Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A3763
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
CRÉDITO DO ESTADO
ASSEMBLEIA DE CREDORES
DELIBERAÇÃO
COMPETÊNCIA
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: SJ200901130037636
Data do Acordão: 01/13/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - O art. 194.º do CIRE consagra de forma mitigada a igualdade dos credores da empresa em estado de insolvência.
II - A expressão ínsita no art. 197.º do CIRE, na ausência de estatuição expressa em sentido diverso constante do plano de insolvência, atribui cariz supletivo ao preceito, o que implicita que pode haver regulação diversa, contendendo com os créditos previstos nas als. a) e b) o que deve ser entendido como afloração do princípio da igualdade e reconhecimento que, dentro da legalidade exigível, o plano pode regular a forma como os credores estruturam o plano de insolvência. Só assim não será se não houver expressa adopção de um regime diferente.
III - Ora, no caso em apreço, a assembleia de credores aprovou, maioritariamente, com o quorum legalmente exigível – art. 212.º do CIRE – um plano de insolvência por si moldado, pelo que não se aplica a regra supletiva do artigo 197º.
IV - Decorrendo do art. 197.º do CIRE, não ser necessária a unanimidade do voto dos credores, incluindo os afectados pela supressão ou alteração do valor dos seus créditos e inerentes garantias, sendo privilegiados, não se antevê que a homologação do plano de insolvência esteja ferida de ilegalidade.
V - Os arts. 30.º, n.º 2, e 36.º, n.º 3, da LGT, e art. 85.º do CPPT, têm o seu campo de aplicação na relação tributária, em sentido estrito, não encontrando apoio no contexto do processo especial como é o processo de insolvência, onde o Estado deve intervir também com o fito de contribuir para uma solução, diríamos, de olhos postos na insolvência, se essa for a vontade dos credores, numa perspectiva ampla de auto-regulação de que a desjudicialização do regime consagrado no CIRE é uma das essenciais características.
VI - Numa perspectiva de adequada ponderação de interesses, tendo em conta os fins que as leis falimentares visam, seria desproporcional que o processo de insolvência fosse colocado em pé de igualdade com uma mera execução fiscal, servindo apenas para a Fazenda Nacional actuar na mera posição de reclamante dos seus créditos, mais a mais privilegiados, sem atender à particular condição dos demais credores e da insolvência.
VII - Assim, porque cabe na competência da assembleia de credores ao abrigo do art. 196.º, n.º 1, als. a) e c) do CIRE, o perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, bem como a modificação dos prazos de vencimento ou as taxas de juro, sejam os créditos comuns, garantidos ou privilegiados, aprovado o plano que respeitou o quorum estabelecido no artigo 212°, e não tendo sido pedida a não homologação pela Fazenda Nacional, com fundamento no art. 216º, nº1, a) daquele diploma, homologado o plano de insolvência este vincula todos os credores, sejam comuns, sejam privilegiados.
VIII - Esta interpretação da lei não viola o art. 103.º, nº 2, da Constituição da República.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

No processo Especial de Insolvência da sociedade por quotas S...-T..., Ldª, requerido pelo credor F... T... P..., Ldª, pendente no 1º Juízo do Tribunal de Comércio da Comarca de Lisboa,

- o Ministério Público interpôs recurso de agravo da sentença de fls. 358-359, datada de 13.2.2008, que homologou a deliberação da Assembleia de Credores que, com votos contra da Fazenda Nacional e do credor F... T... P..., Ldª, aprovou o Plano de Insolvência apresentado pelo senhor Administrador da Insolvência.
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O Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 17.7.2008 – fls. 115 a 129 – negou provimento ao agravo, confirmando a decisão recorrida.

