Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P3406
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RAUL BORGES
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CRIME EXAURIDO
CRIMES DE PERIGO
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
FACTOS GENÉRICOS
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
MATÉRIA DE DIREITO
DISTRIBUIÇÃO POR GRANDE NÚMERO DE PESSOAS
AGRAVANTE
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO ESPECIFICADA
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
CONSTITUCIONALIDADE
REJEIÇÃO DE RECURSO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Nº do Documento: SJ200712050034063
Data do Acordão: 12/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :

I - Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando esta se mostra exígua para fundamentar a solução de direito encontrada, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.
II - Ou, como se diz no acórdão deste STJ de 25-03-1998, BMJ 475.º/502, quando, após o julgamento, os factos colhidos não consentem, quer na sua objectividade, quer na sua subjectividade, dar o ilícito como provado; ou ainda, na formulação do acórdão do mesmo Tribunal de 20-12-2006, no Proc. 3379/06 - 3.ª, o vício consiste numa carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis e que impede que sobre a matéria de facto seja proferida uma decisão de direito segura.
III - Se o recorrente alega estar em causa uma imputação genérica de venda de estupefacientes, por ausência de individualização dos actos integrantes dessa actividade, questionando, por isso, a integração de qualificativa do crime agravado de tráfico de estupefacientes, não estamos perante a invocação de um vício decisório, mas sim de um erro de interpretação e aplicação da lei.
IV - Na verdade, o que o recorrente classifica como insuficiência da decisão de facto para a decisão de direito mais não é do que a expressão de uma divergência, que se reconduz afinal à discordância em relação à qualificação jurídica que mereceram os factos provados, o que configura não uma discordância em relação à fixação da matéria de facto provada, mas sim perante a matéria de direito (enquadramento jurídico-criminal).
V - Não se está, pois, face a qualquer insuficiência ou lacuna do acervo factual recolhido, mas antes perante uma excrescência, correspondente a ilação retirada da quantidade de droga apreendida, que se revela perfeitamente anódina no que concerne à agravação, em nada relevando para a caracterização da qualificativa em causa, pois que, quanto a esta, falece por inteiro substrato factual que a suporte.
VI - Com a reforma do processo penal, introduzida pela Lei 59/98, de 25-08, passou a ser possível impugnar a matéria de facto de duas formas: a já existente revista ampliada, através da invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, com a possibilidade de sindicar as anomalias emergentes do texto de decisão, e uma outra mais ampla e abrangente, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo a observância de certas formalidades.
VII - Estes condicionamentos ou imposições no caso de recurso de facto (n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP) constituem mera regulamentação, disciplina e adaptação aos objectivos do recurso, já que a Relação não fará um segundo julgamento de facto, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzida, mas tão-só o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido referidos no recurso e das provas, indicadas pelo recorrente, que imponham (e não apenas sugiram ou permitam outra decisão) decisão diversa; é uma reapreciação restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às razões de discordância.
VIII - Esse imprescindível e indeclinável contributo do recorrente para a pedida reponderação da matéria de facto corresponde a um dever de colaboração por parte do recorrente e sua responsabilização na demarcação da vinculação temática deste segmento da impugnação, constituindo tais formalidades factores ou meios de segurança, quer para as partes quer para o tribunal.
IX - O STJ tem-se pronunciado no sentido de que o não cumprimento do ónus de impugnação da matéria de facto não justifica o convite ao aperfeiçoamento, pois só se pode corrigir o que está mal cumprido e não o que se tem por incumprido – cf., entre outros, Acs. de 04-10-2006, Proc. n.º 812/06 - 3.ª, de 04-01-2007, Proc. n.º 4093/06 - 3.ª, e de 10-01-2007, Proc. n.º 3518/06 - 3.ª.
X - O TC considera que tal solução não viola o direito ao recurso, como decidiu no Ac. n.º 259/02, de 18-06-2002 (DR II Série, de 13-12-2002), posição retomada no Ac. n.º 140/04, de 10-03-2004 (DR II Série, de 17-04-2004), aí se afirmando: «(…) o legislador processual pode definir os requisitos adjectivos para o exercício do direito ao recurso, incluindo o cumprimento de certos ónus ou formalidades que não sejam desproporcionados e visem uma finalidade processualmente adequada, sem que tal viole o direito ao recurso constitucionalmente consagrado. Ora, é manifestamente este o caso das exigências constantes do artigo 412.º, n.ºs 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal, cujo cumprimento (incluindo a referência aos suportes técnicos, com indicação da cassete em causa e da localização nesta da gravação das provas em questão) não é desproporcionado e antes serve uma finalidade de ordenamento processual claramente justificada. (…). Não pode, pois, concluir-se que os princípios constitucionais do acesso ao direito e do direito ao recurso em matéria penal impliquem que ao recorrente tivesse sido facultada a oportunidade para aperfeiçoar, em termos substanciais, a motivação de recurso deduzido quanto à matéria de facto, quando este não especificou as provas que impunham decisão diversa da recorrida, fazendo-o por referência aos suportes técnicos (…). Como se disse no Acórdão n.º 259/2002 (supra referido), tal “equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso”. Não pode, pois, considerar-se inconstitucional a norma em causa…».
XI - Assim, se o recorrente incumpriu o ónus de impugnação especificada, limitando-se a manifestar a sua divergência com a fixação dos factos provados, invocando a existência do erro notório na apreciação da prova e a violação do princípio in dubio pro reo, não pode o tribunal de recurso analisar a pretensão e vir a final a modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto.
XII - É jurisprudência corrente do Supremo Tribunal a de que é totalmente irrelevante a pretensão do recorrente de ver discutida a prova feita no julgamento, solicitando a este Tribunal que modifique a matéria de facto, aceitando como realidade a factualidade que o interessado entende corresponder à que resultou do julgamento.
XIII - A impossibilidade deste STJ sindicar a prova produzida conduz a que seja manifesta a improcedência do recurso neste segmento – que, por isso, tem um objecto impossível –, devendo ser rejeitado, nos termos do art. 420.º, n.º 1, do CPP, preceito que nesta perspectiva não padece de inconstitucionalidade – cf. Acs. do TC n.ºs 352/98, de 12-05-1998, in BMJ 477.º/18, e 165/99, de 10-03-1999, in DR II Série, de 28-02-2000, e BMJ 485.º/93.
XIV - A razão de ser da agravante p. e p. no art. 24.º, al. b), do DL 15/93, de 22/01, está na dispersão, no abastecimento de grande amplitude, na difusão do produto por grande número de pessoas, aumentando as potencialidades de danosidade em termos de saúde pública. Mas o que está em causa na incriminação qualificada é uma efectiva distribuição, já realizada, e não um quadro meramente hipotético, em que o produto poderá ser objecto de distribuição por vários interessados – cf. Acs. do STJ de 15-03-2006, Proc. n.º 4421/05 - 3.ª, e de 12-04-2007, Proc. n.º 4680/07.
XV - Assim, num caso, como o dos autos, em que ressalta da matéria de facto assente que havia um destino projectado para o produto estupefaciente, mas que não passou disso, pois não chegou a concretizar-se, uma vez que a droga não foi distribuída, por força da apreensão da mercadoria ainda no aeroporto, não se pode ter por verificada a qualificativa em questão.
XVI - Como resulta da simples leitura do art. 24.º do DL 15/93, de 22-01, a quantidade de produto não é por si só qualificativa do tráfico de estupefacientes, não releva em nenhuma das enunciações das alíneas daquele normativo, sendo prestável para em etapa subsequente vir eventualmente a ser distribuída em pequenas doses por elevado número de pessoas e para se alcançar avultados proveitos económicos, o que poderá/deverá ser sopesado em sede de ilicitude (de elevado grau em função da quantidade) e da determinação concreta da medida da pena.
XVII - A previsão legal do art. 21.º do DL 15/93, de 22-01, contem a descrição da respectiva factualidade típica, de maneira alargada, contendo o tipo fundamental, matricial. Trata-se de um tipo plural, com actividade típica ampla e diversificada, abrangendo desde a fase inicial do cultivo, passando pelas de produção, fabrico, extracção ou preparação dos produtos ou substâncias, até à de lançamento no mercado consumidor, percorrendo outros elos do circuito, mas em que todos os actos têm entre si um denominador comum: a sua aptidão para colocar em perigo os bens e os interesses protegidos com a incriminação.
XVIII - Não importa ao preenchimento deste tipo legal a intenção específica do agente, os seus motivos ou fins a que se propõe; o conhecimento do fim apenas pode interessar para efeitos de determinação da ilicitude do facto.
XIX - O tráfico de estupefacientes tem sido englobado na categoria do «crime exaurido», «crime de empreendimento» ou «crime excutido», que se vem caracterizando como um ilícito penal que fica perfeito com o preenchimento de um único acto conducente ao resultado previsto no tipo. A consumação verifica-se com a comissão de um só acto de execução, ainda que sem se chegar à realização completa e integral do tipo legal pretendido pelo agente.
XX - O crime de tráfico de estupefacientes enquadra-se na categoria dos crimes de perigo abstracto: aqueles que não pressupõem nem o dano, nem o perigo de um concreto bem jurídico protegido pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para uma ou mais espécies de bens jurídicos protegidos, abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para causar um perigo a um desses bens jurídicos – cf., entre os mais recentes, Acs. do STJ de 04-10-2006, Proc. n.º 2549/06 - 3.ª, de 11-10-2006, Proc. n.º 3040/06 - 3.ª, de 12-04-2007, Proc. n.º 1917/06 - 5.ª, e de 19-04-2007, Proc. n.º 449/07 - 5.ª.
XXI - Noutra perspectiva, trata-se de um crime pluriofensivo: o normativo incriminador do tráfico de estupefacientes tutela uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal – a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores – visando ainda a protecção da vida em sociedade, o bem-estar desta, e a saúde da comunidade (na medida em que o tráfico dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos), embora todos eles se possam reconduzir a um bem geral – a saúde pública –, pressupondo apenas a perigosidade da acção para tais bens, não se exigindo a verificação concreta desse perigo – cf. Acs. do TC n.ºs 426/91, de 06-11-1991, DR II Série, n.º 78, de 02-04-1992, e BMJ 411.º/56 e 441/94, de 07-06-1994, DR II Série, n.º 249, de 27-10-1994.
XXII - Resultando da matéria de facto provada que o recorrente F, após prévio acordo com o recorrente C, procedeu, a partir de S. Paulo, ao transporte de cocaína, que se destinava a ser entregue, já em Portugal, ao dono do negócio, o co-arguido C, sendo o transporte uma das muitas condutas previstas no art. 21.º em que o legislador presumiu o perigo que a norma pretende afastar, ficou consumado o crime, pouco importando as motivações dos arguidos.
XXIII - Tem-se por adequada a aplicação de uma pena de 5 anos e 2 meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º do DL 15/93, de 22-01, se o arguido F, de nacionalidade brasileira, sem ligações a Portugal, no âmbito de um transporte como correio de droga, a troco de 2000 reais brasileiros, desembarcou no Aeroporto de Lisboa, proveniente de S. Paulo, Brasil, transportando, dissimuladas num parapente, 4 embalagens contendo um total, líquido, de 4012 g de cocaína (cloridrato).
XXIV - Já no que respeita à pena concreta do arguido C, enquanto dono do negócio, mostra-se adequada a sua fixação em 7 anos e 8 meses de prisão.
Decisão Texto Integral:

No âmbito do processo comum colectivo nº 28/04.1ADLSB da 1ª secção da 2ª Vara Criminal de Lisboa, por acórdão de 14 de Dezembro de 2004, de fls. 435 a 453, foram submetidos a julgamento os arguidos:
AA, solteiro, desempregado, nascido a 7-03-1981, em Ponta Grossa, Paraná, Brasil, filho de BB e de CC, residente antes dos factos em Itapena, Santa Catarina, Brasil, preso preventivamente à ordem destes autos desde 05-04-2004 até 15 de Setembro de 2007, quando foi solto na sequência da entrada em vigor do novo CPP e actualmente residente no Caminho da Achada, nº .., 9000-208, Funchal, Ilha da Madeira;
DD, divorciado, comissionista, nascido a 11-07-1972, em Lisboa, filho de EE e de FF, residente quando em liberdade, na Rua Av. Beiramar, 1456, apartamento 402, em Itapena, Santa Catarina, Brasil, preso preventivamente à ordem destes autos desde 06-04-2004.
Pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. p. pelos artigos 21º, nº 1 e 24º, alínea b) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-B anexa, foram os arguidos condenados, respectivamente, nas penas de 6 e de 8 anos de prisão e o arguido AA na pena acessória de expulsão do território nacional, por dez anos.

