Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B4681
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO
ABANDONO DE MENOR
ADOPÇÃO
FILIAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ20080228046817
Data do Acordão: 02/28/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
1. Sendo legalmente qualificados como de jurisdição voluntária os processos judiciais de promoção e protecção das crianças e jovens em perigo, previstos na Lei de Promoção e Protecção das Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei nº147/99, de 1 de Setembro, é-lhes aplicável o disposto no nº 2 do artigo 1411º do Código de Processo Civil, segundo o qual “das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”;
2. A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no julgamento de recursos interpostos no respectivo âmbito limita-se, assim, à apreciação das decisões tomadas de acordo com a legalidade estrita;
3. Nomeadamente, pode verificar o respeito pelos pressupostos, processuais ou substantivos, do poder de escolher a medida mais conveniente aos interesses a tutelar, bem como o respeito do fim com que tais poderes foram atribuídos aos tribunais, mas não a conveniência ou a oportunidade daquela escolha;
4. No caso, encontram-se preenchidos os requisitos legalmente exigidos para que possa ser decretada a medida de confiança a instituição com vista a futura adopção, analisados do ponto de vista que deve prevalecer, e que é o da protecção dos interesses do menor: está demonstrado, quanto a ambos os progenitores, o sério comprometimento dos vínculos afectivos próprios da filiação; quanto ao pai, o abandono; quanto à mãe, objectivamente, o facto de ter colocado em sério perigo a segurança, a saúde, a formação, a educação e o desenvolvimento do filho, bem como um desinteresse susceptível de comprometer seriamente aqueles vínculos nos três meses que antecederam o requerimento da medida de confiança, encontrando-se o menor entregue a uma família de acolhimento;
5. Diferentemente, a conclusão a que o Tribunal da Relação chegou de que a medida de acolhimento já se não mostrava adequada à prossecução do superior interesse do menor, ponderada nos termos previstos no nº 1 do artigo 1410º do Código de Processo Civil, não é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. Por acórdão do Tribunal de Família e de Menores de Matosinhos, de 16 de Fevereiro de 2007, de fls. 224, proferido no âmbito de um processo judicial de promoção e protecção das crianças e jovens em perigo desencadeado por iniciativa do Ministério Público em 28 de Junho de 2006, foi decidido “confiar o AA, nascido em 25 de Março de 2003, ao «Instituto de Solidariedade e Segurança Social» com vista a adopção, nos termos dos artigos 35º, nº 1, g) e 38º-A da LPP, 165º da OTM e 1978º, nº 1, c), d) e e) do C. Civil”.
Foi ainda determinada a inibição do exercício do poder paternal relativamente aos seus progenitores (artigo 1978º-A do Código Civil, aditado pelo artigo 3º da Lei nº 31/2003, de 22 de Agosto) e a proibição de visitas da família natural (artigo 62º-A, nº 2, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei nº 147/99, de 1 de Setembro, aditado pelo artigo 4º da Lei nº 31/2003), e foi nomeada uma curadora provisória, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 167º do Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro – Organização Tutelar de Menores –, com o texto decorrente do Decreto-Lei nº 120/98, de 8 de Maio).
A mãe, BB, recorreu para o Tribunal da Relação do Porto. Todavia, por acórdão de 14 de Junho de 2007, de fls. 336, foi negado provimento ao recurso.
Deste acórdão interpôs BB recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando o disposto nos artigos 123º e 126º da Lei de Protecção e nos artigos 678º, nº 1, 685º, nº 1, 463º, nº 4, a) e 721º do Código de Processo Civil, recurso que foi recebido como revista e com efeito meramente devolutivo, pelo despacho de fls. 357.