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Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso para este Supremo Tribunal [invocando a oposição de Acórdãos – art. 754º, nº2, do Código de Processo Civil – porquanto o sentenciado no Acórdão recorrido perfilha entendimento diverso do expresso no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30.6.2008 O sumário do Acórdão, publicado em www.dgsi.pt - Proc. 085395 – é do seguinte teor: “ I – Não pode ser homologado o plano de insolvência quanto aos créditos fiscais se existir violação de normas legais imperativas, não derrogáveis por vontade dos intervenientes, designadamente dos credores. II – Nem a Administração Tributária, por motu próprio, pode atribuir um regime de excepção a determinado contribuinte, a não ser nos casos especialmente previstos na lei”. (1) (2)Em sentido contrário ao Acórdão-fundamento, decidiram na Relação do Porto, os Acórdãos de 15.12.2005, Proc. 0535648; de 13.7.2006, Proc. 0631637; de 26.5.2008, Proc. 0852239, acessíveis in www.dgsi.pt e, ainda, da Relação de Guimarães, o Acórdão de 26.10.2006, Proc. 1930-06-2 - (citados no Acórdão recorrido). ] e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

1ª - Mostram-se verificados os pressupostos relativos à admissibilidade do presente recurso, uma vez que: o acórdão cuja reponderação se pretende encontra-se em oposição com outro — Ac. da Relação do Porto, de 30 de Junho de 2008, proferido no âmbito do Proc. N°0853595 —, proferido no domínio da mesma legislação, sendo certo que não se mostra fixada jurisprudência pelo Supremo Tribunal de Justiça;

2ª - As estatuições contidas nos arts. 30°, n°s 1 e 2, 36° da Lei Geral Tributária, e arts. 85°, n°s 1 e 2, 196° e 199° do Código de Procedimento e Processo Tributário, assumem natureza imperativa o que, consequentemente, determina a impossibilidade de poderem ser afastados por mera vontade das partes;

3ª — Por imperativo legal, não é possível que os créditos sob a insolvente de que seja titular a Fazenda Nacional, sejam pagos de modo diverso do estabelecido na Lei — é a esta que cabe definir as formas de pagamento, eventuais alterações, reduções ou extinções parciais das obrigações contributivas;

4ª — Relativamente aos créditos de que é titular o Estado, vigoram os princípios da indisponibilidade dos créditos fiscais, da legalidade tributária e da proibição da discricionariedade na interpretação e aplicação das regras fiscais: a incidência dos impostos e taxas, a forma e o tempo do seu pagamento, bem como os benefícios fiscais são apenas os taxativamente estabelecidos na Lei;

5ª— Face ao carácter público e colectivo dos créditos fiscais, não é, nos termos da lei, conferida à maioria formada pelo conjunto de vontades dos credores a possibilidade ou capacidade de concessão, fora do quadro legal, de benefícios, moratórias ou perdões fiscais;

6ª - As normas tributárias em apreço têm, inelutavelmente, um carácter público e imperativo, que não permite o seu afastamento, quer pelo Estado — que não pode, a não ser nas situações taxativamente enumeradas na Lei, conceder motu proprio, um regime de excepção a determinado sujeito passivo tributário — quer mera vontade das partes;

7ª — Na situação cuja reponderação se pretende, a Requerida não acordou com a Administração Fiscal um qualquer plano de pagamento. Por esse motivo, as suas dívidas apenas poderiam ser pagas em prestações nos exactos termos considerados nos arts. 196° a 200° do CPPT;

8ª — O plano de insolvência apresentado a votação prevê um período de carência de seis meses e perdão de juros — o que manifestamente desrespeita os requisitos legais imperativos supra mencionados — e deveria ter determinado que, no tocante aos créditos do Estado, o mesmo não tivesse sido objecto de homologação judicial;

9ª — Essa recusa de homologação é imposta pelo art. 215º do CIRE, que ao conferir ao juiz um papel de guardião da legalidade, lhe permite a recusar de homologação do plano de insolvência, no caso de violação não negligenciável de normas procedimentais ou de normas aplicáveis ao seu conteúdo, sendo certo que se tem entendido que não são negligenciáveis todas as violações de norma imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza;

10ª — Como se deixou dito, no plano de insolvência em questão, foram, no tocante ao Estado, negligenciadas normas inelutavelmente imperativas, sendo certo que, por via dessa desconsideração se produziria um resultado não permitido por lei: o plano de insolvência apresentado a votação prevê um período de carência de seis meses e perdão de juros o que, manifestamente desrespeita os requisitos legais imperativos supra mencionados e conduziria a um resultado que a Lei, manifestamente, não autoriza — o da disponibilidade dos créditos do Estado;

