Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7062/16.7T8LSB-E.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: AÇÃO EXECUTIVA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
LITISPENDÊNCIA
CAUSA DE PEDIR
AÇÃO CAMBIÁRIA
HIPOTECA
CRÉDITO HIPOTECÁRIO
PENHORA
CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO
Data do Acordão: 06/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O debate doutrinal a respeito da causa de pedir, e da própria possibilidade de existir uma litispendência na ação executiva, reconduz-se a duas posições: uma que identifica a causa de pedir com o título jurídico, judicial ou extrajudicial, que serve de fundamento à ação e cumpre a função de título executivo, e outra que entende que a causa de pedir na ação executiva é a causa debendi, ou seja, os factos dos quais decorre o poder de aquisição da prestação.

II – Mesmo perante a diversidade de entendimentos acerca do que constitui a causa de pedir na ação executiva, baseando-se a execução numa ação cambiária e a reclamação de créditos na constituição de uma hipoteca, a mera circunstância de se concluir que materialmente ambos os créditos decorrem do mesmo contrato de abertura de crédito não surge como suficiente para considerar preenchido o fundamento da exceção dilatória de litispendência.

III – Uma vez que o crédito invocado no apenso de reclamação de créditos integra o crédito invocado no processo principal, decide-se não haver, no presente processo, qualquer crédito reclamado a verificar, prevenindo-se, assim, a hipótese de cobrança duplicada do mesmo crédito, mas declara-se que, por referência ao produto da venda do imóvel, a CGD beneficia em 1.º lugar da garantia hipotecária até ao valor do capital e três anos de juros e em 2.º lugar da penhora até ao limite da execução.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório


1. A CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., pessoa coletiva n.º ….., com sede na Av. ……. – …., por apenso à execução onde são executados AA e OUTROS, veio, ao abrigo do disposto no artigo 788.º do Código de Processo Civil (CPC), apresentar Reclamação de créditos, alegando, para o efeito, o seguinte:

Por escritura pública celebrada em 08.03.2004, os ora executados, AA (NIF ….) e mulher, BB (NIF …), para garantia: a) das obrigações pecuniárias assumidas ou a assumir pela sociedade ora executada, NEODIFAR - PRODUTOS FARMACÊUTICAS, LDA. (NIF ….), perante a Caixa Geral de Depósitos, S.A., decorrentes de quaisquer operações bancárias, nomeadamente mútuos, aberturas de crédito de qualquer natureza, descobertos em contas à ordem, letras, livranças, cheques, extratos de fatura, warrants, garantias bancárias, fianças, avales e empréstimos obrigacionistas, até ao montante de  € 240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros); b) respetivos juros à taxa anual de 11,450% ao ano, acrescida de uma sobretaxa até 4% ao ano, em caso de mora, a título de cláusula penal; c) e despesas fixadas para efeitos de registo em nove mil e seiscentos euros, constituíram HIPOTECA GENÉRICA, a favor da ora Reclamante, sobre a Fração Autónoma letra “….”, correspondente ao …. andar … do prédio urbano sito na Rua … e Rua …., freguesia  …., concelho  …, descrito na …... Conservatória do Registo Predial de …. sob o n.º 3881/…. e inscrito na matriz da referida freguesia sob o artigo n.º …74, com todas as suas pertenças e benfeitorias, presentes e futuras, hipoteca que se encontra registada na respetiva Conservatória através da inscrição AP. ….. de 2004/02/25.

No exercício da sua atividade creditícia, a ora Reclamante celebrou, em 23.05.1997, com a sociedade NEODIFAR – PRODUTOS FARMACÊUTICAS, LDA., (NIF ….), um CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO EM CONTA-CORRENTE, a que foi atribuído o n.º PT …92, formalizado por documento particular com reconhecimento de assinaturas.

No âmbito do contrato em apreço, a credora reclamante concedeu à mutuária um limite de crédito até ao montante de 20.000.000$00 (vinte milhões de escudos), a que corresponde atualmente o contravalor de € 99.759,58 (noventa e nove mil setecentos e cinquenta e nove euros e cinquenta e oito cêntimos).

O referido crédito teve por finalidade o apoio temporário à tesouraria.

O contrato foi celebrado pelo prazo de 6 meses, automaticamente renovável por períodos iguais e sucessivos.

Clausulou-se no citado contrato que o capital em dívida venceria juros a uma taxa correspondente à “Prime Rate” de curto prazo, divulgada pela Caixa nos termos legais, acrescida de 0,125%, donde resultava, na altura, a taxa de juro nominal de 9,25% ao ano.

As utilizações e os reembolsos previstos no citado contrato seriam efetuados através da conta de depósito à ordem n.º …30, constituída em nome da mutuária na agência da credora reclamante sita em …..

Foi também acordado que, em caso de mora, a Caixa poderia cobrar, sobre o capital exigível e juros correspondentes aos períodos mínimos legalmente previstos, comissões e outros encargos, juros calculados à taxa mais elevada de juros remuneratórios que, em cada um dos dias em que se verificar a mora, estiver em vigor na credora reclamante para operações ativas da mesma natureza (na altura 14,875%), acrescida de uma sobretaxa até 4%.

Para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes da presente abertura de crédito, foi entregue à Caixa, aquando do contrato inicial, uma livrança em branco, subscrita pela sociedade devedora e avalizada pelos ora executados, AA (NIF …) e mulher, BB (NIF ….) e por CC (NIF ….) e cônjuge, DD (NIF …..) e EE (NIF …..).

O contrato em apreço foi objeto de alteração contratual, formalizada através de documento particular com reconhecimento presencial de assinaturas, em fevereiro de 2000, no âmbito da qual as partes convencionaram que o prazo passaria a ser de 30 meses, terminando em 02.06.2002.