Recursos anteriores
1 - Inconformados, recorreram os arguidos para o Tribunal da Relação de Lisboa, sendo o arguido AA, de fls. 468 a 472, entendendo dever ser condenado por tráfico simples e numa pena especialmente atenuada e o arguido DD, de fls.497 a 516, sendo o recurso motivado na insuficiência para a decisão da matéria de facto dada por provada e erro notório na apreciação da prova.
O MP respondeu a estes recursos, respectivamente a fls. 660/1 e a fls. 657/9.
Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27-04-2005, foram rejeitados por manifesta improcedência dois recursos intercalares interpostos pelo arguido DD, e no que toca ao acórdão condenatório, foi o mesmo anulado por falta de exame crítico da prova produzida em audiência, determinando-se a sua reelaboração pelo mesmo Tribunal com sanação da nulidade.

2 - Deste acórdão da Relação de Lisboa recorrem os dois arguidos para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo o AA com a motivação de fls. 726 a 731, repetindo as anteriores conclusões, quanto a qualificação e redução de pena, mas do mesmo passo pedindo a declaração de nulidade, quer do acórdão condenatório, quer o acórdão do Tribunal da Relação e o arguido DD, de fls. 734 a 760, pretendendo reapreciação dos recursos intercalares e da matéria de facto, pedindo a sua absolvição ou o reenvio para a Relação a fim de se pronunciar sobre a restante parte do recurso.
Por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-01-2006, por inadmissíveis, nos termos do artigo 400º, nº 1, alínea c) do CPP, foram os recursos rejeitados – fls. 802 a 806.
Na primeira instância é reelaborada a decisão, em obediência ao acórdão da Relação de Lisboa, de 27-04-2005, o que acontece com o acórdão de 14-03-2006 – fls. 827 a 846.
3 - Os arguidos interpõem novo recurso, dirigindo-o o arguido AA ao Supremo Tribunal de Justiça, apresentando a motivação de fls.857 a 861, pugnando pela convolação do crime agravado de tráfico para crime simples, com a fixação de pena próxima do limite legal.
Por seu turno, o arguido DD interpõe o recurso para a Relação por estar em causa matéria de facto e de direito – fls.889 a 910.
Os recursos foram admitidos por despacho de fls.914 e mandados remeter ao Tribunal da Relação.
O MP respondeu a fls. 918/9 e 920/1.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 19-07-2006, declarou nulo o acórdão da 2ª Vara Criminal de Lisboa de 14-03-2006, por omissão do exame crítico das provas - fls. 948 a 965.
Baixando de novo o processo à 2ª Vara Criminal, o mesmo Colectivo reformula a decisão, o que faz com o acórdão de 13-09-2006 – fls. 997 a 1019.

4 - Os arguidos impugnam de novo este acórdão, dirigindo o recurso, em ambos os casos, ao Tribunal da Relação de Lisboa.
O arguido DD, apresentando a motivação de fls. 1077 a 1101, versando matéria de facto e de direito, repetindo a motivação e conclusões do anterior.
O arguido AA, apresentando a motivação de fls.1111 a 1114, repetindo igualmente a anterior posição e pedido.

DECISÃO RECORRIDA

O Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 18 de Junho de 2007, de fls. 1197 a 1241, negou provimento aos recursos e confirmou a decisão recorrida.

5 - De novo inconformados, os arguidos interpõem recurso, agora para o Supremo Tribunal.

O arguido AA apresentou a motivação de fls 1259 a 1265, que remata com as seguintes conclusões:

1ª- O recorrente foi condenado, nos presentes autos, como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelos artigos, conjugados, 21°, n° 1 e 24º, al. b), ambos do DL 15/93, de 22/01, na pena de 6 (seis) anos de prisão.
2ª - Por isto, interpôs recurso ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, da matéria de facto, dada como provada, na parte em que o enquadramento jurídico realizado lhe considerou como autor de um crime de tráfico de estupefacientes agravado.
3ª - Indicou as provas testemunhais produzidas, as quais, em nenhum momento referiram que o estupefaciente apreendido seria destinado a elevado número de consumidores, bem como invocou que em nenhum dos pontos da matéria de facto, dada como provada, é indicado quem ou quais seriam os consumidores finais do produto estupefaciente e como ou por qual modo o ora recorrente lhes iria realizar a respectiva distribuição.
4ª - Pelo que, requereu provimento ao recurso para que tosse absolvido do crime de tráfico ilícito de estupefacientes na forma agravada e que fosse condenado então como autor de um crime de tráfico simples, nos termos do artigo 21°, do DL 15/93, de 22/01, numa pena de prisão próxima do limite mínimo legal.
5º - Por sua vez, o Tribunal da Relação de Lisboa, ao decidir tal questão, salvo o devido respeito, equivocou-se e não foi capaz de extrair da matéria de facto dada como provada, as indicações e actos concretos de eventual distribuição para grande número de pessoas, na conduta individual perpetrada pelo recorrente.
6º - Pelo que, negou provimento ao recurso, nesta parte, fundamentando o que «Ao contrário do que diz o recorrente no ponto e das conclusões, foi dado como provado que ... o arguido AA ... trazendo consigo... um produto em pó, com o peso total, líquido de 4.012,0 g, e em cuja composição figura substância activa denominada cocaína (cloridato) ... destinado a ser distribuído, afinal, por um elevado número de consumidores ... ».
7ª - Ocorre que a impugnação de facto realizada pelo recorrente no ponto 2 de suas conclusões de recurso foi justamente a AUSÊNCIA COMPLETA E ABSOLUTA da indicação de actos concretos de distribuição para um elevado número de pessoas.
8º - Assim, o ponto da matéria de facto indicado pelo douto acórdão recorrido refere, GENERICAMENTE, a expressão “... destinado a ser distribuído, afinal, por um elevado número de consumidores ...” .
9ª - Esta fundamentação configura imputação genérica de venda e distribuição de produtos estupefacientes, sem individualização dos actos integrantes dessa actividade, não podendo relevar par ao efeito do enquadramento jurídico-penal dos factos, já que inviabiliza o direito de defesa do arguido consagrado no art.º 32°, da Constituição da República Portuguesa (Vide o douto acórdão proferido por este Venerando Supremo tribunal de Justiça, no âmbito do processo 3644/06, desta mesma 3ª Secção. de lavra do ilustre Conselheiro Silva Flor, como Relator).
10º - Uma vez que não foram imputados ao arguido actos concretos de venda e distribuição, designadamente datas, compradores e produtos efectivamente vendidos e distribuídos, ou seja, o arguido, nesta parte, esteve impedido de organizar a sua defesa, contraditando as provas apresentadas e oferecendo provas de que não cometeu actos de venda ou distribuição de produto estupefaciente.
11ª - Pelo que, a matéria de facto dada como provada, para fins de se configurar o crime de tráfico ilícito de estupefacientes, agravado, na vertente do artº 24°, al. b), do DL 15/93, de 22/01, por ser genérica e sem qualquer individualização ou indicação de actos concretos de venda ou distribuição, implica em insuficiência da matéria de facto, nesta parte, ou seja, no vício consubstanciado pelo disposto no artigo 410º, n° 2, al. a), do Código de Processo Penal.
12ª - Como consequência o douto acórdão recorrido violou o disposto pelo artigo 32°, da CRP, bem como o artigo 6° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na vertente de não proporcionar o efectivo contraditório e processo equitativo, observando-se que, da prova concretamente produzida, a conduta individual do arguido é típica do "correio de droga", ou seja, punível como um crime de tráfico simples.
13ª - Devendo ser provido o presente recurso para que, uma vez reconhecido e declarado o vício consubstanciado pelo artigo 410°, n°2, al. a), do CPP, na vertente da insuficiência da matéria de facto dada como provada seja, nos termos dos artigos 426° e 426.º-A, do mesmo diploma legal, ordenado o reenvio do processo para novo julgamento, parcial, restrito à indicação ou não dos factos concretos de venda e distribuição de estupefacientes para elevado número de pessoas, com as consequências legais de tal pronunciamento para fins de culpa ou absolvição, nesta parte.
14ª - Caso assim não se entenda, verifica-se que o douto acórdão recorrido, ao manter condenação do arguido numa pena de prisão de 6 (seis) anos, violou o disposto pelo art.º 71º, do Código Penal, demonstrando-se ser desproporcional, a referida pena em concreto.
15ª - Com efeito, o produto estupefaciente transportado pelo recorrente não foi, concretamente, distribuído a quem quer que seja, além do que, o mesmo é primário e só aceitou realizar tal transporte por dificuldades económicas.
16ª - Pelo que o douto acórdão ora recorrido violou o art. 71° do CP. ao manter a pena em concreto em 6 (seis) anos de prisão.
17ª - Desta forma, deverá ser dado provimento ao presente recurso, em carácter subsidiário, para que o recorrente seja condenado numa pena de prisão inferior aos 6 (seis) de prisão fixados pelo Tribunal a quo.
Pede seja dado provimento ao recurso para que:
A) - seja reconhecido e declarado o vício consubstanciado pelo artigo 410.°, n°2, al. a), do CPP, ou seja, na vertente da insuficiência da matéria de facto, nos termos supra referenciados, ordenando-se, ao abrigo do disposto pelos artigos 426° e 426.º-A, do mesmo diploma legal, o reenvio do processo para novo julgamento parcial, restrito à indicação ou não dos factos concretos de venda e distribuição de estupefacientes para elevado número de pessoas, por parte do recorrente, com as consequências legais de tal pronunciamento para fins de condenação ou absolvição da conduta enquadrada pelo artigo 24.°, al. b) do DL 15/93, de 22/01;
B) - em carácter subsidiário, seja revogado o douto acórdão recorrido, condenando-se o recorrente numa pena de prisão inferior aos 6 (seis) anos anteriormente aplicados.

O arguido DD apresentou a motivação de fls. 1268 a 1279, extraindo as seguintes conclusões:

1- No entender do recorrente, face aos considerandos constantes da douta decisão da 1ª Instância, nomeadamente, para explicitar a formação de convicção dos julgadores, resulta que não seria possível, a posteriori considerar um determinado facto provado e que, a ser assim, existe contradição entre a prova produzida e a matéria de facto dada por provada.
2- Ao indicar que relativamente aos considerandos não há fundamento legal para recorrer, o douto acórdão revela que não foi reexaminada a prova factual, tal como o recorrente indicou, nos termos definidos pelo artº. 412º, nº 3, alínea b) e nº 4 do C.P.P.
3- Pelo que, verifica-se a omissão da pronúncia pelo Venerando Tribunal da Relação, no que concerne a um facto sobre o qual se deveria pronunciar – a impugnação da matéria de facto e que é prejudicial para o recorrente, porquanto a instituição própria para conhecer de matéria de facto é aquele Tribunal, sendo que os poderes cognitivos do Supremo Tribunal de Justiça, em termos fácticos são, não pode o recorrente deixar de lamentar, diminutos.
4- Verificando-se a omissão de pronúncia nos termos do artº. 379º/1/c) do C.P.P., padece o douto acórdão de nulidade, devendo ser ordenada a baixa do processo para sua reforma nos termos do disposto no artº. 731º/2 C.P.C.
5- O douto acórdão posto em crise é passível de ser enquadrado nos casos excepcionais em que o Supremo Tribunal de Justiça conhece da matéria de facto, porquanto violou o disposto no art.º 410º do C.P.P., resultando de uma simples leitura da douta decisão contradição entre a fundamentação e a decisão.
6- quando se lê no final da página 16 do douto acórdão posto em crise que, examinada a “decisão recorrida logo se vê que não contém os vícios imputados (...) consignando clara e taxativamente a matéria fáctica dada como provada (...) “ não pode o recorrente aceitar tal entendimento.
Conforme resulta de um excerto do douto acórdão que o recorrente supra transcreveu, o mesmo foi detido sem ter na sua posse qualquer produto estupefaciente e sem ter solicitado o mesmo.
7- Conforme tem sido frequentemente entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça, falta um elemento fáctico final que suporte a presunção de que o recorrente era o destinatário do produto estupefaciente. No entender do recorrente, esse elemento final seria o próprio, por exemplo, questionar ou pedir ao arguido AA, a entrega do produto estupefaciente, o que não sucedeu.
8- Entende o recorrente terem sido violados os limites do poder discricionário da apreciação da prova e, como tal, deve essa violação ser apreciada pelo Tribunal ad quem. O Tribunal a quo não analisou a convicção formada pelo Tribunal de primeira instância, relativamente a esse aspecto factual. Pois, não explica como é que não tendo o recorrente sido detido na posse, ou não tendo solicitado o produto estupefaciente como se pode concluir que ele era o destinatário daquele. Não pode deixar de dizer-se que é uma mera convicção do julgador de primeira instância.
9 - Viola a douta decisão o entendimento uniforme da doutrina dominante: a livre apreciação da prova não pode confundir-se com mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova.
10 - na falta de prova produzida em audiência de julgamento, o Tribunal de primeira instância socorreu-se dos indícios apurados no inquérito.
A maioria dos factos que são considerados provados no douto acórdão são-no com base nos indícios apurados em sede de inquérito. Logo, estas não podem ser provas atendíveis para formar a convicção do julgador relativamente à conduta dos arguidos, porquanto não foram produzidas em julgamento.
11-Além do que, os excertos anteriormente transcritos violam igualmente o princípio in dubio pro reo, porquanto, resulta da douta decisão que, na dúvida, o julgador decidiu contra o recorrente.
12- O recorrente é primário e no entender plasmado no douto acórdão posto em crise, o recorrente praticou um crime de tráfico de estupefacientes, num acto isolado, dado que não existe qualquer indício ou facto provado em sentido contrário.
13- Salvo melhor opinião, a ser aplicada pena de prisão efectiva ao arguido, sempre será pelo mínimo legal, o que aliás tem sido apanágio nos tribunais portugueses relativamente aos arguidos primários. Pois, o fim da pena não é o castigo mas sim alertar o arguido que está a afastar-se da sociedade.
14 - O arguido reúne as condições necessárias para uma auto reintegração social, tem o apoio dos pais, trabalha, está inserido socialmente.
Sendo a finalidade das penas a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não tendo o recorrente sido alguma vez condenado pela prática de um crime, não se alcança que a finalidade das penas seja cumprida com a aplicação da pena de prisão efectiva por 8 anos ao recorrente.
15 - Não constam do douto acórdão posto em crise, os fundamentos expressos para a aplicação daquela medida da pena em concreto.
Atente-se que o recorrente não possuía o material usual nos traficantes: o material de corte e a balança. Foi revistada a casa dos pais do recorrente, onde o mesmo permaneceu toda a tarde, não tendo sido encontrado aquele ou qualquer outro material.
16 - Estando a droga apreendida em bruto, há que admitir a possibilidade do recorrente ser um mero “correio de droga”, como vulgarmente se designam as pessoas que transportam aquele produto.
17 - Não se alcança igualmente, face ao exposto nos autos, a diferenciação das penas aplicadas aos arguidos.
18 - Relativamente ao princípio da livre apreciação da prova, embora a prova possa ser apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, como dispõe o princípio da livre apreciação da prova, a verdade é que este princípio não é absoluto, comporta algumas excepções.
19 - Conforme disposto no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1165/96 de 19 de Novembro: «A regra da livre apreciação da prova em processo penal não se confunde com apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imitável. O julgador, ao apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a verdade material, deve observância a regras de experiência comum utilizando como método de avaliação a aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e de controlo», bem como critérios de legalidade.
20 - É entendimento uniforme da doutrina dominante que, a livre apreciação da prova não pode confundir-se com mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova.
21 - Com o devido respeito, não pode, no caso ora em apreço, invocar-se o recurso ao princípio da livre apreciação da prova pois os seus limites foram amplamente extrapolados.
Termos em que, deve ser o douto acórdão posto em crise revogado e o recorrente ser absolvido ou, caso assim não se entenda e em alternativa, ser ordenado o reenvio do processo ao Tribunal a quo ou reduzir a medida da pena para o mínimo da moldura legal.
Os recursos foram admitidos por despacho de fls.1282.
O Mº Pº junto do Tribunal da Relação de Lisboa apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido DD, conforme fls.1287 a 1291, respondendo ao interposto pelo arguido AA, de fls. 1292 a 1296, defendendo em ambos os casos o não provimento dos recursos e a manutenção do acórdão recorrido.

Neste Supremo Tribunal o Exmo Procurador-Geral Adjunto opinou no sentido de deverem os autos prosseguir seus termos, designando-se data para audiência, e relativamente ao estatuto pessoal dos arguidos, face à então iminente entrada em vigor da 15ª alteração ao Código de Processo Penal operada pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, promoveu a libertação do arguido AA no dia da entrada em vigor daquela Lei, por então a prisão preventiva ultrapassar metade da duração da pena aplicada.
Por despacho do relator de 13-09-2007, foi determinada a libertação do arguido AA no dia 15 seguinte, por se mostrar alcançado nessa data, o limite máximo de duração de prisão preventiva face à nova lei, por se mostrar mais favorável ao arguido, no caso concreto, o regime decorrente da nova lei.

Colhidos os vistos e realizado o julgamento, cumpre apreciar e decidir.

A decisão recorrida é o acórdão da Relação de Lisboa de 18-06-2007, que confirmou acórdão final condenatório proferido por tribunal colectivo.

Definindo os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, dispõe o artigo 434º do CPP, que, sem prejuízo do disposto no artigo 410º, nºs 2 e 3, o recurso interposto para este Tribunal visa exclusivamente o reexame da matéria de direito.

Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões extraídas da motivação pelo recorrente que se delimita o âmbito do recurso.
Face às pretensões dos recorrentes, passa-se a enunciar o que foi dado por provado nas instâncias.

Factos Provados
--- No dia 05.04.2004, pelas 13:00 horas, o arguido AA chegou ao Aeroporto de Lisboa, procedente de São P/Brasil, no voo RG 8706, trazendo consigo um parapente, composto por um saco de cor vermelha e preta, da marca “sol paragliders”, que continha no seu interior um saco de cor amarela, com uma asa de parapente, da marca “firebird ski sports”, e uma cadeira de parapente, da marca “sol”, modelo “charly”, com uma almofada em tecido preto, tudo ligeiramente danificado, e avaliado em 100 euros, vindo dissimuladas na cadeira do parapente quatro embalagens, contendo, cada uma delas, um produto em pó, com o peso, total, líquido de 4.012,0 g, e em cuja composição figura uma substância activa denominada cocaína (cloridrato).
--- O arguido AA aceitou a tarefa de transportar o produto estupefaciente em referência, a troco de quantia de 2000 reais brasileiros, e na sequência de proposta que, nesse sentido, lhe foi apresentada pelo arguido DD, que o contactou, para tal efeito, na cidade de Itapema, no Brasil, onde ambos residiam, pouco tempo antes do segundo ter também empreendido viagem até Portugal, devendo fazer-lhe, depois, chegar à posse o material, acima referenciado, com tal quantidade de cocaína dissimulada.
---O arguido AA detinha, ainda, 1 dólar, em moeda emitida pela Reserva Federal Norte Americana, 191 reais, em moeda emitida pelo Banco Central do Brasil, 1995 euros, em moeda emitida pelo Banco Central Europeu, correspondendo estas quantias a parte da soma que aquele, DD, por conta de quem efectuou o transporte do aludido estupefaciente, lhe adiantou para que fizesse face às inerentes despesas com transportes e alojamento.
--- Após a transposição do controlo aduaneiro, em Portugal, o arguido AA devia entregar esse produto estupefaciente, em Lisboa, ao arguido DD.
--- O arguido DD chegou ao aeroporto de Lisboa, no dia seguinte, 06.04.2004, pelas 12:00 horas, procedente de São Paulo/Brasil, no voo RG......., tendo-se pelas 17:40 horas, desse mesmo dia, dirigido à unidade hoteleira onde, previamente, via telefónica, havia confirmado encontrar-se com o arguido AA, com o propósito de ali recolher o saco, com o parapente, onde vinha acondicionado a cocaína, o que não veio a suceder, dado que, entretanto, ali, foi interceptado por inspectores da Polícia Judiciária.
--- Na sequência de uma revista a que, então, foi sujeito, foi encontrada, em poder do arguido DD, uma prata, com resíduos de um produto em cuja composição figura uma substância denominada heroína.
--- Cada um dos arguidos, AA e DD, ao agir como descrito, fê-lo consciente e voluntariamente, em conjugação e comunhão de esforços, após prévio acordo, conhecendo a natureza e características estupefacientes daquele produto (cocaína), transportada pelo primeiro, para ser entregue ao DD, e destinado a ser distribuído, a final, por um elevado número de consumidores, sabendo que tais condutas eram proibidas por lei.
--- O arguido AA é cidadão brasileiro e não possui quaisquer ligações com o território português, onde nunca viveu, ou tem família, pretendendo ir para Paris, três dias depois da chegada a Portugal, visitando, posteriormente, a mãe, emigrante na Suíça.
--- O mesmo AA, que, em audiência, inicialmente, não quis prestar declarações, já no decurso do julgamento pediu “para falar”, aludindo estar “arrependido” por ter efectuado, sabendo o que fazia, aquele “transporte de cocaína”, do Brasil para Portugal, a troco de 2.000 reais brasileiros, mais despesas de viagem.----- A conduta do arguido AA, após a sua detenção, na fase anterior à acusação, foi relevante, em termos de colaboração, então, dada com vista à identificação, e detenção, do arguido DD, a quem ia entregar a cocaína, fornecendo aos inspectores da Polícia Judiciária a confirmação da indicada, - e constante de papel que lhe fora apreendido antes -, da unidade hoteleira onde ia aguardar, protagonizando os telefonemas com o Brasil sem denunciar ter sido detido, e referenciando o nome da pessoa que viria ter consigo, e que conhecia da pequena localidade onde ambos viviam naquele país.
--- O mesmo AA referiu estar desempregado, efectuando “biscates”, designadamente como “músico de violão”, pelo que auferiria 70 reais/dia, morando com uma irmã, em situação económica precária.
--- O arguido DD, dizendo viver no Brasil há mais de 10 anos, e ali trabalhar, como comissionista na área de venda de imóveis, foi para aquele país após processo frustrado de afastamento do meio dos produtos estupefacientes, ali sendo sustentado economicamente pelo agregado parental de origem.