11ª — A estatuição contida no art. 192° do CIRE, apenas prevê a possibilidade de os credores exercerem a faculdade de afastar, no caso concreto, o desencadeamento da solução supletiva legal, mas não os autoriza a “derrogar” normas de carácter imperativo — como é o caso;

12ª — Acresce que, o plano de insolvência só pode afectar por forma diversa a esfera jurídica dos interessados, ou interferir com direitos de terceiros, na medida em que tal seja expressamente autorizado a esse título ou consentido pelos interessados — di-lo o n°2 do art. 192° do CIRE — sendo certo que, na situação que se discute, a Fazenda Nacional não só não consentiu que se procedesse à redução e prorrogação do pagamento dos créditos fiscais, como votou expressamente contra o plano que os previa;

13ª — Com a afirmação contida no n°1 do art. 194° do CIRE, procurou-se acolher de uma forma evidente as duas facetas em que se desdobra o princípio da igualdade, traduzida na necessidade de tratar igualmente o que é semelhante e de distinguir o que é distinto, sem prejuízo de acordo dos credores atingidos, em contrário;

14ª — A exclusão dos créditos fiscais do âmbito de aplicação do art. 196°, n°1, do CIRE, não implica a violação do princípio da igualdade de tratamento dos credores, porque estes têm uma natureza diferente dos créditos comuns: está-se, simplesmente, a tratar desigualmente o que é desigual;

15ª — Tornar-se-ia incompreensível que o princípio da indisponibilidade dos créditos fiscais vinculasse a administração tributária e o próprio legislador e não vinculasse, da mesma forma, o administrador da insolvência e a assembleia de credores, em processo de insolvência;

16ª - O plano de insolvência apresentado pelo Sr. Administrador, aprovado em assembleia de credores, com o voto contra do Estado, e homologado por sentença não pode, no tocante aos créditos do Estado, obter a essa homologação judicial, por a mesma violar o estatuído nos arts. 103°, n°2, da CRP, 85°, 196° e 199° do Código de Processo e Procedimento Tributário, 30º e 36° da Lei Geral Tributária e 215° do CIRE.

Nestes termos, deverá ser dado provimento ao recurso, revogando-se a douta decisão recorrida, substituindo-a por outra que negue e homologação do plano de insolvência.

Não houve contra-alegações.
***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que releva a seguinte factualidade:

a) A requerida S...-T..., Lda foi declarada insolvente por sentença de 11.10.2006.

b) No decurso do processo, o Administrador da Insolvência apresentou o Plano de Insolvência de que se encontra cópia a fls. 46 a 54, aqui dado por reproduzido, que é ainda integrado pelo documento de fls. 109;

c) Constam do balanço de 2006, conforme menção constate do dito Plano (ponto 4.2), e documentos juntos, que a Fazenda Nacional é titular de créditos de IVA, IRS, IRC e Imposto de Selo sobre a insolvente;

d) Consta do mesmo documento o seguinte plano de insolvência (ponto 4.6):

Com base nos “Resultados Previsionais” e nos saldos disponíveis, registados nos “Fluxos de Caixa “propõe-se:

4.6. 1. Nomeação de Comissão de Credores;

4.6.2 Celebração de “Contrato de Arrendamento” por 5 anos, renováveis, referente às instalações fabris da Insolvente, cujos termos e condições carecerá de, prévio, acordo da Comissão de Credores, para assegurar um Activo, indispensável, ao normal funcionamento da Insolvente, garante da vigência e execução do Plano de Insolvência;

4.63 Período de carência, de 6 (seis) meses, a contar da data da Douta homologação do Plano de Insolvência;

4.6.4 Pagamento, integral, do valor do capital e juros vencidos, reportados à data de homologação do “Plano de Insolvência” após o términus do período de carência, em 6 (seis) prestações, mensais, sucessivas e iguais, a todos os credores, com créditos de valor inferior a 20.000,00 Euros, incluído os reconhecidos, ou não, por decisão judicial transitada em julgado;

4.6.5 Pagamento, integral do valor de capital e juros, vencidos, reportados à data de homologação do “Plano de Insolvência” em 48 (quarenta e oito) prestações, mensais, sucessivas e iguais, a todos os credores – com créditos de valor superior a 20.000,00 Euros – incluindo os reconhecidos, ou não, por decisão judicial, com trânsito em julgado –, as quais terão inicio, no mês seguinte ao términus do período de carência;

4.6.6 Afectação da totalidade do crédito, sobre o dente – Brialmas no valor de 110.322,34 € – ao pagamento aos credores indicados nos pontos 4.6.4 e 4.6.5, montante que deverá ser, integralmente, liquidado nos três meses, posteriores, à data da Douta homologação do Plano de Insolvência.