Em 20.05.2012, o contrato teve nova alteração contratual, através de documento particular com reconhecimento de assinaturas, tendo sido acordado entre as partes proceder à alteração das cláusulas do prazo, das comissões e dos pagamentos.

Clausulou-se na citada alteração contratual que o prazo seria automaticamente prorrogado por períodos de 12 meses, iguais e sucessivos.

O referido contrato foi ainda objeto de outra alteração contratual, em 08.03.2004, celebrada entre a reclamante  e a sociedade NEODIFAR PRODUTOS FARMACÊUTICAS, LDA., como primeira contratante na qualidade de mutuária e com os ora executados AA e mulher, BB e com CC e cônjuge, DD e EE e cônjuge, FF (NIF ….), como segundos contratantes na qualidade de fiadores/avalistas, formalizada mediante documento particular, com reconhecimento de assinaturas.

Ficou acordado que o prazo seria até 02.06.2004, sendo automaticamente renovado por períodos semestrais, iguais e sucessivos, passando o limite de crédito a ser até ao montante de € 200.000,00.

Ficou ainda clausulado no citado contrato que a abertura de crédito venceria juros a uma taxa correspondente à EURIBOR a três meses, arredondada para um quarto por cento superior, em vigor na data do início de cada período de contagem de juros, acrescida de um “spread” de 2,00%, donde resultava, tomando com referência a informação conhecida das partes no momento da celebração da alteração ao contrato, a taxa de juro nominal de 4,25% ao ano.

O crédito destinou-se a apoiar a Empresa para ocorrer a necessidades temporárias de tesouraria.

Para titulação de todas as responsabilidades decorrentes da operação, a sociedade devedora entregou à Caixa, uma Livrança em Branco por si subscrita e avalizada pelos aqui executados e restantes avalistas, autorizando desde logo a reclamante a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostrasse necessário, a juízo da própria Caixa.

Com o incumprimento das obrigações emergentes do contrato supra descrito, encontra-se em dívida à ora reclamante, à data de 17.01.2017, o montante de € 187.439,94, de que não prescinde, mas que aqui, na sua qualidade de credora reclamante, reduz a capital e três anos de juros, no montante de € 98.559,83, conforme se discrimina: Capital € 67.345,29; Juros de 18.01.2014 a 17.01.2017 € 31.214,54, o que perfaz o total de € 98.559,83.

A partir da mencionada data de 17.01.2017, o débito agravar-se-á, quanto a juros vincendos, em € 28,51, por dia, encargo correspondente a juros calculados à taxa atualizada de 15,45%, a qual nos termos contratuais integra a sobretaxa de mora de 3% ao ano nos termos do art.º 8.º do Decreto-Lei n.º 58/2013, de 8 de maio.

Ao total de juros acresce a taxa de 4% correspondente ao Imposto do Selo da verba 17.2 da respetiva Tabela Geral.

Os créditos reclamados e respetivos juros, vencidos e vincendos, estão consubstanciados em título executivo, de harmonia com o disposto no artigo 703.º, n.º 1, alínea b) do Código do Processo Civil e nos termos do n.º 4 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto. Acrescem as despesas extrajudiciais de responsabilidade dos devedores que a reclamante efetue oportunamente, nos termos dos contratos e das disposições da lei.

E gozam de garantia real sobre os bens penhorados na presente execução, nos termos do artigo 686.º e seguintes do Código Civil.

Os mencionados créditos estão vencidos e são exigíveis.

Concluiu, pedindo:

a) que seja admitida a reclamação;

b) que seja verificado e reconhecido os créditos da Caixa Geral de Depósitos acima especificados, no montante total de € 98.559,83.

c) Que sejam graduados tais créditos no lugar que, pela sua preferência legalmente lhes competir, para serem pagos pelo produto da venda do bem penhorado.

2. Notificados para o efeito, os executados AA, BB e OUTROS, impugnaram a Reclamação de créditos, alegando que a exequente veio apresentar reclamação do mesmo crédito exequendo.

Com efeito, o crédito reclamado pela exequente coincide, integralmente, com o crédito exequendo, pelo que não se entende qual o objetivo visado com a reclamação de créditos.

Os executados deduziram oposição à execução, requerendo a sua absolvição, bem como que sejam julgadas procedentes todas as exceções invocadas.

Ora, a exequente veio precisamente reclamar os mesmos créditos que havia pedido na execução a que esta reclamação está apensa. Estamos, pois, perante uma coincidência absoluta entre o crédito reclamado e o crédito exequendo.

Conforme se constata, há identidade quanto aos sujeitos processuais, quanto ao negócio jurídico, empréstimo da exequente/reclamante à sociedade Neodifar, e de que os executados são avalistas, e quanto ao pedido.

Ora, a exequente, aqui reclamante, reduziu a dívida exequenda quanto ao capital para € 67.345,29.

Reconhece a Exequente/Reclamante que a dívida de capital que os executados lhes reconhecem dever, conforme alegam no requerimento de oposição à execução, é no montante de € 67.345,00.

Concluída a fase da penhora, são citados para a execução o cônjuge do executado, os credores do executado que sejam titulares de direito real de garantia. Pretende-se com a citação, permitir a intervenção na execução de outras pessoas, para além do exequente e executado.

A exequente não é terceiro na execução. Não lhe é, pois, permitido reclamar na execução que foi ela própria que intentou. Conforme decorre do disposto no artigo 788º do Código de Processo Civil, só são convocados os credores com garantia real sobre o bem penhorado, que não o exequente.

A sua convocação tem por finalidade fundamentalmente chamar ao processo os credores com garantia sobre os bens penhorados (ainda que, se for o caso, poderem os credores fazer valer o seu direito e obterem pagamento).