Factos não provados
--- Não se provaram quaisquer outros factos; - e designadamente, não se provou: - que caberia ao arguido DD, depois de recolher aquela carga de cocaína, encaminhá-la para terceiros que, por sua vez, se encarregariam de a redistribuir por outros que, finalmente, a fariam chegar aos consumidores; que o arguido DD tivesse utilizado aquela prata para heroína; que o arguido DD tivesse vindo a Portugal apenas para visitar os pais e a avó; que o arguido DD desconhecesse, previamente, que o arguido AA viajara na véspera para Portugal, só disso tomando conhecimento pelo irmão daquele, empregado da única “agência de viagens” daquela localidade ao comprar o seu bilhete, e, a pedido dele, ficasse incumbido de o ajudar em Portugal; e que o mesmo DD tivesse ido àquela unidade hoteleira, poucas horas depois de chegar a Portugal, para apresentar o AA aos pais, a fim de estes o ajudarem, se disso necessitasse.
Fundamentação da decisão de facto
(Como flui do exposto, este segmento da decisão da 1ª instância teve três formulações, seguindo-se, em transcrição, a última, elaborada em 13 de Setembro de 2006)
Serviram para se formar a convicção do Tribunal Colectivo, o que resultou da inquirição a cada um dos arguidos – referindo, inicialmente, o AA, não querer prestar quaisquer declarações sobre os factos imputados, e, já no decurso da audiência, aludindo a estar “arrependido” por ter efectuado, sabendo o que fazia, o “transporte da cocaína”, do Brasil para Portugal, a troco daqueles 2.000 reais brasileiros, sem, no entanto, – e a conselho, neste momento, da sua Mandatária, após dizeres, insistentes, em plena audiência, e nesse sentido, do Sr. Advogado, defensor do co-arguido DD -, querer responder a quaisquer outras perguntas, designadamente sobre o por ele afirmado, em sede de 1º interrogatório judicial, a fls. 67 e 68, acerca da identidade do dono da cocaína (co-arguido DD), das circunstâncias do ocorrido, ou, sequer, do âmbito da colaboração prestada aos inspectores da Polícia Judiciária – a qual (colaboração) foi, no entanto, e pela Exª Mandatária, sempre invocada aquando do depoimento das testemunhas em causa, e das alegações orais, - e aludindo às suas circunstâncias de vida (confirmando o teor do relatório elaborado pelo IRS) -, negando o arguido DD ter alguma coisa a ver com aquela cocaína, sem explicar, na sua versão: - porque, vivendo na mesma, pequena, localidade do Brasil onde morava o co-arguido AA, havendo ali um único sítio onde comprar os bilhetes de avião, usados, e onde trabalhava o irmão do FF, este lhe tivesse pedido, na véspera, para ajudar o mesmo FF, em Portugal, e para onde este teria vindo naquele mesmo dia; - porque haveria o AA (que, mesmo em audiência, sempre afirmou aqui ter vindo apenas para o transporte da cocaína -, e ir, três dias depois, para Paris, visitando, posteriormente, a mãe, emigrante na Suíça) de precisar da sua ajuda em Portugal, o que, por solicitado, justificaria, na versão do arguido DD (não provada) a ida àquela unidade hoteleira horas depois de chegar a Lisboa - ; e porque teria o arguido AA, a quem o DD disse só conhecer “de vista”, anotado, em papel apreendido, além do mais, já referido, o número de telefone da namorada do mesmo DD no Brasil, bem como os elementos relevantes, pelo AA confirmados, então, às autoridades portuguesas, que permitiram, depois, a referência do arguido DD na lista de passageiros do voo em que este veio para Lisboa -, e às testemunhas, ouvidas em audiência, GG – verificador –auxiliar aduaneiro principal, o qual, no aeroporto de Lisboa, encontrou na bagagem do arguido AA aquele produto estupefaciente -, HH – Inspector da Polícia Judiciária (P.J.), o qual, chamado ao aeroporto, tomou conta da ocorrência relativa ao AA, verificando, da apreensão dos papéis efectuada, a unidade hoteleira onde aquele se iria hospedar, dispondo-se o mesmo arguido a colaborar na identificação, e detenção, da pessoa a quem iria entregar a cocaína, designadamente, não denunciando, nos telefonemas ocorridos entre Portugal e o Brasil, o primeiro por iniciativa do arguido AA, e a partir de número por ele “anotado”, a sua detenção, investigando esta testemunha que o telefonema recebido, já no quarto do hotel, pelo arguido AA, fora efectuado do aeroporto de S. Paulo, no Brasil, pouco tempo antes do voo em que viajou, para Lisboa, o arguido DD, cuja identidade completa foi, pela P.J., apurada, após investigação nos ficheiros policiais, e a partir do nome, incompleto, que o AA lhe fornecera, verificando que o mesmo constava da “lista de passageiros” daquele voo, e visionando, como previsto, a chegada do DD, a Lisboa, na manhã seguinte -, II - Inspector da P.J., que prestou declarações de teor idêntico à testemunha anterior, seu colega naquela ocorrência e investigação, referindo terem confirmado, após completa identificação, junto da transportadora aérea, a vinda do co-arguido DD, estando na unidade hoteleira onde o aguardava o AA, quando o mesmo, DD, ali chegou, e entrou, o que viu -, JJ– Inspector da P.J., prestando declarações de teor idêntico às das duas testemunhas anteriores, seus colegas na ocorrência, aludindo: - ao telefonema feito na sua presença para o Brasil (pelo arguido AA, para um número que trazia manuscrito em papel apreendido, aqui a fls. 20, dizendo “já cheguei ao hotel”; - à recepção, mais tarde, já no quarto do hotel, de telefonema efectuado no aeroporto de S. Paulo, dizendo o AA que “sim, estou a descansar”, e comentando o mesmo AA que o “M....” (arguido DD ) já estava a caminho de Portugal; - à investigação feita, confirmativa da identidade completa, e voo, em que se fazia transportar o DD; - ao visionamento, por si, da chegada deste a Portugal; - e à ida do mesmo DD, poucas horas de pois, ao hotel, onde perguntou, na recepção, pelo AA, dirigindo-se directamente para o quarto indicado, onde bateu à porta, tendo a testemunha, que estava no exterior, e após a abertura desta, detido e revistado, de imediato, o arguido DD, apreendendo-lhe, então, a “prata queimada”; - FF – mãe do arguido DD, que confirmou as condições de vida do arguido, relatados no inquérito do IRS, aludindo a “não terem ido” esperar o filho ao aeroporto, apesar de já não o ver há algum tempo, de morar perto, e de o marido ser “motorista de táxi, de o DD ter aparecido em casa, de onde saíram, mais tarde, com outro destino, mas terem conduzido o mesmo DD àquela unidade hoteleira, a pedido deste, e a pretexto de lhe apresentar um rapaz, que não conhecia, que “iria trabalhar cá”, não referindo a testemunha que o mesmo, AA, iria, três dias depois, para Paris -, bem como o teor de fls. 12 a 14, 17 a 24, 46, 47, 52, 144 a 145, 203, 210, 288 a 298, 316 a 318, e 320 a 322 - respectivamente, autos de apreensão, e avaliação, talões e etiquetas de viagem, papéis com inscrições manuscritas de nomes, e números de telefone, usados pelo arguido AA para os contactos aludidos, relatórios de exames toxicológicos, documentação vária, e relatório do IRS - tudo referenciado em audiência – importando, para além do referido, em termos de “apreciação crítica da prova, pela afirmativa”, que relevar, - para lá do dito, acima mencionado, pelo co-arguido AA, e da apreensão da cocaína, e demais objectos, em poder deste -, que as testemunhas (e quanto a estas não se pode, agora, sequer invocar a nulidade do seu depoimento, pois, a tal respeito, os recursos, intercalares, interpostos pelo co-arguido DD foram já julgados improcedentes, pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27.4.2005 (fls. 691), o qual, confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, transitou em julgado), Inspectores da Polícia Judiciária, desconhecendo, por completo, na sequência da detenção do arguido AA, qualquer outro facto que não aquela apreensão de cocaína, dispondo-se este arguido a colaborar, verificaram: - os dois telefonemas ocorridos entre o arguido AA e a pessoa a quem telefonou, a partir do numero “anotado”, e que, depois lhe telefonou, de novo, sem qualquer outra indicação, para o hotel onde se alojou; - que o telefonema recebido do Brasil, no quarto do hotel, pelo AA (que disse tratar-se do DD), foi efectuado no aeroporto de S. Paulo, em período de tempo imediatamente anterior a dali ter saído o voo em que viajou, para Lisboa, o mesmo DD; - que da lista de passageiros constava um nome com as partes do nome fornecidos pelo AA, confirmando com este, a partir de folha dos arquivos de identificação, tratar-se da mesma pessoa que ele referia como sendo o “dono da droga”; - que o mesmo, DD, desembarcou no voo aludido pelo AA; - e, já no hotel, sem que alguma vez, nos telefonemas verificados, o arguido AA tenha dito qual o local onde estava alojado, que o arguido DD ali chegou, poucas horas após a chegada a Lisboa, não tendo, sequer, indagado se o AA estava lá alojado, mas tão só, com a certeza da sua presença, qual o número do quarto, para cujo andar, de imediato, se dirigiu –, não tendo sido a “credibilidade dos elementos de prova apresentados pela acusação”, e vista a versão do co-arguido DD, posta, minimamente, em causa, por quaisquer outros elementos de prova, com inteira “observância do princípio in dubio pro reo”.
Consta ainda do acórdão da 1ª instância a seguir a este segmento:
O arguido DD não tem registados antecedentes criminais (cf. C.R.C. de fls. 84).
O arguido AA não tem registados em Portugal antecedentes criminais (cf. C.R.C. de fls.- (sic).

Recurso do arguido AA

Diversamente do que acontecera nos anteriores recursos em que este arguido circunscreveu o respectivo âmbito a matéria de direito, justamente neste recurso vem pretender discutir matéria de facto, invocando pela primeira vez a existência do vício previsto no artigo 410º, nº 2, a) do CPP e pedir o reenvio do processo para novo julgamento parcial - conclusões 1ª a 13ª.
Como é sabido, a partir de 01-01-1999, na sequência da reforma do CPP, operada pela Lei nº 59/98, de 25-08, deixou de ser possível interpor recurso para o STJ com fundamento na verificação dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2 do CPP, isto é, a incursão do STJ no plano fáctico da forma restrita consentida pelo art. 410º não é já possível face a questão colocada pelo interessado, a pedido do recorrente, mas por iniciativa própria deste Supremo Tribunal, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação, ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa do STJ, conforme é jurisprudência corrente - cfr. acórdãos deste Supremo Tribunal, de 17-01-2001, de 25-01-2001, de 22-03-2001, in CJSTJ 2001, tomo 1, págs. 210,222 e 257, de 04-10-2001, CJSTJ2001, tomo 3, pág. 182 (aqui se declarando que o Tribunal de recurso tem o poder-dever de fundar a “boa decisão de direito” numa “boa decisão de facto”), de 30-01-2002, processo 3739/01-3ª, de 16-05-2002, CJSTJ 2002, tomo 2, 202, de 24-03-2003, tomo I, 236, de 27-05-2004, in CJSTJ 2004, tomo II, 209, de 30-03-2005, no processo nº 136/05-3ª, de 03-05-2006, nos processos 557/06 e 1047/06, ambos da 3ª secção, de 18-05-2006, nos processos 800/06 e 1293/06, ambos da 3ª secção, de 20-12-2006, in CJSTJ 2006, tomo 3, 248, de 04-01-2007 no processo 2675/06-3ª, de 08-02-2007, no processo 159/07-5ª, de 15-02-2007 nos processos 15/07 e 513/07 (defendendo-se neste o conhecimento oficioso dos vícios como preâmbulo do conhecimento do direito), ambos da 5ª secção, de 21-02-2007 no processo 260/07-3ª, de 02-05-2007, nos processos 1017/07, 1029/07 e 1238/07, todos da 3ª secção e ainda Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, 2ª edição, II volume, p. 967, citado no referido acórdão de 25 de Janeiro de 2001, onde se pondera: “O considerar-se que não podem invocar-se os vícios do nº 2 do art. 410º como fundamento do recurso directo para o STJ de decisão final do tribunal colectivo, não significa que este Supremo Tribunal não os possa conhecer oficiosamente, como ocorre no processo civil, e é jurisprudência fixada pelo STJ (…)”.
Na fundamentação do acórdão de uniformização de jurisprudência nº 10/2005, de 20-10-2005, in DR-I Série -A, de 07-12-2005 refere-se que a indagação dos vícios faz-se “no uso de um poder-dever, vinculadamente, de fundar uma decisão de direito numa escorreita matéria de facto”.
Por outro lado, continua em vigor o Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ, de 19-10-1995, in DR, I Série-A, de 28-12-1995 (Acórdão nº 7/95), que no âmbito do sistema de revista alargada decidiu ser oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.

No presente caso a decisão a apreciar, como referido, é a da Relação de Lisboa e não a da 1ª instância, colocando-se a questão de saber se será possível a arguição dos vícios decisórios da decisão de facto da 1ª instância perante o STJ, nos casos em que é feita pela primeira vez.
O Supremo pronunciou-se no sentido de que está fora do âmbito legal do recurso, e portanto excluída a sua cognição, quando se está perante uma reedição dos vícios apontados à decisão de facto da 1ª instância já colocados perante a Relação e por esta conhecidos/decididos, o que aconteceu nos acórdãos de 01-07-2004, in CJSTJ 2004, tomo 2, 242, de 28-02-2007, processo 4698/06-3ª, de 19-04-2007, processo 802/07-5ª.
Nos acórdãos de 08-02-2006, processo 98/06-3ª, de 15-02-2006, processo 4412/05-3ª, de 15-03-2006, processo 2787/05-3ª, de 22-03-2006, processo 475/06-3ª, de 08-02-2007, processo 159/2007-5ª, de 21-02-2007, processo 260/2007-3ª e de 15-03-2007, processos 663/07 e 800/2007, ambos da 5ª secção, de 02-05-2007, processo 1238/07-3ª, de 21-06-2007, processo 1581/07-5ª, admite-se o conhecimento oficioso dos vícios por parte do Supremo, mesmo nos casos em que o recurso vem interposto de acórdão da Relação.

No presente recurso o recorrente AA coloca pela primeira vez a questão da existência do vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, o que acontece igualmente com o recorrente DD quanto ao vício da contradição da matéria de facto com a decisão (para além de repetir a invocação do vício previsto na alínea c) do nº 2 do art. 410º do CPP).
Os recorrentes não têm legitimidade para essa dedução em recurso interposto para o Supremo, mas a verdade é que igualmente nestes casos, em que por ser feita ex novo não tem lugar a reedição dos vícios apontados à decisão da 1ª instância e já decididos pela Relação, se pode colocar a questão da oportunidade da cognição oficiosa.
Nestes casos de recurso de acórdão da Relação para o Supremo, em que o recurso é puramente de revista, cingindo-se a matéria de direito, é de admitir, exactamente pelas mesmas razões supra expostas que sustentam a cognição oficiosa - razões de necessidade de certificação de substracto fáctico bastante, congruente, compatível, harmonioso e válido para suportar a decisão de direito - o exame oficioso da existência ou não dos vícios decisórios ao nível do assentamento da facticidade relevante.

