Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B2999
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: QUIRINO SOARES
Descritores: EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA
INDEMNIZAÇÃO
MORA
RECURSO
DEPÓSITO
Nº do Documento: SJ200210240029997
Data do Acordão: 10/24/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 1195101
Data: 03/21/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Área Temática: DIR EXPROP.
Legislação Nacional: CEXP91 ARTIGO 1 ARTIGO 50 N4 ARTIGO 51 N3 ARTIGO 64 N2 ARTIGO 68.
CPC67 ARTIGO 47 N3 ARTIGO 802.
CCIV66 ARTIGO 279 ARTIGO 805 N3.
Legislação Comunitária:
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1999/02/03 IN BMJ N484 PAG307.
Sumário : De mora do expropriante quanto ao pagamento da indemnização fixada em recurso da arbitragem só é legítimo falar depois do trânsito em julgado e decorrido o prazo de 10 dias referido no art. 68 n. 1 CEXP91, o que não é prejudicado pela atribuição do efeito devolutivo ao recurso da decisão da 1ª instância.
A exigibilidade, pressuposto da execução, não implica a mora do devedor, apenas o vencimento da dívida.
Na justa indemnização por expropriação por utilidade pública a sua exigibilidade é imediata.
Nada impede que o expropriado requeira provisoriamente a execução da sentença recorrida.
O prazo de 10 dias para o expropriante depositar o montante da indemnização ainda em dívida tem natureza substantiva.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. No processo de expropriação por utilidade pública que correu entre A, como entidade expropriante, e B e outros, os expropriados recorreram do acórdão dos árbitros, tendo obtido substancial ganho de causa, pois, de uma indemnização global de 17.200.000$00, passaram para uma, também global, de 141.579.610$00.
A decisão data de 30.06.93, e a A recorreu para a Relação de Lisboa, recurso de que veio a desistir em 12.04.94, já na fase de alegações.
Por despacho do relator, de 14.04.94, a desistência foi homologada, e logo em 2 de Maio, os expropriados requereram a notificação da A para depositar a quantia remanescente, isto é, 124.379.610$00.
A A, notificada deste requerimento, disse, em 13 de Maio, que aguardava notificação nos termos do n. 1, do art. 68, C.Exp91 (1).
O processo foi, então, devolvido à 1ª instância, por o relator ter considerado que a apreciação do requerimento tinha, ali, o local próprio.
Então, após novo requerimento dos expropriados nesse sentido, feito em 14 de Julho, a A acabou por ser notificada, em 19 do mesmo mês, para depositar na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do processo, a quantia remanescente, e no prazo de dez dias.
O depósito foi realizado em 30.09.94.
Em 17 de Maio do ano subsequente, por carta subscrita pelo respectivo advogado, os expropriados interpelaram a A para lhes pagar 23.321.177$00 de juros de mora à taxa legal, correspondentes ao período que mediou entre a data da sentença em 1ª instância e o depósito do remanescente.
A "A" recusou, e daí a acção a que se reporta o presente recurso.
As instâncias basearam-se no art. 68, n. 1, CExp91 e no art. 144, n. 3, CPC67 (2), para decidir que há, com efeito, direito a juros de mora, à taxa legal, mas apenas a partir de 28.09.94, portanto, pelo período de apenas dois dias (entre aquele 28/9 e 30/9, data esta em que foi efectuado o depósito do remanescente);
dizem: antes de interpelada, nos termos daquele artº68º, e de decorridos os dez dias ali previstos, a entidade expropriante está em tempo de depositar o devido, e, por aquele ser um prazo processual, que, então, se suspendia em férias e feriados, sábados e domingos, o termo alongou-se até o referido dia 28/9.
Os expropriados não se conformam e continuam a defender a posição que já haviam manifestado na atrás referida interpelação extrajudicial, prévia à acção.
