Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1281/13.5TBTMR.E1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: CONTRATO DE COMODATO
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
USO PARA FIM DIVERSO
PRAZO CERTO
CASA DE HABITAÇÃO
OCUPAÇÃO DE IMÓVEL
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
Data do Acordão: 06/05/2018
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / COMODATO – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / DEFESA DA PROPRIEDADE.
Doutrina:
-PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, II, 2.ª edição, 1981, págs. 595 e 596;
-SALTER CID, A Proteção da Casa de Morada de Família no Direito Português, 1996, pág. 229.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1129.º E 1311.º, N.ºS 1 E 2.
Sumário :
I. Se o comodato tiver prazo certo, a restituição deve ser realizada até ao termo do prazo previsto; não tendo o comodato prazo, a restituição deve ocorrer logo que finde o uso do prédio.

II. Tratando-se de comodato sem prazo e para uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o andar, enquanto continuar a ter esse uso.

III. A necessidade da proteção familiar pode estender-se à casa objeto de um contrato de comodato, para habitação.

IV. Continuando a servir-se do prédio, por efeito do contrato de comodato, o comodatário possui título legítimo para a ocupação do prédio.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




I – RELATÓRIO


AA e BB instauraram, em 21 de outubro de 2013, no então 3.º Juízo da Comarca de … (Juízo Cível da Instância Local de …, Comarca de Santarém), contra CC, ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que a Ré fosse condenada à restituição imediata do 1.º andar do prédio urbano sito na Av. …, freguesia de …, hoje União das Freguesias de …, e descrito, sob o n.º 4461 (…), na Conservatória do Registo Predial de ….

Para tanto, alegaram que, por falecimento de DD, são os únicos e universais herança, à qual pertence o referido prédio urbano; o prédio, em vida daquele, com a sua permissão e da sua mulher, a Autora, foi utilizado, gratuita e temporariamente, para habitação do Autor e da Ré, casados entre si; na sequência do seu divórcio, cuja decisão transitou em julgado em 21 de janeiro de 2009, foi reclamada à Ré a restituição do prédio, que a mesma recusou.

Citada a Ré., esta contestou, mas o articulado foi desentranhado do processo, por intempestividade.

Prosseguindo o processo, foi proferida, em 21 de novembro de 2016, a sentença, que, julgando a ação procedente, condenou no pedido.

Inconformada, a Ré apelou para o Tribunal da Relação de Évora, que, por decisão de 1 de setembro de 2017, anulou a sentença, por falta de discriminação dos factos.

Foi então, em 2 de Novembro de 2017, proferida nova sentença, com a condenação no pedido, a que seguiu o acórdão do Tribunal da Relação de …, de 23 de novembro de 2017, que revogou a sentença quanto à restituição do prédio urbano.


Inconformados, os Autores recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formularam essencialmente as conclusões:

a) A R. ocupa o andar por força de comodato precário, gratuito e sem prazo, celebrado em vida do de cujus, que pressupunha que a R. fizesse a sua utilização, enquanto casada com o A.

b) O casamento foi extinto, por divórcio por mútuo consentimento, que homologou o acordo relativo ao andar, como casa de morada de família.

c) A A. foi e é completamente alheia a tal acordo, mantendo-se em relação a si e à Herança o pré existente comodato.

d) Na ação, a Ré nem sequer alegou a existência a seu favor de algum direito ou título que a legitime.

e) Ao ter-se atribuído à R. um direito real de uso e habitação, com base no acordo, o acórdão recorrido violou a lei substantiva, por erro de interpretação e aplicação do direito.

f) Tal direito não existe, pois que, em relação à Herança, proprietária do imóvel, sempre se manteve, mesmo após o divórcio, um comodato pré-existente, sem prazo.

g) A que se pretende pôr cobro, por se ter deixado de verificar o pressuposto que o justificou e, também, pelo facto provado em 12.

h) Não é legítima a presunção plasmada no acórdão, de aquiescência e não oposição da A. à constituição do direito de uso e habitação.

i) A A. fez várias diligências, após o divórcio, no sentido da extinção do comodato e restituição do imóvel, ao abrigo do disposto no art. 1137.º do Código Civil.

Com a revista, os Recorrentes pretendem a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por decisão que condene a Ré na restituição imediata do prédio urbano.


Contra-alegou a Ré, no sentido de ser negado provimento ao recurso.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


No recurso, está, essencialmente, em discussão a restituição de prédio urbano dado de comodato, para habitação, constituído como casa de morada de família.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, foram dados com provados os seguintes factos:


1. No dia 3 de maio de 2004, faleceu DD, no estado de casado com a A.

2. O A. é o único filho de DD e a A.

3. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o n.º 4…1/20…3 (freguesia de …), o prédio urbano, situado na Av. …, em …, composto por casa de habitação com 120m2 de área coberta, sendo de r/c e cave, com 8 divisões no r/c e uma divisão na cave, com 6 m2, e 1.º andar, com 8 divisões e duas dependência e um logradouro com 480 m2, que confronta do norte com Av. …, do sul com EE, do nascente com FF, e do poente, com GG.