Feito este esclarecimento, há que dizer que não se verifica o apontado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Ocorre este vício da sentença ou acórdão, quando a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.
Como se diz no acórdão do STJ de 13-01-1998, BMJ 473, 307, tal vício só pode ter-se como evidente quando a factualidade provada não chega para justificar a decisão de direito, ou seja, para a subsunção na norma incriminadora, considerando todos os seus elementos típicos.
Ou como se diz no acórdão do STJ de 25-03-1998, BMJ, 475, 502, está-se na presença de tal vício quando os factos colhidos, após o julgamento, não consentem, quer na sua objectividade, quer na sua subjectividade, dar o ilícito como provado, ou ainda na formulação do acórdão de 20-12-2006, no processo 3379/06-3ª, o vício consiste numa carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis e que impede que sobre a matéria de facto seja proferida uma decisão de direito segura – cfr. ainda, i.a., os acórdãos do STJ, de 22-10-97, processo 612/97, de 12-03-1998, BMJ, 475, 492, de 09-12-1998, processo 1165/98, de 13-01-1999, in BMJ, 483, 49, de 02-06-1999, processo 288/99.
O que aqui ocorre é algo diverso, pois o que está em causa é uma questão relacionada com enquadramento jurídico–criminal dos factos provados, uma errada subsunção da facticidade provada, encerrando não um vício decisório, mas um erro de interpretação e aplicação da lei.
Alega o recorrente estar em causa uma imputação genérica de venda de produtos estupefacientes, sem individualização dos actos integrantes dessa actividade e que resulta da expressão constante do acórdão «…destinado a ser distribuído, a final, por um elevado número de consumidores…», o que está em conexão directa com a integração da qualificativa do crime agravado em que os arguidos foram condenados.
Na economia da pretensão recursória o objectivo claro é desconsiderar a qualificativa de modo a subsumir a conduta do recorrente no tipo matricial do artigo 21º, do DL 15/93 e alcançar redução da pena aplicada.
Em verdade o que o recorrente classifica como insuficiência mais não é do que a expressão de uma divergência, que se reconduz afinal à discordância em relação à qualificação jurídica que mereceram os factos provados, o que configura não uma discordância em relação à fixação da matéria de facto provada, mas a algo distinto, sendo dirigida ao enquadramento jurídico-criminal, a matéria de direito.
Não se está, pois, face a qualquer insuficiência ou lacuna do acervo factual recolhido, mas antes perante uma excrescência, correspondente a ilação retirada da quantidade de droga apreendida, que se revela perfeitamente anódina no que concerne à agravação, em nada relevando para a caracterização da qualificativa em causa, pois que quanto a esta falece por inteiro substracto factual que a suporte, como melhor se verá e sustentará infra, quando se enfrentar a questão da qualificação.
Pelo exposto, não se verificando o apontado vício, improcede a pretensão do recorrente AA de reenvio do processo para novo julgamento.

Recurso do arguido DD

Este recorrente coloca várias questões que vão desde arguição de omissão de pronúncia sobre reexame factual, invocação de contradição entre a prova produzida e a matéria de facto dada por provada, violação do princípio in dubio pro reo e da livre apreciação da prova, para além de redução da medida da pena.

I – Nulidade do acórdão

Omissão de pronúncia

Alega o recorrente não ter sido reexaminada a prova factual, tal como a indicou, nos termos definidos pelo art. 412º, nº 3, alínea b) e nº 4 do CPP, pelo que se verifica omissão de pronúncia no que concerne a impugnação da matéria de facto, padecendo o acórdão recorrido de nulidade, nos termos do artigo 379º, nº 1, c), do CPP, devendo ser ordenada a baixa do processo para sua reforma nos termos do disposto no artigo 731º-2 do CPC - conclusões 2ª, 3ª e 4ª.
Vejamos se tem razão.
Dispõe o nº 3 do artigo 412º do CPP, na versão anterior à 15ª alteração operada pela Lei nº 48/2007 de 29 de Agosto, por ser a que estava em vigor à data da interposição do recurso:
“Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas”.
E no nº 4: “Quando as provas tenham sido gravadas as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição”.
Esta redacção foi dada pela Lei nº 59/98, de 25/08, que veio criar pela primeira vez no nosso sistema processual penal, na sequência do aditamento “incluindo o recurso” na parte final do nº 1 do artigo 32º da CRP pela Lei Constitucional nº 1/97, in DR-I Série de 20-09-1997, um verdadeiro direito a recurso em matéria de facto das decisões do tribunal colectivo, a exercer nas condições e com os requisitos enunciados nos nºs 3 e 4 do artigo 412º, o que veio a ser “confirmado” pelo acórdão de uniformização de jurisprudência nº 10/2005, de 20-10-2005, in DR, I-A, de 07-12-2005, que estabeleceu: “Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei nº 59/98, de 25/08, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo”.
Maia Gonçalves, no CPP Anotado, 9ª edição, 729, alertava então que a lei é aqui particularmente exigente, tratando-se de matéria a que haverá que prestar particular cuidado, pois o Código denota o intuito de não deixar prosseguir recursos inviáveis ou em que os recorrentes não exponham com clareza o sentido das suas pretensões.
A partir de então passou a ser possível impugnar a matéria de facto de duas formas: a já existente revista ampliada com invocação dos vícios decisórios do artigo 410º, com a possibilidade de sindicar as anomalias emergentes do texto de decisão e uma outra mais ampla e abrangente, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo a observância de certas formalidades.
Vista e examinada a motivação e particularmente as conclusões apresentadas no recurso interposto pelo recorrente DD para o Tribunal da Relação, ressalta a sem razão da imputação de incumprimento ou de omissão de reapreciação por parte da Relação, pois que claro é que o recorrente incumpriu o ónus que sobre si impendia ao pretender impugnar a matéria de facto dada por provada pela primeira instância, sendo certo que só cumprindo tal ónus poderá alcançar-se eventual modificação da matéria de facto fixada na decisão de 1ª instância, nos termos do artigo 431º, b) do CPP.
Na verdade, apenas na conclusão 3ª do referido recurso o recorrente se refere ao tema, impugnando o que consta dos §§ 2º, 3º, 4º, 5º e 8º dos factos provados, que reproduz, mas por aí se queda a manifestação de discordância, nada adiantando relativamente a especificações atinentes às provas que impusessem decisão diversa de recorrida e às provas que deveriam ser renovadas, feitas por referência aos suportes técnicos.

Estes condicionamentos ou imposições no caso de recurso de facto referidos nos nº 3 e 4 do artigo 412º constituem mera regulamentação, disciplina e adaptação aos objectivos do recurso, já que a Relação não fará um segundo julgamento de facto, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2ª instância, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzida, mas tão só o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham sido referidos no recurso e às provas que imponham (e não apenas sugiram ou permitam outra decisão) decisão diversa indicadas pelo recorrente, uma reapreciação restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e das razões de discordância.
Esse imprescindível e indeclinável contributo do recorrente para a pedida reponderação da matéria de facto corresponde a um dever de colaboração por parte do recorrente e sua responsabilização na demarcação da vinculação temática deste segmento da impugnação, constituindo tais formalidades factores ou meios de segurança, quer para as partes quer para o tribunal.
Como se diz no acórdão de 08-03-2006, processo 185/06-3ª, “O ónus conexiona-se com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto”, e se sintetiza no de 10-01-2007, processo 3518/06-3ª “A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso”- cfr. acórdãos de 12-06-2005, processo 1577/05-3ª, de 08-02-2006, processo 2892/05- 3ª (no sentido de que não vale uma impugnação genérica), de 04-01-2007, processo 4093/06-3ª, de 25-01-2007, processo 4551/06-5ª, de 28-02-2007, processos 4698/06 e 35/07, ambos da 3ª secção, de 16-05-2007, processo 1395/07-3ª, de 04-07-2007, processo 2304/07-3ª.
Nada fez o recorrente no aludido recurso, onde se limitou a manifestar a sua divergência com a fixação dos factos provados, como fez nas conclusões 4ª a 11ª, invocando a existência do vício de erro notório na apreciação da prova e a violação do princípio in dubio pro reo, como de resto reedita no presente recurso.
O recorrente faltou assim ao compromisso de esforço necessário em ordem a cumprir um verdadeiro ónus de impugnação especificada, e o que se verifica, mais do que uma insuficiência ou deficiência, é a quase total ausência de cumprimento do determinado na lei processual, sendo que nem vem colocada a questão de falta de convite a suprir as conclusões então apresentadas.
O STJ tem-se pronunciado no sentido de que o não cumprimento do ónus de impugnação da matéria de facto não justifica o convite ao aperfeiçoamento, pois só se pode corrigir o que está mal cumprido e não o que se tem por incumprido - acórdãos de 04-10-2006, processo 812/06-3ª, e supra referidos de 08-03-2006, processo 185/06-3ª, de 04-01-2007, processo 4093/06-3ª e de 10-01-2007, processo 3518/06-3ª, podendo ler-se a este propósito no acórdão de 09-03-2006, processo 461/06-5ª: “Se o recorrente não faz, nem nas conclusões, nem no texto da motivação, as especificações ordenadas pelos números 3 e 4 do art. 412º do CPP, não há lugar ao convite à correcção das conclusões, uma vez que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do convite à correcção das conclusões da motivação”.
O Tribunal Constitucional considera que tal solução não viola o direito ao recurso, como decidiu no acórdão nº 259/02, de 18-06-2002, in DR, II Série, de 13-12-2002, posição retomada no acórdão nº 140/2004, de 10-03-2004, processo nº 565/03, in DR II Série, de 17-04-2004 e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 58º volume, p. 633 ss. aí se afirmando: «… o legislador processual pode definir os requisitos adjectivos para o exercício do direito ao recurso, incluindo o cumprimento de certos ónus ou formalidades que não sejam desproporcionados e visem uma finalidade processualmente adequada, sem que tal viole o direito ao recurso constitucionalmente consagrado. Ora, é manifestamente este o caso das exigências constantes do artigo 412º, nºs 3, alínea b) e 4, do Código de Processo Penal, cujo cumprimento (incluindo a referência aos suportes técnicos, com indicação da cassete em causa e da localização nesta da gravação das provas em questão) não é desproporcionado e antes serve uma finalidade de ordenamento processual claramente justificada. (…). Não pode, pois, concluir-se que os princípios constitucionais do acesso ao direito e do direito ao recurso em matéria penal impliquem que ao recorrente tivesse sido facultada a oportunidade para aperfeiçoar, em termos substanciais, a motivação de recurso deduzido quanto à matéria de facto, quando este não especificou as provas que impunham decisão diversa da recorrida, fazendo-o por referência aos suportes técnicos. (…). Como se disse no Acórdão nº 259/2002 (supra referido), tal “equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso”.
Não pode, pois, considerar-se inconstitucional a norma em causa…».
Sendo assim, evidente será que o incumprimento daquele ónus por parte do recorrente acarreta a impossibilidade de o tribunal de recurso analisar a pretensão e vir a final a modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto.
Destarte, há que concluir que o acórdão recorrido não merece censura na parte em que não procedeu ao reexame da decisão de facto, nesta perspectiva pretendida pelo recorrente, por absoluto incumprimento da parte do arguido, não se verificando a arguida nulidade.
Improcede, pois, esta pretensão.

II -1- Contradição entre a fundamentação e a decisão
2 - Ilegal valoração de provas
3 -Violação do princípio in dubio pro reo

Concretizando a sua análise acerca da formação da convicção dos julgadores e perspectivando a sua crítica ao julgamento de facto, para além da referida pretendida impugnação, invoca o recorrente na conclusão 1ª a existência de contradição entre a prova produzida e a matéria de facto dada por provada.
Nas conclusões 5ª, 6ª, 7ª e 8ª invoca, pela primeira vez o vício de contradição entre a fundamentação e a decisão, o que constitui uma questão nova, que não pode ser colocada e invocada nesta sede, mas que por força do já referido, será abordada a título oficioso.
Nas conclusões, 9ª, 10ª, 11ª, 18ª, 19ª, 20ª e 21ª invoca o recorrente violação dos limites do poder discricionário da apreciação da prova e do princípio in dubio pro reo.

Apreciando.

