Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | LUCAS COELHO | ||
Descritores: | NEXO DE CAUSALIDADE CONTRATO DE TRANSPORTE RESPONSABILIDADE CONTRATUAL INDEMNIZAÇÃO DANO EMERGENTE LUCRO CESSANTE | ||
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Nº do Documento: | SJ200504070044742 | ||
Data do Acordão: | 04/07/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 4882/03 | ||
Data: | 07/03/2003 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA. | ||
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Sumário : | I - Na concepção mais criteriosa da doutrina da causalidade adequada, para os casos em que a obrigação de indemnização procede de facto ilícito culposo, quer se trate de responsabilidade extracontratual, quer contratual - a «formulação negativa», acolhida no artigo 563.º do Código Civil segundo a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça - o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do mesmo, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercederam no caso concreto; II - Para que um dano seja considerado efeito adequado de certo facto, em corolário da teoria sumariada em I, não tem que se tornar previsível para o seu autor. A previsibilidade é decerto exigível relativamente, v. g., ao requisito da culpa, visto constituir um elemento (intelectual) desta em qualquer das suas modalidades; mas não em relação aos danos; III - Formulados pedidos de indemnização pela perda integral do lucro de comercialização de um lote de vinhos, que se deterioraram por facto ilícito e culposo da transportadora ré, e pela indemnização das despesas inutilizadas no lugar de destino concernentes a essa comercialização, é inconciliável o ressarcimento cumulativo das duas sortes de danos, uma vez que o lucro esperado não podia ser auferido sem que tais despesas fossem realizadas; IV - A procedência, por conseguinte, do pedido de indemnização da perda do lucro, esgota e consome a protecção do interesse do lesado mediante a indemnização das despesas de comercialização, determinando a improcedência deste outro pedido. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I 1. "A", Lda., com sede em S. Paulo, Brasil, instaurou na 16.ª Vara Cível da comarca de Lisboa, em 15 de Dezembro de 2000, contra B - Agentes de Transportes Internacionais, Lda., sediada em Lisboa, acção ordinária tendente a obter a indemnização dos danos resultantes da completa deterioração, por facto da ré, de um lote de grandes vinhos portugueses, incluindo determinadas amostras, tudo importado pela autora para introdução e comercialização no mercado brasileiro, em ordem ao futuro desenvolvimento nesse País da sua actividade social de exploração comercial do produto, cujo transporte de Portugal para o Brasil contratara com a demandada.Com efeito, as garrafas deviam ser mantidas, segundo instruções da demandante, à temperatura de +12º centígrados, tendo, porém, sido colocadas por culpa da ré a -20º no contentor em que aguardavam o embarque, o que tornou os vinhos totalmente imprestáveis para comercialização. As ordens de danos sofridos pela autora compreendem: a) a perda total dos vinhos, quantificada no valor de compra de 3.957.000$00, o lote, e de 188.370$00, as amostras; b) as despesas de exportação, cambiais e de importação (529.376$00 + 131.714$00 + 724.070$00), no quantitativo global de 1.385.160$00; c) a perda do lucro de comercialização no Brasil, de 100% sobre o valor de aquisição, de 3.957.000$00; d) as despesas realizadas para a comercialização dos vinhos, computadas em 465.424$00; e) os prejuízos de imagem da autora, do seu aviamento ou goodwill, quantificados em 7.000.000$00; f) as despesas perdidas pela inviabilização e cessação da actividade da empresa autora, calculadas em 2.924.453$00. Pede, consequentemente, o ressarcimento dos danos referidos, e a condenação da demandada no montante global de 19.878.407$00, acrescido de juros à taxa de 12% a contar da citação. Citada a ré com a cominação prevista no artigo 480.º do Código de Processo Civil, não apresentou contestação, tendo sido exarado despacho nos termos do artigo 484.º, n.º 1, que considerou assentes, discriminando-os, os factos articulados pela autora. Deu-se em seguida cumprimento ao n.