Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1069/01.6PCOER-B.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: MANUEL BRAZ
Descritores: CUMPRIMENTO DE PENA
HABEAS CORPUS
PENA SUSPENSA
PRAZO
PRESCRIÇÃO DAS PENAS
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 02/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: DEFERIDA A PETIÇÃO DE HABEAS CORPUS
Área Temática:
DIREITO PENAL - IMPUGNAÇÃO DE PRISÃO ILEGAL.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - EXTINÇÃO DA RESPONSABILIDADE PENAL / PRESCRIÇÃO DAS PENAS.
Doutrina:
- Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, p. 337 e seguintes.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 196º, NºS 2 E 3, ALÍNEAS C) E E), 222.º, N.º2, B).
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 122.º, N.º1, AL. D), 126.º, N.º1 A).
Sumário :
I - A suspensão da execução da pena de prisão, na modalidade simples ou com imposição de deveres ou regras de conduta, é uma pena de substituição.
II - Tratando-se de uma pena autónoma, diferente da pena de prisão, não lhe são de aplicar os prazos de prescrição das penas previstos nas als. a) a c). do art. 122.º do CP.
III - A pena de suspensão da execução da prisão inclui-se, por isso, “nos casos restantes”, a que alude a al. d) do art. 122.º do CP; pelo que é de 4 anos o respectivo prazo de prescrição.
IV -Quando a pena de suspensão esteja prescrita na data em que é proferido o despacho que a revoga, a pena de prisão não pode ser executada.
V - O trânsito em julgado do despacho que revogou a suspensão e que determinou o cumprimento da prisão não constitui obstáculo à afirmação da prescrição da pena.

Decisão Texto Integral:

                        Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA, representado por advogado, requereu a providência de habeas corpus, nos termos que se transcrevem:

«I. Por decisão transitada em julgado no dia 05 de Junho de 2003 o arguido foi condenado na pena única e global de 2 anos e 8 meses de prisão, cuja s execução foi suspensa pelo período de dois anos.

II. Contudo, a referida suspensão tinha como condição a imposição de pagamento ao ofendido Caetano, no prazo de 18 meses, da quantia de dois mil e duzentos e quarenta e quatro euros e cinquenta e nove cêntimos.

III. Por douto despacho, que transitou em julgado em 28 de Junho de 2012, foi revogada a suspensão da referida pena. 

IV. Salvo o devido respeito, deve-se dizer que a aplicação da pena efectiva de prisão, resultante da revogação da suspensão concedida, mostra-se como inadmissível. Senão vejamos,

V. Dispõe o artigo 122°, n° 1, al. c), do Código Penal que a pena por crime cuja aplicação em concreto seja igual ou superior a 2 anos, prescreve no prazo de dez anos.

VI. Ora, no caso concreto foi aplicada ao arguido a pena de 2 anos e 6 meses de prisão, pelo que a mesma teria que lhe ser aplicada nos 10 anos seguintes, sob pena de prescrição, face ao disposto no artigo 122° do Código Processo Penal.

VII. Isto porque é de extrema importância que o instituto de prescrição mantenha um intocável coesão que inspire um sentimento de Segurança Jurídica, não se deixando atingir por formalismos e expedientes contrários às garantias constitucionais do arguido.

VIII. O habeas corpus é uma providência excepcional que visa garantir a liberdade individual contra os abusos de poder consubstanciados em situações de detenção ou prisão ilegal, com suporte no artigo 31° da CRP, que o institui como autêntica garantia constitucional de tutelada liberdade.

lX. No caso em apreço, conhece aplicabilidade o fundamento da alínea b) – prisão por facto pelo qual a lei a não permite.

X. Decorridos que sejam os períodos das diversas alíneas do n° 1 deste artigo e do n° 3 do artigo 126°, sem que tenha sido executada a pena, não é razoável o prolongamento do constrangimento ao criminoso por um crime cuja repercussão social vai diminuindo pelo esquecimento em que o envolve o tempo decorrido. E mais: “a prescrição ocorre pelo simples lapso de tempo“ –Código Penal Anotado – Manuel Leal Henriques e Manuel Simas Santos.

