Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1695/04.1TBVIS-C.C2.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITOS
NULIDADE DO CONTRATO
CAUSA DE PEDIR
ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR
QUESTÃO NOVA
Data do Acordão: 02/18/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / TRANSMISSÃO DE CRÉDITOS / CESSÃO DE CRÉDITOS / CONTRATOS EM ESPECIAL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / INSTÂNCIA / INCIDENTES DA INSTÂNCIA - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / INSTRUÇÃO DO PROCESSO / RECURSOS.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª Ed., pp. 294 a 334.
- Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, Refundido e Actualizado, 4.ª Ed. (2002), p. 299.
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, (1976), p. 318.
- Menezes Leitão, Cessão de Créditos, pp. 285 a 313 e 403 a 414; Direito das Obrigações, Vol. II, 5ª Ed., pp. 15 a 33.
- Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1976, p. 433.
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 7.ª Ed., pp. 271/272, 388/389.
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil” Anotado, Vol. I, 4ª Ed., pp. 593 a 596 e 600/601.
-Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Vol., 2ª Ed. revista e ampliada, pags. 188 a 195.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 220.º, 286.º, 289.º A 291.º, 578.º, N.º1, 585.º, 1143.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC) - NA REDACÇÃO EMERGENTE DA REFORMA DE 95/96: - ARTIGOS 273.º, N.º1, 376.º, N.º1, 498.º, N.º4, 516.º, 722.º, N.º2, 729.º, N.º2.
LEI N.º 38/87, DE 23.12 (L. O. F. T. J. – LEI DE ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS) : - ARTIGO 29.º.
Sumário :
I - A cessão de créditos reveste a natureza de contrato causal (policausal ou polivalente, para o Prof. Antunes Varela), não constituindo a mesma entre nós uma forma de transmissão abstracta do crédito, antes delimitando a posição jurídica inicial do cedente a posição jurídica obtida pelo cessionário através do negócio transmissivo.

II - Por isso, se o negócio transmissivo vier a ser declarado nulo ou anulado, tal determinará a anulação da transmissão do crédito, de acordo com as regras dos arts. 289.º a 291.º do CC.

III - Sendo nula a primeira cessão efectuada, necessariamente e por arrastamento, terão de o ser as subsequentes, uma vez que nemo plus juris in alium transferre potest quam ipse habet.

IV - Tendo sido invocada como causa de pedir da pretensão formulada a ocorrência de válidas cessões de crédito que vieram a ser julgadas nulas, vedado está ao autor, atenta a – neste âmbito – perfilhada teoria da substanciação, passar a invocar, em sede de recurso, como causa de pedir da mesma pretensão, quer o instituto do enriquecimento sem causa, quer a sustentada integração de contrato de mandato sem representação em que o cedente se teria limitado a cumprir as instruções do terceiro- autor, o que, a ser aceite, consubstanciaria, ainda, vedada admissão de questões novas só suscitadas em via recursiva.
Decisão Texto Integral:

Proc. nº 1695/04.1TBVIS-C.C2.S1[1]

               (Rel. 202)

                              Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

1AA requereu, nos autos em epígrafe, a respectiva habilitação como cessionário do crédito da, aí, A., “BB Lda”.

       Fundamentando a respectiva pretensão, alegou, em resumo e essência:

                                                     /

--- Nos autos apensos, a R., “Universidade CC”, foi condenada a pagar à, aí, A., “CC Lda”, determinada quantia;

--- A A. cedeu a DD o seu crédito;

--- Este cedeu-o, depois, ao requerente.

       Contestando, aduziu, também em síntese, a requerida:

                                                   /

--- São inválidos os negócios de cessão por se tratar de negócios simulados, realizados com o único objectivo de prejudicar a R., na acção declarativa apensa, e dificultar a sua posição processual;

--- O requerente não pode habilitar-se quanto ao pedido reconvencional que foi objecto de apreciação na acção declarativa apensa;

--- A procedência da habilitação privaria a requerida de obter a procedência da reconvenção;

--- A habilitação do requerente só seria possível se ele tivesse adquirido a globalidade da posição jurídica da A., incluindo as dívidas reclamadas em sede reconvencional;

--- A habilitação impede a contestante de chamar a depor, em depoimento de parte e no incidente de liquidação, os gerentes da A., possibilitando ao requerente a sua indicação como testemunhas.

