur. 1999,2°,204.

ii) "(. . .) O contrato de "aluguer de longa duração" de automóveis novos é um contrato indirecto em que o tipo de referência é o aluguer e o fim indirecto é o da venda a prestações com reserva de propriedade. Qualificar este contrato simplesmente como contrato de aluguer de automóveis ou como contrato de venda a prestações com reserva de propriedade resulta, em qualquer dos casos, no desrespeito pela vontade contratual.

A concorrência do contrato de venda a prestações com reserva de propriedade com o contrato de aluguer de longa duração para satisfação do mesmo fim das partes não tem nada de reprovável ou de nocivo. Pelo contrário, resulta num enriquecimento importante da liberdade contratual, da capacidade de escolha pelas partes dos meios jurídicos para a satisfação dos seus interesses, e num aumento dos meios jurídicos disponíveis no comércio," Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Almedina, 1995, pago 245 e 246.

I) Do texto do contrato de aluguer junto aos autos e dos factos provados resulta de forma inequívoca que se trata de um contrato financeiro e não se trata de um aluguer puro e simples de um veículo automóvel:

i) "Sendo certo que as condições particulares dizem respeito ao número e valor das rendas, ao valor da caução, valor residual e valor total do contrato, local de pagamento e à data e local de entrega do veículo, bem como identificam o veículo. (art. 9.º da petição inicial e 2.º da contestação);

Estas condições resultam de negociação com os aderentes, pois dependem do veículo e da disponibilidade financeira mensal de cada um. (art. 4. o da contestação);" Cfr. pontos 7. e 8. dos factos assentes.

ii) " Das condições particulares consta um espaço relativo a "valor residual", nos celebrados tal espaço tem de seguida um valor em euros. (artigo 20.º da contestação) ;

Que corresponde, em regra ao valor de uma renda. (artigo 23.º da contestação);" cfr. pontos 14. e 15. dos factos assentes.

m) Ora, valor residual é um termo que define o montante que o contraente tem a pagar no final do contrato para aquisição da viatura.

Também, o valor de cálculo das rendas é efectuado para que durante o prazo de pagamento seja amortizado o valor de aquisição do veículo e pagas as rendas o locatário venha a adquirir a viatura mediante o pagamento da quantia indicada a seguir a "Valor Residual'. Essa quantia em regra corresponde sensivelmente ao valor de uma renda, conforme ficou demonstrado nos autos.

n) Resulta que os contratos de aluguer celebrados pela recorrente correspondem no seu fim a um financiamento da aquisição de uma viatura automóvel, sendo que todos os locatários pretendem no final do contrato adquirir a propriedade da mesma.

"Nos casos de cumprimento integral do contrato os locatários pretendem no final adquirir a viatura automóvel. (artigo 25.º e 26.º da contestação);" Cfr. ponto 16. dos factos assentes.

o) Esta é de facto a vontade real dos contraentes - locadora e locatários - e tem correspondência na letra do contrato.

p) Assim, delineado o contexto e circunstâncias em que a recorrente celebra os denominados contratos de aluguer, cuja cópia das condições particulares e gerais se encontram junto aos autos, será de concluir que na interpretação da validade das suas cláusulas não é legítimo o recurso ao regime da locação civil.

q) Pois, na interpretação dos negócios dispõe o artigo 236º do C.C: "1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha o mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.

2.Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade." 

r) Ora, no acórdão recorrido considera-se que a cláusula 12ª das condições gerais do contrato é nula por violação da alínea c) do artigo 18° do Dec-Iei nº 446/85 de 25 de Outubro,

s) Da análise efectuada ao contrato de aluguer celebrado pela ré, verifica-se que no plano funcional dos interesses, o contrato constitui uma operação de natureza similar e com resultados económicos equivalentes à locação financeira, trata-se de uma "actividade que poderá ser tida como modalidade de leasing financeiro".

t) Tal como na locação financeira também nestes contratos de aluguer o locador se obriga a adquirir o bem a um terceiro, sob a indicação do locatário para lhe proporcionar o respectivo gozo, as rendas devidas não são o correspectivo do valor de uso do bem locado, mas, parcelas de execução da obrigação de reembolso dos fundos adiantados pelo locador na sua aquisição e o locatário tem a expectativa de aquisição do bem no final do período acordado para o aluguer. E embora não conste do clausulado das condições gerais do contrato, a existência da promessa de venda da viatura no final do contrato, ela está subjacente à vontade de ambas as partes e resulta clara das condições particulares quando é preenchido o campo relativo ao "valor residual".

u) Esta realidade nada tem de comum com o regime da locação prevista nos artigos 1022° e seguintes do C.C., não sendo por essa razão aplicável o regime do art° 1032° do C.C.

v) O bem objecto da locação é sempre escolhido pelo locatário, facto que ficou demonstrado nos autos: "19. O bem objecto da locação é escolhido pelo locatário. (art. 79° da contestação)". Cfr. ponto 19. dos factos assentes. A locadora não tem qualquer contacto com o bem, o qual é entregue ao locatário no local de venda, também por si escolhido, cfr. cláusula 6ª das condições gerais do contrato.

w) Face ao paralelismo entre o contrato de aluguer em causa e o contrato de locação financeira, consideramos ser de encontrar a solução no que expressamente está previsto para este último.

x) O que é perfeitamente legítimo ao abrigo do disposto no art. 10° do C.C., que permite "estender analogicamente a hipótese normativa que prevê um tipo particular de casos a outros casos particulares do mesmo tipo e perfeitamente paralelos ou análogos aos casos previstos na sua própria particularidade".

y) Aliás, a aplicação do regime de locação financeira aos contratos de aluguer já é contemplado e algumas situações: Dec- lei nº 285/2001 de 03 de Novembro veio consagrar legalmente essa identidade, referindo no preâmbulo.