XI. Quanto ao despacho que revogou a suspensão da execução da pena, que transitou em julgado no dia no dia 26-06-2012, o mesmo nunca foi notificado ao aqui arguido. E o arguido nunca pôde pronunciar-se sobre o mesmo, quer recorrendo ou não.

XII. “O despacho de revogação deverá ser notificado pessoalmente ao arguido para que dele possa, querendo recorrer ou, então, com ele se conformar”. “Por isso, entende-se que o despacho que revoga a suspensão da execução da pena é também, nesse sentido, um despacho que põe fim ao processo e é equiparado à sentença, para o efeito do disposto no n° 2 do artigo 449° do CPP.” (Acórdão n° 73!04.7PTBRG-D.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 07 de Maio de 2009-STJ-id576290744-vlex).

XIII. Assim sendo, não pode deixar de se reconhecer fundamento à presente providência de habeas corpus.

XIV. Sendo ainda de realçar que, actualmente, o arguido se afastou definitivamente da delinquência, estando perfeitamente inserido, social e familiarmente, e necessita alimentar a sua família, designadamente os seus três filhos menores e que muito dependem de si.

XV. Pelo que a condenação que agora se pretende ser-lhe aplicável sempre lhe traria consequências negativas indesejáveis, nomeadamente, decorrentes da convivência com outros reclusos.

Nestes termos e nos mais de direito que v. Exa mui doutamente suprirá, deverá a presente Petição HABEAS CORPUS ser julgado procedente, por provada, e em consequência determinar-se a imediata restituição do Arguido à liberdade, uma vez que este se encontra recluso em cumprimento de pena prescrita, ou de pena cuja despacho de revogação não lhe foi notificada pessoalmente».  

O juiz do processo, ao abrigo do disposto no artº 223º, nº 1, do CPP, prestou a seguinte informação:

«1. Por Acórdão datado de 09-05-2003, de fls. 268-276v., AA foi condenado nos presentes autos na pena única de dois anos e oito meses de prisão, suspensa na sua execução, na condição do pagamento ao ofendido Caetano, no prazo de 18 meses, da quantia de € 2.244,59.

2. Por despacho proferido em 23-05-2012, de fls. 582-562v., foi revogada a suspensão da pena de prisão.

3. Foram remetidos ofícios para notificação do condenado para a morada por este indicada no TIR – cf. fls. 27, 631-632, 634, 639 e 643, e 642 e 644 – e para o seu Ilustre Defensor – cf. fls. 563.

4. O condenado foi julgado regularmente notificado – cf. fls. 645 e 646.

5. Foi emitido mandado para cumprimento da pena de prisão em 05-12-2013 e o condenado está preso à ordem dos autos desde 21-01-2014 – cf. fls. 682-682v.

Termos em que mantenho a prisão de AA, sendo certo que os Meritíssimos Juízes Conselheiros do Colendo Supremo Tribunal de Justiça, reunidos em secção criminal, melhor deliberarão».

Realizada a audiência, cumpre decidir.

Fundamentação:

De facto:

            1. Por acórdão de 09/05/2003, transitado em julgado em 05/06/2003, foi o requerente condenado, pela prática de dois crimes de roubo p. e p. pelos artº 210º, nº 1, do CP, nas penas parcelares de 1 ano e 2 anos de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 anos e 8 meses de prisão, com a execução suspensa pelo período de 2 anos, sob a condição de pagar a um dos ofendidos, no prazo de 18 meses, a quantia de € 2244,59.

            2. Por despacho de 23/05/2012, foi revogada a suspensão da execução da pena de prisão e determinado o cumprimento desta.

            3. Esse despacho, depois de o ter sido ao defensor, foi notificado ao próprio condenado, por via postal simples enviada, em 18/11/2013, para a morada indicada no termo de identidade e residência, sem que tenha sido objecto de recurso.

            4. O condenado encontra-se preso, em cumprimento daquela pena de prisão, desde 21/01/2014.

De direito:

Nos termos do nº 2 do artº 222º do Código de Processo Penal, o pedido de habeas corpus, relativamente a pessoa presa, tem de «fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de: a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial».