O concurso de credores é processado por apenso ao processo de execução, que é declarativo e se subordina àquele. Os pressupostos essenciais da reclamação são a titularidade de um crédito com garantia real sobre os bens penhorados e a existência de um título executivo.

Logo que estejam verificados todos os créditos reclamados deve o juiz graduá-los, ou seja estabelece a ordem pela qual devem ser satisfeitos, incluindo o crédito exequente, de acordo com as normas aplicáveis de direito substantivo.

A exequente não reclama novos créditos que tenham como garantia o bem penhorado; a exequente reclama o crédito exequendo. Nesse sentido coincide inteiramente o crédito exequendo, com o crédito reclamado, pelo que a reclamação não deve ser admitida.

Não foram deduzidas outras reclamações, pelo que, nem se coloca a questão da graduação de créditos, uma vez que o único crédito a ter em consideração é o crédito exequendo.

A reclamante não é um terceiro em relação à execução, e não vindo reclamar outro crédito, do qual tem garantia real sobre o bem penhorado, nunca poderia ver caducado o seu crédito, ou poderia ser afastada do concurso, caso tivessem sido admitidos outros reclamantes, pela simples razão que é a exequente.

A Exequente/Reclamante não precisa de reclamar o crédito exequendo, com garantia real sobre o bem penhorado, para ver graduado o seu crédito, no lugar que lhe compete.

Concluem, no sentido de que não deve ser admitida a reclamação de créditos.  

3. A exequente, notificada da impugnação apresentada, veio responder, nos termos do 790.º do Código de Processo Civil, concluindo pela improcedência da impugnação.

4. Findos os articulados, o tribunal proferiu o despacho datado de 23.09.2019, plasmado nos autos a fls. 93, o qual não mereceu oposição, vindo, aliás, a credora reclamante a aderir aos fundamentos do citado despacho.

 

5. O tribunal a quo fixou ao presente incidente de reclamação de créditos o valor indicado pela reclamante: € 98.559,83.

6. O tribunal de 1.ª instância decidiu o seguinte:

«Pelo exposto, decido julgar procedente a reclamação de créditos e, em consequência, reconheço o direito de crédito reclamado, procedendo à sua graduação da seguinte forma:

1. Crédito reclamado garantido por hipoteca;

2. Crédito exequendo.

Condeno ainda os executados no pagamento das custas do concurso de credores, as quais saem precípuas do produto dos bens em causa – art. 541.º do Código de Processo Civil».

 

7. Inconformados, os exequentes interpõem para este Supremo Tribunal recurso de revista per saltum, ao abrigo do artigo 678.º, n.º 1, do CPC, formulando as seguintes conclusões:

«1. Quer no processo principal, quer no apenso de reclamação de créditos, de que ora se recorre, a exequente reclama o mesmo crédito - o financiamento da exequente, CGD, à sociedade Neodifar – produtos farmacêuticos, Ld.ª.

2. No processo principal, a exequente, apresentou como título executivo uma livrança avalizada pelos executados, enquanto que, para reclamar o mesmo crédito, a exequente, no apenso – reclamação de créditos – apresentou, como título de executivo uma hipoteca.

3. A exequente reclamou créditos, por apenso à execução, e pediu o mesmo crédito exequendo do processo principal.

4. O Crédito reclamado pela exequente, coincide com o crédito exequendo.

5. Os executados foram condenados, no apenso de reclamação de créditos, a pagar à exequente o mesmo crédito, pese embora, agora, no apenso, com base em hipoteca, mas o fundamento, da execução, a causa de pedir é a mesma – o mesmo financiamento.

6. O crédito reclamado no apenso de reclamação de créditos é o mesmo da quantia exequenda, por quanto diz respeito à mesma importância financiada.

7. Nos autos recorridos, no processo principal, bem como, na reclamação de créditos apensa, os sujeitos processuais são os mesmos, o negócio jurídico é o mesmo (empréstimo da exequente/reclamante à sociedade Neodifar e de que os executados são avalistas), existe, pois, litispendência.

8. A litispendência pressupõe a repetição de uma causa, estando a anterior ainda em curso, e repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica à outra quanto aos sujeitos processuais, ao pedido e à causa de pedir (cfr. Art. 580.º e 581 do C.P.C.).

9. Decorre do disposto no artigo 788º n.º 1 do Código de Processo Civil, só são convocados os credores com garantia real sobre o bem penhorado, que não o exequente. Créditos diferentes do exequendo e não o crédito exequendo mas acionado com fundamento em garantia real.

10. A sentença recorrida violou o disposto no artigo 788.º n.º 1 do C.P.C.

11. A reclamação de créditos diz respeito a créditos diferentes daquele que deu origem ao processo executivo, artigo 791.º n.º 2 do C.P.C.

12. A sentença recorrida violou o disposto no artigo 791.º n.º 2 do C.P.C.

13. O concurso de credores é processado por apenso ao processo de execução, que é declarativo e àquele se subordina.

14. A exequente não reclama novos créditos que tenham como garantia o bem penhorado; a exequente reclama o crédito exequendo.

15. Os pressupostos essenciais da reclamação de créditos são a titularidade de um crédito com garantia real sobre os bens penhorados e a existência de um título executivo.

16. Logo que estejam verificados todos os créditos reclamados deve o juiz graduá-los, ou seja estabelece a ordem pela qual devem ser satisfeitos, incluindo o crédito exequente, de acordo com as normas aplicáveis de direito substantivo.

17. Não foram apresentadas outras reclamações de crédito, é a exequente, CGD a única credora.

18. Não se coloca a questão da graduação de créditos, uma vez que o único crédito a tomar em consideração é o crédito exequendo.