Nas alegações que então apresentou, a recorrente formulou conclusões nas quais, em síntese, veio sustentar:
– A não verificação dos requisitos legalmente exigidos para aplicação da medida, prevista na al. g) do nº 1 do artigo 35º da Lei de Protecção, de “confiança a pessoa seleccionada para a adopção ou a instituição com vista a futura adopção e artº 38º-A do mesmo diploma legal, artº 165º da OTM e artº 1978º als. c), d) e e) do Código Civil", já que, contrariamente ao julgado, não ocorreu, nem o abandono previsto na alínea c) do nº 1 daquele artigo 1978º, nem qualquer situação de “perigo grave para a segurança, saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do menor”, contemplada na alínea d) do citado nº 1, nem nenhuma “situação de manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer, seriamente, a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança”, como exige a alínea e) do mesmo nº 1; e sustentou igualmente não estar preenchido o requisito, a acrescer a qualquer das hipóteses referidas, da “não existência dos vínculos afectivos ou o seu comprometimento”, constante do corpo do nº1 sempre do artigo 1978º do Código Civil;
– O desrespeito “do princípio da prevalência da família biológica e do espírito subjacente à enumeração das medidas de promoção e protecção aplicáveis no âmbito do artº 35º´, no sentido de preferir as medidas a executar no meio natural de vida sobre as medidas executadas em regime de colocação”, o que, em seu entender, leva a que devam ser privilegiadas as medidas que integram os menores “na sua família natural”.
Nas contra-alegações, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser confirmado o acórdão recorrido.

2. Antes de mais, cumpre determinar qual o âmbito possível da apreciação deste recurso pelo Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que os processos judiciais de promoção dos direitos e de protecção, como é o caso, são considerados por lei como processos de jurisdição voluntária (artigo 100º da Lei de Protecção).
Para o que agora releva, esta opção legal implica, desde logo, que “das resoluções proferidas [nestes processos] segundo critérios de conveniência ou oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça” (nº 2 do artigo 1409º do Código de Processo Civil).
Como é sabido, ao incluir na competência dos tribunais o julgamento dos chamados processos de jurisdição voluntária ou graciosa, cujas regras gerais se encontram nos artigos 1409º a 1411º do Código de Processo Civil, o legislador pretendeu que a prossecução de determinados interesses, em si mesmos de natureza privada, mas cuja tutela é de interesse público, fosse fiscalizada por entidades cujas características são garantia de uma protecção adequada à sua natureza.
Com essa finalidade, conferiu-lhes os poderes necessários para o efeito, afastando, quando conveniente, certos princípios, conformadores do processo civil em geral, que disciplinam a sua intervenção enquanto órgãos incumbidos de resolver litígios que se desenrolam entre partes iguais, perante as quais os tribunais têm de adoptar uma posição de rigorosa imparcialidade.
Assim, no domínio da jurisdição voluntária, os tribunais podem investigar livremente os factos que entendam necessários à decisão mais acertada (afastando a regra, vigente na jurisdição contenciosa, da limitação, mais ou menos apertada, aos factos alegados – cfr. artigos 664º e 264º do Código de Processo Civil), recolher as informações e as provas que entendam pertinentes, rejeitando as demais, decidir segundo critérios de conveniência e de oportunidade, e, na generalidade dos casos, adaptar a solução definida à eventual evolução da situação de facto (ver, no entanto, o disposto no nº 1 do artigo 62º-A da Lei de Protecção, facilmente compreensível pelos efeitos da medida de confiança para futura adopção).
Dotado destes meios, o tribunal deve assumir (neste sentido, parcialmente) a defesa do interesse que a lei lhe confia – no domínio dos processos de promoção e protecção, o “interesse superior da criança e do jovem”, como expressamente afirma a alínea a) do artigo 4º da Lei de Protecção –, ainda que essa defesa implique fazê-lo prevalecer sobre outros interesses que eventualmente estejam envolvidos, ou mesmo em oposição.
Como ali se explicita, a intervenção do tribunal “deve atender prioritariamente aos interesses da criança e do jovem, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto”.