A requerente invoca a situação da alínea b), alegando, em primeira linha, que a pena se encontra prescrita.

Se bem se compreende a sua argumentação, a pena estaria prescrita, porque, sendo de 10 anos o respectivo prazo de prescrição, nos termos do artº 122º, nº 1, alínea c), do CP, decorreu esse período sem que tivesse sido executada.

Vejamos.

Ao requerente foi aplicada a pena de 2 anos e 8 meses de prisão, com a execução suspensa pelo período de 2 anos, com imposição de um dever, por acórdão transitado em julgado no dia 05/06/2003.

A suspensão da execução da pena de prisão, na modalidade simples ou com a imposição de deveres ou regras de conduta, é uma pena de substituição, uma pena autónoma, portanto, como ensina Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, páginas 337 e seguintes).

Tendo sido essa a pena aplicada em substituição da pena de 2 anos e 8 meses de prisão, é ela a pena a considerar para efeito de execução; é a pena exequível.

O artº 122º do CP estabelece, no nº 1, os prazos de prescrição das penas. As alíneas a), b) e c) referem-se às penas de prisão de duração igual ou superior a 2 anos. Os restantes casos caem no âmbito de previsão da alínea d).

A pena de suspensão da execução da prisão não é uma pena de prisão, não se lhe aplicando por isso as disposições das alíneas a), b) e c). Inclui-se por essa razão «nos casos restantes», sendo-lhe aplicável a disposição da alínea d), que estabelece como prazo de prescrição 4 anos.

Nos termos do nº 2 do mesmo preceito, «o prazo de prescrição começa a correr no dia em que transitar em julgado a decisão que tiver aplicado a pena».

A decisão que aplicou a pena suspensa foi o acórdão de 09/05/2003, que transitou em julgado em 05/06/2003.

O prazo de prescrição iniciou-se, pois, nessa data.

Mas foi logo, também nessa data, interrompido, nos termos do artº 126º, nº 1, alínea a) [«A prescrição da pena (…) interrompe-se: Com a sua execução»], visto que, iniciando-se com aquele trânsito o período de suspensão da pena, deve considerar-se esse momento como aquele em que começa a execução da pena suspensa.

A pena de suspensão esteve em execução durante 2 anos, período fixado para a sua duração, pelo que a prescrição se interrompeu entre 05/06/2003 e 05/06/2005.

Não ocorreu causa de suspensão da prescrição.

Nem outras causas de interrupção.

Descontando o período de interrupção, o prazo de prescrição completou-se em 05/06/2009.

A pena de suspensão estava, pois, prescrita na data em que foi proferido o despacho que a revogou e determinou o cumprimento da prisão.

Esse despacho transitou em julgado, visto que foi notificado ao defensor e, como prevê no artº 196º, nºs 2 e 3, alíneas c) e e), do CPP, por via postal simples para a morada indicada no termo de identidade e residência, também ao próprio condenado, não tendo dele sido interposto recurso.

Mas não constitui obstáculo à afirmação da prescrição. Por um lado, nada decidiu, mesmo implicitamente, acerca da prescrição. E, por outro, labora sobre uma realidade que já não existia, afirmando a revogação da suspensão e o ressurgimento da pena de prisão, quando a pena já não subsistia, em função da prescrição, que, por força da lei, operou no momento em que se completou o respectivo prazo. É um despacho já sem objecto e que por essa razão não pode produzir o efeito que afirma.

Tendo, assim, ocorrido a prescrição da pena, a prisão não está pendente, não podendo ser executada. Não havendo pena de prisão exequível, a situação de prisão do requerente é ilegal, fundando-se em facto pelo qual a lei a não permite. Está por isso preenchido o fundamento de habeas corpus previsto na alínea b) do nº 2 do artº 222º do CPP.

Decisão:

Em face do exposto, os juízes do Supremo Tribunal de Justiça, deferindo o pedido de habeas corpus, declaram ilegal a prisão do requerente e ordenam a sua libertação imediata.

Não há lugar ao pagamento de custas.

Lisboa,   13 de Fevereiro de 2014



Manuel Braz (relator)
Isabel São Marcos
Santos Carvalho