Sustentam, por um lado, que o acórdão recorrido é nulo, nos termos das disposições dos arts. 668, n. 1, d, aplicável por força do 716, n. 1, ambos do CPC, porque não se pronunciou sobre o problema da aplicabilidade do disposto na 1ª parte do n.º3, do art. 805, CC (3), levantado pelos recorrentes nas respectivas alegações perante a Relação;
reafirmam, por outro lado, que a mora existe desde a decisão em 1ª instância, argumentando assim:
- a disposição legal aplicável é a da 1ª parte do n. 3, do art. 805, CC, uma vez que, tendo recorrido da decisão da 1ª instância e depois desistido inexplicavelmente do recurso, os expropriados são culpados da iliquidez da dívida, que, assim, deve considerar-se em mora desde a data daquela decisão;
- deve distinguir-se entre liquidez e exigibilidade para concluir que a dívida se encontra liquidada desde a decisão em 1ª instância, vencendo juros desde então, não sendo, porém, exigível antes da interpelação a que se reporta o citado art. 68, n. 1, CExp91;
- se interpretado como nas instâncias, o art. 68 n. 1, CExp91 é materialmente inconstitucional, por violação do princípio fundamental da igualdade, uma vez que discrimina negativamente os credores de indemnização por expropriação dos demais credores de obrigações pecuniárias, e, mesmo, ilegal, porque contraria a regra do art. 64, n. 2, esvaziando-a completamente de sentido;
- em todo o caso, mesmo que o art. 68, n.º1, CExp91 deva ser aplicado com o sentido acolhido na decisão recorrida, o prazo para a A depositar a quantia remanescente teria terminado em 1 de Agosto e não em 28 de Setembro, porque o prazo indicado naquele preceito tem natureza substantiva e não processual.
2. Quanto à alegada nulidade do acórdão recorrido, pouco há a dizer.
A questão suscitada ao tribunal a quo era a da mora da expropriante, que os recorrentes afirmaram e justificaram através de diversos argumentos de ordem jurídica.
A Relação solucionou a questão com base nos argumentos que entendeu adequados e bastantes.
A Relação apenas devia conhecer e decidir a questão da mora da expropriante.
E fê-lo.
Não lhe era exigível uma pronúncia sobre todos e cada um dos argumentos das partes.
A ideia de alargar assim o dever de pronúncia do tribunal constitui um recorrente equívoco da prática recursória, responsável por muita da inútil litigiosidade que invade os tribunais superiores.
3. Segundo o entendimento corrente, o artº68º, CExp91 (tal como o precedente art. 100, CExp76 e o subsequente art. 71, n.º1, CExp99) introduz, na área processual das expropriações por utilidade pública, e no que respeita à decisão sobre o montante indemnizatório, uma limitação ao efeito meramente devolutivo que o mesmo código, no art. 64, atribui ao recurso para a Relação.
Segundo o dito entendimento, não obstante o n.º2, deste último artigo, atribuir efeito meramente devolutivo ao recurso da decisão em 1ª instância, está vedado ao expropriado avançar para a execução, porque, antes do trânsito em julgado, a dívida de indemnização não é líquida nem é exigível, apenas se tornando líquida e exigível após o trânsito em julgado da decisão final.
É, de igual modo, corrente uma interpretação do art. 68, n.º1, CExp91, segundo a qual o expropriante só fica constituído em mora quanto ao pagamento da indemnização depois de interpelado judicialmente, nos termos daquele preceito, e depois de decorrido o prazo de dez dias sobre a interpelação.
No que se refere à mora do expropriante, não é, com efeito, aceitável outro entendimento.
O sistema do CExp91 impõe que o pagamento da indemnização seja efectuado sob rigorosa tutela do tribunal, à ordem do que é feito o depósito da quantia definitivamente atribuída e sob cuja orientação são feitos os pagamentos aos interessados.
Portanto, de mora do expropriante quanto ao pagamento da indemnização fixada em recurso da arbitragem, só é legítimo falar depois do trânsito em julgado e depois de decorrido o prazo de dez dias contemplado naquele n.º1, do art. 68.
Esta afirmação em nada é prejudicada pela atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso da decisão em 1ª instância, tal como dispõe o n.º2, do art. 64, CExp91, ainda que, desta disposição, se não tenha o entendimento redutor supra aludido.
É que o efeito meramente devolutivo do recurso, isto é, não suspensivo da decisão recorrida, tem natureza estritamente processual, nada tem a ver com o efeito substantivo da constituição em mora.