4. Sobre esse prédio encontra-se inscrita a aquisição por compra a favor do falecido DD, casado com a A. no regime de comunhão geral, sendo vendedores HH e II.

5. O A. foi casado com a R., de quem se divorciou, por decisão transitada em julgado em 21 de janeiro de 2009, proferida no processo de divórcio por mútuo consentimento, que correu termos na Conservatória do Registo Civil de …, sob o n.º 265/2009.

6. Há alguns anos, a A. e o seu marido permitiram que o seu filho e a R. utilizassem, gratuita e temporariamente, para sua habitação, o 1.º andar do prédio referido.

7. Atendendo à previsibilidade daquela utilização ser curta e temporária e porque se tratava do filho e nora, a A. e marido não estipularam qualquer prazo a tal utilização.

8. O A. e a R. utilizaram o referido 1.º andar enquanto casados entre si, conforme fora pressuposto pela A. e marido.

9. Após o divórcio, foi várias vezes reclamada à R. a restituição do 1.º andar referido.

10. Através da notificação judicial avulsa n.º 918/l0.2TBTMR, entrada em 15 de julho de 2010, foi a R. notificada, em 13 de setembro de 2010, para proceder à restituição do 1.º andar que ocupa, até 30 de setembro de 2010, sob pena de lhe vir a ser reclamado, a título de indemnização, o valor de € 450,00, por cada mês de utilização até à efetiva restituição.

11. Não obstante a notificação, a R. recusou-se a proceder à restituição.

12. A R. devota má convivência à A., que vive no r/c do mesmo prédio, com inquietação e insegurança face às atitudes da R. para consigo.

13. Em 23 de novembro de 2012, os AA., através do seu mandatário forense, enviaram à R. carta registada, com A/R, recebida em 5 de dezembro de 2012, constante de fls. 49 e 50, da qual consta, designadamente, “ (…) recordará a notificação judicial avulsa por si recebida em 13-09-2010, pela qual lhe foi comunicada a pretensão dos m/clientes, no sentido de V. Exa. restituir livre de pessoas em bens o 1.º andar do prédio sito na Av. …, Vivenda JJ, em …, até 30 de setembro de 2010, cessando então a utilização gratuita que dela vinha fazendo sem estipulação de prazo nem uso. Mais lhe foi comunicado por tal expediente judicial que, caso não viesse a proceder a tal restituição, ser-lhe-ia reclamado, a título de indemnização, o valor de € 450,00 por cada mês de utilização até à efetiva restituição do imóvel. Apesar de ter sido notificada e ficar bem ciente, não proceder V. Exa. à restituição do imóvel. A má convivência e falta de urbanidade que os meus clientes lhe atribuem, e que dia para dia sentem ter vindo a agravar-se, criam naqueles inquietação e até insegurança. Dai que desta vez não se permitem continuar a tolerar mais a sua permanência no prédio em causa. Serve, pois, a presente para informar que tem prazo até ao final do corrente ano de 2012, para deixar o prédio de forma voluntária, retirando e levando consigo apenas os bens móveis que lhe foram adjudicados em sede de partilhas pós-divórcio. Os demais bens móveis deverão ficar no exato estado em que atualmente se encontram () ”.

14. Apesar da notificação, a R. não restituiu o imóvel.

15. No âmbito do referido processo de divórcio, foi celebrado acordo quanto à utilização da casa de morada de família, com o seguinte clausulado: Ambos os outorgantes reconhecem que a casa de morada de família se encontra instalada, a título gratuito, no 1.º andar da Vivenda JJ, sita na Av. …, pertencente a AA e à Herança Indivisa de DD; O primeiro e a segunda outorgantes acordam que a casa de morada de família seja ocupada pela segunda outorgante, pelos filhos e pelo primeiro outorgante; O primeiro outorgante declara que enquanto a 2.ª outorgante se mantiver a residir na casa de morada de família, não exercerá o seu direito de habitar a referida casa, sem prejuízo de, desde que ambos nisso acordem, a 2.ª outorgante passar a residir noutro local, mediante pagamento da renda respetiva pelo 1.º outorgante; O primeiro outorgante obriga-se a pagar a energia elétrica e a água que forem consumidas na casa de morada de família”. (Aditado pela Relação).



***



2.2. Delimitada a matéria de facto, importa então conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, nomeadamente da restituição de prédio urbano dado de comodato, para habitação, constituído como casa de morada de família.

Enquanto a sentença, por um lado, condenou a Recorrida na restituição imediata do prédio, o acórdão recorrido, por outro, divergindo, absolveu a Recorrida desse pedido, depois de ter concluído que, face à existência de acordo de atribuição da casa de morada de família, o direito de habitação a seu favor não se extinguiu, sendo oponível aos Recorrentes e legitimando a recusa da restituição, nomeadamente ao abrigo do disposto no art. 1311.º, n.º 2, do Código Civil (CC).


A ação, donde emerge a revista, corresponde a uma ação de reivindicação de prédio urbano, utilizado para habitação. Esta ação caracteriza-se pelo reconhecimento do direito de propriedade e pela consequente restituição da coisa (art. 1311.º, n.º 1, do CC).

Reconhecido o direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada desde que se prove a existência de um direito real ou obrigacional, que legitime o uso da coisa.

No caso vertente, sem qualquer oposição, encontra-se reconhecido o direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado a favor dos Recorrentes.

A controvérsia jurídica, como se especificou, reside apenas na questão da restituição do imóvel, tendo as instâncias adotado decisões divergentes e contraditórias.

Deste modo, interessa perceber, pois, se existe algum direito real ou direito obrigacional que legitime o uso do prédio pela Recorrida e, nesse caso, justificar a recusa da restituição, como se decidiu no acórdão recorrido, ou, caso contrário, determinar a restituição do prédio, dando assim procedência total à ação de reivindicação, como se decidira na sentença.

Na verdade, o andar reivindicado foi cedido, antes de maio de 2004, ao casal então formado pela Recorrida e pelo Recorrente, para sua utilização temporária como habitação. Nestas circunstâncias, encontra-se tipificado um contrato de comodato, tal como vem definido no art. 1129.º do CC. Com efeito, trata-se de um contrato gratuito pelo qual os pais do Recorrente lhe entregaram, a si e à então sua mulher, ora Recorrida, o 1.º andar do prédio identificado nos autos, para que se servissem dele, para sua habitação, com a obrigação de o restituírem.

Não obstante o caráter temporário do contrato de comodato, não foi convencionado, no entanto, um prazo certo para a restituição do 1.º andar do prédio.

Faltando um prazo certo, mas destinando-se a cedência do prédio a habitação, a sua restituição tem lugar quando finde o uso a que foi destinado, sem necessidade de interpelação, como decorre do disposto no art. 1137.º, n.º 1, do CC. De modo que, se o comodato tiver prazo certo, a restituição deve ser realizada até ao termo do prazo previsto; não tendo o comodato prazo, a restituição deve ocorrer logo que finde o uso do prédio (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, II, 2.ª edição, 1981, págs. 595 e 596).

A duração do comodato depende, pois, do termo do prazo estipulado ou de findo o uso determinado, sendo irrelevante, para a sua vigência, a motivação presente no momento da sua celebração.

Tratando-se, no caso, de contrato sem prazo e para uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o 1º andar do prédio identificado, enquanto continuar a ter esse uso, atento o disposto no art. 1137.º, n.º 1, do CC.

Na verdade, aquele andar constituiu a casa de morada da família do casal formado pelo Recorrente e Recorrida, tendo depois sido atribuída, por acordo, na sequência do respetivo divórcio, à Recorrida, que aí manteve a sua residência, com os filhos (facto n.º 15).

A Recorrente e a Recorrida, de resto, tinham toda a legitimidade para celebrar o acordo sobre a atribuição da casa de morada de família, como também o podiam fazer se o prédio fosse arrendado, como está expressamente previsto na lei (arts. 1105.º do CC e 4.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio).

A proteção da família e, em particular, dos filhos, justifica igualmente a transmissão da cedência do prédio, sem necessidade do consentimento do comodante, como sucede no caso em que a casa morada de família é arrendada.

A necessidade da proteção familiar pode, por isso, estender-se à casa objeto de um contrato de comodato, para habitação (SALTER CID, A Proteção da Casa de Morada de Família no Direito Português, 1996, pág. 229).


No seguimento deste entendimento, continuando o 1.º andar do prédio identificado a ser utilizado, como habitação da Recorrida e dos seus filhos, mantém-se em vigor o contrato de comodato celebrado e, por isso, aquela continua com direito a servir-se do referido prédio, nomeadamente nos termos do art. 1129.º do CC.

Dispondo a Recorrida do direito de continuar a servir-se do prédio, por efeito do contrato de comodato, que se mantém em vigor, a Recorrida possui, assim, título legítimo para a ocupação do prédio.

Nesta conformidade, não obstante o reconhecimento do direito de propriedade, é lícito recusar a restituição do prédio, por efeito da existência do contrato de comodato, que favorece a ocupante, nomeadamente nos termos do n.º 2 do art. 1311.º do CC.

 

Nos termos especificados, não procedendo a revista, confirma-se o acórdão recorrido, ainda que por razões não inteiramente coincidentes.

 

2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

 

I. Se o comodato tiver prazo certo, a restituição deve ser realizada até ao termo do prazo previsto; não tendo o comodato prazo, a restituição deve ocorrer logo que finde o uso do prédio.

II. Tratando-se de comodato sem prazo e para uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o andar, enquanto continuar a ter esse uso.

III. A necessidade da proteção familiar pode estender-se à casa objeto de um contrato de comodato, para habitação.

IV. Continuando a servir-se do prédio, por efeito do contrato de comodato, o comodatário possui título legítimo para a ocupação do prédio.


2.4. Os Recorrentes, ao ficarem vencidos por decaimento, são responsáveis pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:


1) Negar a revista, confirmando a decisão recorrida.


2) Condenar os Recorrentes (Autores), no pagamento das custas.


Lisboa, 5 de junho de 2018


Olindo Geraldes (Relator)

Maria do Rosário Morgado

José Sousa Lameira