E a nível fiscal o veículo automóvel dado de aluguer é registado como um activo imobilizado do locatário, tal e qual no caso de contrato de locação financeira.

z) Assim, o artigo 12° do Dec-Iei nº 149/95 de 24 de Junho dispõe: "O locador não responde pelos vícios do bem locado ou pela sua inadequação face aos fins do contrato, salvo o disposto no artigo 1034° do Código Civil."

Este regime é compreensível atenta a função principal do locador de intermediário financeiro e o locatário ter a iniciativa de escolher no mercado quer o fornecedor quer o bem. O locador não chega a ter qualquer contacto físico com o bem.

Valendo o mesmo raciocínio para o contrato de aluguer celebrado pela recorrente.

aa) Ora, no caso da responsabilidade contratual prevista na aI. c) do art° 18° do Dec- lei nº 446/85, de 25 de Outubro, as restrições dizem apenas respeito a situações de dolo ou de culpa grave. Ora, o veiculo objecto do contrato é escolhido pelo locatário - cfr. ponto 19. da matéria de facto provada -, sem qualquer intervenção da locadora, é recebido pelo locatário directamente do vendedor, sem que a locadora em algum momento tenha a posse material do veiculo, pelo que não se pode sequer hipoteticamente configurar uma situação em que haja dolo ou culpa grave por parte da locadora.

bb) Pelo que não se pode considerar a cláusula 12ª das condições particulares do contrato de aluguer nula.

cc) Seguindo o mesmo raciocínio e face ao exposto, consideramos que não tem aplicação ao regime do contrato sub judice, o disposto no artigo 1044° do C.C.

dd) E, mais uma vez, face ao paralelismo de regimes, chamamos à colação o artigo 15° do Dec-Iei nº 149/95, de 24 de Junho: "Salvo estipulação em contrário, o risco de perda ou deterioração do bem corre por conta do locatário. "

Esta norma assenta na circunstância de o locatário ser o proprietário económico do bem, gozando-o na vigência do contrato e suportando os custos da sua manutenção e conservação, assim como todos os encargos. Já o direito de propriedade que o locador mantém sobre o bem visa, por um lado, servir de garantia ao risco económico de incumprimento do locatário, assegurando o capital adiantado.

ee) "A orientação maioritária defende linearmente que o locatário permanece responsável ainda que a causa da perda lhe não seja imputável. A justificação da posição tomada assenta na mesma linha de pensamento: é o locatário quem tem a guarda do bem locado, sendo o locador apenas o seu proprietário jurídico.

ff)Não podendo as cláusulas 15ª e 16ª das condições gerais do contrato serem consideradas nulas nos termos da aI. f) do art° 21° do Dec-Iei nº 446/85, de 25 de Outubro, conforme se conclui nas instâncias, com recurso ao regime do art. 1044° do C.C., será de por analogia e nos termos do art° 10° do C.C., recorrer à previsão do art° 15° do Dec-Iei nº 149/95, de 24 de Junho, e considerar válidas as cláusulas 15ª e 16ª das condições gerais do contrato.

gg) Na douta sentença recorrida foi, também, considerada nula a cláusula 17ª, nº 2 , 2ª parte, por violar o artigo 19° do Dec-Iei, nº 446/85 de 25 de Outubro.

hh) Ora, o art° 810° do C.C. estipula: "1. As partes podem, porém, fixar por acordo o montante da indemnização exigível: é o que se chama cláusula penal."

ii) O art. 19°, aI. c), do Dec- lei nº 446/85 de 25 de Outubro proíbe, consoante o quadro negocial padronizado, as cláusulas gerais desproporcionadas aos danos a ressarcir. Esta norma quando alude ao conteúdo das cláusulas e aos danos indemnizáveis, não visa a desproporção em concreto, face aos prejuízos efectivamente sofridos, mas a desproporção em abstracto.

Ou seja, a análise a fazer respeita ao tipo de contrato celebrado, daí que ao formularem-se as diversas proibições relativas, se tenha recorrido a conceitos indeterminados, carecidos de concretização, no caso da aI. c) "cláusulas penais desproporcionadas" .