A exigibilidade, que é pressuposto da execução (artº802º, CPC) não implica a mora do devedor; significa, apenas, que a dívida se venceu e que, portanto, já é lícito ao credor exigir o cumprimento (cfr. art. 777, n.º1, CC); o crédito pode estar vencido, ser exigível, mas a correspondente dívida pode não estar em mora, bastando, p. ex., que, ao contrário do que sucede, p. ex., com as obrigações provenientes de facto ilícito, a lei exija (e fá-lo, aliás, em regra) a interpelação do devedor (cfr. art. 805, n.º1, e n.º2, b, CC).
No caso da justa indemnização por expropriação por utilidade pública, a sua exigibilidade é imediata, por efeito da tendencial contemporaneidade entre o respectivo pagamento e a declaração de utilidade pública (cfr. artº1°, CExp91).
Aliás, o efeito meramente devolutivo atribuído ao recurso da decisão em 1ª instância será, mesmo, uma inelutáveI consequência deste princípio da contemporaneidade; não um meio ou modo de "salvaguardar a adjudicação de propriedade e posse à expropriante feita pelo juiz nos termos do art. 50, n.º4, do Código das Expropriações ", como se diz, p. ex., no Ac. STJ de 3.2.99, in BMJ (4) n.º484. pag.308, pois o recurso da arbitragem (e é deste recurso que se trata quando, no art. 64, n.º1, se lhe atribui efeito meramente devolutivo) nada tem a ver com o despacho de adjudicação da propriedade e posse ao expropriante, a que se reporta o n.º4, do art°50°, CExp91.
Vem a propósito dizer que uma outra solução legal com fonte no mesmo princípio da contemporaneidade é a do n.º3, do artº51º, CExp91, segundo o qual o juiz deve atribuir imediatamente aos interessados o montante sobre o qual se verifique acordo, quando haja recurso da decisão arbitral.
Portanto, nada impede, em princípio, que o expropriado dê à execução, mas nos termos provisórios que resultam do n.º3, do art°47°, C PC, a sentença recorrida (5).
Mas isso, como se disse, nada tem que ver com a mora, que, repete-se, deriva de princípios de natureza substantiva, designadamente, os estabelecidos no art. 805, CC, em que avulta o de que ela não existe sem interpelação judicial ou extrajudicial (n.º1).
E, no caso da indemnização por expropriação por utilidade pública, a interpelação está expressamente contemplada no citado art. 68, n. 1, CExp91.
- Por força desta última disposição, o expropriante só fica constituído em mora do pagamento da indemnização após o decurso do prazo ali prescrito, que se inicia com a notificação judicial para efectuar o depósito do devido.
E nisto não há qualquer vício de inconstitucionalidade, por violação do principio da igualdade, consagrado no art. 13, n. 1, Const92 (6), pois a regra civilística in iliquidis non fit mora, é precisamente a que dá espírito à regra geral do n. 3, do art. 805, CC.
- Nos casos de abuso, por parte do expropriante, do direito de reclamar, requerer ou recorrer, não custa a aceitar o entendimento, que é possível tirar da ressalva contida na primeira parte do mesmo n.º3, do art. 805, CC, de que a anormal demora do trânsito em julgado da decisão final que resulte directamente daquele abuso deva penalizar o expropriante, responsabilizando-o por isso, que o mesmo é dizer, julgando-o devedor em mora desde a data em que, normalmente, se teria consolidado o julgado.
Os recorrentes dizem isso mesmo da actuação processual da A após a prolação da sentença.
E, na verdade, não foi um procedimento muito linear o da expropriante, após a decisão do recurso em 1ª instância.
O certo, porém, é que se é difícil concretizar as limitações impostas pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico, que fazem a fronteira material entre o uso e o abuso dos direitos (art. 334, CC), mais o é quando se trata de direitos de raiz puramente processual, como são o direito ao recurso e à respectiva desistência, direitos de que, à partida, estão excluídas preocupações éticas ou morais ou finalidades sociais ou económicas.
E, com efeito, ainda que se possa dizer que, actuando como actuou, a expropriante conseguiu retardar por alguns meses a entrega de uma considerável quantia de que, entretanto, desfrutou (não sem a involuntária ajuda de alguma morosidade processual), já se não poderá, com a mesma afoiteza, afirmar que usou maliciosamente o direito de recorrer e de desistir do recurso, com acentuado e intencional desvio dos fins, abusando de tais direitos.