4.6.7 Perdão, total; do crédito referente a “Adiantamentos dos Sócios”

4.6.8 A Insolvente, a partir da data da homologação do “Plano de Insolvência” deverá retomar a liquidação, atempada e na data do respectivo vencimento, de todas as responsabilidades decorrentes da sua actividade, nomeadamente aos trabalhadores, Fisco, Segurança Social e Fornecedores;

4.6.9 Os juros vencidos, correspondentes ao período entre a data de homologação do “Plano de Insolvência” e o integral pagamento dos créditos ao Fisco, Segurança Social e Fornecedores, ficam sujeitos à cláusula de “Salvo Regresso de Melhor Fortuna”.

e) Em 13.2.2008 foi proferida a seguinte sentença, certificada a fls. 8 e 9:

“1. Convocada a assembleia de credores para discutir a proposta de plano de insolvência realizado, foi na mesma aprovada a proposta de plano de insolvência submetida à deliberação da assembleia, tendo recolhido mais de 2/3 da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando as abstenções.
Foi dada publicidade à deliberação nos termos do art. 213º CIRE.
Não se encontrando verificado qualquer dos pressupostos de recusa de homologação, importa homologar o plano de insolvência, tal como foi aprovado em assembleia de credores. -
2. Decisão. — Assim, pelo exposto homologo por sentença, nos termos do art. 214° do CIRE, o plano de insolvência aprovado nos presentes em assembleia de credores da sociedade S... -T... Ldª.
Com a sentença de homologação produzem-se os efeitos previstos no art. 217° CIRE. Custas pela insolvente, com taxa de justiça reduzida a dois terços – art. 302º, n°2,CIRE.
Aguarde-se o trânsito e após abra conclusão.
Registe e notifique.”

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber – se não devia ter ser sido homologada a deliberação da assembleia de credores que aprovou, em processo de insolvência, um plano de insolvência no qual se prevê, em relação às dívidas fiscais, perdões parciais de juros e moratórias, por tal deliberação violar regras imperativas constantes dos artigos 85°, 196° e 199° do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e os artigos 30°, n°2, e 36°, nº3, da Lei Geral Tributária (LGT) e ainda o artigo 103°, n°2, da Constituição da República Portuguesa.

Vejamos:

Estamos perante um processo de insolvência de uma sociedade por quotas a que se aplica o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei 53/2004, de 18 de Março, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n°200/2004, de 18 de Agosto (doravante CIRE).

A assembleia de credores aprovou um plano de insolvência em que, com a oposição do Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional credora da requerida por dívidas de impostos, foi decidido um perdão de juros dos créditos do Fisco.

No preâmbulo do citado diploma, onde se afirma que o regime e a filosofia do Código se afasta do então vigente CPEREEF, pode ler-se – item 6:

“Aos credores compete decidir se o pagamento se obterá por meio de liquidação integral do património do devedor, nos termos do regime disposto no Código ou nos que constem de um plano de insolvência que venham a aprovar, ou através da manutenção em actividade e reestruturação da empresa, na titularidade do devedor ou de terceiros, nos moldes também constantes de um plano.
Há que advertir, todavia, que nem a não aprovação de um plano de insolvência significa necessariamente a extinção da empresa, por isso que, iniciando-se a liquidação, deve o administrador da insolvência, antes de mais, diligenciar preferencialmente pela sua alienação como um todo, nem a aprovação de um plano de insolvência implica a manutenção da empresa, pois que ele pode tão somente regular, em termos diversos dos legais, a liquidação do património do devedor.
Não valerá, portanto, afirmar que no novo Código é dada primazia à liquidação do património do insolvente.
A primazia que efectivamente existe, não é demais reiterá-lo, é a da vontade dos credores, enquanto titulares do principal interesse que o direito concursal visa acautelar: o pagamento dos respectivos créditos, em condições de igualdade quanto ao prejuízo decorrente de o património do devedor não ser, à partida e na generalidade dos casos, suficiente para satisfazer os seus direitos de forma integral.”. (destaque e sublinhados nossos).

Decorre do art. 1º do CIRE que o processo de insolvência é um processo de execução universal visando a liquidação do devedor insolvente e a repartição do produto da liquidação pelos credores, ou a satisfação dos créditos destes pela forma prevista num plano de insolvência que assente na recuperação da empresa.

O art. 194º estatui:

“ l — O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas.
2 — O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável.
3- […]”.

O normativo consagra de forma mitigada a igualdade dos credores da empresa em estado de insolvência. O princípio da igualdade não implica um tratamento absolutamente igual, antes impõe que situações diferentes sejam tratadas de modo diferente.

Em anotação àquele preceito pode ler-se, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, de Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, vol.II, pág. 46:

“ Com efeito, o princípio da igualdade dos credores configura-se como uma trave basilar e estruturante na regulação do plano de insolvência.
A sua afectação traduz, por isso, seja qual for a perspectiva, uma violação grave – não negligenciável – das regras aplicáveis.
O tribunal deve, por isso, se não for atempadamente recolhido o assentimento do lesado, recusar a homologação do plano.
Doutro passo, se coincidir a verificação de alguma das situações contempladas no nº1 do art. 216°, o credor lesado pode tomar a iniciativa de solicitar ao tribunal uma decisão de não homologação”.

Do art. 47º, nº4, als. a) e c) do CIRE resulta relevante a consideração de várias “classes de créditos sobre a insolvência” – a) “Garantidos” e “privilegiados” os créditos que beneficiem, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objecto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes; “subordinados” os créditos enumerados no artigo seguinte, excepto quando beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência c) “Comuns” os demais créditos.”.

O art. 195º versa sobre o conteúdo do plano de insolvência e o art. 196º sobre providências com incidência no passivo – aquele estabelece:

“l - O plano de insolvência pode, nomeadamente, conter as seguintes providências com incidência no passivo do devedor:
a) O perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, com ou sem cláusula “salvo regresso de melhor fortuna”;
b) O condicionamento do reembolso de todos os créditos ou de parte deles às disponibilidades do devedor;
c) A modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos;
d) A constituição de garantias;
e) cessão de bens aos credores.
2 - O plano de insolvência não pode afectar as garantias reais e os privilégios creditórios gerais acessórios de créditos detidos pelo Banco Central Europeu, por bancos centrais de um Estado membro da União Europeia e por participantes num sistema de pagamentos tal como definido pela alínea a) do artigo 2.° da Directiva n.° 98/26/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Maio, ou equiparável, em decorrência do funcionamento desse sistema.”

O art. 197º estipula:

“Na ausência de estatuição expressa em sentido diverso constante do plano de insolvência:
a) Os direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios não são afectados pelo plano;
b) Os créditos subordinados consideram-se objecto de perdão total;
c) O cumprimento do plano exonera o devedor e os responsáveis legais da totalidade das dívidas da insolvência remanescentes.”.

Este normativo é, cremos, de crucial importância para a apreciação da questão que o recurso coloca.

Com efeito, a expressão na ausência de estatuição expressa em sentido diverso constante do plano de insolvência, atribui cariz supletivo ao preceito, o que implicita que pode haver regulação diversa, contendendo com os créditos previstos nas als. a) e b) o que deve ser entendido como afloração do princípio da igualdade e reconhecimento que, dentro da legalidade exigível, o plano pode regular a forma como os credores estruturam o plano de insolvência.
Só assim não será se não houver expressa adopção de um regime diferente.

Ora, no caso em apreço, a assembleia de credores aprovou, maioritariamente, com o quorum legalmente exigível – art. 212º do CIRE – um plano de insolvência por si moldado, pelo que não se aplica a regra supletiva do artigo 197º.

Os tratadistas citados, em anotação a tal preceito, escrevem.

“O proémio do preceito explicita inequivocamente o carácter supletivo da estatuição legal.
Mas, como aí também se clarifica, o afastamento é possível através de determinação constante do próprio plano.
Isto vai ao encontro da ideia segundo a qual, sendo o plano um meio alternativo de prossecução do interesse dos credores, que afasta o recurso à liquidação universal do património do devedor, ele deve conter, na plenitude, a regulação sucedânea dos interesses sob tutela, seja para evitar incertezas que sempre poderiam advir da concorrência de acordos ou estipulações estranhas ao instrumento geral, seja por razões de transparência que aconselham que tudo fique devidamente explicitado para todos os credores poderem conhecer plenamente a situação e assim apreciá-la e valorá-la de modo a melhor fundamentarem a sua opção”. […] e mais adiante, a fls. 55 – nota 6 – […].
Corolário fundamental do regime fixado no preceito é o de que os direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios existentes podem ser atingidos, desde que a afectação conste do plano, e nos termos nele especialmente previstos.
A questão não suscita particular dificuldade nos casos em que os lesados previamente aquiesçam na lesão. Mas exactamente o que se questiona é se, à vista do que está prescrito, o consentimento e necessário.
Há uma dúvida complementar que se resolve por recurso ao princípio da igualdade, tal qual resulta do art. 194º
Respeita à necessidade de acordo do prejudicado para o caso de tratamento desfavorável cora relação a outros colocados em posição idêntica.
Admitamos uma proposta de plano que cerceie, total ou parcialmente, as garantias de todos os credores em igual situação, sem nenhuma distinção entre eles.
Pergunta-se se em tal eventualidade é ou não essencial a adesão de todos os atingidos ou se, pelo contrário, o facto de algum ou alguns se opor não obsta à aprovação, obtidas as maiorias necessárias. Ora, a verdade é que nada neste art. 197.° fundamenta a imperiosidade do acordo de todos os afectados para que as garantias possam ser atingidas.
E a conclusão mais se consolida pela comparação com o citado art. 62°, nºl, do CPEREF, que constitui o caso paralelo do Direito pregresso, do qual inequivocamente decorria que os direitos do credor beneficiário de garantia só podiam ser atingidos na medida consentida.
Acode ainda em favor desta solução o elemento adjuvante que se extrai do disposto nos artigos 202.° e 203.°.
Reportando-se ambos a certas providências que requerem o consentimento de quem por elas é directamente envolvido, são, todavia, totalmente omissos quanto à hipótese que aqui nos ocupa. Acresce que tal regime não deixa o prejudicado sem defesa […].
Naturalmente, a dispensa da exigência do acordo de cada um dos credores que perca garantias ou privilégios, bastando a observação da maioria comum, consumi um importante instrumento de facilitação da aprovação de planos de insolvência…”– destaque e sublinhados nossos.

Em caso de violação de normas processuais ou de índole substantiva, o CIRE – seu art. 215º – confere ao juiz o poder de recusar, oficiosamente, a homologação do plano de insolvência aprovado pela assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza.

Decorrendo do art. 197º do CIRE, não ser necessária a unanimidade do voto dos credores, incluindo os afectados pela supressão ou alteração do valor dos seus créditos e inerentes garantias, sendo privilegiados, não se antevê que a homologação do plano de insolvência esteja ferida de ilegalidade.

Os tratadistas citados, na obra a que aludimos vol. II – pág. 124 – sustentam:

“… Tenha-se em conta que, nos termos do art. 197.°, se admite a afectação dos direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios se tal constar expressamente do plano, mesmo, segundo sustentámos, sem necessidade específica do assentimento do respectivo titular.”

Ademais, o ora recorrente, tendo votado contra a decisão de que foi alvo o seu crédito, sempre poderia ter solicitado a não homologação do plano, ao abrigo do art. 216º, nº1, al.a) daquele diploma, demonstrando que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.

Dispunha do prazo de 10 dias, a contar da data da aprovação do plano – art. 214º do citado diploma – para invocar tal direito – mas não o exerceu.

O douto recorrente esgrime com preceitos que, aduz, serem cogentes, estabelecidos na lei geral tributária, mormente, no seu art. 30º, nº2, que estabelece:

“O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária”.

Invoca, ainda, os arts 36º, nº3, daquela lei que estabelece que – “A administração tributária não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei”, bem como o art. 85º do Código de Procedimento e do Processo Tributário (CPPT) que consigna:

“1. - Os prazos de pagamento voluntário dos tributos são regulados nas leis tributárias.
2 – Nos casos em que as leis tributárias não estabeleçam prazo de pagamento, este será de 30 dias após a notificação para pagamento efectuada pêlos serviços competentes.
3 – A concessão da moratória ou a suspensão da execução fiscal fora dos casos previstos na lei, quando dolosas, são fundamento de responsabilidade tributária subsidiária.
4 – A responsabilidade subsidiária prevista no número anterior depende de condenação disciplinar ou criminal do responsável”.

Com o devido respeito, a invocação destas normas e do seu carácter indisponível encontram o seu fundamento no princípio da legalidade da administração tributária, nas suas relações com os devedores, mas do que se trata é de saber se, atenta a especificidade do processo de insolvência e a tendencial igualdade dos credores do insolvente, devem ser invocados de modo a postergar a auto-regulação dos credores, plasmada na faculdade de aprovação maioritária do plano da insolvência, mesmo derrogando aquelas prerrogativas do Estado enquanto credor privilegiado.

Os citados normativos têm o seu campo de aplicação na relação tributária, em sentido estrito, não encontrando apoio no contexto do processo especial como é o processo de insolvência, onde o Estado deve intervir também com o fito de contribuir para uma solução, diríamos, de olhos postos na insolvência, se essa for a vontade dos credores, numa perspectiva ampla de auto-regulação de que a desjudicialização O ponto 37 do preâmbulo diploma é elucidativo: “É na fase da reclamação de créditos que avulta de forma particular um dos objectivos do presente diploma, que é o da simplificação dos procedimentos administrativos inerentes ao processo. O Código dispõe, a este respeito, que as reclamações de créditos são endereçadas ao administrador da insolvência e entregues no ou remetidas para o seu domicílio profissional.
Do apenso respeitante à reclamação e verificação de créditos constam assim apenas a lista de credores reconhecidos e não reconhecidos, as impugnações e as respectivas respostas.
Para além da simplificação de carácter administrativo, esta fase permite dar um passo mais na desjudicialização anteriormente comentada, ao estabelecer-se que a sentença de verificação e administrador da insolvência e a graduar os créditos em atenção ao que conste dessa lista, quando não tenham sido apresentadas quaisquer impugnações das reclamações de créditos.
Ressalva-se expressamente a necessidade de correcções que resultem da existência de erro manifesto”. (destaque nosso). do regime consagrado no CIRE é uma das essenciais características.

A atender-se, pura e simplesmente, aos privilégios dos créditos do Estado, mesmo admitindo que o CIRE no seu art. 97º mitiga o princípio da igualdade dos credores da insolvência, importa ter em conta que o desiderato do novo regime de insolvência derroga preceitos que, dada a natureza especial do processo, não se compadecem com a mera invocação de privilégios creditórios para assegurar uma posição de supremacia – ela mesmo, nessas circunstâncias – violadora daquela tendencial igualdade de tratamento.

Basta pensar que, se assim acontecer, quer com os créditos do Estado, quer com os de outras entidades, como a Segurança Social, que, como é notório, em grande parte dos casos são credores de avultadas somas, a manterem-se os privilégios que assistem aos seus créditos, todo o esforço de recuperação da insolvente ficaria a cargo dos credores comuns ou preferenciais da insolvência, que teriam de arcar com a modificabilidade e mesmo a supressão dos seus créditos e garantias, ante o Estado que, nada cedendo, se colocava numa posição de jus imperii num processo em que só, excepcionalmente, poderá ter tratamento diferenciado.

Seria transformar uma excepção, ditada por razões de ordem pública, em regime-regra, com o que seria debilitado o princípio da proporcionalidade.

Como ensina “Jorge Reis Novais, in “Os Princípios Estruturantes da República Portuguesa”, pág. 171:

“…Por sua vez, a observância ou a violação do princípio da proporcionalidade dependerão da verificação da medida em que essa relação é avaliada como sendo justa, adequada, razoável, proporcionada ou, noutra perspectiva, e dependendo da intensidade e sentido atribuídos ao controlo, da medida em que ela não é excessiva, desproporcionada, desrazoável.
Nesta aproximação de definição podem intuir-se, em primeiro lugar, a relativa imprecisão e fungibilidade dos critérios de avaliação; em segundo lugar, o permanente apelo que eles fazem a uma referência axiológica que funcione como terceiro termo na relação e onde está sempre presente um sentido de justa medida, de adequação material ou de razoabilidade, por último, a importância que nesta avaliação assumem as questões competenciais, mormente o problema da margem de livre decisão ou os limites funcionais que vinculam legislador, Administração e juiz.” (pág. 178) [sublinhámos].

Como se afirma no Acórdão n.º40/07, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt citando o Acórdão n.º 187/2001, publicado no Diário da República II Série, de 26 de Junho de 2001 “O princípio da proporcionalidade, em sentido lato, pode (...) desdobrar-se analiticamente em três exigências da relação entre as medidas e os fins prosseguidos: a adequação das medidas aos fins; a necessidade ou exigibilidade das medidas e a proporcionalidade em sentido estrito, ou “justa medida”.

Ora, numa perspectiva de adequada ponderação de interesses, tendo em conta os fins que as leis falimentares visam, seria desproporcional que o processo de insolvência fosse colocado em pé de igualdade com uma mera execução fiscal, servindo apenas para a Fazenda Nacional actuar na mera posição de reclamante dos seus créditos, mais a mais privilegiados, sem atender à particular condição dos demais credores e da insolvência.

Assim, porque cabe na competência da assembleia de credores ao abrigo do art. 196º, nº1, als. a) e c) do CIRE, o perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, bem como a modificação dos prazos de vencimento ou as taxas de juro, sejam os créditos comuns, garantidos ou privilegiados, aprovado o plano que respeitou o quorum estabelecido no artigo 212°, e não tendo sido pedida a não homologação pela Fazenda Nacional, com fundamento no art. 216º, nº1, a) daquele diploma, homologado o plano de insolvência este vincula todos os credores, sejam comuns, sejam privilegiados.

Pelo quanto expusemos, também não existe violação do art. 103º, nº2, da Constituição da República como sustenta o douto recorrente.

Tal normativo estatui –“Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes”.

Em nota ao normativo constitucional pode ler-se, in “Constituição da República Anotada”, vol. I – de Gomes Canotilho e Vital Moreira – 4ª edição revista – 2007:

O n°2 garante o princípio da legalidade fiscal, um dos elementos essenciais do Estado de direito constitucional.
Ele traduz-se desde logo na regra da reserva de lei para a criação e definição dos elementos essenciais dos impostos, não podendo eles deixar de constar de diploma legislativo. Isso implica a tipicidade legal, devendo o imposto ser desenhado na lei de forma suficientemente determinada, sem margem para desenvolvimento regulamentar nem para discricionariedade administrativa quanto aos sues elementos essenciais.”.

Não existe violação do princípio da legalidade fiscal, dada a natureza peculiar do processo de insolvência, porque a lei prevê a possibilidade dos créditos do Estado serem despojados de privilégios, mesmo sem a sua aquiescência, como antes referimos.

Decisão.

Nestes termos nega-se provimento ao agravo.

Sem custas por delas estar isento o Ministério Público.


Supremo Tribunal de Justiça, 13 de Janeiro de 2009

Fonseca Ramos (Relator)
Cardoso Albuquerque
Salazar Casanova

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1- O sumário do Acórdão, publicado em www.dgsi.pt - Proc. 085395 – é do seguinte teor: “ I – Não pode ser homologado o plano de insolvência quanto aos créditos fiscais se existir violação de normas legais imperativas, não derrogáveis por vontade dos intervenientes, designadamente dos credores. II – Nem a Administração Tributária, por motu próprio, pode atribuir um regime de excepção a determinado contribuinte, a não ser nos casos especialmente previstos na lei”.
2- Em sentido contrário ao Acórdão-fundamento, decidiram na Relação do Porto, os Acórdãos de 15.12.2005, Proc. 0535648; de 13.7.2006, Proc. 0631637; de 26.5.2008, Proc. 0852239, acessíveis in www.dgsi.pt e, ainda, da Relação de Guimarães, o Acórdão de 26.10.2006, Proc. 1930-06-2 - (citados no Acórdão recorrido).