1 - Começando pela invocada contradição entre a fundamentação e a decisão, dir-se-á que não se verifica o vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea b) do CPP, inexistindo qualquer contradição entre a fundamentação e o decidido.
Alude o recorrente a uma passagem dos factos provados em que se refere que foi detido sem ter na sua posse qualquer produto estupefaciente e sem ter solicitado o mesmo, faltando o suporte para a presunção de que era o destinatário do produto. Adianta ainda que esse elemento fáctico final, que suporte a presunção de que era ele o destinatário, seria o próprio, por exemplo, questionar ou pedir ao co-arguido a entrega do produto estupefaciente, o que não aconteceu.
A matéria de facto em questão é a seguinte: “O arguido DD chegou ao aeroporto de Lisboa, no dia seguinte, 06.04.2004, pelas 12:00 horas, procedente de São Paulo/Brasil, no voo RG 8706, tendo-se pelas 17:40 horas, desse mesmo dia, dirigido à unidade hoteleira onde, previamente, via telefónica, havia confirmado encontrar-se com o arguido AA, com o propósito de ali recolher o saco, com o parapente, onde vinha acondicionado a cocaína, o que não veio a suceder, dado que, entretanto, ali, foi interceptado por inspectores da Polícia Judiciária”.
Como se sabe, o arguido foi detido sem estar na posse daquele produto, como não podia estar, pois que trazido de véspera e logo apreendido, como igualmente não questionou ou pediu ao co-arguido AA a entrega do mesmo, pela simples razão de que foi logo detido por elementos da PJ, que se encontravam no hotel, estando devidamente explicado no acórdão, e de forma convincente, porque o tribunal decidiu dar como provado que o destinatário do produto era o recorrente.
Não se está perante qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão, mas antes face a uma outra forma de o recorrente manifestar a sua discordância quanto à valoração das provas, cuja relevância para efeitos de recurso, como melhor se explicará infra, é nula.

2 - Passando à valoração das provas, dir-se-á que na análise a efectuar há que ter em conta que a fixação da matéria de facto teve na sua base uma apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127º do CPP.
Mas mais do que isso, acontece que na realidade o que o recorrente faz é manifestar a sua discordância com o decidido ao nível do assentamento da facticidade dada como apurada, pretendendo impugnar a convicção adquirida pelos julgadores sobre os factos pertinentes à configuração do crime, adiantando o que em seu entender estaria provado, olvidando por completo a regra da livre apreciação da prova ínsita no aludido artigo 127º do CPP.
Como esclareceu o acórdão de 21-05-1992, BMJ 417, 404, “O STJ, como tribunal de revista, não dispõe de poderes de crítica ou censura sobre o concreto desempenho do princípio da livre apreciação da prova exercitada pelo tribunal a quo” e o acórdão de 25-03-1998, BMJ 475, 502, “O STJ não pode sindicar a valorização das provas feita pelo Colectivo em termos de o criticar por não ter sido dada prevalência a uma em detrimento de outra” - cfr. acórdão de 11-02-1998, BMJ 474,309, e mais recentemente, o acórdão de 08-02-2006, processo 98/06-3ª, no sentido de que “a deficiente apreciação da prova produzida é matéria que escapa aos poderes do STJ”.
Constitui entendimento pacífico há muito estabelecido que não há erro na apreciação da prova quando o que o recorrente invoca não é mais do que uma discordância sua quanto ao enquadramento da matéria de facto provada.
A divergência do recorrente quanto à avaliação e valoração das provas feitas pelo tribunal é irrelevante, de acordo com jurisprudência há muito firmada - acórdãos do STJ, de 19-09-1990, BMJ 399, 260, de 21-06-1995, BMJ 448,278 (a versão do recorrente sobre a valoração da prova não integra o vício do erro notório), de 01-10-1997, processo 876/97-3ª, de 08-10-1997, processo 874/97-3ª, de 06-11-1997, processos 666/97 e 122/97, de 18-12-1997, processos 47325 e 930/97, Sumários de acórdãos do STJ, vol. II, p. 156, 158, 216 e 220 e de 24-03-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, 247, de 19-01-2000, processo 871/99-3ª, de 06-12-2000, processo 733/00. Ou como se dizia no acórdão de 18-12-1997, processo 701/97, Sumários, ibid., p. 220, a convicção do tribunal não pode ser tida por errada apenas porque as partes, eventualmente, valoram a prova de modo diverso.
Ou no acórdão de 07-10-1998, processo 1103/98: “não se pode confundir o erro notório na apreciação da prova com a opinião que o recorrente formulou sobre a prova produzida, divergente da que veio a vingar.”
De forma mais abrangente é encarada essa irrelevância no acórdão de 12-11-1998, BMJ 481, 325: “se existe mera discordância do recorrente entre aquilo que o Colectivo teve como provado e aquilo que o recorrente entende não ter resultado da prova produzida não se verifica qualquer dos vícios do artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c)”.
Mais recentemente, no acórdão de 20-12-2006, no processo 3379/06-3ª, pode ler-se: “Os vícios do artigo 410º-2 do CPP não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127º do CPP. Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, sendo irrelevante a convicção pessoal formada pelo recorrente e que ele próprio alcançou sobre os factos”- cfr. do mesmo relator, o acórdão de 27-06-2007 no processo 2057/07-3ª.
Como se referiu, o recorrente apenas pretende opor à livre convicção do tribunal expressa nos factos que teve por provados a sua mera afirmação de que não deveriam ter sido dados como provados os factos que o conexionam com a cocaína apreendida, mais concretamente com os contactos já estabelecidos em S Paulo para o transporte do produto e de ser ele próprio o destinatário do mesmo.
Essa posição representa apenas a valoração pessoal de determinados elementos de prova, valoração essa que não pode ser contraposta à conclusão a que chegaram os julgadores.
É jurisprudência corrente a de que são totalmente irrelevantes as considerações do recorrente quanto à pretensão de ver discutida a prova feita no julgamento e de solicitar que o STJ modifique tal prova e passe a aceitar como realidade aquilo que o interessado pretende corresponder ao sentido do que teria resultado do julgamento e a que o Tribunal passasse a aceitar como definitiva a factualidade que invoca – acórdãos do STJ, de 12-01-1994, de 29-06-1994, de 12-01-1995, de 06-03-1996, de 04-06-1996, de 04-07-1996, de 10-07-1996, de 18-09-1996, de 08-01-1997, de 15-01-1997, de 13-01-1998, de 13-01-1999, in respectivamente, BMJ 433,231; CJSTJ 1994, tomo 2, 258; CJSTJ 1995, tomo 1, 181; CJSTJ 1996, tomo 2, 165; BMJ 458, 169; CJSTJ 1996, tomo 2, 243; BMJ 459, 178 e 283; 463, 189 e 429; 473, 307 e 483, 49.
Daqui resulta que se revelem processualmente inoportunas, impertinentes e irrelevantes as considerações contidas nas conclusões1ª, 5ª a 10ª e 18ª a 21ª.
A impossibilidade deste Tribunal sindicar a prova produzida conduz a que seja manifesta a improcedência do recurso neste segmento, que assim, digamos, tem um objecto impossível, devendo ser rejeitado, nos termos do artigo 420º, nº 1 do CPP, preceito que nesta perspectiva não padece de inconstitucionalidade - cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional nº 352/98, de 12-05-1998, in BMJ 477, 18 e nº 165/99, de 10-03-1999, in DR-II Série, de 28-02-2000 e BMJ 485, 93.
Como se referia no acórdão do STJ de 30-03-1995, BMJ 445, 355, é de rejeitar o recurso por manifesta improcedência quando o recorrente se limita a discutir matéria de facto e a livre apreciação do tribunal.
De igual sorte o acórdão de 21-06-1995, BMJ, 448, 278: “Apresenta-se como manifestamente improcedente, e, portanto, deve ser rejeitado, o recurso cuja fundamentação se circunscreve à interpretação da prova que se diz ter sido produzida em audiência, indicando-se os factos que deveriam ter sido considerados provados, em vez dos que foram dados por provados”.

3 – Vejamos agora a questão da pretensa violação do princípio in dubio pro reo. Este princípio funda-se constitucionalmente no princípio da presunção da inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória – artigo 32º, nº 2 CRP - , impondo este que qualquer non liquet na questão da prova seja valorado a favor do arguido, apresentando-se aquele, na fase de decisão, como corolário daquela presunção – acórdão do Tribunal Constitucional nº 533/98, DR, II Série , de 25-02-1999.
O princípio in dubio, que estabelece que, na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, é um princípio de prova que vigora em geral, isto é, quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário.
A violação do princípio in dubio pro reo tem sido entendida sob diversas perspectivas, como a de respeitar a matéria de prova e, pois, tratar-se de matéria de facto e como tal insindicável pelo STJ, ou enquanto princípio estruturante do processo penal, podendo ser suscitada perante o Tribunal de revista, mas o Supremo vem afirmando que isso só é possível se a violação resultar do próprio texto da decisão recorrida, designadamente da fundamentação da decisão de facto – acórdão de 29-11-2006, CJSTJ 2006, tomo 3, 239.
Na perspectiva de análise como figura próxima do erro na apreciação da prova - acórdãos de 15-04-1998, citado na motivação para a Relação, de 04-11-1998, CJSTJ 1998, tomo 3, 201 e BMJ 481, 265, do mesmo relator, de 24-03-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, 247, de 20-10-1999, BMJ 490, 64, de 04-10-2006, processo 812/2006-3ª, de 11-04-2007, processo 3193/06-3ª.
Parece-nos que esta possibilidade de abordagem de eventual violação do princípio será balizada pelos parâmetros de cognoscibilidade presentes perante indagação dos vícios decisórios, com o consequente alargamento de possibilidade de incursão de exame no domínio fáctico, mas simultaneamente, como ali ocorre, com a forma mitigada, restrita, que se cinge ao texto da decisão recorrida, por si só considerada ou em conjugação com as regras da experiência comum.
O que significa que, tal como ocorre na análise e exame de verificação dos vícios, quando se perspectiva indagação de eventual violação do princípio in dubio pro reo (em ambos os casos diversamente do que ocorre com a avaliação de nulidades da sentença), há que não esquecer que se está sempre perante um poder de sindicância de matéria fáctica, que é limitado, restrito, parcial, mitigado, exercido de forma indirecta, dentro do condicionalismo estabelecido pelo artigo 410º do CPP, em suma, que o horizonte cognitivo do STJ se circunscreve ao texto e aos vícios da decisão, não incidindo sobre o julgamento, isto é, que o objecto da apreciação será sempre a decisão e não o julgamento.
Da análise do acórdão impugnado, tendo em atenção a decisão de facto que lhe subjaz, decorre que o Tribunal da Relação não ficou na dúvida em relação a qualquer facto, como sucedeu com o de 1ª instância.
O acórdão recorrido não denota dúvida irredutível, da sua leitura se vendo não persistir qualquer dúvida razoável sobre os factos, por isso não tendo fundamento fazer apelo ao princípio. Pelo contrário, decorre uma tomada de posição firme e estribada e não indicando ter-se decidido contra o recorrente.
Improcede, pois, esta arguição, aqui também se mostrando manifestamente infundada a impugnação nesta parte.

Da qualificação jurídica da conduta dos arguidos

Foi imputada aos arguidos a prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. p. pelos artigos 21º, nº 1 e 24º, alínea b) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01.
A questão da requalificação apenas pelo arguido AA foi abordada, fazendo-o em sede de alegação de vício do acórdão, como vimos.
O arguido DD refere-se ao tipo fundamental, p. p. pelo artigo 21º, neste recurso como nos anteriores, como se tivesse sido condenado pela prática desse crime e não do tipo agravado como efectivamente aconteceu, sem nada dizer sobre requalificação - convolação.
O acórdão condenatório proferido pelo Colectivo, confirmado pelo Tribunal da Relação, em sede de enquadramento jurídico-criminal abdicou de dar a conhecer o concreto processo de subsunção jurídica a que terá procedido para concluir pelo enquadramento realizado.
Nessa operação começa o Colectivo por dizer:A cada unidade, de facto, em referência, e respectivamente, corresponde, considerada isoladamente, uma acção, aqui tida em sentido final, isto é, no crime em causa prefigura-se conduta de um processo casual, seja por nexo mecânico de causa - efeito, seja por nexo lógico de condições, para um fim determinado.
O crime referenciado é, assim, consequência típica, normal e previsível das condutas dos arguidos, a quem, respectivamente, é imputado na forma descrita, tudo isto segundo as regras da experiência comum e as circunstâncias particulares do caso – o que sempre se pode aferir por um juízo de prognose póstuma.
Em sede dos elementos objectivos de cada tipo, a mencionada previsão está preenchida, dando lugar à imputação, uma vez que a conduta dos arguidos, quanto ao crime que cometeram, era idónea a provocar os resultados previstos na descrição dos factos.
Após este intróito, tecem-se considerações e fazem-se citações sobre ilicitude e culpa, mas sobre a concreta fundamentação do preenchimento da qualificativa e subsunção no tipo agravado nada se adianta e em termos de concretização apenas se diz sobre o «concreto agir» que “... é o ponto de partida para a avaliação do concreto ente que agiu materialização a que se não pode fugir, pela sua própria natureza”.

Vejamos as normas aplicáveis do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01

Artigo 21º
1 – Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos caos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.

Artigo 24º (redacção do artigo 54º da Lei nº 11/2004, de 16-07)
As penas previstas nos artigos 21º, 22ºe 23º são aumentadas de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se:
b) As substâncias ou preparações foram distribuídas por grande número de pessoas.