Assim, "o qualificativo "desproporcionado" não aponta para uma pura e simples superioridade das penas pré-estabelecidas em relação ao montante dos danos. Pelo contrário, deve entender-se, de harmonia com as exigências do tráfico e segundo um juízo de razoabilidade, que a hipótese em análise só ficará preenchida quando se detectar uma desproporção sensível.".

jj)Sobre o quadro contratual, importa referir que os contratos de aluguer comportam manifestas vantagens para os locatários, que podem usufruir das utilidades do veículo automóvel novos durante o período da sua duração útil, através do pagamento fraccionado, sem terem de proceder à sua aquisição.

kk) Em contrapartida, a actividade exercida pela locadora/ré só pode funcionar de forma eficaz se os locatários cumprirem pontualmente as suas obrigações.

Quando ocorre o incumprimento, o cenário contratual sofre considerável perturbação, pois determina, sem mais, custos financeiros acrescidos. Trata-se de actividade económica com riscos elevados para as locadoras, resultantes, do próprio desgaste dos veículos e da vultosa mobilização de capitais que a sua aquisição implica.

E, para além do referido desgaste, a própria evolução da técnica torna os veículos obsoletos quando se atinge o termo contratual, ou estão em condições de manutenção irrecuperáveis, já que o locatário quando incumpre com o contrato não entrega de imediato a viatura e torna-se relapso nos seus cuidados.

São raras ou nenhumas as situações em que a locadora recebe a viatura com todas as reparações feitas e em perfeito estado de conservação.

E importará não olvidar o tempo que necessariamente decorre entre a comunicação da resolução contratual e a efectiva recuperação dos veículos e o recebimento das quantias em dívida, durante o qual a locadora está desembolsada das rendas, enquanto o locatário continua a utilizar o veículo.

Ademais, nada garante que a locadora possa alienar o veículo ou dar-lhe, em tempo útil, uma outra utilização.

11) Perante o exposto, e atento o quadro negocial, concluímos que a cláusula 16ª e 17ª das condições gerais do contrato não se revela em abstracto desproporcionada aos danos que visa ressarcir, mostrando-se a sua inclusão contratual perfeitamente justificada à luz do princípio da autonomia da vontade - art. 405º e 801º e seguintes do C.C.

mm) Declara-se, ainda, a nulidade da cláusula 22ª das condições gerais do contrato.

nn) O artigo 19º do Dec-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, sobre a epígrafe (Cláusulas relativamente proibidas) diz: "São proibidas, consoante o quadro negocia I padronizado, designadamente, as clausulas contratuais gerais que:

( ... )

g) "Estabeleçam um foro competente que envolva graves inconvenientes para uma das partes, sem que os interesses da outra o justifiquem;"

Trata-se de cláusulas relativamente proibidas, ou seja, são cláusulas que funcionam em determinados contextos, valendo aqui tudo o que acima se expôs acerca da valoração para a sua concretização.

Sendo que neste caso os conceitos indeterminados são "graves inconvenientes" e "os interesses".

oo) A lei não considera nula a cláusula só porque dela podem resultar desvantagens para uma das partes: na previsão legal admite-se a possibilidade dessa desvantagem face a interesses relevantes da outra parte.

Fala-se em "graves inconvenientes", o que significa que não pode ser um simples transtorno ou desvantagem, antes algo de relevantemente penoso para a generalidade das pessoas.

pp) Ora, in casu, nada ficou provado que demonstre os "graves inconvenientes" para os locatários, limitando-se a douta sentença a referir o superior poder económico da recorrente em contraposição com a generalidade dos consumidores e a invocar o valor constitucional da defesa do consumidor perante os grandes litigantes.

qq) Desde logo, os locatários podem sempre alegar a insuficiência económica, beneficiando de apoio judiciário, sendo as respectivas despesas suportadas pelo estado.

rr) Por outro lado, a recorrente é uma sucursal em Portugal de uma sociedade comercial e desenvolve a sua actividade com objectivos de lucro, empregando várias pessoas e contribuindo para o desenvolvimento económico do país.

Anualmente tem de apresentar as suas contas aos accionistas e ficar sujeita à respectiva avaliação de manutenção ou não da representação no país.

Pelo que na sua estrutura organizacional tem uma gestão e controlo de custos.

Todos os seus serviços, incluindo os jurídicos, estão centralizados em Lisboa, local onde se situa a sua sede, não tendo quaisquer outros serviços em qualquer outra parte do país, conforme ficou provado nos autos - ponto 27 dos factos provados.

Sendo inequívoco o seu interesse em instaurar as acções emergentes de contratos que celebra no tribunal da comarca de Lisboa.

ss) Para a recorrente litigar em todos e cada um dos casos judiciais em diferentes comarcas do país causa-lhe obviamente inconvenientes quer financeiros quer estruturais. Inconvenientes que justificam o interesse da recorrente na estipulação de um foro, o qual não é aleatório e que não demonstra qualquer intenção de prejudicar os aderentes ao contrato, mas corresponde ao da sua sede.

E este é um interesse sério, objectivo e ponderável dentro do quadro negociaI padronizado, ou seja, neste contexto não se poderá julgar tal cláusula como proibida.

tt) Sendo certo que os prejuízos que existem para os aderentes ao contrato não se podem ter como graves, ou pelo menos são tão graves como os da generalidade dos casos em que as partes residem em comarcas diferentes daquelas em que correm os processos judiciais.