Explica-se desta forma que o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal especialmente encarregado de controlar a aplicação da lei, substantiva (cfr. nº 2 do artigo 722º do Código de Processo Civil, na redacção aplicável) ou adjectiva (cfr. artigo 755º do mesmo diploma), não possa, nos recursos interpostos em processos de jurisdição voluntária, apreciar medidas tomadas segundo critérios de conveniência e oportunidade, ao abrigo do disposto no artigo 1410º do Código de Processo Civil. Com efeito, a escolha das soluções mais convenientes está intimamente ligada à apreciação da situação de facto em que os interessados se encontram; não tendo o Supremo Tribunal de Justiça o poder de controlar a decisão sobre tal situação (cfr. artigos 729º e 722º do Código de Processo Civil, na redacção aplicável), a lei restringiu a admissibilidade de recurso até à Relação, como se compreende.
A verdade, todavia, é que esta limitação não implica a total exclusão da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça nestes recursos; apenas a limita à apreciação das decisões recorridas enquanto se limitam a aplicar a lei estrita. É, nomeadamente, o que se verifica, quer quanto à verificação dos pressupostos, processuais ou substantivos, do poder de escolher a medida a adoptar, quer quanto ao respeito do fim com que esse poder foi atribuído.

3. A matéria de facto que vem definitivamente provada das instâncias é a seguinte, como se transcreve do acórdão recorrido:
«1. No dia 25 de Março de 2003 nasceu o AA, que tem a paternidade registada em nome de LL e a maternidade em nome de BB;
2. A situação do AA e dos seus irmãos CC e DD foi denunciada à linha "SOS Criança", a qual comunicou o caso à CPCJ de Matosinhos em Janeiro de 2005;
3. Faziam parte do agregado familiar, para além destes menores, dois irmãos mais velhos, o EE, com 17 anos, e a FF, com 16 anos, sendo que ambos foram acompanhados em processos pela CPCJ de Matosinhos;
4. O EE chegou mesmo a ser parte de um processo tutelar educativo, neste mesmo tribunal;
5. A progenitora era beneficiária do RSI;
6. Na altura o AA frequentava o infantário da "ADIM", sendo a mãe quem o ia levar e buscar;
7. A mãe era cooperante com a instituição mas o menor apresentava-se, muitas vezes, com carências ao nível de higiene, nomeadamente ao nível de roupas interiores;
8. Havendo mesmo marcas de pulgas no corpo do AA;
9. Por vezes, quando ia ao infantário, a mãe apresentava-se com um "certo hálito a álcool”;
10. A progenitora apresentava, muitas vezes, discurso incoerente aquando das visitas domiciliárias, bem como um odor a álcool;
11. Em visita domiciliária realizada depois da denúncia verificou-se que o AA dormia num berço, por cima de um colchão, sem qualquer roupa e coberto de fezes;
12. O EE apenas completou o 6º ano de escolaridade;
13. O pai do menor apenas o viu cerca de duas vezes e sempre se mostrou indisponível para acolher o menor;
14. Refere mesmo que acha que a melhor solução para o filho era ser encaminhado para adopção;
15. Por acordo de promoção e protecção de 7 de Junho de 2005 foi aplicada em favor dos menores CC e DD a medida de promoção de acolhimento institucional;
16. Por acordo de promoção e protecção de 16 de Junho de 2005 foi aplicada em favor do menor AA a medida de promoção de acolhimento familiar;
17. A primeira visita da progenitora teve lugar em 22 e Junho desse ano, nas instalações da Segurança Social da Maia sendo que, a partir dessa altura, as visitas passaram a ser semanais, decorrendo sempre de forma positiva;
18. Nestes primeiros contactos o menor gostava de ver a mãe mas ia bem quando se separava desta;
19. A partir de Março de 2006 os menores CC, DD e AA começaram a passar fins-de-semana em casa da progenitora;
20. Isto depois de a mãe ter melhorado a organização da sua casa e de ter deixado de beber em excesso;
21. Por forma a avaliar a possibilidade de os menores regressarem a casa os mesmos foram passar as férias da Páscoa de 2006 a casa da mãe;