Naquele artigo descreve-se de maneira compreensiva e de largo espectro a respectiva factualidade típica, contendo o tipo base, essencial.
Neste, as circunstâncias, de configuração vária, relacionadas apenas com a ilicitude, que agravam o tipo matricial, fundamental.

A previsão deste tipo agravado – o da alínea b) - reporta-se a uma situação pregressa, como resulta da expressão “foram distribuídas”, sendo intuito da norma o de tutelar a ampliação do perigo, indicador omnipresente na variada gama dos elementos, actos ou actividades que substanciam o tipo.
A razão de ser da qualificação em análise está na dispersão, no abastecimento de grande amplitude, na difusão do produto por grande número de pessoas, aumentando as potencialidades de danosidade em termos de saúde pública, mas como facilmente se intui, o que está em causa na incriminação qualificada é uma efectiva distribuição, já realizada, e não um quadro, meramente hipotético, em que o produto poderá (ia) ser (ter sido) objecto de distribuição por vários interessados.
Para que a qualificativa se verifique, imperioso se torna que as substâncias ou preparações tenham sido efectivamente distribuídas, estando em causa exclusivamente a previsão de uma situação verificada, pois só esse pode ser o sentido da utilização do tempo verbal constante da norma, o particípio passado “foram” - artigo 9º, nº 3 do Código Civil.
Como se pode ver no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, uma realização da Academia das Ciências de Lisboa e da Fundação Calouste Gulbenkian - Editorial Verbo, 2001, sob a orientação do Professor Doutor Malaca Casteleiro, II volume, p. 2763, “Particípio” é “forma que pode ter emprego verbal ou adjectival e que apresenta o resultado do estado de coisas expresso pelo verbo”. “Particípio passado - forma que se emprega com valor verbal na formação dos tempos compostos e com valor adjectival na formação da voz passiva, em orações participiais e construções predicativas com ser e estar. As palavras apagado, comido e partido são particípios passados dos verbos apagar, comer e partir”.
No nosso caso necessário é que as substâncias tenham sido objecto de distribuição, que tenham entrado em circuito de abastecimento e difusão.
A previsão desta alínea diverge da que a antecede, como da que se lhe segue, pois aí se prevê, não só uma conduta respeitante a disseminação já consumada, como se abrangem os casos em que a conduta se fica por projecto, ao nível da cogitatio, ou da tentativa.
Assim:
a) As substâncias ou preparações foram entregues ou se destinavam a menores ou diminuídos psíquicos
c) O agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória.

No caso concreto, mais do que a alegada (pelo recorrente AA) insuficiência de matéria de facto provada que sustente a verificação da qualificativa, o que ocorre é a absoluta carência de factualidade, a falta de matéria de facto que suporte a afirmação de estarmos perante uma real, efectiva, consumada distribuição, necessariamente já efectuada, de produto estupefaciente por grande ou elevado número de retalhistas ou consumidores.
Da matéria de facto provada, versando o destino da cocaína transportada de São Paulo, consta apenas isto: «…transportada pelo primeiro, para ser entregue ao DD, e destinado a ser distribuído, a final, por um elevado número de consumidores, …».
Nos factos não provados consta: «não se provou que caberia ao arguido DD, depois de recolher aquela carga de cocaína, encaminhá-la para terceiros que, por sua vez, se encarregariam de a redistribuir por outros que, finalmente, a fariam chegar aos consumidores».
Aparentemente poderia surpreender-se a existência de uma contradição entre esta afirmação e aqueloutra constante dos factos provados, pois o recorrente DD, ou era o dono do negócio e seria ele próprio o distribuidor (final), ou seria apenas elemento de ligação, ocupando um lugar intermédio na cadeia de distribuição, que entregaria o produto a um outro elemento, esse sim o receptor final, substanciando a sua conduta apenas uma intromissão no circuito de distribuição detido por terceiros.
O recorrente era efectivamente o dono do negócio, tendo acordado os termos do transporte da cocaína ainda no Brasil, afastando-se a hipótese de ser apenas o intermediário recebedor aqui no País que depois entregaria o produto a um outro.
Mas mesmo que assim fosse, dúvidas não subsistiriam de que o imediato destinatário naquela fase era o recorrente DD.
No caso em reapreciação o que ressalta e permanece é a ideia de que havia um destino projectado para aquele produto, mas que não passou disso mesmo, não se chegando a concretizar.
A verdade é que não houve realmente qualquer distribuição pela simples razão de que a mercadoria foi toda apreendida ainda no aeroporto na fase final da etapa de transporte.
Apenas o iter (acto executivo) do transporte se consumou.
Se alguém cogitou vir a efectuar essa distribuição ela não se verificou realmente.
A lei não se basta com o destino futuro e hipotético a dar a tal substância, não bastando a simples circunstância de os arguidos se encontrarem (ou se virem a encontrar) na posse de uma grande quantidade de droga.
Ponto é que tenha ocorrido uma disseminação efectiva do produto, que a actividade tenha ido além do perigo, substanciando um risco efectivado, concretizado para o bem jurídico protegido, que se tenha actuado essa possibilidade e que não se tenha ficado pela potência.
É evidente que é assinalável a quantidade transportada, mas a quantidade de produto não é por si só qualificativa, não releva em nenhuma das enunciações das alíneas do artigo 24º, sendo prestável para em etapa subsequente vir eventualmente a ser distribuída em pequenas doses por elevado número de pessoas e para se alcançar avultados proveitos económicos, o que poderá/deverá ser sopesado em sede de ilicitude (de elevado grau em função da quantidade) e da determinação concreta da medida da pena.
Neste sentido se pronunciou já este Supremo Tribunal no acórdão de 01-10-2003, CJSTJ 2003,Tomo 3, p. 182, onde se pode ler: “A agravação resultante da alínea b) do artigo 24º do DL 15/93 supõe uma distribuição efectiva, passada, ocorrida, verificada, e não a simples possibilidade ou potencialidade, ao nível do risco, de o produto ou substância vir a ser distribuído por grande número de pessoas” e no acórdão de 12-04-2007, processo 4680/07, onde se refere que o preceito do artigo 24º, alínea b) constitui uma agravante de resultado e não de actividade, exigindo que o estupefaciente seja distribuído efectivamente por um grande número de pessoas e não apenas que seja idóneo para tal para que se possa considerar consumado – cfr. ainda os acórdãos de 06-12-2000, processo nº 2842/00-3ª, de 11-01-2002, processo nº 2824/00-5ª e de 15-03-2006, processo 4421/05-3ª.
Não se preenchendo a qualificativa, resta a subsunção no tipo fundamental, ou seja, no crime de tráfico de estupefacientes, p. p. pelo artigo 21º do DL 15/93, de 22/01.
O que terá naturais reflexos na medida da pena, desde logo atenta a nova moldura penal a ter em consideração.

Caracterização do crime

A previsão legal do artigo 21º do DL 15/93, de 22-01, a exemplo do “antecessor” artigo 27º do Decreto-Lei nº 480/83, de 13-12, contem a descrição da respectiva factualidade típica, de maneira alargada, contendo o tipo fundamental, matricial.

Trata-se de um tipo plural, com actividade típica ampla e diversificada, abrangendo desde a fase inicial do cultivo, produção, fabrico, extracção ou preparação dos produtos ou substâncias até ao seu lançamento no mercado consumidor, passando pelos outros elos do circuito, mas em que todos os actos têm entre si um denominador comum, que é exactamente a sua aptidão para colocar em perigo os bens e os interesses protegidos com a incriminação.

Não importa ao preenchimento deste tipo legal a intenção específica do agente, os seus motivos ou fins a que se propõe; o conhecimento do fim apenas pode interessar para efeitos de determinação da ilicitude do facto.

O tráfico de estupefacientes tem sido englobado na categoria do “crime exaurido”, “crime de empreendimento” ou “crime excutido”, que se vem caracterizando como um ilícito penal que fica perfeito com o preenchimento de um único acto conducente ao resultado previsto no tipo.

A consumação verifica-se com a comissão de um só acto de execução, ainda que sem se chegar à realização completa e integral do tipo legal pretendido pelo agente.

O conceito foi introduzido na nossa jurisprudência com o acórdão do STJ de 18-04-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, 170, onde se refere que o crime exaurido é “ uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de os mesmos corresponderem a uma execução completa, e em que a repetição dos actos, com produção de sucessivos resultados, é, ou pode ser, imputada a uma realização única”, isto é, “aquele em que o resultado típico se obtém logo pela realização inicial da conduta ilícita, de modo que a continuação da mesma, mesmo que com propósitos diversos do originário, se não traduz necessariamente na comissão de novas violações do respectivo tipo legal”.

O conceito foi retomado pelo mesmo relator do anterior no acórdão de 18-06-1998, in CJSTJ 1998, tomo 3, 168, se bem que aqui olhado mais na perspectiva da unificação da conduta plural, abarcando a extensão do período temporal de conexão entre comportamentos protraídos em determinado lapso de tempo, tendo sido seguido de perto no acórdão de 12-07-2006,CJSTJ2006, tomo 2, 239.

O delito de empreendimento é referido por Jescheck, no Tratado de Derecho Penal, tradução de S.Mir Puig e F. Munõz Conde, edição de 1981, volume II, p. 715, em parágrafo respeitante ao conceito, tipo e punição da tentativa, ao abordar, a questão da punibilidade dos actos preparatórios e da tentativa, avançando como definição de empreendimento de um delito, como sendo a sua consumação e a sua tentativa.

“O sentido do delito de empreendimento é agravar a reacção jurídico-penal, equiparando a tentativa e consumação e impedindo assim a atenuação da pena na tentativa”, esclarecendo “o empreendimento castiga-se como a consumação” e daí não ser possível a desistência – ibidem, p. 754.

Trata-se de crimes que como as falsificações e outros, ficam perfeitos com a comissão de um só acto crime formal com antecipação de punição - para o crime de falsificação veja-se o acórdão do STJ de 15-02-2006, processo 4306/05-3ª.

Sobre esta categoria de crime pronunciou-se o acórdão do Tribunal Constitucional nº 262/01, de 30-05-2001, in DR-II Série, de 18-07-2001.

No acórdão de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, 235 é seguida de perto a orientação do acórdão do TC referido, qualificando o crime como exaurido e de tutela antecipada e do mesmo modo no de 19-04-2007, processo 449/07-5ª - cfr acs. de 08-02-2007, processo 4460/07-5ª, “aquele em que para a incriminação do agente é suficiente a prática de um qualquer acto de execução, independentemente de corresponder à execução do facto”, de 26-04-2007, processo 3181/06-5ª.

Como se referia no acórdão do STJ de 12-12-1991, BMJ, 412, 206, o crime é de perigo, em cuja punição relevam exigências de prevenção de futuros crimes.

O crime em causa é um crime de trato sucessivo, em que a mera detenção da droga é já punida como crime consumado, dada a sua vocação (é um crime de perigo presumido) para ser transaccionada - acórdão do STJ de 29-06-1994, CJSTJ1994, tomo2, 258.

O crime de tráfico de estupefacientes enquadra-se na categoria dos crimes de perigo abstracto: aqueles que não pressupõem nem o dano, nem o perigo de um concreto bem jurídico protegido pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para uma ou mais espécies de bens jurídicos protegidos, abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para causar um perigo a um desses bens jurídicos.

O perigo presumido envolve-se na mera comprovação da detenção de uma determinada quantidade de substância tóxica, independentemente da real demonstração do perigo, ou o que dá no mesmo, da intenção de transmiti-la.

Cada uma das actividades previstas no preceito, sem mais, é dotada de virtualidade bastante para integrar o elemento objectivo do crime.

Trata-se de crime de perigo abstracto ou presumido, pelo que não se exige para a sua consumação a verificação de um dano real e efectivo; o crime consuma-se com a simples criação de perigo ou risco de dano para o bem jurídico protegido (a saúde pública na dupla vertente física e moral), como se refere nos acórdãos de 12-02-1986, BMJ 354, 331, de 30-04-1986, BMJ 356, 166, de 23-09-1992, BMJ 419, 464, de 24-11-1999, BMJ 491, 88, de 01-06-2004, CJSTJ 2004, tomo 2, 239, de 04-10-2006, processo 2549/06-3ª, de 11-10-2006, processo 3040/06-3ª, de 12-04-2007, processo 1917/06-5ª, de 19-04-2007, processo 449/07-5ª.

Noutra perspectiva, trata-se de um crime pluriofensivo.