Aliás, tais inconvenientes estão cada vez mais atenuados, por via dos meios tecnológicos e informáticos de que os tribunais dispõem - fax, Internet,

uu) Daí que sendo recíprocos os inconvenientes e não exclusivos dos locatários e sérios e atendíveis os interesses da recorrente na manutenção da cláusula 22ª, não se pode considerar verificada a situação de "graves inconvenientes para uma das partes, sem que os interesses da outra o justifiquem" .

vv) O Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou pela validade da cláusula do foro neste contexto: "Em acção inibitória também não é proibida nos termos da aI. g) do art. 19° do mesmo decreto-lei, a cláusula contratual geral que fixa a competência exclusiva do tribunal da comarca de Lisboa para os litígios emergentes da execução do contrato em causa" Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/09/206, proc. 06a2616 in www.dqsi.pt.

ww) Face ao exposto, o douto acórdão ao decidir como decidiu faz uma interpretação errada da natureza do contrato de aluguer celebrado pela recorrente, aplicando-lhe as regras do Código civil para a matéria da locação o que se apresenta como desajustado à vontade real das partes expressa no contrato e violando as regras de interpretação, nomeadamente os artigos 9º e 10º, 236º e 238º do C. C. e em contradição com as construções doutrinadas à volta da figura, dificultando claramente a aplicação do direito e a evolução dos instrumentos jurídicos.

         O Ministério Publico respondeu, oferecendo a bondade do julgado.

         2. - Objecto do recurso.

         Na alegação da Recorrente propõe-se a apreciação das seguintes questões:

A. - Definição do regime jurídico aplicável ao denominado “contrato de aluguer de longa duração”.

B. - Consequências da definição desse regime jurídico aplicável, em relação à validade das cláusulas contratuais predispostas no formulário do “contrato de aluguer” relativamente às regras do contrato de locação civil sobre (i) responsabilidade do locador pelos vícios da coisa (12ª) e (ii) distribuição do risco de perda do bem (16ª).

C. - Invalidade, por desproporcionalidade, da cláusula que fixa antecipadamente o montante da indemnização por incumprimento contratual do locatário (17ª); e,

D. - Invalidade do pacto de aforamento, por inexistência de interesse relevante atendível (22ª).

        

         Porém, a montante, as questões a apreciar encontram-se circunscritas às identificadas em A. B.qualificação e regime jurídico do contrato proposto no clausulado impresso e respectivas consequências sobre a validade do mesmo clausulado -, como resulta do conteúdo da fundamentação invocada pela Recorrente que suporta o pedido de revista excepcional – a incidir sobre a inaplicabilidade ao contrato do regime da “mera locação civil (…), ficando toda a apreciação das sua cláusulas prejudicada por esta aplicação do direito” e, correspondentemente, da decisão que sobre ele recaiu, no essencial acima transcrita (arts. 36º a 57º da alegação e fls. 3 e 4 do acórdão da Formação), em obediência ao disposto no arts. 720º-3 e 721º-1, a) e 2, a) CPC.   

3. - O quadro factual [ou como tal (matéria de facto) considerado] que vem definitivamente fixado é o que segue.

1. A Ré encontra-se matriculada sob o nº …com a sua constituição inscrita na 1ª Secção da Conservatória do Registo Comercial de Lisboa e tem por objecto social “Operações bancárias bem como todas as operações conexas e nomeadamente o financiamento de vendas de veículos automóveis e de todos os bens às redes comerciais construtores automóveis, bem como a toda outra clientela de acordo com qualquer outra modalidade, todas as prestações de serviços a título acessório”.

         2. No exercício de tal actividade, a Ré procede à celebração do “contrato de aluguer” que tem por objecto o aluguer, sem condutor, de veículo automóvel – doc. de fls. 28/30.

         3. Para tanto, a Ré apresenta aos interessados que com ela pretendam contratar um clausulado já impresso, previamente elaborado, com o título “Contrato de aluguer - Condições Gerais”.

         4. O referido clausulado não contém quaisquer espaços em branco para serem preenchidos pelos contratantes que em concreto se apresentem, com excepção do reservado à data e às assinaturas do locatário e do fiador.

         5. Estabelece o artigo 1º: “É objecto deste contrato o aluguer, sem condutor, do veículo automóvel identificado nas Condições Particulares”.

         6. Juntamente com a entrega do clausulado, os interessados assinam um impresso onde se encontra identificada a Ré como “locador”, e contém um espaço reservado à identificação do locatário e do eventual fiador e consta que entre as partes: “É ajustado e reciprocamente aceite o seguinte CONTRATO DE ALUGUER, que se rege pelos termos e condições constantes das condições gerais e particulares adiante transcritas”.

7. Sendo certo que as condições particulares dizem respeito ao número e valor das rendas, ao valor da caução, valor residual e valor total do contrato, local de pagamento e à data e local de entrega do veículo, bem como identificam o veículo.

         8. Estas condições resultam de negociação com os aderentes, pois dependem do veículo e da disponibilidade financeira mensal de cada um.