22. Durante tal período a progenitora voltou a beber em excesso, sendo uma irmã dos menores – a FF, que nessa altura vivia com a mãe – quem tomava conta dos menores durante o dia e mesmo durante a noite;
23. Em 1 de Julho de 2006 o AA passou a ser acolhido por uma outra família de acolhimento, por indisponibilidade da primeira;
24. Por decisão provisória de 3 de Julho de 2006 foi aplicada em favor do AA a medida de acolhimento familiar, e pelo período de 4 meses, tendo igualmente sido mantida a medida aplicada em favor dos menores CC e DD;
25. Ao longo deste tempo em que o AA tem estado fora do lar materno retira-se que entre o menor e a mãe não existe uma relação afectiva forte;
26. No início do contacto tem de se incentivar o menor a ir ter com a mãe sendo que, no final, o menor reage bem à separação;
27. As primeiras visitas decorreram nas instalações da Segurança Social da Maia;
28. As visitas decorrem agora na zona de residência da família que acolhe o menor sendo que, normalmente, a mãe vai para um café com o filho;
29. A mãe leva sempre comida para o AA;
30. A progenitora não consegue dinamizar as visitas com o filho, nunca perguntando nada sobre o seu dia-a-dia;
31. As visitas nunca duram mais de uma hora, apesar de a mãe nunca ter tido limitações de tempo;
32. Por vezes as visitas são canceladas pela mãe ou porque tem uma consulta médica ou por causa do tempo sendo que, contudo, nunca foi estabelecida rigidez nos dias da visita, o que foi dito à progenitora;
33. A progenitora não procura nunca estar mais tempo com o AA do que aquele que tem estado, cumprindo só o necessário;
34. Promete muitas coisas ao AA que sabe que não pode cumprir;
35. Às vezes as visitas duram mesmo menos tempo sendo que a mãe demonstra, em outras alturas, alguma pressa em se ausentar;
36. Ao longo das visitas a progenitora fala mais com a família que acolhe o AA do que com o próprio;
37. 0 AA tem apresentado um desenvolvimento normal apesar de, fisicamente, ser uma criança pequena derivado de uma má alimentação na fase inicial da sua vida;
38. A progenitora estava convencida que só podia estar uma hora por semana com o filho;
39. 0 AA nunca pergunta pela mãe nem por outros familiares;
40. Em favor dos menores CC e DD foi aplicada a medida de acolhimento institucional, com o acordo da progenitora;
41. Os menores CC e DD têm mantido os contactos com a mãe, nomeadamente aos fins-de-semana, sendo os mesmos muito proveitosos e estimulantes para os mesmos;
42. A progenitora encontra-se a trabalhar, pelo menos desde Janeiro deste ano, em part-time, no restaurante "Farrapo Velho";
43. Encontra-se a regularizar a dívida que tinha relativa à renda de casa sendo que, para além de ter pago a renda do mês de Janeiro, começou o pagamento de rendas em atraso.»

4. Cumpre começar por averiguar se estão ou não preenchidos os requisitos legalmente exigidos para que possa ser decretada relativamente ao menor AA a medida de confiança “a instituição com vista a futura adopção”, prevista na al. g) do nº 2 do artigo 35º da Lei de Protecção desde que a Lei nº 31/2003 a criou e definiu, ao alterar o artigo 1978º do Código Civil, os respectivos pressupostos de aplicação.
Como se sabe, trata-se de uma medida da qual, diferentemente do que se verifica em relação às demais medidas de promoção e protecção previstas nas restantes alíneas do nº 1 do referido artigo 35º, resulta o “corte” das relações eventualmente existentes com a família biológica do menor, já que é decretada com vista à respectiva adopção. Justamente por isso, não pode ser determinada se o menor estiver a cargo e a viver com os parentes indicados no nº 4 do artigo 1978º do Código Civil, salvo se for prejudicial tal convivência, provoca a inibição do exercício do poder paternal (artigo 1978º-A do Código Civil) e a nomeação de um curador provisório (artigo 167º da OTM), faz cessar o direito a visitas da sua família natural, mantém-se até ser decretada a adopção e não é passível de revisão (nºs 1 e 2 do artigo 62º-A da Lei de Protecção).