       A administradora da insolvência da “BB” pronunciou-se, considerando não estar demonstrada, factual e documentalmente, a existência  das alegadas cessões de crédito.

       Foi decidida a tramitação separada dos pedidos de habilitação e de liquidação, tendo prosseguido os seus termos o incidente de habilitação.

       Obtemperou, ainda, o requerente:

--- A requerida não fica prejudicada com as cessões, porque existe uma relação de dependência quanto à liquidação de ambos os créditos reconhecidos nos autos apensos, em sede de acção e em sede de reconvenção;

--- No despoletado incidente de liquidação, deduziu ao crédito detido pela A. as quantias do pedido reconvencional;

--- A oposição à habilitação por não poderem ser chamados a depor como partes os gerentes da “BB” não tem fundamento, desde logo porque um deles renunciou a tal qualidade e foi ouvido como testemunha na acção declarativa apensa, pelo que poderão ambos os gerentes ser ouvidos como testemunhas sem as restrições inerentes à prova por depoimento de parte.

       O requerente deduziu o incidente de intervenção da massa insolvente da “BB”, o qual, tendo sido, inicialmente, indeferido, veio a ser admitido por decisão do Tribunal da Relação de Coimbra.

       A interveniente não apresentou oposição.

       Produzida a prova apresentada, foi proferida decisão a julgar procedente o incidente e a declarar “habilitado AA como sucessor da A./reconvinda, “BB – .., Lda”[2], nos autos de acção declarativa nº 1695/04.1TBVIS, de que os presentes constituem apenso”.

       Na procedência do recurso interposto pela requerida, a Relação de Coimbra, por acórdão de 11.03.14 (Fls. 647 a 657), decidiu julgar improcedente o incidente, não habilitando, consequentemente, AA como sucessor da “BB” nos autos apensos (1695/04. 1 TBVIS) e também no incidente de liquidação pendente.

       Daí a presente revista interposta pelo recorrido-requerente AA, visando a revogação do acórdão recorrido, conforme doutas alegações culminadas com a formulação das seguintes e relevantes conclusões:

                                                   /

1ª – A decisão constante do acórdão em crise, tendo reapreciado os meios de prova dos autos, decidiu aditar à matéria de facto dada como provada na 1ªinstância os seguintes factos:

- DD apenas emprestou à BB 5000 contos em 1999 (cf. facto nº 11 do acórdão).

- O mesmo foi entretanto reembolsado deste valor (cf. facto nº 12 do acórdão).

- EE emprestou à BB, por intermédio do Sr. DD, cerca de 520 mil contos no ano 2000 (cf. facto nº 13 do acórdão).

- Nenhum destes movimentos de capital foi titulado (cf. facto nº14 do acórdão).

- Por instruções do Sr. EE, não completamente esclarecidas, fez-se a cessão de crédito de 12.03.2010 (cf. facto nº 15 do acórdão);

2ª – Dos factos provados, se resulta a nulidade do contrato-fonte da primeira das cessões dos autos – o mútuo (relação fundamental inválida), emerge também uma outra fonte ou causa subjacente ao negócio inválido: a obrigação de restituição dos financiamentos;

3ª – A interpretação correta do disposto no artigo 578º/1 do CC, que determina que "Os requisitos e efeitos da cessão entre as partes definem-se em função do tipo de negócio que lhe serve de base", deverá passar por incluir também nas causas de cessão, para além dos negócios jurídicos proprio sensu, todos os atos jurídicos (artigo 295º do CC) e todas as fontes de obrigações previstas na lei civil (artigos 405º e seguintes do CC), v.g., a dação, seja em pagamento, seja em função do cumprimento;