         9. As condições gerais correspondem a proposições pré-elaboradas que os destinatários se limitam a aceitar.

         10. A cláusula 3ª sob a epígrafe condições de pagamento estabelece, no seu nº 2 que: “Simultaneamente com o pagamento da primeira renda, o Locatário entrega ao Locador uma caução no valor indicado nas Condições Particulares, que este poderá, sem prejuízo dos direitos que para ele decorrem da lei e do presente contrato, fazer sua ocorrendo incumprimento por parte do Locatário, e que lhe será devolvida no termo do contrato no caso de este ter sido pontualmente cumprido e de não ser devida qualquer quantia ao Locatário, nos termos, nomeadamente, do disposto na cláusula 17ª das Condições Gerais”.

         11... O contrato estabelece, na cláusula 17ª, uma cláusula penal para o caso de rescisão por incumprimento por parte do locatário (sic).

         12. Cumular no mesmo contrato cláusulas com o teor da constante da cláusula 3.ª, n.º 2 e da 17.ª, n.º 2 é manifestamente excessivo (sic).

         13. Nos contratos celebrados e em que foi prestada caução, a Ré usava-a como antecipação de pagamento para aquisição, pagas as rendas o valor caução era imputado e transferida a propriedade da viatura e nos casos de incumprimento o valor era imputado na conta corrente.

         14. Das condições particulares consta um espaço relativo a “valor residual”, nos celebrados tal espaço tem de seguida um valor em euros.

15. Que corresponde, em regra ao valor de uma renda.

16. Nos casos de cumprimento integral do contrato os locatários pretendem no final adquirir a viatura automóvel.

         17. A cláusula 4ª. sob a epígrafe “Impostos”, estabelece: “1.O montante das rendas inclui todos os impostos e taxas que incidem sobre a locação automóvel. 2. São da responsabilidade do locatário, sendo automaticamente incluídos no valor das rendas devidas, quaisquer impostos que venham a ser criados e que incidam sobre a locação automóvel. O Locatário é igualmente responsável pelos impostos devidos pela circulação do veículo locado, cujo selo nele deverá afixar, nos termos da lei. 3. O Locatário pode contratar o fraccionamento do custo do Imposto de Selo Municipal ou de Circulação pelo prazo do contrato”.

         18. A cláusula 12.ª sob a epígrafe “Imobilização temporária” estabelece: “A imobilização do veículo locado, por avaria mecânica, acidente ou outra causa, não obriga o Locador à sua substituição nem exime o Locatário à obrigação de pagar pontualmente as rendas de aluguer, com excepção de imobilização que decorra de acidentes de que resulte perda total do veículo, situação em que está aplicável, nomeadamente, o disposto na cláusula 14.ª e 15.ª”.

19. O bem objecto da locação é escolhido pelo locatário.

         20. A cláusula 15ª sob a epígrafe “Caducidade do contrato”, estabelece, na aliena a): “O presente contrato caduca, sem necessidade de qualquer formalidade pela perda ou destruição total do veículo locado.”.

         21. E a cláusula 16ª sob a epígrafe “Efeitos da caducidade”, determina que: “No caso de extinção por caducidade do presente contrato nos termos da alínea a) do artigo anterior, é devida pelo Locatário ao Locador uma indemnização igual a 80% da diferença entre o valor indemnizatório recebido da seguradora do veículo e o valor das rendas vincendas no momento da caducidade do contrato.”

22. A cláusula 17.ª sob a epígrafe “Rescisão por incumprimento”, estabelece, no n.º 2, 2ª parte: “No caso de rescisão por incumprimento, deverá o Locatário pagar ao Locador uma indemnização igual a 80% do valor das rendas vincendas e as rendas vencidas e não pagas, acrescidas de juros de mora à taxa legal, devendo ainda suportar integralmente o custo da reparação de qualquer avaria ou dano que o veículo locado apresente”.

         23. Na cl.ª 13.ª pode ler-se: “O Locatário reconhece que o valor das rendas do presente aluguer foi calculado pelo Locador tendo em conta a sua duração prolongada, no caso de essa indicação constar das condições particulares, um certo valor máximo de quilómetros a percorrer”. No caso de nas Condições se indicar um número máximo de quilómetros a percorrer pelo Locatário, fica este obrigado a pagar ao locador, e independentemente da causa da cessação da vigência do presente contrato, um montante suplementar correspondente aos quilómetros percorridos em excesso …”.

24. A cláusula 18.ª sob a epígrafe “Restituição do veículo” determina, nos seus nºs 1 e 2: “1-Findo o contrato, por qualquer causa, incluindo a rescisão por incumprimento do Locatário, e com excepção da perda ou destruição total, o veículo locado deverá ser restituído no local e perante a entidade identificada na Cláusula 4ª das Condições Particulares”

2-A não restituição do veículo locado no prazo de 24 horas a contar da data do final do contrato ou da data em que produzir efeito a rescisão por incumprimento fará incorrer o locatário na prática do crime de “Furto de Uso de Veículo” ou outro que por lei venha a ser tipificado, presumindo-se que a detenção do veículo para além daquela se processa contra a vontade do Locador.

25. Tal cláusula viola disposições legais de carácter imperativo (sic).

         26. A Cláusula 22.ª sob a epígrafe “Foro”, determina “Qualquer litígio emergente do presente contrato será definitivamente dirimido pelo Foro da Comarca de Lisboa, com expressa exclusão de qualquer outro.”