Não é fácil escapar ao argumento de que, afinal, usou de um direito (o de recorrer) e de uma faculdade (a de desistir do recurso) que o sistema legal lhe confere, e cuja actuação conjugada contém em si, independentemente de qualquer intenção malévola, o germe do efeito deletério contra o qual os recorrentes se insurgem.
- Numa coisa, porém, os recorrentes estão carregados de razão.
O prazo de 10 dias que o n.º1, do art°68°, CExp concede ao expropriante para depositar o montante da indemnização ainda em dívida não é um prazo processual, a que se apliquem as regras de contagem do art°144°, n.º2 e 3, C PC, na redacção então vigente, nomeadamente, a
da suspensão durante férias, sábados, domingos e dias feriados.
Esse prazo, tal como, p. ex., o prescrito na parte final do n.º1, do art. 1410, CC, respeita à prática de um acto relacionado com o processo, mas a ele estranho.
O depósito a que se reporta o n.º1, do art°68°, CExp, tal como o depósito imposto no citado n. 1, do art. 1410, CC, não é um acto processual, e daí que o prazo em que, segundo a lei, deve ser praticado tenha natureza substantiva e um regime de contagem (cômputo do termo) retirado do art. 279, CC, designadamente, das alíneas b) e e).
Trata-se de um acto com implicações processuais, é certo, mas, em todo o caso, um acto de natureza puramente substantiva ou material, por oposição a formal ou processual, na justa medida em que satisfaz ou dá cumprimento à obrigação de indemnização correspectiva do acto expropriativo.
Tendo tudo isso em conta, o prazo para a A efectuar o depósito iniciou-se no 3º dia posterior ao do registo da carta de notificação, tendo em conta n. 3, do art. 1, DL 121/76, de 11/2, vigente à data.
Essa notificação é, como os recorrentes dizem, a efectuada em 1ª instância, depois da baixa do processo, em 19.7.94, e, por isso, o prazo terminou, com efeito, em 1.8.94.
Portanto, quando depositou, em 30.9.94, o resto da indemnização, a A estava em mora há 59 dias.
À data, era de 15% a taxa de juro legal (Portaria 339/87, de 24/4), e assim, considerando, também, que o devido a todos os autores era 123.936.065$00, e o devido só aos autores C e mulher era 443.545$00, estavam vencidos, à data do tardio pagamento, 3.005.024$60 relativos à primeira quantia, e 10.754$50, respeitantes à segunda.
É óbvio que, com o depósito, em 30.9.94, a mora terminou e só ficaram por pagar os juros.
Neste caso, não funcionou a presunção do n. 1, do art. 785, CC (imputação prioritária do débito de juros), visto que o depósito tem um conteúdo e um destino bem preciso: a indemnização, tal como foi definitivamente fixada.
Quanto aos juros sobre aquelas quantias, vale o que disseram as instâncias: existe mora desde a citação, sem que isso implique anatocismo.
É, ao fim e ao cabo, a aplicação do mesmo princípio que justifica a segunda parte do n. 1, do art. 560, CC.
4. Pelo exposto, concedem parcialmente a revista, e, em consequência, condenam a ré pagar, a todos os autores a quantia de 14.989 (catorze mil novecentos e oitenta e nove) euros, que correspondem, hoje, aos 3.005.024$60 acima ditos, e só aos autores C e mulher a de 53,64 euros (cinquenta e três euros e sessenta e quatro cêntimos), correspondentes aos ditos 10.754$50, acrescidas de juros à taxa legal desde a citação.
Custas, aqui e nas instâncias, por autores e ré, na proporção do vencido.

Lisboa, 24 de Outubro de 2002
Quirino Soares,
Neves Ribeiro,
Araújo de Barros.
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(1) Código da Expropriações, aprovado pelo DL 438/91, de 9/11, o aplicável, atenta a data do acto expropriativo e a do próprio processo de expropriação.
(2) Código de Processo Civil, na versão que precedeu a reforma de 95/96, que era a vigente à data
(3) Código Civil
(4) Boletim do Ministério da Justiça
(5) No entanto, em sentido contrário, cfr. acórdão STJ de 3.2.99, in BMJ 484º/307.
(6) Constituição da República Portuguesa, versão de 1992, vigente à data