O normativo incriminador do tráfico de estupefacientes tutela uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal - a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores - visando ainda a protecção da vida em sociedade, o bem-estar da sociedade, a saúde da comunidade (na medida em que o tráfico dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos), embora todos eles se possam reconduzir a um bem geral - a saúde pública - pressupondo apenas a perigosidade da acção para tais bens, não se exigindo a verificação concreta desse perigo - ver acórdão do Tribunal Constitucional nº 426/91, de 06-11-1991, in DR, II Série, nº 78, de 02-04-1992 e BMJ 411,56 (seguido de perto pelo acórdão do TC nº 441/94, de 07-06-1994,, in DR, II Série, nº 249, de 27-10-1994): “O escopo do legislador é evitar a degradação e a destruição de seres humanos, provocadas pelo consumo de estupefacientes, que o respectivo tráfico indiscutivelmente potencia”.

Já no preâmbulo da Convenção Única de 1961 sobre os estupefacientes, concluída em Nova Iorque, em 31-03-1961 (aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei nº 435/70, de 12-09 (BMJ 200, 348) e ratificada em 30-12-1971) se referia a preocupação com a saúde física e moral da humanidade, reconhecendo a toxicomania como um grave mal para o indivíduo, constituindo um perigo social e económico para a humanidade.

Por seu turno, no preâmbulo do Decreto-Lei nº 420/70, de 3/09, referia-se terem-se presentes os perigos que o consumo de estupefacientes comportava para a saúde física e moral dos indivíduos e a sua não rara interpenetração com fenómenos de delinquência.

No preâmbulo do Decreto-Lei nº 430/83, de 13-12, que efectuou a adaptação do direito interno ao constante daquela Convenção de 1961 e da Convenção sobre as substâncias psicotrópicas de 1971, aprovada para adesão pelo Decreto nº 10/79, de 30-01, fazia-se referência a relatório coevo de um organismo especializado das Nações Unidas, onde se dizia: “A luta contra o abuso de drogas é antes de mais e sobretudo um combate contra a degradação e a destruição de seres humanos. A toxicomania priva ainda a sociedade do contributo que os consumidores de drogas poderiam trazer à comunidade de que fazem parte. O custo social e económico do abuso das drogas é, pois, exorbitante, em particular se se atentar nos crimes e violências que origina e na erosão de valores que provoca”.

Volvendo ao caso concreto.

O recorrente AA, após prévio acordo com o recorrente DD, procedeu a partir de S. Paulo ao transporte de cocaína, que se destinava a ser entregue já em Portugal ao dono do negócio, o co-arguido Lourenço, sendo o transporte uma das muitas condutas previstas no artigo 21º em que o legislador presumiu o perigo que a norma pretende esconjurar, como se expressou o acórdão de 02-04-1986, BMJ 356, 126.

Como se referia no acórdão do STJ de 18-02-1996, BMJ 354, 331, realizado o transporte fica criado o perigo que, com a proibição, se pretendeu evitar.

Com o transporte da substância referida consumado ficou o crime, pouco importando as motivações dos arguidos, pois a lesão efectiva que viesse a ter lugar não fazia parte do tipo substanciado neste específico iter, erigido em conduta bastante e suficiente para configurar o delito pelo perigo que ele próprio envolve de vir a cocaína a ser traficada, no sentido de introduzida no circuito de distribuição final, sendo, pois, suficiente a matéria de facto apurada para integrar o crime de tráfico por que foram condenados os recorrentes.

Já nos acórdãos da Relação do Porto de 11-05-1983, CJ 1983, Tomo 3, 281 e de Lisboa, de 28-07-1982, CJ 1982, tomo 4, 142, se defendia não ser necessário que o produto chegasse à posse do destinatário, por ser apreendido na Alfândega ou por ter sido descoberta a remessa por correio.

Da medida da pena
O recorrente AA, em linha subsidiária, nas conclusões 14ª a 17ª defende ser desproporcional a pena de 6 anos, pedindo a sua redução.
Para tanto invoca o facto de o produto estupefaciente não ter sido concretamente distribuído a quem quer que fosse, ser primário e só ter aceite realizar o transporte por dificuldades económicas.
O recorrente DD, na mesma linha, mas sempre no pressuposto erróneo de ter sido condenado por tráfico simples, pedira a redução da pena para o mínimo da moldura legal - conclusões 12ª a 17ª – invocando ser primário, ter o apoio dos pais, trabalhar e estar inserido socialmente, não possuindo o material usual nos traficantes: o material de corte e balança, havendo que admitir poder ser um “correio de droga”, para além de não alcançar a diferenciação das penas aplicadas aos arguidos.

Há que ponderar a medida concreta da pena a aplicar a cada arguido, face à convolação/desqualificação operada, sendo a moldura abstracta a ter em conta a de pena de prisão de 4 a 12 anos.
A 3ª alteração ao Código Penal operada pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, proclamou a necessidade, proporcionalidade e adequação como princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental, introduzindo a inovação constante do artigo 40º, ao consagrar que a finalidade a prosseguir com as penas e medidas de segurança é «a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade».
Com esta reformulação do Código Penal, como se explica no preâmbulo do diploma, não prescindiu o legislador de oferecer aos tribunais critérios seguros e objectivos de individualização da pena, quer na escolha, quer na dosimetria, sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional, de que em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa, dispondo o nº 2 que «Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».
Em consonância com estes princípios dispõe o artigo 71º, nº 1, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção; o nº 2 elenca algumas das circunstâncias a atender na determinação concreta da pena, dispondo o nº 3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, injunção com concretização adjectiva no art. 375º, nº 1 do CPP, ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.
O juiz está vinculado aos módulos - critérios de escolha da pena constantes do artigo 71º do C. Penal (preceito que a alteração introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, deixou intocado, como de resto aconteceu com o artigo 40º).
De acordo com o Professor Figueiredo Dias, nas Lições ao 5º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, p. 279 e seguintes: «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo de medida (sentido estrito ou de «determinação concreta») da pena.
As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena».
Anabela Miranda Rodrigues, O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril/Junho de 2002, pág. 147 e ss., apresenta três proposições em jeito de conclusões e da seguinte forma sintética:
“Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas”.
E termina: “É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, directamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente”.

Versando o caso concreto.
No que respeita ao recorrente AA, a confissão pouco ou nada relevaria face à circunstância de ter sido detectado em flagrante.
Releva já o motivo por que se dispôs a efectuar o transporte e que foi o de angariar dinheiro para suprir as dificuldades económicas sentidas no Brasil, encontrando-se desempregado e em situação económica precária.
Recebeu contraprestação retributiva da actividade de transporte, correspondendo o percebido a um salário, não a uma comparticipação no negócio.
De atender à colaboração que prestou à PJ no sentido de ser identificado e detido o dono da droga transportada, a partir de telefonemas em que não deu a entender encontrar-se detido.
A considerar o facto de se estar perante um acto isolado de transporte, não sendo conhecidos antecedentes criminais ao recorrente.
A ponderar ainda as prementes exigências de prevenção geral neste tipo de crimes.
O arguido esteve preso desde 5 de Abril de 2004 a 15 de Setembro de 2007, dia em que foi libertado, por força da entrada em vigor da nova redacção do CPP, residindo desde então, de acordo com informação no processo, na Ilha da Madeira.
Tendo em conta os padrões sancionatórios em casos de correio de droga, em situações de transporte internacional de drogas duras, que se situam entre os 4 anos e 6 meses e os 6 anos e 6 meses de prisão, entende-se como proporcional a fixação da pena no específico quadro presente em 5 anos e 2 meses de prisão.

No que respeita ao recorrente DD
A matéria de facto provada não consente a sua qualificação como “correio de droga” só por a cocaína ter sido apreendida em bruto, como pretende o recorrente - conclusão 16ª -, pois que tal papel foi desempenhado exactamente pelo co-arguido AA.
Normalmente o correio é interveniente aparente, sendo oculto o destinatário, o que não ocorreu neste caso em que este também foi identificado e detido. Muito diversamente, é o dono do negócio.
Absolutamente irrelevante o argumento constante da conclusão 15ª, de que o recorrente não possuía o material usual nos traficantes: o material de corte e balança, alegando ter sido revistada a casa de seus pais, onde permaneceu toda a tarde, não tendo sido encontrado aquele ou outro material.
É por demais evidente que o recorrente não traria tais materiais de S. Paulo, pois que são bens de muito fácil e rápida aquisição no mercado nacional, não se vendo por outro lado que urgência teria o recorrente em arranjar esses materiais quando tinha acabado de chegar do Brasil, convivendo com os Pais que não via há algum tempo (cfr. motivação quando se reporta ao declarado pela Mãe do arguido neste particular) e não sendo ainda sequer detentor do produto, e por outro lado ainda, não era obviamente plausível que os Pais os tivessem em sua casa.
No que respeita à diferenciação das penas aplicadas aos arguidos que o recorrente diz não alcançar - conclusão 17ª – e como justificação para o pedido da sua redução, referiu na motivação o recorrente o seguinte: «Não sendo de mais relembrar, que o aqui recorrente, é ele próprio, também uma vítima do consumo de drogas», o que constitui discurso discrepante com o afirmado anteriormente, a fls. 1095, na motivação de recurso anterior, em que dizia: «Apesar de ter sido consumidor de estupefacientes, como o próprio admitiu, emigrou para o Brasil, com o intuito de fazer uma “cura geográfica”. Manifestou, assim, vontade de sair do obscuro mundo da droga».
A este propósito ficou provado que aquando da detenção o recorrente tinha em seu poder uma prata com resíduos de um produto em cuja composição figurava heroína e que foi para o Brasil há mais de 10 anos após processo frustrado de afastamento do meio dos produtos estupefacientes - cfr §§ 6 e 10 dos factos provados.
No caso não é o consumo que obviamente está em causa, mas antes a introdução no País de 4 quilos de cocaína.
Quanto à referida diferenciação de penas, há que ter em conta que a medida concreta de uma pena aplicada a um arguido não se afere pela medida concreta da pena aplicada a outro arguido.
A culpa é pessoal e intransmissível.
A situação do co-arguido AA é bem diversa da do arguido DD, não podendo ter tratamento igual ou semelhante o que é desigual.
A intervenção do arguido AA foi mais diminuta, limitou-se a ser transportador.
De atender à qualidade (reveladora de considerável ilicitude dentro daquela que caracteriza o tipo legal) e à quantidade do produto apreendido, sendo esta relevante para aferição de uma visão global do facto, nesta perspectiva, como se deixou expresso supra ao abordar a questão da desqualificação do crime, pela perigosidade que envolve, pois caso entrasse no mercado era susceptível de ser distribuída por grande número de pessoas, permitindo a sua repartição por elevado número de doses individuais e propiciando alcançar remuneração a níveis muito consideráveis.
O arguido actuou com dolo intenso substanciado na relevante quantidade de produto que fez transportar.
As razões e necessidades de prevenção geral positiva ou de integração - que satisfaz a necessidade comunitária de afirmação ou mesmo reforço da norma jurídica violada, dando corpo à vertente da protecção de bens jurídicos, finalidade primeira da punição - são muito elevadas, impostas pela frequência do fenómeno e do conhecido alarme social e insegurança que estes crimes em geral causam e das conhecidas consequências para a comunidade a nível de saúde pública e efeitos colaterais, justificando resposta punitiva firme.
Beneficia o recorrente de não ter antecedentes criminais.
Ponderando todos os elementos referidos, afigura-se-nos proporcional fixar a pena em sete anos e oito meses de prisão.

Pelo exposto, acordam neste Supremo Tribunal:

1. Recurso do arguido DD

1.2 - Julgar improcedente a arguida nulidade de omissão de pronúncia;
1.3 - Rejeitar, por manifesta improcedência, o recurso na parte em que respeita à alegada ilegal valoração da prova produzida e à violação do princípio in dubio pro reo
1.2 - Conceder parcial provimento, e após a convolação operada, condená-lo pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. p. pelo artigo 21º do DL 15/93, na pena de sete anos e oito meses de prisão
1. 3 – Manter o mais decidido no acórdão recorrido.

2. Recurso do arguido AA

2.1 - Conceder parcial provimento, e após a convolação operada, condená-lo pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. p. pelo artigo 21º do DL 15/93, na pena de cinco anos e dois meses de prisão.
2. 2 - Manter o mais decidido no acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes, nos termos do artigo 513º, nº 1 do CPP e 74º, 87º, nº 1, alínea a) e 89º do CCJ, com taxas de justiça de 8UC para o DD e de 5 UC para o AA, sendo aquele ainda, nos termos do artigo 420, nº 4 (actual nº 3) do CPP, na importância de 8 UC.
Honorários de acordo com a Tabela constante da Portaria nº 1386/2004, de 10/11 – artigo 2º, nº1 e Anexo, ponto 3.4.
Foi observado o disposto no artigo 94º, nº 2 do CPP.

Lisboa, 5 de Dezembro de 2007

Raul Borges (relator)
Soreto de Barros
Armindo Monteiro
Santos Cabral