         27. Os serviços da Ré, incluindo os jurídicos, estão centralizados em Lisboa.

         28. Os clientes da Ré – os locatários, são dos mais variados pontos do país.

         29. Nos processos judiciais a Ré indica como testemunhas os seus funcionários e colaboradores do departamento de contencioso.

         4. - Mérito do recurso.

        

         4. 1. – Ponto prévio. Acção inibitória e cláusulas sob censura.

 

         Perante argumentação que a Recorrente se limitou a repetir neste recurso, no bem fundamentado acórdão impugnado considerou-se, em síntese útil, que o tipo contratual a ter como relevante, no caso, como quadro negocial padronizado, para efeito de qualificação das cláusulas contratuais predispostas como relativamente proibidas é o da locação/aluguer civil.

         Efectivamente, fez-se notar que “a locação de veículo automóvel não tem, no caso, uma vincada natureza financeira”, com a consequente repercussão no regime de validade das cláusulas 12ª, 16ª e 17ª das “Condições Gerais” da proposta que de contrato de aluguer de veiculo automóvel, sendo também nula a clausula 22ª (pacto de competência), por violação da boa fé.

         Desconsiderando a exaustiva fundamentação jurídica utilizada no acórdão sob censura, a Recorrente reproduz a genérica tese de que os contrato de aluguer celebrados por instituições financeiras tem natureza e efeitos que os colocam fora do regime da locação civil, regime que, por absoluta falta e identidade não se lhes pode aplicar. Assim, o contrato de aluguer de longa duração, seja visto como contrato misto, indirecto ou como contrato legalmente atípico – embora socialmente típico -, não é assimilável a locação civil e, porque assume natureza similar e visa resultados económicos equivalentes aos da locação financeira, deverá recorrer-se, por analogia, às normas que regem este tipo contratual (Dec.--lei n.º 149/95, de 24/6).

         Tratar-se-á agora, tendo presentes a natureza e objecto da acção e do recurso – com o balizamento com que ficou definido e fixado o objecto deste -, de tomar posição sobre o regime aplicável às cláusulas gerais elaboradas e propostas para utilização futura, independentemente da sua efectiva inclusão em contratos singulares, consideradas em absoluto ou consoante o quadro negocial padronizado, tal como este se apresenta consubstanciado nas “Condições Gerais” que constituem a proposta de adesão, com referência à figura e regime jurídico aplicável, como é próprio da acção inibitória a que alude o art. 25º do Dec.-Lei n.º 446/85, de 25/10 (RJCCJ), a remeter expressamente para os seus arts. 18º, 19º, 21º e 22.

4. 2. - Regime jurídico do contrato que a Recorrente se propõe concluir mediante as cláusulas contratuais gerais, constantes do formulário, que constituem as “Condições Gerais” em que se inserem as declaradas proibidas e nulas.

         4. 2. 1. - A determinação do regime jurídico por que deve reger-se a formação, execução e extinção de determinado contrato pressupõe a sua previa qualificação - no caso de uma proposta destinada a conclusão do contrato por mera adesão -, a realizar por via interpretativa a incidir sobre o conteúdo do clausulado que integra as estipulações ou declarações negociais dos contraentes.

         As cláusulas a atender, por, repete-se, serem as únicas que relevam na apreciação da questão decidenda, são as efectivamente propostas para adesão dos interessados no pré-elaborado e impresso “Contrato de aluguer – Condições Gerais”, ou seja, o regulamento contratual ou quadro negocial ali predisposto, independentemente, como dito, do que possa vir a ser-lhe aditado num qualquer concreto contrato singular futuro.

         Por isso, a apreciação que aqui cabe levar a cabo tem por objecto as cláusulas contratuais nos precisos termos que constam da proposta contratual impressa que a Ré impõe para aceitação a quem com ela pretenda celebrar o “contrato de aluguer”.

         O bem fundamentado acórdão recorrido, depois de se referir e de percorrer, em adequada análise, a natureza e regime dos contratos de locação em geral, de locação financeira, abordou o denominado contrato de “aluguer de longa duração (ALD)” para concluir que a regulamentação de interesses contida nas CCG que a Recorrente utiliza nas propostas para adesão contratual devem enquadrar-se na moldura geral do contrato de locação civil.   

         Com efeito, reconduzindo-nos ao que, sob o ponto de vista conceptual e doutrinário, se tem por relevante referir, dir-se-á que se mantém o entendimento, proposto em acórdão em que o ora relator interveio como adjunto (proc. n.º 67/07.0TCGMR.G1.S1), no sentido da qualificação do denominado contrato de “ALD” como um contrato atípico, a cuja regulamentação serão aplicáveis as normas do D.L. 354/86, de 23/10, que disciplina o aluguer de veículos automóveis sem condutor – rent a car –, as da locação em geral, as regras gerais da disciplina dos contratos, bem como as cláusulas contratuais estipuladas ao abrigo do princípio da liberdade contratual, vale dizer as estipulações dos contraentes que se mantenham conformes ao quadro normativo de natureza imperativa.