19.  Porque não há outros créditos reclamados sobre o mesmo bem, nada há a graduar.

TERMOS em que e nos mais de direito que, como habitual V. Exas. tão doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao presente recurso revogando-se a decisão recorrida e em consequência serem absolvidos os executados.

MAIS SE REQUER que o recurso seja diretamente apreciado pelo SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA porquanto, quer o valor da causa, quer o valor da sucumbência é superior ao valor da alçada da relação, porque são suscitadas apenas questões de direito nem são impugnadas decisões interlocutórias.

 

ASSIM SE FAZENDO A ACOSTUMADA JUSTIÇA».

8. A CGD, notificada da sentença, veio requerer a sua retificação, ao abrigo do artigo 614.º, n.º 1, do CPC, pedido deferido pelo tribunal de 1.ª instância, nos seguintes termos:

«Assiste razão à reclamante, impondo-se proceder à rectificação do lapso de escrita constante da sentença de graduação de créditos, nos termos do art. 614.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

Assim, onde se lê que “a reclamação de créditos fundou-se no Contrato de Abertura de Crédito celebrado em 12.12.2011”, deve ler-se “celebrado em 23.05.1997”.

9. Notificada das alegações de recurso dos recorrentes, a CGD nada veio dizer.

11. Em causa está um recurso interposto de uma decisão final proferida num processo de verificação e graduação de créditos apenso a uma execução, processo ao qual se aplicam os requisitos gerais de admissibilidade da revista sem limitações decorrentes da sua dependência de uma ação executiva (artigo 854.º do CPC).

Não se vislumbram obstáculos à admissão do recurso per saltum, encontrando-se reunidos todos os requisitos a que se refere o artigo 678.º, n.º 1, do CPC (valor da causa e de sucumbência, objeto do recurso composto apenas por questões de direito e inexistência de decisões interlocutórias impugnadas).

 

11. Sabido que o objeto do recurso, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, se delimita pelas conclusões da alegação de recurso, o tema essencial a decidir consiste em saber se deve haver lugar à verificação e graduação de créditos quando o crédito reclamado coincide com o crédito exequendo ainda que a execução e a reclamação de créditos deduzidas se fundem em diferentes títulos executivos.

 

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

A – Os factos

Por virtude da prova documental e acordo das partes, o tribunal a quo deu como provados os seguintes factos:

1. Por escritura pública celebrada em 08.03.2004, os executados, AA (NIF …) e mulher, BB (NIF …..), para garantia:

a) das obrigações pecuniárias assumidas ou a assumir pela sociedade executada, NEODIFAR - PRODUTOS FARMACÊUTICAS, LDA. (NIF …), perante a Caixa Geral de Depósitos, S.A., decorrentes de quaisquer    operações bancárias, nomeadamente mútuos, aberturas de crédito de qualquer natureza, descobertos em contas à ordem, letras, livranças,  cheques, extratos de fatura, warrants, garantias bancárias, fianças, avales e empréstimos obrigacionistas, até ao montante de 240.000,00€ (duzentos e quarenta mil euros);

b) respetivos juros à taxa anual de 11,450% ao ano, acrescida de uma sobretaxa até 4% ao ano, em caso de mora, a título de cláusula penal;

c) e despesas fixadas para efeitos de registo em nove mil e seiscentos euros, constituíram HIPOTECA GENÉRICA, a favor da ora Reclamante, sobre a Fração Autónoma letra “….”, correspondente ao …… andar ….. do prédio urbano sito na Rua ….. e Rua …., freguesia de ….., concelho de …., descrito na ….. Conservatória do Registo Predial  ….. sob o n.º 3881/… e inscrito na matriz da referida freguesia sob o artigo n.º ….74, com todas as suas pertenças e benfeitorias, presentes e futuras, conforme decorre da certidão da escritura pública e da certidão permanente tituladas pelos documentos de fls. 11ª a 16 e 17 a 22, cujo respetivo teor se dá por reproduzido.

2. Hipoteca que se encontra registada na respetiva Conservatória através da inscrição AP. …. de 2004/02/25.

3. No exercício da sua atividade creditícia, a ora Reclamante celebrou, em 23.05.1997, com a sociedade NEODIFAR – PRODUTOS FARMACÊUTICAS, LDA. (NIF ….), um CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO EM CONTA-CORRENTE, a que foi atribuído o n.º PT …., formalizado por documento particular com reconhecimento de assinaturas, conforme documento de fls. 23 a 28 cujo teor se dá por reproduzido.

4. No âmbito do contrato em apreço, a credora reclamante concedeu à mutuária um limite de crédito até ao montante de 20.000.000$00 (vinte milhões de escudos), a que corresponde atualmente o contravalor de € 99.759,58 (noventa e nove mil setecentos e cinquenta e nove euros e cinquenta e oito cêntimos).

5. O referido crédito teve por finalidade o apoio temporário à tesouraria.

6. O contrato foi celebrado pelo prazo de 6 meses, automaticamente renovável por períodos iguais e sucessivos.

7. Clausulou-se no citado contrato que o capital em dívida venceria juros a uma taxa correspondente à “Prime Rate” de curto prazo, divulgada pela Caixa nos termos legais, acrescida de 0,125%, donde resultava, na altura, a taxa de juro nominal de 9,25% ao ano.

8. As utilizações e os reembolsos previstos no citado contrato seriam efetuados através da conta de depósito à ordem n.º …...30, constituída em nome da mutuária na agência da credora reclamante sita em …...

9. Foi também acordado que, em caso de mora, a Caixa poderia cobrar, sobre o capital exigível e juros correspondentes aos períodos mínimos legalmente previstos, comissões e outros encargos, juros calculados à taxa mais elevada de juros remuneratórios que, em cada um dos dias em que se verificar a mora, estiver em vigor na credora reclamante para operações ativas da mesma natureza (na altura 14,875%), acrescida de uma sobretaxa até 4%.

10. Para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes da presente abertura de crédito, foi entregue à Caixa, aquando do contrato inicial, uma livrança em branco, subscrita pela sociedade devedora e avalizada pelos ora executados, AA (NIF ….) e mulher, BB (NIF ….) e por CC (NIF …..) e cônjuge, DD (NIF ….) e EE (NIF ……).

11. O contrato em apreço foi objeto de alteração contratual, formalizada através de documento particular com reconhecimento presencial de assinaturas, em fevereiro de 2000, no âmbito da qual as partes convencionaram que o prazo passaria a ser de 30 meses, terminando em 02.06.2002, conforme documento de fls. 29 a 30, cujo teor se dá por reproduzido.

12. Em 20.05.2012, o contrato teve nova alteração contratual, através de documento particular com reconhecimento de assinaturas, tendo sido acordado entre as partes proceder à alteração das cláusulas do prazo, das comissões e dos pagamentos, conforme resulta do documento de fls. 31 a 35 cujo teor se dá por reproduzido.

13. Clausulou-se na citada alteração contratual que o prazo seria automaticamente prorrogado por períodos de 12 meses, iguais e sucessivos.

14. O referido contrato foi ainda objeto de outra alteração contratual, em 08.03.2004, celebrada entre a aqui reclamante e a sociedade NEODIFAR – PRODUTOS FARMACÊUTICAS, LDA.., como primeira contratante AA e mulher, BB e com CC e cônjuge, DD e EE e cônjuge, FF (NIF ...), como segundos contratantes na qualidade de fiadores/avalistas, formalizada mediante documento particular, com reconhecimento de assinaturas, conforme resulta do documento de fls. 36 a 42, cujo teor se dá por reproduzido.

15. Ficou acordado que o prazo seria até 02.06.2004, sendo automaticamente renovado por períodos semestrais, iguais e sucessivos, passando o limite de crédito a ser até ao montante de € 200.000,00.

16. Ficou ainda clausulado no citado contrato que a abertura de crédito venceria juros a uma taxa correspondente à EURIBOR a três meses, arredondada para um quarto por cento superior, em vigor na data do início de cada período de contagem de juros, acrescida de um “spread” de 2,00%, donde resultava, tomando com referência a informação conhecida das partes no momento da celebração da alteração ao contrato, a taxa de juro nominal de 4,25% ao ano.

17. O crédito destinou-se a apoiar a Empresa para ocorrer a necessidades temporárias de tesouraria.

18. Para titulação de todas as responsabilidades decorrentes da operação, a sociedade devedora entregou à Caixa, uma Livrança em Branco por si subscrita e avalizada pelos aqui executados e restantes avalistas, autorizando desde logo a reclamante a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostrasse necessário, a juízo da própria Caixa.

19. Com o incumprimento das obrigações emergentes do contrato descrito, encontra-se em dívida à reclamante, à data de 17.01.2017, o montante de 187.439,94€, que a reclamante, reduz a capital e três anos de juros, no montante de € 98.559,83, conforme se discrimina: Capital 67.345,29€; juros de 18.01.2014 a 17.01.2017, 31.214,54€, o que perfaz o total de 98.559,83€.

20. A partir da mencionada data de 17.01.2017, o débito agravar-se-á, quanto a juros vincendos, em € 28,51, por dia, encargo correspondente a juros calculados à taxa atualizada de 15,45%, a qual nos termos contratuais integra a sobretaxa de mora de 3% ao ano nos termos do art.º 8.º do Decreto-Lei n.º 58/2013, de 8 de maio.

21. Ao total de juros acresce a taxa de 4% correspondente ao Imposto do Selo da verba 17.2 da respetiva Tabela Geral.

B – O Direito

1. No presente processo está em causa uma reclamação de créditos por apenso a uma execução, tendo o credor reclamante e exequente, Caixa Geral de Depósitos, S.A. (CGD), reclamado créditos, invocando ser titular de uma garantia hipotecária sobre o imóvel penhorado nos autos.

Os executados AA e Outros vieram impugnar o crédito reclamado, sustentando, em síntese, ser o crédito reclamado o mesmo crédito objeto da execução, no processo principal, pelo que, sem prejuízo de no requerimento executivo se invocar como título executivo uma livrança em branco e na reclamação de créditos a garantia constituída pela hipoteca, deverá a reclamação ser rejeitada.

Após resposta da reclamante, CGD, no sentido de ser julgada improcedente a impugnação e o seu crédito garantido por hipoteca graduado no lugar que lhe compete, foi proferida sentença a reconhecer o crédito reclamado, graduando-o em 1.º lugar e o crédito exequendo em 2.º lugar, sem que tenham sido reclamados ou graduados quaisquer outros créditos.

Pela exequente e credora reclamante CGD foi requerida a retificação da sentença no sentido de ficar claro tratar-se do mesmo crédito, tendo o juiz da 1.ª instância procedido apenas à retificação da data de celebração do contrato de abertura de crédito

Os recorrentes, na sua alegação de revista per saltum, defendem a revogação da sentença recorrida, invocando a verificação de uma situação de litispendência entre o crédito exequendo e o crédito reclamado.

2. Sem prejuízo da factualidade dada como provada na sentença de verificação e graduação de créditos, tendo em vista a melhor compreensão do litígio e simplificação dos elementos de facto relevantes para a decisão, importa considerar as seguintes circunstâncias de facto:
a) em 11-03-2016 a CGD instaurou uma ação executiva sob a forma ordinária contra AA, BB, CC, DD, EE, FF, para pagamento da quantia de € 161.295,48, apresentando como título executivo uma livrança de que é tomadora e portadora subscrita pela sociedade Neodifar – Produtos Farmacêuticos, Lda. (já declarada insolvente) e avalizada pelos executados.
b) em 24-10-2016 foi penhorada a fração autónoma designada pela letra …., correspondente ao …. andar … sito na Rua ……, e Rua …., em ….., descrita na Conservatória do Registo Predial  … sob o n.º 3881/…., freguesia  …. e inscrito na matriz predial urbana sob o n.º ….74, com registo de aquisição em favor do executado AA casado, sob o regime da comunhão geral, com a executada BB.
c) em 05-12-2016 foi expedida pela agente de execução a citação da CGD, na qualidade de credora com garantia real sobre o imóvel penhorado, para vir reclamar os seus créditos;
d) em 17-01-2017 a CGD apresentou reclamação de créditos, ao abrigo do artigo 788.º do CPC, invocando a celebração, em 08-03-2004, de uma escritura pública de constituição de hipoteca genérica sobre o prédio que veio a ser penhorado, tendo essa garantia sido constituída por AA e BB para garantia das obrigações pecuniárias assumidas ou a assumir pela sociedade Neodifar, Lda. decorrentes de quaisquer operações bancárias, nomeadamente, aberturas de crédito, até ao montante de € 240.000,00, alegando ter celebrado em 23-05-1997 com a mencionada sociedade um contrato de abertura de crédito em conta-corrente, titulado por um livrança em branco, o qual foi sendo sucessivamente alterado, encontrando-se em dívida em 17-01-2017 o montante de € 187.439,94, que foi reduzido, para efeitos da reclamação de créditos, a valor de capital e de 3 anos de juros no total de € 98.559,83.
e) em 23-12-2019 foi proferida sentença pelo Juízo de Execução de …. – Juiz …. a julgar procedente a reclamação de créditos, reconhecendo o direito de crédito reclamado e procedendo à graduação da seguinte forma: em 1.º lugar o crédito reclamado garantido por hipoteca e em 2.º lugar o crédito exequendo.
f) em 17-02-2019, por requerimento de retificação, a exequente, e simultaneamente credora reclamante CGD, veio declarar que o contrato de abertura de crédito correspondente ao n.º PT …. com base no incumprimento do qual foi emitida a livrança dada à execução e que foi garantido pela hipoteca fundamento da reclamação de créditos, se tratava da mesma e da única operação bancária em ambos os processos.

3. A questão suscitada é a de saber se estamos perante uma situação de litispendência, enquanto exceção dilatória de conhecimento oficioso que visa impedir a repetição de uma causa, idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, quando ainda está pendente uma causa anterior (artigos 577.º, al. i), 578.º, 580.º e 581.º do CPC).

Nestes autos, conforme assumido pela própria exequente e credora reclamante, designadamente no seu requerimento de retificação da sentença, não subsistem dúvidas que estão pendentes dois processos – uma ação executiva e uma reclamação de créditos – que se referem ao mesmo crédito, titulado pela Caixa Geral dos Depósitos (CGD) com base numa dívida resultante do contrato de abertura de crédito para financiamento da sociedade Neodifar – produtos farmacêuticos, Ld.ª. O montante dos créditos, todavia, é distinto: o valor reclamado garantido pela hipoteca corresponde a € 98.559,83, e o valor da execução ascende a € 161.295,48.

O processo principal foi instaurado contra seis pessoas singulares na qualidade de avalistas de uma livrança em branco, emitida como garantia do pagamento da abertura de crédito concedida à sociedade NEODIFAR - PRODUTOS FARMACÊUTICAS, LDA.

A reclamação de créditos baseou-se na titularidade por parte da CGD de um direito de hipoteca constituída a seu favor por parte de dois dos executados, agora recorrentes, para garantia de créditos emergentes do mesmo contrato de abertura de crédito.

 Para estarmos perante uma repetição da causa é necessário que seja proposta uma ação idêntica a outra, quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, sendo essa tríplice identidade crucial para a verificação da exceção dilatória de litispendência. Contudo, a aplicação do artigo 581.º do CPC, que define os critérios para aferir a identidade entre as ações, suscita dificuldades práticas, bem patentes no presente processo.

Para além das dúvidas que pode suscitar a circunstância de o montante do crédito e os sujeitos dos dois processos serem apenas parcialmente coincidentes, verifica-se no caso dos autos ainda problemas acrescidos em torno da identidade da causa de pedir.

O debate doutrinal a respeito da causa de pedir, e da própria possibilidade de existir uma litispendência na ação executiva, é já antigo. Conforme recorda Lebre de Freitas (A Ação Executiva, 7.ª edição, 2018, Gestlegal, pp. 93-94, nota 91), para um setor da doutrina (Alberto dos Reis, Comentário, I, p. 98 e Eurico Lopes Cardoso, Manual, pp. 23 e 29), a causa de pedir, na ação executiva, deixaria de ser o facto jurídico de que resulta a pretensão do exequente para passar a ser o próprio título executivo. Desta tese, à qual o Autor não adere, resultaria a impossibilidade de deduzir a exceção de litispendência na ação executiva por serem diversas as causas de pedir quando o crédito estivesse representado por dois títulos executivos distintos (p. ex. escritura e sentença) e cada um deles fosse executado num processo diferente.  Lebre de Freitas (ob. cit., p. 94) entende que não constituindo o título executivo um ato ou um facto jurídico, esta construção não se harmoniza com o conceito de causa de pedir.

 Rui Pinto (A Ação Executiva, AAFDL, 2018, pp. 55 e 56) sintetiza as diversas posições doutrinais a respeito da causa de pedir na ação executiva, colocando, de um lado, os autores que a reconduzem ao título jurídico, judicial ou extrajudicial, que serve de fundamento à ação e cumpre a função de título executivo, e, do outro, a posição de Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, p. 606) que entende que a causa de pedir na ação executiva é a causa debendi, ou seja, os factos dos quais decorre o poder de aquisição da prestação. A posição adotada por Rui Pinto não vai ao encontro de quem vê a causa de pedir da ação executiva, nem como o título, nem como o incumprimento, preferindo o Autor sublinhar a circunstância de o título executivo ser apenas um documento, ou seja, a forma de um facto jurídico que titula a aquisição pelo exequente do direito a uma prestação, podendo até suceder que o mesmo facto de aquisição esteja titulado de modo múltiplo. Assim, para este Autor, a causa de pedir não é a obrigação em si mesma, mas o correlativo facto aquisitivo do direito ou poder à prestação, seja ele um direito de crédito, um direito real ou um direito pessoal. A este facto principal acrescem, no entanto, os factos complementares da exigibilidade da obrigação, a que se refere, nomeadamente, o artigo 713.º do CPC, fazendo com que a causa de pedir na ação executiva possa ser definida como “os factos de aquisição de um direito ou poder a uma prestação exigível” (Rui Pinto, ob. cit., pp. 56 e 57), ressalvando, contudo, a circunstância de, na execução cambiária, a causa de pedir não coincidir com a causa debendi.

Na jurisprudência, o Supremo Tribunal de Justiça já admitiu a litispendência num caso em que o mesmo crédito foi reclamado duas vezes, sumariando-se que «Depois de apresentada uma reclamação de créditos com base numa hipoteca, o reclamante não pode apresentar outra, agora com base numa penhora efectuada em execução sustada nos termos do art.º 871, do CPC, porque o crédito é o mesmo, haveria litispendência na segunda reclamação, e também porque a primeira garantia oferece maior preferência do que a segunda» (Acórdão de 08-03-2001, Revista n.º 4075/00, cujo sumário se encontra disponível in https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/sumarios-civel-2001.pdf).

Diferente entendimento foi o seguido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06-07-2011 (Agravo n.º 771/06.0YYPRT-A.P1.S1), que afastou a aplicação da exceção de litispendência entre duas execuções, por não haver identidade de pedidos e de causa de pedir, num caso em que a causa de pedir, na 1.ª execução, era uma hipoteca constante de escritura pública em ligação com um contrato de financiamento celebrado entre o banco exequente e os executados, enquanto na 2.ª execução a causa de pedir era a obrigação cambiária resultante de uma livrança. A não admissibilidade da litispendência foi reforçada pela circunstância de não ter ficado factualmente demonstrado que o mútuo era o mesmo.

No caso presente, a causa de pedir da execução é a obrigação cambiária resultante da livrança em branco (ainda que decorrente do contrato de abertura de crédito e da respetiva mobilização de fundos) e a causa de pedir da reclamação de créditos é a constituição de uma hipoteca sobre um imóvel (ainda que para garantia genérica das obrigações assumidas pela sociedade executada, incluindo as decorrentes do contrato de abertura de crédito), não se mostrando evidente que se verifique a exceção de litispendência.

 Com efeito, mesmo perante a diversidade de entendimentos acerca do que constitui a causa de pedir na ação executiva, baseando-se a execução numa ação cambiária e a reclamação de créditos na constituição de uma hipoteca, a mera circunstância de se concluir que materialmente ambos os créditos decorrem do mesmo contrato de abertura de crédito não surge como suficiente para considerar preenchido o fundamento da exceção dilatória de litispendência.

Assim se entendeu no citado Acórdão de 06-07-2011, em cujo sumário se consagrou que «Não há identidade de pedidos e de causa de pedir, entre duas execuções, em que a causa de pedir, na 1.ª execução, é uma hipoteca constante de escritura pública em ligação com um contrato de financiamento celebrado entre o banco exequente e os executados, enquanto na 2.ª execução é a obrigação cambiária resultante de uma livrança». 

De resto, podendo o desfecho do processo ser obtido através do conhecimento do mérito num sentido favorável à parte que beneficiaria da litispendência, deve cumprir-se o ditame que decorre do artigo 278.º, n.º 3, do CPC, apreciando o recurso na sua dimensão substantiva ou de mérito (cfr. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., p. 85).

     

4. Estamos perante um processo de reclamação de créditos apenso a um processo executivo principal.

Decorre do n.º 1 do artigo 788.º do CPC que só o credor que goze de garantia real sobre os bens penhorados pode reclamar, pelo produto deles, o pagamento dos respetivos créditos. Assim, os pressupostos essenciais da reclamação de créditos pelos preferentes são: a titularidade de um direito de crédito com garantia real ou preferência de pagamento sobre os bens penhorados (pressuposto material), a disponibilidade de um título executivo (pressuposto formal) e a certeza e a exigibilidade da obrigação (Salvador da Costa, Concurso de credores, 5.ª edição, Almedina, Coimbra, 2015, p. 213).

Nos termos do artigo 686.º do Código Civil, a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.

Nos presentes autos, verifica-se que o crédito reclamado se integra no crédito do processo principal, e que ambos se fundam na mesma operação bancária, ou seja, no financiamento da atividade de uma sociedade. Em consequência, não existindo um novo crédito a servir de base à reclamação de créditos, não se justifica, em princípio, que a reclamação de créditos seja admitida.  

Todavia, não pode deixar de se reconhecer que, apesar de o crédito ser o mesmo, pode o credor ter interesse em beneficiar da garantia real de hipoteca. Assim, entendemos que, de acordo com os princípios da economia processual e da unidade processual entre a ação executiva e a reclamação, deve ser aproveitado o processado, procedendo-se à adequação ou correção da sentença de graduação de créditos, a fim de esclarecer os termos e a medida em que o crédito da CGD beneficia da garantia conferida pela hipoteca voluntariamente constituída.

 Mantém-se, portanto, a decisão de graduação, de forma a deixar claro que o produto da venda do imóvel se encontra, desde logo, em parte adjudicado ao crédito garantido pela hipoteca, nos termos e pelos montantes constantes do requerimento de reclamação de créditos (€ 98.559,83), e na parte restante assegurado pela penhora que se refere à totalidade da dívida exequenda objeto do requerimento executivo (€ 161.295,48).

   A necessidade e utilidade da manutenção do apenso de graduação de créditos, ainda que com adequação dos termos da sentença, poderá ser ainda encontrada na circunstância de deixar assim claro a prioridade dos pagamentos a efetuar, consoante a ordem que seria devida por efeito da graduação, acautelando dúvidas que poderiam surgir em casos como os previstos nos artigos 791.º, n.º 6, e 794.º, n.º 2, do CPC, em que o legislador prevê a possibilidade de reformulação da sentença de graduação por efeito de reclamação ulterior, nos casos legalmente admissíveis ou por efeito de sustação de execução ulterior.     

   Acresce que esta solução evita eventuais dúvidas resultantes da caducidade do direito real de garantia, nos termos do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, assegurando-se com a manutenção do apenso de reclamação de créditos e com o reconhecimento de que parte do crédito titulado pela CGD se encontra coberto pela hipoteca, que, pelo produto da venda do imóvel, responde em primeiro lugar o crédito garantido por hipoteca, nos termos do n.º 3 deste preceito, evitando o risco de se poder entender que a falta de reclamação precludiu a possibilidade de invocação desta garantia.

      Consideramos, pois, que a solução que melhor acautela os interesses em confronto consiste na manutenção do apenso de verificação e graduação de créditos.

      Em consequência, decide-se não haver qualquer crédito reclamado a verificar, por este coincidir parcialmente com o crédito exequendo, prevenindo-se, assim, a hipótese de uma cobrança duplicada do mesmo crédito. Todavia, declara-se que, por referência ao produto da venda do imóvel, a CGD beneficia em 1.º lugar da garantia hipotecária até ao valor do capital e três anos de juros e em 2.º lugar da penhora até ao limite da execução.

      Conforme se decidiu no supra citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06-07-2011, «No fundo, o que passa é que, para garantir o mesmo mútuo, os devedores constituíram duas garantias diferentes, de qualquer delas se podendo servir o credor, mesmo simultaneamente. Quando assim seja, com a assunção da obrigação cambiária, não pretenderam as partes criar ou acrescentar ao crédito decorrente da obrigação primitiva ou fundamental, um outro crédito emergente da obrigação cambiária, mas, tão somente, facilitar ao credor a satisfação do seu crédito, decorrendo daí que uma vez pago o crédito primitivo se extinga necessariamente o crédito cambiário ou vice-versa, nunca podendo o credor obter o pagamento dos dois créditos sob pena de manifesto enriquecimento injustificado».

      Termos em que se concede parcialmente a revista, reconhecendo-se não haver qualquer crédito a reclamar, mas mantendo-se o apenso de verificação e graduação de créditos, a fim de preservar a garantia hipotecária da CGD sobre parte do crédito exequendo.

      Anexa-se sumário elaborado de acordo com o artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

I - O debate doutrinal a respeito da causa de pedir, e da própria possibilidade de existir uma litispendência na ação executiva, reconduz-se a duas posições: uma que identifica a causa de pedir com o título jurídico, judicial ou extrajudicial, que serve de fundamento à ação e cumpre a função de título executivo, e outra que entende que a causa de pedir na ação executiva é a causa debendi, ou seja, os factos dos quais decorre o poder de aquisição da prestação.

II – Mesmo perante a diversidade de entendimentos acerca do que constitui a causa de pedir na ação executiva, baseando-se a execução numa ação cambiária e a reclamação de créditos na constituição de uma hipoteca, a mera circunstância de se concluir que materialmente ambos os créditos decorrem do mesmo contrato de abertura de crédito não surge como suficiente para considerar preenchido o fundamento da exceção dilatória de litispendência.

III – Uma vez que o crédito invocado no apenso de reclamação de créditos integra o crédito invocado no processo principal, decide-se não haver, no presente processo, qualquer crédito reclamado a verificar, prevenindo-se, assim, a hipótese de cobrança duplicada do mesmo crédito, mas declara-se que, por referência ao produto da venda do imóvel, a CGD beneficia em 1.º lugar da garantia hipotecária até ao valor do capital e três anos de juros e em 2.º lugar da penhora até ao limite da execução.

III – Decisão


Pelo exposto, concedendo parcialmente a revista, reconhece-se que o crédito reclamado integra o exequendo, mas mantém-se a verificação e graduação de créditos a fim de preservar a prioridade que é conferida à reclamante CGD pela garantia hipotecária até ao valor do respetivo capital e três anos de juros (€ 98.559,83).     

Custas por ambas as partes, na proporção de 1/3 para a exequente (reclamante) e de 2/3 para os executados.


Supremo Tribunal de Justiça, 8 de junho de 2021

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Alexandre Reis (1.º Adjunto)

Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto)



Nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 20/2020, de 1 de maio, atesto o voto de conformidade dos Juízes Conselheiros Alexandre Reis (1.º Adjunto) e Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto). 

(Maria Clara Sottomayor – Relatora