4ª – A ratio do artº 578º/1 do CC é condicionar a cessão do crédito à existência de uma causa que o justifique, afastando, no nosso sistema jurídico, a possibilidade de transmissões abstratas de créditos. Trata-se de uma limitação à autonomia privada, não uma exigência de que exista um negócio jurídico proprio sensu que dê causa à cessão;

5ª – No caso dos autos, a cessão de crédito é feita para pagamento de um outro cédito, o do mútuo. Mas sendo este nulo, por falta de forma, nada impede que, por aplicação do artº 293º do C. Civil, de que se verificam todos os pressupostos, se converta o pagamento do capital mutuado, que o devedor quis realizar, na restituição do capital nulamente mutuado que, diferente apenas no título, é, materialmente, igual à restituição desse capital por via do mútuo; e funda-se exatamente no mesmo animus;

6ª – Donde, causa legítima na 1ª cessão dos autos – a da BB a DD;

7ª – E, obviamente, a DD e não a EE;

Efetivamente,

8ª – Quando EE faculta a DD os 520 000 contos, que este último empresta à BB, porque não quer que se saiba da proveniência dos fundos, o que se institui é uma relação de mandato sem representação, nos termos e com a configuração dos artº 1180º e segs. do C Civil:

         DD, em nome próprio, mas por mandato de EE, celebra com a BB um contrato de mútuo, nulo, todavia, por falta de forma. Logo, o credor da obrigação de restituir emergente da nulidade do mútuo é DD, atenta a disciplina do artº 1180º do C. Civil;

9ª – Ficou, provado, por outro lado, que DD cede o crédito que recebe da BB ao ora recorrente por instruções do mandante, EE. Também aqui, em estreita observância do regime estabelecido no art. 1181º, nº 1, do CCivil, sendo inteiramente liberatório que o mandatário, em vez de transferir o crédito para o mandante, o transfira para quem este indicar – é que EE só dá instruções juridicamente eficazes a DD, e que este cumpre, porque tem a disponibilidade jurídica do crédito, evidenciada, quanto ao facto de o mandatário ter, efetivamente, transferido, para o mandante, os direitos adquiridos, exatamente no cumprimento pelo primeiro das instruções recebidas do segundo;

10ª – Na identificação da causa das cessões dos autos, tem de se apurar, no imediato, se existe um contrato ou ato fonte;

11ª – Nesse exercício, cumpre demonstrar a existência da causa das cessões, que não deixa de existir por serem considerados nulos os mútuos dos autos, por vício de forma;

12ª – A primeira cessão, que tem como causa a obrigação de restituição das quantias mutuadas, é válida, tendo o Tribunal “a quo” incorrido num erro de interpretação do disposto no artigo 578º/1 do C.C;

13ª – A segunda cessão, que tem como causa as instruções de quem podia dispor validamente do crédito (e que melhor causa pode ter um mandatário para a cessão de um crédito do que as instruções do mandante?!), é também, e por isso, válida, sendo certo que o mandante nem sequer tinha de revelar ao mandatário a razão das instruções (irrelevante, por isso, que as instâncias não tenham dado como provados os motivos para essas instruções, declarados em audiência por DD). Também aqui, erro de interpretação por parte do Tribunal “a quo” do artº 578º, nº1 do CCivil;

14ª – Por outro lado, o artigo 585º do CC determina: "O devedor pode opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com ressalva dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão";

15ª – A referida disposição legal, sob a epígrafe "Meios de defesa oponíveis pelo devedor", permite a este invocar, relativamente ao cessionário, todas as exceções que produzem a extinção total ou parcial do crédito, como o pagamento, a resolução do contrato por incumprimento definitivo, a prescrição do crédito, a compensação, a exceção de não cumprimento, o direito de retenção, a redução da prestação. Não confere é o direito de o devedor opor ao cessionário as exceções que o cessionário poderia, ele próprio, opor ao cedente. Que, no caso, é dizer,

16ª – Ao ora recorrido, devedor, não lhe é permitido invocar contra o cessionário exceções derivadas do próprio negócio de cessão, ao qual é estranho. Assim,