         Como então se deixou afirmado, crê-se que tal contrato atípico – porventura socialmente típico – pode configurar-se como um contrato indirecto, sendo o tipo de referência o aluguer e o fim indirecto a venda a prestações com reserva de propriedade.

            Na realidade, o que sucede no caso de “ALD” de automóveis (a vulgarmente designada “compra em ALD”), é que “o fim indirecto que é tido em vista pelos contratantes é conseguido através da conjugação de estipulações típicas dos contratos de aluguer e de venda a prestações com reserva de propriedade, gerando-se um verdadeiro contrato misto, que nada tem «de reprovável ou de nocivo», a qualificar e interpretar na globalidade dos seus elementos, sob pena de desrespeito pela vontade dos contraentes (vd. P. PAIS DE VASCONCELOS, “Contratos Atípicos”, 244/5).

         Outros Autores, de resto citados pela Recorrente, se pronunciaram sobre a natureza, qualificação e regime do contrato em causa. De notar, as, sempre a propósito, convocadas posições de GRAVATO MORAIS (“Contratos de Credito ao Consumo”, 57 e “Manual da Locação Financeira”, 53), TERESA ANSELMO VAZ, (“Alguns Aspectos do Contrato de Compra e Venda a Prestações e Contratos Análogos”, 77), PAULO DUARTE, (“Algumas Questões sobre ALD”) e RUI PINTO DUARTE, (“Escritos sobre Leasing e Factoring”, 168).

         Sobre elas, ao que para o caso concreto pode interessar deixar referenciado, elege-se, como ponto comum, a admissão de similitude do contrato de “ALD” com o contrato de locação financeira, desde a abertura da porta de recurso a analogia com algumas normas deste contrato (Gravato Morais) até considerá-lo uma das suas modalidades (Pinto Duarte).    

         Num ponto, porém, todos estão de acordo: - o denominado contrato de “ALD”, concebido como um contrato misto indirecto ou como uma pluralidade de contratos interligados numa relação de coligação funcional (Paulo Duarte), não se mostra naturalmente assimilável ao contrato de locação em geral, seja porque no valor da retribuição entra, em regra, uma componente destinada à amortização do preço da coisa locada, a exceder a que corresponderia ao mero gozo, seja porque se convenciona a aquisição do bem pelo locatário para o termo do prazo do contrato – mediante inclusão de promessa de compra e/ou venda ou uma proposta irrevogável de venda -, o qual tenderá a ficar integralmente pago com a liquidação da ultima renda.    

         Este último elemento caracterizador do “ALD”, por todos referenciado, surge especialmente posto em evidência pela referida Autora Teresa Anselmo Vaz (“Revista Português de Direito do Consumo”, n.º 14 -125) ao caracterizar o contrato como assumindo a forma de uma locação «acoplada de uma promessa unilateral ou de uma proposta irrevogável de venda».

 

         A figura, tal como desenhada, revela, pois, inegáveis afinidades com o contrato de locação financeira, integrando-se sob os aspectos económico-financeiro e funcional no campo dos contratos de crédito ao consumo ou operações similares.

         E como tal o reconhece o sistema jurídico, pois que no Dec.-Lei n.º 133/2009, de 2/6 (Regime Jurídico do Credito ao Consumo), aplicável aos contratos de credito a consumidores (art. 1º-2), assim o prevê, apenas excluindo, entre outros, “os contratos de locação de bens móveis, de consumo duradouro, que não prevejam o direito ou a obrigação de compra da coisa locada, seja no próprio contrato, seja em contrato separado”.

         Acontece, como se vê, que a lei exclui da aplicabilidade e, consequentemente do regime dos contratos de crédito ao consumo, os de locação que não integrem a previsão de compra.

         Dito de outro modo, só os contratos denominados de “ALD” em que a locação se apresente “acoplada” da promessa de compra e/ou venda são havidos como contratos de crédito o que coincide com a essencialidade desse elemento como integrante do contrato.

         Na sua ausência, não tem cabimento falar-se de “contrato de aluguer de longa duração” similar ao de locação financeira.

         Restará a forma ou o nomen juris adoptados e, enquanto amputado de elementos de referência como a compra e venda ou sua promessa, também não mais que o conteúdo da locação/aluguer.

Com efeito, inexistindo no misto contratual o fim indirecto ou a pluralidade contratual em coligação, visando a aquisição, a final, do bem locado, pelo locatário, não sobra mais que um aluguer, por mais longa que seja a sua duração estipulada.

         A previsão de um direito ou obrigação de compra ou de venda ergue-se, assim, como factor essencial para que o contrato deva ter-se por assimilável ao de locação financeira, com as inerentes consequências em sede de admissibilidade do clausulado.