Também por isso, é pressuposto genérico desta medida a inexistência ou o sério comprometimento dos “vínculos afectivos próprios da filiação” (corpo do nº 1 do artigo 1978º), e só pode ser decidida nas situações descritas nas diversas alíneas do mesmo nº 1.
No caso, o acórdão recorrido (tal como o acórdão da 1ª Instância) deu como preenchido aquele primeiro requisito da quebra dos vínculos afectivos e, ainda, os que constam da alínea c), quanto ao pai, e das alíneas d) e e) do nº 1 do artigo 1798º do Código Civil, quanto à mãe.
Ora, da consideração conjunta da matéria de facto definitivamente provada, da objectividade com que se deve aferir do preenchimento dos requisitos constantes destas alíneas e da regra de que, em qualquer caso, “na verificação das situações previstas” no nº 1 do artigo 1798º, “o tribunal deve atender prioritariamente aos direitos e interesses do menor”, como impõe o respectivo nº 2, decorre que nada há a censurar à conclusão a que chegou a decisão recorrida.
Pensando, agora, apenas na situação de facto relativa ao menor e à recorrente – porque, quanto ao pai, nenhuma dúvida se coloca –, está demonstrado que não existem, em especial do menor em relação à mãe (cfr. Maria Clara Sottomayor, A Nova Lei da Adopção, in Direito e Justiça, vol. XVIII, 2004, t. II, pág. 241 e segs, pág. 243), os “vínculos afectivos próprios da filiação” – cfr. pontos 25º, 26º, 30º a 36º e 39º da matéria de facto provada, que o revelam. A reacção do menor à chegada da mãe, quando o visita, ou à sua partida, bem como a circunstância de não perguntar por ela quando não estão juntos, não revelam os sentimentos (de desgosto, de perda, de aflição…) que a generalidade dos filhos da idade do AA exprimem quando são separados dos pais, por causas exteriores à sua vontade.
Também se não coloca qualquer dúvida de que, objectivamente, se encontram preenchidos os requisitos constantes das alíneas d) e e) do nº 1 do artigo 1798º do Código Civil.
Não está em causa, como resulta das decisões das instâncias e do que acima se disse, saber se, do ponto de vista da recorrente, a expectativa quanto à evolução das suas condições de vida permite confiar que a mesma venha a poder garantir ao menor “a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento” adequados, ou se (tendo em conta que o AA se encontra entregue a uma família de acolhimento), a recorrente subjectivamente se não desinteressou do filho, nas condições descritas na alínea e).
Com efeito, a medida em apreciação não tem como objectivo punir ou censurar os pais por qualquer eventual negligência que tenham relativamente ao filho, como claramente decorre da exigência legal de que a avaliação das situações que a podem justificar seja objectiva e tenha em conta o interesse da criança.
Mais uma vez, a matéria de facto havida como provada conduz à conclusão de que a recorrente, pela forma como vem organizando a sua vida, colocou em sério perigo “a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento” do filho. É o resulta, em especial, dos pontos 7 º a 11º, 22º ou 37º da mesma.
Assim como se há-de concluir pela verificação do “desinteresse” relevante nos termos da alínea e). O menor viveu durante cerca de um ano (desde Junho de 2005, ponto 16º) com uma família de acolhimento e vive com a segunda desde 1 de Julho de 2006 (ponto 23º), tendo falhado uma tentativa de organizar o regresso a casa da mãe no intervalo, porque a mãe não organizou a sua vida pessoal em termos que permitissem garantir a guarda do filho (pontos 19º a 22º).
O menor permanecia nessa situação de acolhimento, portanto, há muito mais de três meses, quando o Ministério Público, em 16 de Outubro de 2006 (a fls. 135), requereu a medida de confiança (cfr. os pontos 7º a 11º, 16º, 21º a 26º e 28º da matéria provada).