17ª – A nulidade, por falta de forma, do negócio-fonte da primeira cessão, o mútuo, não só não afasta a existência de causa para ela - a efetiva entrega de diversas quantias que sempre originaria a obrigação de restituir -, como não pode o devedor ora recorrido – a UCP – opor ao cessionário do crédito causas invalidantes do negócio que apenas relevam na relação interna cedente-cessionário;

18ª – Ao permitir que a UCP se aproveite da nulidade do mútuo para obstar à validade das cessões – a segunda decorrente da nulidade da primeira {quando os financiamentos que estão na origem das cessões resultaram provados}, o Tribunal recorrido viola, flagrantemente, o disposto no artigo 585º do CC, na medida em que inclui nos meios de defesa suscetíveis de serem invocados pelo devedor contra o cessionário aqueles que apenas poderiam ser invocados na relação entre este e o cedente, qualidades que a UCP não tem. Finalmente,

19ª – As menções constantes do acórdão a respeito da não reclamação do crédito por EE no processo de insolvência e a invocação dos artigos 81.º, 85,º/3 e 90,º do CIRE são totalmente descabidas, pois a BB, tendo cedido a DD o crédito que tinha sobre a UCP, em restituição do capital mutuado, já não era, por mais nulo que o mútuo fosse, devedora de DD, ou mesmo do seu mandante, EE, que nada indicia fosse por esta empresa conhecido, desconhecimento, aliás, irrelevante; e, por isso, não sendo a BB devedora de DD ou de EE, não podiam estes reclamar créditos na insolvência;

20ª – Das presentes conclusões emerge que o acórdão “a quo” violou, por erro de interpretação e de aplicação, os arts. 293º, 295º, 405º, 578º/l, 585º, 1180º e 1181º/l, todos do CCivil, e os artºs 81º, 85º/3 e 90º do CIRE, pelo que deverá ser revogado, e declarado o ora recorrente como habilitado no incidente dos autos.

       Termos em que, supridas as deficiências do patrocínio, deve ser dado provimento ao presente recurso, com o que farão Vossas Excelências, Senhores Juízes Conselheiros,

                                   JUSTIÇA!

       Contra-alegando, doutamente, defende a recorrida, Universidade CC, a manutenção do julgado.

       Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

                                                        *

2 – A Relação teve por provados os seguintes factos, que temos por imodificáveis:

                                                        /  

1 – Por acordo celebrado no dia 11 de Novembro de 2004, com o teor constante da cópia junta a fls. 28 a 30, a aí identificada como cedente, “BB – …, Lda”, declarou, além do mais aí exarado, ceder ao aí identificado como cessionário, DD, o crédito que detém sobre a Universidade CC;

2 – Consta da cláusula 2ª de tal acordo que o mesmo produz efeitos imediatos;

3 – A cedente deu conhecimento de tal acordo à Universidade CC, mediante o envio de carta registada, com aviso de recepção, datada de 1 de Junho de 2006, por esta recepcionada em 02.06.06;

4 – Por acordo celebrado no dia 12 de Março de 2010, com o teor documentado a fls 35 e 36, o aí identificado como cedente, DD, declarou ceder ao aí identificado como cessionário, AA, o “crédito ilíquido que detém sobre a Universidade CC”;

5 – O cedente deu conhecimento de tal acordo à Universidade CC, por carta registada, com aviso de recepção, por esta recepcionada em 01.07.11;

6 – A A. na acção declarativa apensa, “BB-…, Lda”, foi declarada insolvente, por sentença proferida em 02.03.09;

7 – Consta do relatório apresentado pela administradora em tal processo de insolvência que não lhe foi possível apreender os elementos de contabilidade ou chegar ao contacto com os seus sócios e gerentes;

8 – DD não reclamou créditos no processo de insolvência supra mencionado;

9 – O gerente da “BB-…, Lda”, é irmão do requerente, AA;

10 – No acordo denominado pelos outorgantes “cessão de créditos”, celebrado em 12 de Março de 2010, é referido, além do mais aí exarado: “(…) desejando o cedente realizar liquidez (…)” e ainda que “o cedente, em pagamento de dívida constituída por si perante o cessionário, em 2000, cede a este, pelo valor convencionado de € 3 000 000,00 (três milhões de euros), o crédito ilíquido que detém sobre a Universidade CC (…)”;

11 – DD apenas emprestou à BB 5000 contos, em 1999;

12 – O mesmo foi, entretanto, reembolsado deste valor;

13 – EE emprestou à BB, por intermédio do sr. DD, cerca de 520 mil contos no ano 2000.

14 – Nenhum destes movimentos de capital foi titulado;

15 – Por instruções do Sr. EE, não completamente esclarecidas, fez-se a cessão de crédito de 12.03.10;

16 – Na acção declarativa principal de que os presentes autos constituem apenso, foi proferida decisão já transitada em julgado, constando do seu dispositivo, além do mais aí exarado:

“Pelo exposto, de facto e de direito decide-se:

I – Julgar parcialmente procedentes, por provadas, a acção e a reconvenção e consequentemente:

a) Declarar-se que a R. deve à A. a quantia a liquidar correspondente ao ano de 2002 ao valor da construção referida em 3º e 4º da matéria assente, descontadas as importâncias já pagas de € 4 636 036, 35 e € 616 361,10, os montantes a liquidar correspondentes ao custo da reparação das sobreditas anomalias e relativo ao valor do dito aluguer das duas gruas, equipamentos e máquinas;

b) Declara-se que a A. deve à R. as quantias de € 96 838,70 e o montante a liquidar correspondente ao valor das sobreditas refeições tomadas na cantina da R.;

c) Julgando-se válida e eficaz a excepcionada compensação de créditos na parte correspondente, condena-se a A. e R. a pagar o remanescente do crédito que vier a ser liquidado a favor da parte contrária (…)”;

17 – No âmbito da acção declarativa de que os presentes autos constituem apenso, foi proferida sentença pelo tribunal de 1ª instância, na qual o gerente da, aí, A. “BB – …, Lda”, Prof. Doutor FF, foi condenado como litigante de má fé;

18 – No âmbito do processo nº 684/04.2TTVIS, que correu termos no 2º juízo do Tribunal de Trabalho de Viseu, foi proferida sentença, cuja cópia consta de fls 105 e ss, na qual os, aí, RR., FF e GG, foram condenados a pagarem, solidariamente, à, aí, A., Universidade CC, a quantia de € 913 697,83, bem como a quantia a liquidar-se relativamente ao valor das refeições tomadas pelos funcionários da “BB”.

                                                      *

3 – Perante o teor das conclusões formuladas pelo recorrente e não havendo lugar a qualquer conhecimento oficioso, a questão por si suscitada e que, no âmbito da revista, demanda apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso consiste em saber se são válidas e juridicamente vinculantes as cessões de créditos por si invocadas como fundamento legitimador da sua peticionada habilitação processual como “transmissário” do liquidando crédito, judicialmente, reconhecido à sua originária cedente, “BB – …, Lda”.

       Como evidenciam os autos, a 1ª instância deu uma resposta positiva à questão, acolhendo a pretensão do habilitando e, ora, recorrente, AA, enquanto a Relação de Coimbra aderiu à tese oposta, como propugnado pela requerida do correspondente incidente e, ora, recorrida, “Universidade CC”.

       Apreciando:

                                                     *

4I – Como expende o Prof. Pedro Pais de Vasconcelos[3], “…Em Direito Civil, nem todo o acordo, nem toda a convenção, nem toda a promessa alcança só por si qualidade jurídica, força geradora de Direito (…) É necessário, em primeiro lugar, que tenha sido gerada livre e esclarecidamente (autonomia privada). Mas esta simples decisão livre e esclarecida, no uso da autonomia e liberdade que cada pessoa tem, deve ser acompanhada de algo mais, que se designa também neste caso por causa. É nesta perspectiva da causa do negócio jurídico que surgem as maiores divergências doutrinais. Os subjectivistas entendem necessário verificar a motivação do negócio e o fim com que as partes o celebram; os objectivistas, a função económica e social que esse negócio desempenha (…) A causa do negócio jurídico, seja ele um contrato ou uma promessa unilateral, é o fundamento da sua qualidade e força jurídica. Esse fundamento reside, em primeiro lugar, na autonomia privada que confere poder jurígeno, de criação de direito, ao agir negocial privado. É ainda necessário que o conteúdo do negócio não seja incompatível com a constelação de valores que regem a Ordem Jurídica, isto é, que não seja contrário a lei injuntiva, nem aos bons costumes, nem à ordem pública. É na dualidade de autonomia e licitude de conteúdo que se funda a juridicidade do negócio. Por isso é tão importante assegurar que o acto de autonomia privada foi livre e esclarecidamente celebrado, sem erro nem dolo, nem coacção, nem usura, nem incapacidade acidental; assim como é imprescindível ajuizar da licitude do seu conteúdo e objecto. Não é, em rigor, necessário que o negócio preencha uma função económica ou social positiva, mas esta não pode ser incompatível com as coordenadas axiológicas da Ordem Jurídica”. (Sublinhámos).

                                                      /

II – Interferindo com a temática jurídica abordada em I antecedente, existem os denominados negócios causais – por contraposição aos designados por abstractos. Na definição do insigne civilista[4] já mencionado, os primeiros são aqueles em que a causa é relevante para o respectivo regime e, como tal, pode ser invocada como fundamento de pretensões ou excepções de direito material, enquanto os últimos são aqueles em que, ao contrário, a causa é irrelevante e, como tal, não pode ser atendida nem constituir o fundamento de pretensões ou excepções. Naqueles, é permitido às partes ou a qualquer delas que, nas controvérsias suscitadas pelo negócio, invoquem como fundamento argumentos ligados ou emergentes da causa; nestes, é vedada a invocação de tais argumentos.

       Ora, a cessão de créditos que, na lição do saudoso Prof. Antunes Varela[5] e ao abrigo do preceituado no art. 577º do CC, pode ser definida como o contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito, tem, precisamente, a natureza de contrato causal (Muito embora aquele insigne Mestre prefira a designação de contrato policausal ou polivalente, em homenagem à variabilidade da causa da cessão de caso para caso).

       Com efeito, nos termos do disposto no art. 578º, nº1, do CC, “Os requisitos e efeitos da cessão entre as partes definem-se em função do tipo de negócio que lhe serve de base”, sendo, por outro lado, certo que, ao abrigo do preceituado no art. 585º do mesmo Cod., “O devedor pode opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com ressalva dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão”.[6]

       Como (após acentuar que, normalmente, o negócio jurídico que serve de base à cessão será um contrato, não havendo, porém, obstáculos a que a mesma resulte de negócio jurídico unilateral, nos casos em que este é admitido – arts. 457º e segs. do CC) acentua o Prof. Menezes Leitão (Pags. 17 a 20 da 2ª das suas indicadas obras), a cessão de créditos apresenta-se como um efeito do negócio-base em que se integra, sendo através do regime deste que se deve determinar a forma e o regime jurídico aplicável, sendo que, no nosso sistema jurídico, o negócio que serve de base à cessão é sempre causal, não constituindo a mesma entre nós uma forma de transmissão abstracta do crédito, antes delimitando a posição jurídica inicial do cedente a posição jurídica obtida pelo cessionário através do negócio transmissivo. Para concluir que “se o negócio transmissivo vier a ser declarado nulo ou anulado, é manifesto que tal determinará a anulação da transmissão do crédito, de acordo com as regras dos arts. 289º a 291º” (do CC).

                                                      /

III – Na decorrência do que ficou considerado e procedendo à subsunção jurídica da factualidade provada (única a que estamos vinculados e, aqui, imodificável, como já observado – arts. 29º da, então, vigente Lei nº 38/87, de 23.12 (L. O. F. T. J.Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais) e 722º, nº2 e 729º, nº2, ambos do CPC na aplicável redacção emergente da reforma de 95/96), forçoso é concluir que, sem quebra do muito respeito devido, carece de apoio legal a pretensão do requerente-recorrente. Com efeito:

--- Está provado, entre o mais, que DD apenas emprestou à “BB” 5 000 contos, em 1999, tendo o mesmo sido, entretanto, reembolsado deste valor (Cfr. nº/s 11 e 12 de 2 supra), o que significa que, pressuposta (para mero raciocínio académico) a validade do correspondente empréstimo, o requerente apenas lograria provar a existência de causa (constituição de mútuo) para a operada cessão de crédito a seu favor, naquele montante, subsistindo não provada a existência de causa da mesma cessão quanto ao remanescente e muito mais significativo montante;

--- Mesmo assim, o “mutuante” DD fora, entretanto, reembolsado da mencionada quantia de 5 000 contos, além de que, como bem se entendeu no douto acórdão recorrido, o correspondente contrato de mútuo sempre teria de ser havido por nulo (art. 220º do CC), por inobservância da forma, legal e imperativamente, exigida (art. 1143º do CC, na redacção introduzida pelo, então, vigente art. 2º do DL nº 343/98, de 06 de Novembro), uma vez que, considerando o valor em causa, tal contrato só seria, formalmente, válido se celebrado por escritura pública, o que, não tendo logrado provar-se, só contra o recorrente-requerente se pode volver (Cfr. art. 516º do citado CPC). Não podendo, a este propósito, subscrever-se o entendimento de quem pretende retirar legitimidade ao devedor (debitor cessus) – “in casu”, a recorrida – para arguir a sobredita nulidade, sob o pretexto de se tratar de contrato celebrado entre o cedente e o cessionário: sempre seria de obtemperar com o preceituado nos arts. 286º e 585º, ambos do CC, para além de, nos termos previstos naquele primeiro art., se impor o respectivo conhecimento oficioso[7];

--- Sendo nula a primeira cessão efectuada, necessariamente e por arrastamento, terá de o ser a segunda, ocorrida em 12.03.10. Na realidade, como expende o Prof. Menezes Leitão[8], “Sendo a cessão de créditos um negócio de disposição, exige-se naturalmente a legitimidade…do cedente para que ele possa ser celebrado, sendo inválida ou ineficaz a cessão no caso de o cedente não ser titular ou não poder dispor do crédito…Efectivamente, o que caracteriza os negócios de disposição é o facto de não poderem ser apenas celebrados com base na autonomia privada das pessoas, exigindo ainda a titularidade do direito subjectivo de que pretendem dispor, pelo que, faltando a titularidade do direito na esfera do cedente, este nunca se poderá considerar transmitido (…) Será igualmente inválida a cessão se o negócio transmissivo padecer de algum dos valores negativos do objecto negocial, como o de ter um objecto…legalmente impossível[9]…Efectivamente, dado que a transmissão do crédito toma por base um negócio jurídico, e entre nós se adopta um sistema causal de transmissão de direitos, qualquer valor negativo que atinja o negócio virá naturalmente a afectar igualmente a transmissão do crédito”.

                                                        *

5 – O recorrente pretende, não obstante e face à decretada rejeição da originária causa de pedir por si eleita (as mencionadas cessões de crédito), arrimar-se à fundamentação e sustentação da sua pretensão nos institutos do enriquecimento sem causa, da ocorrência de um verdadeiro contrato de mandato sem representação do EE, subjacente à actuação do DD no âmbito da 2ª cessão invocada, e em que este se teria limitado a cumprir as instruções daquele, convocando, ainda e por fim, a figura da conversão do negócio jurídico.

       Entre nós, como sustentou o Prof. Manuel de Andrade[10], vale a “chamada teoria da substanciação, que exige sempre a indicação do título (acto ou facto jurídico) em que se funda o direito afirmado pelo A.”, contrapondo-se-lhe a chamada teoria da individualização que dispensa tal indicação, quando não necessária para identificar concretamente esse direito.

       Nos termos do disposto no art. 498º, nº4 do, aqui, aplicável CPC na redacção emergente da reforma de 95/96, por causa de pedir (causa petendi) deve entender-se o “facto jurídico de que procede a pretensão deduzida”[11].

       Decorrendo do preceituado no art. 268º do mesmo Cod. que, “Citado o R., a instância deve manter-se a mesma quanto…à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei”, o que, aqui, irreleva.

       Paralelamente, prescreve o art. 273º, nº1 do mesmo Cod. que “Na falta de acordo” – como ocorre no caso dos autos – “a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada na réplica, se o processo a admitir, a não ser que a alteração ou ampliação seja consequência de confissão feita pelo R. e aceita pelo A.”.

       O incidente donde emerge o recurso não admite réplica no respectivo processado – art. 376º, nº1 do citado CPC - e a invocação dos sobreditos institutos jurídicos não é consequência de confissão feita pela recorrida-requerida e aceite pelo recorrente-requerente.

       Assim, a invocação de qualquer dos sobreditos institutos jurídicos, já em fase de recurso, consubstancia – como a recorrida, certeiramente, observa – alteração da causa de pedir, processualmente inadmissível, pelo que nenhum deles e questões com os mesmos relacionadas e suscitadas pelo recorrente  poderão ser objecto de abordagem.

                                                      *

6 – Por via do expendido em 5, toda a problemática suscitada pelo recorrente em torno dos mencionados institutos jurídicos se reconduz ao domínio das denominadas questões novas, que não podem ser objecto de recurso, certo como é que, na senda de Jurisprudência uniforme e há muito consagrada entre nós, não se tratando de matéria de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado e contendo o processo os elementos imprescindíveis, os recursos se destinam apenas à reapreciação das decisões proferidas na instância recorrida e não à apreciação e decisão de questões novas.

       Por isso, não se abordará e decidirá qualquer das sobreditas questões, improcedendo, pois, também por este fundamento, as correspondentes conclusões formuladas pelo recorrente.

                                                         *

7 – Na decorrência do exposto, acorda-se em negar a revista.

                                                         /

     Custas pelo recorrente.

                                            Lx       18/   02  / 2015    /   

Fernandes do Vale (Relator)

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida

 

                                                                                                                                                


[1]  Relator: Fernandes do Vale (26/14)
   Ex. mos Adjuntos
   Cons. Ana Paula Boularot
   Cons. Pinto de Almeida
[2] Em bom rigor, deveria constar “BB – Sociedade Construtora Lda”, em vez de “BB – Sociedade de Construção Lda”, como decorre, necessariamente, do certificado de fls. 564 a 635.
[3]  In “Teoria Geral do Direito Civil”, 7ª Ed., pags. 271/272.
[4]  In Ob. citada, pags. 388/389
[5]  In “Das Obrigações em Geral”, Vol. II, 7ª Ed., pags. 295
[6]  Sobre a temática da cessão de créditos, cfr., designadamente, Prof. Menezes Leitão, in “Cessão de Créditos”, com relevo para as pags. 285 a 313 e 403 a 414, e “Direito das Obrigações”, Vol. II, 5ª Ed., pags. 15 a 33; Prof. Antunes Varela, in “Ob. citada”, pags. 294 a 334; Prof. I. Galvão Telles, in “Manual dos Contratos em Geral”, Refundido e Actualizado, 4ª Ed. (2002), pags. 299; e Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in “CC Anotado”, Vol. I, 4ª Ed., pags. 593 a 596 e 600/601.
[7]  Cfr., a propósito, Prof. Menezes Leitão, na primeira das suas mencionadas obras, pags. 291, nota 19.
[8]  Ibidem, pags. 292/293.
[9]  O Prof. Mota Pinto propendia a considerar como reportadas a um objecto legalmente impossível as cessões de créditos emergentes de contratos inválidos – in “Teoria Geral do Direito Civil”, 1976, pags. 433.
[10]  In “Noções Elementares de Processo Civil” (1976), pags. 318.
[11]  Cfr. Cons. Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, I Vol., 2ª Ed. revista e ampliada, pags. 188 a 195.