         4. 2. 2. - Ora, não podendo perder-se de vista que nesta acção inibitória está em apreciação um quadro negocial constituído pelo conjunto das cláusulas, denominadas “Condições Gerais” do “Contrato de Aluguer”, constante do formulário-impresso destinado à simples adesão de clientes da Recorrente, e só por esse conteúdo - irrelevando o que quer que eventualmente venha a ser integrado nos futuros contratos singulares -, podendo ser aferido, para efeitos de qualificação e determinação do regime jurídico aplicável, a respectiva espécie contratual, pressuposto (de facto) imprescindível é fazerem parte daquele quadro cláusulas que o tornem similar aos contratos de crédito ao consumo, designadamente ao contrato de locação financeira, ao menos no tocante à previsão de compra da coisa locada, como pretende o regime jurídico desses contratos (DL 133/2009 citado e, antes, DL 359/91 – al. a) do art. 3º).  

         Pois bem: como notado no acórdão sob impugnação, o instrumento escrito em que a Recorrente «cristaliza as cláusulas contratuais com base nas quais se propõe concluir os contratos de aluguer», em ponto algum se encontra estipulação a favor do locatário de um direito ou uma obrigação de compra ou de venda do bem, promessa ou opção com similar finalidade.

        

         Efectivamente, não o reflecte, de modo algum, o quadro factual provado, o qual, de resto, quanto a este ponto, não corresponde, nem poderá corresponder, a mais nem a menos que o formulário-impresso, repositório das cláusulas propostas para adesão e, insiste-se, medida do quadro contratual padronizado ajuizado.

         De nada vale, pois, a vaga e brevíssima referência feita pela Recorrente, no ponto 17 do corpo das suas alegações – alusão que não fez, sequer, passar para as “conclusões”, as quais se limitam a mera reprodução das do recurso de apelação -, a que “essas conclusões não estão em sintonia com a alegação inicial, com efeito tacitamente resulta quer das cláusulas contratuais quer dos factos provados a opção de compra e a promessa de venda a favor do locatário”.

         Com efeito, repete-se, por um lado, o que está em causa é o exacto conteúdo do formulário, onde se não descortina, seja por que via for, semelhante cláusula e, por outro lado, porque é esse conteúdo (sujeito a interpretação) que baliza os factos-declarações negociais a considerar, irreleva, necessariamente, qualquer excrescência factual que dele não conste.

         Numa palavra, o contrato não contém os elementos que a Recorrente lhe atribui e de cuja suposta existência parte para sustentar a tese que “ab initio” vem defendendo.

         Impõe-se, pois, a conclusão, coincidente com a do acórdão recorrido, que vem sendo anunciada, no sentido de se considerar que a regulamentação formada pelas cláusulas contratuais gerais “Condições Gerais” utilizada pela Recorrente nos “Contratos de Aluguer” que propõe configura um simples contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, a que serão aplicáveis as normas do contrato civil de locação, nomeadamente quanto à apreciação de validade das cláusulas cujo conteúdo pressuporia a modificação do contrato de aluguer, para o denominado contrato de “ALD”, por introdução de notas típicas do contrato de locação financeira, no caso, as cláusulas sobre a responsabilidade do locador pelos vícios da coisa (12ª) e distribuição do risco de perda do bem (16ª).

         4. 2. 3. - Nesta conformidade, concluindo-se, como se concluiu, pela inaplicabilidade ao quadro contratual constituído pelo clausulado em causa, de regime diverso do do contrato de locação em geral, desde logo por não se configurar o contrato de crédito denominado de “aluguer de longa duração”, fica prejudicada a apreciação da validade das cláusulas 12ª e 16ª à luz da rejeição das normas imperativas daquele tipo contratual e da pretendida aplicabilidade das normas e princípios que regem o também típico contrato de locação financeira (cfr., no sentido do entendimento proposto sobre os requisitos do “contrato de ALD” e suas consequências no regime jurídico aplicável, os acs. deste Tribunal Supremo de 14/5/2009 - proc. 08P4096; de 20/01/2010 - proc. 3062/05.0TMSNT.L1.S1; de 08/4/2010 - proc. 3501/06.3YVLSB.C1.S1; e, de 01/02/2011 – proc. 884/09.7YXLSB.L1.S1).

         5. - Respondendo, em síntese final, às questões colocadas poderá concluir-se:

               

- O denominado “contrato de aluguer de longa duração (ALD)” configura um contrato atípico, integrado por estipulações dos contraentes no exercício da liberdade e autonomia contratual, que se caracteriza pela revelação de afinidades com o contrato de locação financeira, integrando-se sob os aspectos económico-financeiro e funcional no campo dos contratos de crédito ao consumo ou operações similares.

- Só os contratos denominados de “ALD” em que exista estipulação que preveja o direito ou a obrigação de compra da coisa locada são havidos como contratos de crédito.

        

- Na ausência dessa estipulação, não se está perante “contrato de aluguer de longa duração” similar ao de locação financeira.

- Inexistindo no misto contratual o fim indirecto ou a pluralidade contratual em coligação, visando a aquisição, a final, do bem locado, pelo locatário, não sobra mais que um aluguer, por mais longa que seja a sua duração estipulada.

         6. - Decisão.

         Nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em:

- Negar a revista;

- Confirmar, na parte impugnada, o acórdão recorrido;

- Condenar a Recorrente nas custas (art. 25º-1 do Regulamento das Custas Processuais).

Lisboa, 25 Outubro 2011

  Alves Velho (Relator)

    Paulo Sá

   Garcia Calejo