º 2 deste artigo, com alegações de ambas as partes, e, prosseguindo o processo os trâmites legais, veio a ser proferida sentença final, em 6 de Novembro de 2002, que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a ré a indemnizar a autora pelos danos referidos supra, alíneas a) e b), na quantia de 27.586,17 € - já considerada a rectificação do erro de cálculo na conversão de escudos em euros, reclamada pela ré (fls. 154/158) -, com juros legais a contar da citação, e absolvendo-a no tocante aos danos referenciados nas alíneas c), e) e f) considerados no caso não indemnizáveis - omitindo--se o dano da alínea d). 2. Apelou a autora com sucesso, tendo a Relação de Lisboa revogado a sentença relativamente à absolvição dos danos das alíneas c) e e) - a que acrescentou o olvidado dano da alínea d) -, condenando a ré a ressarci-los. E, quanto ao dano da alínea f), revogou-a outrossim parcialmente, concedendo à autora apenas o montante equitativo de 500.000$00, ao abrigo do n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil. Em resumo, foi a ré condenada na 2.ª instância a solver ainda à autora a quantia 7.846.877$00 (39.140,06 €), com juros de mora legais desde a citação, acrescendo ao montante da condenação proferida pela 16.ª Vara Cível. 3. Do acórdão neste sentido proferido, em 3 de Julho de 2003, traz a ré a presente revista, sintetizando a respectiva alegação nas conclusões que se transcrevem (frisados no original): 3.1. «Ficou provado que foram efectuadas diligências entre a autora e a ré, ora recorrente, no sentido de resolver esta questão, nomeadamente, pela reposição atempadamente, dos vinhos; 3.2. «Ao existirem tais diligências elas têm forçosamente que ser consideradas no sentido de evitar ou prevenir que outros danos, nomeadamente os "sub judice", acontecessem; 3.3. «E isto é tanto verdade quanto é certo que todas estas diligências aconteceram antes do embarque e no sentido de que a mercadoria da autora, se fosse reposta, chegasse a tempo, quer da feira, quer da sua comercialização; 3.4. «O verdadeiro sentido das diligências foi o de prevenir outros prejuízos para a autora e não de resolver qualquer conflito que, à data, ainda nem sequer existia; 3.5. «Este argumento não é invocável para os danos que a ré, ora recorrente, foi condenada a pagar em 1.a instância. 3.6. «É que, enquanto os danos pelos quais a ora recorrente foi condenada em 1.a instância, já tinham ocorrido, os restantes danos alegados pela autora ainda nem sequer se vislumbravam na data em que as diligências foram efectuadas; 3.7. «Não pode proceder o argumento invocado pelos Venerandos Desembargadores, mediante o qual estes danos resultam da causa produzida pela ré, ora recorrente; 3.8. «Na verdade, tais danos resultam da inércia da autora; 3.9. «Bem andou, por isso, o Meritíssimo Juiz do tribunal de 1.a instância ao ter julgado como julgou; 3.10. «Já que, conforme é alegado na douta sentença proferida em 1.a instância, ‘não foram alegadas razões que impediram a reposição atempada dos vinhos e era à autora que competia a sua alegação ou prova nos termos do artigo 342.º do Código Civil’; 3.11. «E, ‘face à experiência comum, não se vê como a avaria de um carregamento de vinhos destinado à comercialização no Brasil seja causa adequada às calamitosas consequências alegadas pela ré [decerto se quis escrever autora] e dadas como assentes por a acção não ter sido contestada’; 3.12. «’Assim sendo, não é razoável impor à ré a responsabilidade por actos de gestão que a autora assumiu, desinteressando-se da actividade que se propunha exercer, cessando a sua actividade comercial’; 3.13. «Os danos invocados de imagem ou perda de ‘goodwill’, as despesas perdidas pela inviabilização da empresa e os lucros perdidos não são reparáveis; 3.14. «Trata-se de um contrato de transporte de mercadorias por mar; 3.15. «Quer da Convenção de Bruxelas de 1924, tornada direito interno pelo Decreto-Lei 37748, de 1 de Fevereiro de 1950, quer do regime jurídico que regula o transporte de mercadorias por mar, previsto no Decreto-Lei 352/86, de 21 de Outubro, resulta que apenas são indemnizáveis as perdas e danos sofridos na própria mercadoria e não outros; 3.16. «Isto mesmo é jurisprudência assente conforme resulta, entre outros, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Julho de 2002; 3.17. «Os Venerandos Desembargadores violaram, frontalmente, o disposto nos artigos 562.