É certo que a mãe manteve sempre contacto com o menor, através de visitas em regra semanais, mas que decorrem de forma que não revelam o interesse pela sua pessoa e pelo seu desenvolvimento normalmente existente numa relação de filiação (cfr. factos provados, nºs 30º a 35º).
Ao exigir uma situação de desinteresse, que se prolongue pelo menos por três meses, a lei não impõe a inexistência de contactos entre os pais e a criança que se encontra em situação de acolhimento. O que releva é o modo e o significado desses contactos, que tanto pode ser o de criar ou manter laços afectivos com o objectivo de tornar possível a vida em conjunto – recorde-se, o acolhimento é uma medida provisória, pensada para esse efeito (artigo 48º da Lei de Protecção) – como apenas o de tentar evitar uma situação que acabe por levar a um processo tendente à adopção (cfr., por exemplo, Beatriz Marques Borges, Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, Comentários e Anotações à Lei nº 147/99 de 1 de Setembro, Coimbra, 2007, págs. 167 e 168).
Como se escreveu no acórdão de 30 de Novembro de 2004 deste Supremo Tribunal (proc. nº 04A3795, disponível em www.dgsi.pt), «no conceito de "manifesto desinteresse pelo filho" está essencialmente em causa a qualidade e a continuidade dos vínculos próprios da filiação».
Não se pode, pois, ter como verificada, quanto à mãe, a ocorrência de uma situação objectiva de “abandono” (al. c) do nº 1 do artigo 1798º do Código Civil). Quanto ao pai, todavia, os factos provados nos pontos 13º e 14º são suficientes para concluir pela positiva.

5. A recorrente censura ainda a decisão recorrida por, em seu entender, desrespeitar o “princípio da prevalência da família biológica e do espírito subjacente à enumeração das medidas de promoção e protecção aplicáveis no âmbito do artº 35º´, no sentido de preferir as medidas a executar no meio natural de vida sobre as medidas executadas em regime de colocação”, princípio que, segundo afirma, implica a preferência por medidas que integram os menores “na sua família natural”.
Cumpre observar, desde logo, que, ao distinguir entre “medidas a executar no meio natural de vida” do menor e “medidas de colocação”, o nº 3 do artigo 35º da Lei de Protecção inclui entre as primeiras a “confiança a pessoa seleccionada para a adopção”. Este reparo não obsta, no entanto, a que se admita que a ordem com que a versão actual da lei define as medidas de promoção e protecção, e, sobretudo, a comparação dos requisitos, dos efeitos e dos objectivos específicos de cada uma, entendidos à luz dos princípios desenvolvidos no artigo 4º, revele que o legislador pretenda que se comecem por ponderar as medidas que permitam prosseguir os objectivos delineados no artigo 34º (afastar o perigo em que os menores se encontrem, proporcionar-lhe condições adequadas ao seu desenvolvimento integral e garantir-lhes a recuperação) sem provocar o corte das relações entre o menor e a sua família natural.
A verdade, todavia, é que o menor em causa se encontrava, quando foi judicialmente decidida a sua confiança a instituição com vista a futura adopção, entregue a uma família de acolhimento, tendo o tribunal considerado que tal medida – repita-se, necessariamente temporária, embora possa ser decretada com maior ou menor duração consoante os casos (cfr. artigo 48º) – já não era adequada à prossecução do superior interesse do menor, dentro dos poderes de ponderação que a lei lhe confere (artigo 1410º nº 1 do Código de Processo Civil) e demonstrada a verificação dos requisitos legalmente necessários a essa ponderação.

6. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Determina-se ainda o pagamento de 4 UR à advogada da recorrente, nos termos do disposto no ponto 1.3.2 da tabela anexa à Portaria nº 1386/2004, de 10 de Abril.

Lisboa, 28 de Fevereiro de 2008

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa