Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
137/18.0SHLSB-A.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: MANUEL BRAZ
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO ILEGAL
PRISÃO PREVENTIVA
FORTES INDÍCIOS
INDÍCIOS SUFICIENTES
FURTO QUALIFICADO
Data do Acordão: 08/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIDA A PETIÇÃO DE HABEAS CORPUS
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – MEDIDAS DE COACÇÃO E DE GARANTIA PATRIMONIAL / MEDIDAS DE COACÇÃO / MODOS DE IMPUGNAÇÃO / HABEAS CORPUS EM VIRTUDE DE PRISÃO ILEGAL.
DIREITO PENAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA O PATRIMÓNIO / CRIMES CONTRA A PROPRIEDADE.
Doutrina:
- Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª Edição, p. 636.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 204.º, N.ºS 1, ALÍNEAS B) E H) E 2, ALÍNEA G) E 222.º, N.º 2, ALÍNEA B).
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 203.º, N.º 1 E 204.º, N.ºS 1, ALÍNEAS B) E H) E 2, ALÍNEA G).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 31.º, N.º 1.
Sumário :
I - Nos termos do art. 222.º, n.º 2 do CPP, o pedido de habeas corpus, em relação a pessoa presa, tem de fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de: a) ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
II - A prisão preventiva da requerente foi aplicada, com fundamento, além do mais, na existência de fortes indícios de ter praticado um crime de furto qualificado do art. 204.º, n.ºs 1, al. b) e h), e 2, al. g), do CPP. A alegação de ausência ou insuficiência de indícios bastantes da prática do crime que fundamenta a aplicação da prisão preventiva não preenche o fundamento da al. b), do n.º 2, do art. 222.º do CPP.
III - A prisão preventiva será motivada por facto pelo qual a lei não permite se, por exemplo, for aplicada por facto que não constitui crime ou por crime que não admite essa medida de coacção, seja em função da sua natureza ou da pena aplicável. São situações dessa ordem, de ilegalidade inequívoca, que, pela sua gravidade material, podem ser tidas como de abuso de poder, requisito que, nos termos do art. 31.º, n.º 1, da CRP, justifica a providência de habeas corpus. Não a situação de prisão preventiva cuja legalidade ou ilegalidade seja discutível por depender do entendimento que se tenha sobre se existem ou não fortes indícios da prática do crime ou crimes que determinaram a imposição da medida.

Decisão Texto Integral:
                        Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

 AA, representada por advogado, requereu a providência de habeas corpus, nos termos que se transcrevem:

            «AA, arguida presa à ordem destes autos, por ter legitimidade e estar em tempo, vem junto de Va. Exa. requerer a concessão da Providência Extraordinária do HABEAS CORPUS.

SÃO FUNDAMENTOS:

1. A ora peticionante requerente encontra-se presa na rua (próximo da Feira da Ladra, em Lisboa) desde o dia 13 de Agosto de 2018, por haver sido detida por agentes da PSP dada a eventual suspeita de furto, como os autos dão conta.

2. Tendo-lhe sido na ocasião imputada, POR ERRO DO OPC, a prática de um crime de furto (qualificado), o certo é que nenhum objecto furtado foi encontrado na sua posse, tendo a peticionante sido detida na rua.

3. Interrogada pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal foi decidido que tal actuação dolosa configurava antes a prática de um crime de furto qualificado pela alínea j) do n.° 1 do art.° 204.° do CP (fazer prática de furtos modo de vida).

4. No entanto o eventual agir ilícito da peticionante nunca poderia integrar, mesmo que de forma indiciária, a prática de um crime de furto qualificado p. e p. pelo art.° 204.° do Código Penal.

5. Já que nenhuma prova indiciária existe nos autos que indicie actuação de crime de furto qualificado.

6. Encontrando-se a ora peticionante em prisão ilegal, já que a sua prisão preventiva foi determinada quanto a um crime que não admite essa mesma medida de coacção, dado o estipulado no art.° 203.° n.° 1 do CPP (redacção da Lei 26/2010 de 30/08).

7. Ilícito penal esse p. e p. pelo art.° 203.° do CP  com multa ou com pena de prisão até 3 anos.

8. Desta feita, a qualquer pessoa que se encontre ilegalmente presa, o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência do Habeas Corpus. (art.° 222 n.° 1 do CPP).

            9. Requer-se, por isso, a concessão da referida providência do Habeas Corpus, a declaração de ilegalidade da prisão imposta à peticionante (que se mantém actual) e a sua imediata restituição à liberdade (art.° 222.° n.°s 1 e 2 alínea b) do CPP e art.° 31.° n.°s 1 e 3 da Constituição da República)».

           

O juiz de instrução, ao abrigo do artº 223º, nº 1, do CPP, informou o seguinte:

«Por despacho proferido a 14.08.2018, no âmbito do primeiro interrogatório judicial, determinou-se que a arguida aguardasse os ulteriores termos processuais sujeita a prisão preventiva, com os fundamentos constantes do despacho proferido oralmente e registado no sistema de gravação áudio, cfr. auto de fls.99-109, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, por se encontrar indiciada a prática, pela arguida, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1, e 204º, n° 1, als. b) e h), e nº 2, al. g), do Código Penal.

No entendimento da arguida não há prova indiciária da prática de crime de furto qualificado mas apenas de um crime de furto simples cuja moldura não permite a sujeição a prisão preventiva, pelo que a sua prisão é ilegal. Ou seja, a arguida discorda da apreciação indiciária e respectiva qualificação jurídica, matéria que apenas seria sindicável em sede de recurso. Em suma, a arguida não se encontra ilegalmente presa.

Em face do exposto, afigura-se-nos, salvo o devido respeito, que não assiste razão à arguida, pelo que a presente providência de habeas corpus deve ser indeferida».

Procedeu-se à realização da audiência, cumprindo decidir.

Fundamentação:

1. A requerente foi colocado na situação de prisão preventiva, por despacho de 14/08/2018, com fundamento, além do mais, na existência de fortes indícios de ter praticado um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artºs 203º, nº 1, e 204, nºs 1, alíneas b) e h), e 2, alínea g), do CP.

2. Nos termos do nº 2 do artº 222º do Código de Processo Penal, o pedido de habeas corpus, relativamente a pessoa presa, tem de fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de: «a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial».

O requerente pretende que se verifica a situação da alínea b), mas sem fundamento. Começa por alegar que não foi encontrado em seu poder qualquer objecto, mas não tira daí qualquer consequência, pois não defende que não praticou um crime de furto. O que verdadeiramente põe em causa é que haja indícios bastantes de haver cometido um crime de furto qualificado, admitindo, pelo menos implicitamente, a existência de indícios de ter praticado um crime de furto simples. Será nessa perspectiva que conclui no sentido de que a prisão preventiva foi imposta por crime que a não admite.

Ao contrário do que alega, a prisão preventiva da requerente não foi aplicada no entendimento de que há indícios de ter cometido o crime de furto qualificado da previsão do artº 204º, nº 1, alínea j), do CP. Foi aplicada, com fundamento, além do mais, na existência de fortes indícios de ter praticado um crime de furto qualificado do artº 204º, nºs 1, alíneas b) e h), e 2, alínea g).

E se o conteúdo que indica para aquela alínea preenche uma das indicadas na decisão que aplicou a prisão preventiva, a requerente não justifica nem faz qualquer esforço no sentido de justificar a falta de indiciação dessa situação e das que preenchem a previsão das demais alíneas, sendo que qualquer uma delas é suficiente para qualificar o crime de furto e, desse modo, tornar admissível a prisão preventiva, à luz do artº 202º, nº 1, alínea d), do CPP.

E, traduzindo-se a conduta imputada à requerente na subtracção, conjuntamente com outros, da carteira que, contendo, além do mais, a quantia de 275 €, era transportada por um utente de transporte colectivo, não se vê como não concluir pela existência de fortes indícios de ter praticado um crime de furto qualificado, pelo menos pela via da alínea b) do nº 1 do artº 204º do CP, quando essa imputação é suportada pelas declarações de testemunhas.

De qualquer modo, a alegação de ausência ou insuficiência de indícios bastantes da prática do crime que fundamenta a aplicação da prisão preventiva não preenche o fundamento da alínea b). A prisão preventiva será motivada por facto pelo qual a lei a não permite se, por exemplo, for aplicada por facto que não constitui crime ou por crime que não admite essa medida de coacção, seja em função da sua natureza ou da pena aplicável. São situações dessa ordem, de ilegalidade inequívoca, que, pela sua gravidade material, podem ser tidas como de abuso de poder, requisito que, nos termos do artº 31º, nº 1, da Constituição, justifica a providência de habeas corpus. Não a situação de prisão preventiva cuja legalidade ou ilegalidade seja discutível por depender do entendimento que se tenha sobre se existem ou não fortes indícios da prática do crime ou crimes que determinaram a imposição da medida. Concorda-se, assim, com Paulo Pinto de Albuquerque quando considera não ser fundamento de habeas corpus a alegação de “prisão fundada em indícios insuficientes” (Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição actualizada, página 636).

Não é, pois, fundado o pedido de habeas corpus.   

Decisão:

Em face do exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a petição de habeas corpus, por falta de fundamento bastante.

Condena-se a requerente no pagamento das custas, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça.

                                

Lisboa, 29/08/2018


Manuel Braz (relator)
Helena Moniz
Nuno Gomes da Silva