° e 563.° do Código Civil, já que não existe qualquer nexo de causalidade entre o facto da ré e os alegados danos da autora; 3.18. «Violaram, ainda, os Venerandos Desembargadores, o regime jurídico do Transporte Marítimo de Mercadorias por Mar, previsto na Convenção de Bruxelas de 1924, tornada direito interno pelo Decreto-Lei 37748, de 1 de Fevereiro de 1950, e no Decreto-Lei n.º 352/86, de 21 de Outubro, porquanto, ao abrigo deste regime, apenas são indemnizáveis as perdas e danos sofridos na própria mercadoria». Pede a recorrente, nos termos expostos, a revogação do acórdão sub iudicio, e a manutenção na íntegra da sentença. A autora contra-alega, pronunciando-se pela confirmação do aresto recorrido. 4. E o objecto da revista, considerando a respectiva alegação e suas conclusões, à luz da fundamentação da decisão em recurso, pode circunscrever-se como segue. É líquido que a recorrente não discute a indemnização dos danos incluídos na condenação proferida em primeira instância, enunciados há momentos, supra, 1., sob as alíneas a) e b). Restam os das demais alíneas em que a ré foi adicionalmente condenada pela Relação de Lisboa nos termos já prefigurados, a saber: o lucro cessante de comercialização dos vinhos no Brasil a 100% [alínea c): 3.957.000$00]; as despesas perdidas visando a mesma comercialização [alínea d): 465.424$00]; o dano de imagem e aviamento ou goodwill [alínea e): 7.000.000$00]; as despesas perdidas pela inviabilização da empresa [alínea f): 2.924.453$00]. Não se apresentam, por outro lado, controvertidos os pressupostos da responsabilidade civil accionada pela demandante com base no incumprimento do contrato de transporte pela ré, maxime a ilicitude, a culpa e o dano, excepção feita do nexo de causalidade, e da limitação dos danos indemnizáveis, segundo a Convenção de Bruxelas, de 25 de Agosto de 1924, e o Decreto-Lei n.º 352/86, de 21 de Outubro, aos sofridos pela própria mercadoria com exclusão de outros. Nestas circunstâncias, não restrigindo a recorrente a qualquer um dos aludidos danos o âmbito da revista, o objecto desta compreende, por consequência, a ressarcibilidade de todos eles, em função das seguintes questões, nuclearmente parafraseadas da sentença no capítulo conclusivo da alegação: A) inércia da autora na atempada reposição dos vinhos, incumprindo esta o ónus da prova de razões impeditivas (conclusões supra, 3.1./3.10.); B) inexistência de nexo causal entre o facto e os danos em questão; C) não ressarcibilidade destes dentro da superestrutura normativa dos citados Decreto-Lei e Convenção. II A Relação considerou assente a matéria de facto já dada como provada na 1.ª instância, para a qual, não impugnada e devendo aqui manter-se inalterada, desde já se remete nos termos do n.º 6 do artigo 713.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo de alusões pertinentes.1. A partir dessa factualidade, considerando o direito aplicável, a Relação de Lisboa rejeitou as duas primeiras questões, de forma a merecer inteira concordância, quer no tocante à sua decisão, quer aos respectivos fundamentos, para que se remete nos termos do n.º 5 do artigo 713.º do Código de Processo Civil, com uma única reserva, e sem prejuízo do que adiante se acrescentará. Interessa, por isso, sumariar o pensamento nuclear que presidiu ao aresto na decisão das duas questões. 1.1. Quanto à primeira, ponderou-se na 2.ª instância que as diligências dadas como provadas entre a autora e a ré com vista a uma reposição dos vinhos - ainda a tempo da Feira de Vinhos e Alimentação de S. Paulo, entre 3 e 7 de Maio de 2000, esclareça-se, onde estava programada, publicitada e divulgada a sua apresentação pública, quando o conhecimento da deterioração dos mesmos foi transmitido de banda da ré já muito perto do evento, a 9 de Abril anterior, e a mercadoria tinha resultado de uma pesquisa e selecção criteriosa que durou cerca de 2 anos -, que tais diligências se apresentam com carácter de normalidade na resolução extrajudicial de um diferendo. Mas deixam intocado que os referidos danos, como se provou, resultaram de facto imputável à ré ao acondicionar os vinhos à temperatura fatal de 20 graus negativos, devendo tê-los colocado a 12 positivos. E a matéria de facto assente não permite de resto afirmar que nada impedisse a autora de reiniciar de novo todo o processo de introdução dos vinhos portugueses no mercado brasileiro, mantendo a sua actividade. 1.2. Relativamente à segunda questão, concluiu a Relação, à luz da factualidade assente, pela existência de nexo de causalidade adequada entre a actuação da ré e a produção das ordens de prejuízos ora em exame. Provou-se, na verdade, que os vinhos aqui em causa se destinavam a ser comercializados pela autora no Brasil, com um lucro de 100% sobre o valor de aquisição dos mesmos. Não tendo recebido os vinhos, viu-se a autora impossibilitada de comparecer na Feira de S. Paulo acima referida, tal como tinha divulgado e publicitado, e nem pôde dispor da mercadoria para honrar os compromissos assumidos com diversos restaurantes seus potenciais clientes. A autora viu-se totalmente desacreditada junto do público e das entidades alvo da sua estratégia de penetração comercial no mercado em questão. A imagem da autora ficou destruída logo no lançamento da sua actividade. Após toda a promoção feita, criou-se uma expectativa de actuação da autora no mercado, à qual esta se viu impedida de corresponder, vendo assim destruída ab initio a sua relação com a clientela. A demandante, agora, já não tem credibilidade comercial. E já não pode reintroduzir a comercialização de vinhos no competitivo mercado brasileiro. Em consequência da conduta da ré, e dos prejuízos referidos, cessou por completo a sua actividade comercial. Na tónica dos factos descritos, e outros mais concorrem no mesmo sentido, considera, pois, o acórdão recorrido que a conduta da demandada concernente à temperatura dos vinhos é causa adequada dos questionados danos, tanto mais que «não é necessária uma causalidade directa, basta uma indirecta - o autor da lesão é responsável por todos os factos posteriores que eram de esperar segundo o curso normal das coisas, ou foram especialmente favorecidos pela conduta do agente quer na sua própria verificação quer na sua actuação concreta em relação ao dano de que se trata» (1) . Os aludidos danos são assim indemnizáveis, como danos patrimoniais emergentes e lucros cessantes (artigo 564.º, n.º 1, do Código Civil), à luz da teoria da diferença (artigo 566.º, n.º 2), consoante os montantes provados. Salvo no tocante ao dano de imagem e aviamento ou goodwill da ré, posto que, tratando-se de uma empresa recém-criada no ramo da importação, e com o intuito específico de iniciar actividades mediante a introdução no Brasil dos vinhos portugueses que originaram o presente litígio, está a mesma longe, assim se interpreta, de demonstrar uma capacidade de rendimento ou lucro susceptível de ser indemnizada mediante a verba de 7.000.000$00, Daí que, por impossibilidade de averiguação do valor exacto desse dano, se tenha fixado a indemnização do mesmo segundo a equidade, conforme o n.º 3 do artigo 566.º, na quantia de 500.000$00. 2. Concorda-se como se referiu com as soluções e sua fundamentação a que chegou a Relação de Lisboa. Aditar-se-ão, porém, as subsequentes observações, formulando-se uma restrição. 2.1. Em primeiro lugar, a questão da pretensa inércia da autora na reposição atempada dos vinhos, incumprindo o ónus da prova de circunstâncias justificativas. Uma vez que os vinhos se adulteraram por culpa da ré no seu acondicionamento à temperatura estipulada, incorreu esta em responsabilidade civil e na consequente obrigação de reparar à autora o dano ocasionado. De forma que as diligências entre as partes com vista à denominada «reposição dos vinhos», numa vertente por certo de composição - ou prevenção - extrajudicial de virtual litígio, só podem substantivamente conceber-se na óptica da reconstituição, quiçá in natura, pela ré responsável, da situação que hipoteticamente existiria se não fosse a lesão (artigos 562.º e 566.º, n.º 1). E se as diligências de «reposição»/reconstituição vêm a fracassar, subsiste em princípio o dever, que flui dos citados normativos, e sobre a ré impendente, de reconstituir a situação pré-existente. Pode é certo figurar-se que a reposição em devido tempo não tenha êxito devido a facto imputável à autora - v. g., a inércia desta, de que fala a recorrente -, mas não é a esta seguramente que incumbirá em primeira linha o ónus probatório de qualquer circunstância justificativa da falta de sucesso. É antes sobre a ré, salvo melhor opinião, que recai o ónus de provar o facto imputável à autora que impediu a tempestiva reconstituição (artigo 342.º, n.º 2). 2.2. Quanto, em segundo lugar, à questão do nexo causal interessará porventura precisar o seguinte. À luz do pensamento nuclear da causalidade adequada consagrado no artigo 563.º do Código Civil, cremos efectivamente ser de afirmar a existência de um semelhante nexo entre o facto ilícito e culposo da ré, que determinou a corrupção dos vinhos, e os prejuízos decorrentes da súbita impossibilidade da sua comercialização no Brasil (a perda do lucro esperado, a inutilização das despesas de promoção e comercialização do produto, a afectação da imagem da empresa nascente e a própria inviabilização desta). Provaram-se, na realidade, factos integradores da causalidade naturalística, sendo assim indubitável que a deterioração dos vinhos foi condição sine qua non dos danos em questão. Ora, na concepção porventura mais criteriosa da doutrina da causalidade adequada, para os casos em que a obrigação de indemnização procede de facto ilícito culposo, quer se trate de responsabilidade extracontratual, quer contratual - a «formulação negativa», devida a Enneccerus/Lehmann, aliás dominante se bem se pensa neste Supremo Tribunal -, «o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente (gleichgültig) para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercederam no caso concreto» (2) , o que pensamos ser de excluir na situação presente. Refere a alegação da revista que os danos objecto de condenação em 1.ª instância já tinham ocorrido na altura das diligências em torno da «reposição» dos vinhos, enquanto os danos de que ora se trata nem sequer se vislumbravam nessa data (cfr. o ponto III, pág. 224, e a conclusão 6.ª). Parece assim apontar-se, como elemento de exclusão do nexo causal, para um desconhecimento da ré sobre os danos sub iudicio. Não virá, por isso, a despropósito salientar que um dano, para ser considerado efeito adequado de certo facto, em corolário da teoria sumariada, não tem que se tornar previsível para o seu autor (3)... A previsibilidade é exigível, decerto, relativamente ao requisito da culpa, visto constituir um elemento (intelectual) desta em qualquer das suas modalidades; mas não em relação aos danos. 2.3. Em conclusão, foi a ré condenada pelo acórdão recorrido a indemnizar também os danos referidos inicialmente nas alíneas c), d), e) e f). Entre estes, os relativos à perda do lucro de 100% na comercialização dos vinhos no Brasil [3.957.000$00; alínea c)] e às despesas inutilizadas concernentes a esta comercialização [465.424$00; alínea d)]. Cremos, porém, ser inconciliável a indemnização cumulativa das duas sortes de danos, uma vez que o lucro esperado não podia por definição ser auferido sem que as despesas fossem realizadas. O dano das despesas está, por conseguinte, consumido pela indemnização da perda integral do lucro. E daí que a ré deva ser absolvida relativamente à verba de 465.424$00. 3. Resta, posto isto, a última questão inicialmente enunciada como objecto da revista. Advoga a recorrente, como se notou, que nos termos da Convenção de Bruxelas, de 5 de Agosto de 1924, e do regime jurídico do transporte de mercadorias por mar, emergente do Decreto-Lei n.º 352/86, de 21 de Outubro, «apenas são indemnizáveis as perdas e danos sofridos na própria mercadoria e não outros», excluindo-se, por conseguinte, os danos discutidos neste momento por não atingirem os próprios vinhos. Percorre-se, porém, em primeiro lugar o texto da Convenção - cujos artigos 1.º a 8.º foram introduzidos no direito interno pelo Decreto-Lei n.º 37748, de 1 de Fevereiro de 1950 - e não se encontra explicitada qualquer limitação da responsabilidade, pretendida pela recorrente, aos danos directamente causados na mercadoria. Algumas das suas disposições sugerem mesmo o contrário, ao falarem de «perdas e danos causados às mercadorias ou que lhe digam respeito» (artigo 4.º, n.º 5.º, primeiro parágrafo), «ou que lhes sejam concernentes» (parágrafo quarto), e de «perdas e danos que sobrevierem às mercadorias, ou concernentes à sua guarda, cuidado e manutenção» (artigo 7.º). Trata-se em todo o caso, fundamentalmente, de obrigações, em princípio, do armador e do navio, respeitando o regime do diploma em regra ao período do transporte pelo mar, entre os momentos do carregamento e da descarga das mercadorias. Nesta linha considera o artigo 1.º que a palavra «mercadorias» compreende «os bens, objectos (...) etc. que, no contrato de transporte é declarada como carregada no convés e, de facto, é assim transportada» [alínea c)]. E a expressão «transporte de mercadorias» abrange «o tempo decorrido desde que as mercadorias são carregadas a bordo do navio até ao momento em que são descarregadas» [alínea e)]. Tudo aponta, pois, no sentido da inaplicabilidade da citada Convenção à situação litigiosa sub iudicio, em que jamais se falou de carga ou descarga de navio. Os vinhos foram entregues em Almeirim à ré, que os acondicionou em contentor à fatídica temperatura de 20 graus negativos, fazendo-os transportar por via terrestre para Lisboa, algures ao cais de Alcântara, sem que qualquer transporte marítimo se tenha como quer que seja esboçado (4) . Também do Decreto-Lei n.º 352/86, de 21 de Outubro, nada resulta quanto à falada restrição dos danos às mercadorias que pudesse excluir indemnizações por lucros cessantes e outros prejuízos provados na presente acção. Estabelecendo, aliás, o diploma o regime do «transporte de mercadorias por mar», resulta elucidativa ao respeito a noção da figura vertida no artigo 1.º: «Contrato de transporte de mercadorias por mar é aquele em que uma das partes se obriga em relação à outra a transportar determinada mercadoria, de um porto para porto diverso, mediante uma retribuição pecuniária, denominada ‘frete’.» Se tal restrição fosse de preceito, não se compreenderia ademais o artigo 14.º, que responsabiliza o transportador se a viagem se tornar impossível na data ou época previstas por causa que lhe seja imputável. Para efeitos do mesmo Decreto-Lei, por outro lado, a mercadoria «considera-se carregada no momento em que, no porto de carga, transpõe a borda do navio de fora para dentro e descarregada no momento em que, no porto de descarga transpõe a borda do navio de dentro para fora» (artigo 23.º, n.º 1). Ora, nada disto aconteceu no caso decidendo. É, todavia, certo que o artigo 6.º prevê inclusive a responsabilidade do transportador pela mercadoria «no período que decorre entre a recepção da mercadoria e o embarque», à qual torna aplicáveis «as disposições respeitantes ao contrato de depósito regulado na lei civil». Tanto basta para concluir que dos instrumentos normativos citados pela recorrente nada de favorável se extrai à sua posição na lide. III Na improcedência, por todo o exposto, das conclusões da alegação, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial provimento à revista no tocante à condenação da ré na quantia de 465.424$00, equivalente a 2.321,53 €, relativa a despesas de comercialização, da qual vai absolvida, confirmando-se o acórdão recorrido quanto ao mais.Custas por autora e ré, na proporção de 5% para a primeira e 95% para a segunda (artigo 446.º do Código de Processo Civil). Lisboa, 7 de Abril de 2005 Lucas Coelho, Bettencourt de Faria, Moitinho de Almeida. --------------------------------------------- (1) O aresto louva-se, no passo transcrito, em Pereira Coelho, Obrigações, pág. 166, e Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição, pág. 579. (2) Cfr., mais desenvolvidamente, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª edição, revista e actualizada (Reimpressão), Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2003, págs. 893/894, 899/900, 890/891. A título ilustrativo da jurisprudência do Supremo sobre o tema, vejam-se os recentes acórdãos, de 4 de Novembro de 2004, e de 13 de Janeiro de 2005, respectivamente nas revistas n.º 2855/04, da 2.ª Secção, e n.º 4063/04, da 7.ª (3) Neste outro plano de elaboração doutrinária em sede de causalidade remete-se de novo para Antunes Varela, op. cit., págs. 895 e seguinte, com recensão de doutrina nacional, alemã e italiana. (4) A situação sobre a qual se debruçou o acórdão deste Supremo, de 9 de Julho de 2002, citado pela ré (cfr. a conclusão 16.ª, supra, I, 3.16.; trata-se, se bem se pensa, posto que a ré não o identifica senão pela data, do aresto proferido na revista n.º 1745/02, da 2.ª Secção), era completamente diferente. Houve um transporte por mar, com percurso de rotas que causaram atrasos na entrega da mercadoria, não sendo esta atingida por quaisquer outros danos. |