Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
20983/10.1YYLSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: CRÉDITO AO CONSUMO
LEI APLICÁVEL
REQUISITOS
CONSUMIDOR
CONCLUSÕES
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DO CONSUMO - CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / ALEGAÇÕES DE RECURSO / DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Reimpressão (2008), pp. 125/127.
- Fernando de Gravato Morais, “União de Contratos de Crédito e de Venda para o Consumo” e “Do Regime Jurídico do Crédito ao Consumo” - “, Scientia Juridica, Tomo XL, IX, nº/s 286/288.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC) NA REDACÇÃO DECORRENTE DO DL Nº 303/07, DE 24.08: - ARTIGO 685º-A, N.º3.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGO 639.º, N.º3.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 60.º, 81.º, AL. I), 99.º, AL. E).
D.L. N.º 323/01, DE 17-12: - ARTIGOS 1.º, N,º2.
D.L. N.º 359/91, DE 21-09 - LEI DO CRÉDITO AO CONSUMO (LCC), COM AS ALTERAÇÕES DECORRENTES DOS D.L. N.ºS 101/00, DE 02-06, E 82/06, DE 03-05: - ARTIGOS 2.º, N.º 1, AL. B), 3.º, AL. C), 12.º, N.º 2, 33.º.
Legislação Comunitária:
DIRECTIVAS N.º/S 87/102/CEE, DE 22.12.86, E 90/88/CEE, DE 22.02.90.
REGULAMENTO CE N.º 2866/98, DO CONSELHO.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 09.03.04 (PROC. 04A300/ITIJ/NET) E DE 13.07.06 (PROC. 06S698.DGSI.NET).
-DE 02.11.04 (COL/STJ - 3.º/107) E DE 24.04.07 (COL/STJ - 2.º/46-47).
-DE 22.06.05 (COL/STJ - 2.º/137, CITANDO SANDRINA LAURENTINO (“OS DESTINATÁRIOS DA LEGISLAÇÃO DO CONSUMIDOR”, ESTUDOS DE DIREITO DO CONSUMIDOR, N.º2, 2000, CDCFDC, P. 420).
Sumário :
I - O convite à rectificação/aperfeiçoamento das conclusões, previsto no art. 639º, nº3, do CPC, só é obrigatório como etapa que, necessariamente, terá de preceder a decisão de não conhecimento do objeto do recurso, na parte afetada, não estando, pois, o tribunal impedido de, designadamente por razões de pragmatismo e celeridade processual, proceder, ele próprio, ainda que com dificuldade acrescida, à triagem das conclusões apresentadas, se a prolixidade destas não for de molde a suscitar alguma dúvida pontual sobre a pretensão deduzida.

II - O DL n.º 359/91, de 21-09 - Lei do Crédito ao Consumo (LCC) -, entretanto revogado pelo DL n.º 133/09, de 02-06 (seu art. 33.º), tem o respetivo âmbito de aplicação condicionado, designadamente, ao facto de o respetivo regime protetor ter como destinatário um consumidor, ou seja (respetivo art. 2.º, n.º 1, al. b), a pessoa singular que, nos negócios abrangidos por tal diploma legal, atua com objetivos alheios à sua atividade comercial ou profissional.

III - O regime jurídico consagrado pelo referido DL também não abrange os contratos em que o montante do crédito concedido seja superior a Esc. 6 000 000$00 (€ 29 927,87 - arts. 1.º, n.º 2 do DL n.º 323/01, de 17-12, e 1º do Regulamento CE n.º 2866/98, do Conselho) - respetivo art. 3.º, al. c).

IV - O direito conferido ao consumidor pelo art. 12.º, n.º 2, do mencionado DL n.º 359/91 está dependente, preenchidos os demais requisitos, aí, contemplados, da verificação cumulativa das condições previstas nas respetivas als. a) e b).
Decisão Texto Integral:

Proc. nº 20983/10.1YYLSB-A.L1.S1[1]

                  (Rel. 221)

                                Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

1 - Por apenso aos autos de processo executivo para pagamento de quantia certa que “AA - ..., S. A.” instaurou contra “BB, Lda”, veio esta, em 14.01.11, deduzir oposição à execução, alegando, em resumo e essência, que:

--- Supunha ter adquirido o veículo ... com a matrícula  - EH -, a “CC”, tendo, para o efeito, celebrado um contrato de crédito com a exequente “AA”, que deu origem à livrança em execução;

--- Porém, de facto, nunca adquiriu o veículo, porque este nunca foi da “CC”, nunca tendo estado na titularidade desta, que não a transmitiu.

       Sustentando que tal torna o contrato anulável, pede a consequente extinção da execução.

       Admitida a oposição e notificada a exequente, veio esta apresentar contestação, tendo, em síntese, alegado que:

--- Pela celebração do contrato, a executada obrigou-se a pagar uma prestação mensal, pelo período de 60 meses, tendo liquidado 25 dessas prestações, ou seja, durante dois anos, não tendo, até então, dado conta de qualquer irregularidade à exequente;

--- Posteriormente, a executada entrou em mora, seguida de incumprimento definitivo, pelo que a exequente procedeu à resolução do contrato;

--- Traduz abuso de direito a conduta da executada.

       Foi proferido despacho saneador tabelar, tendo-se prescindido da selecção da matéria de facto.

       Prosseguindo os autos a sua tramitação, veio, a final, a ser proferida (em 21.03.13) sentença (Fls. 231 a 242) que, julgando procedente a oposição, declarou extinta a execução, relativamente à opoente.

      Porém, na procedência de apelação interposta pela exequente, a Relação de Lisboa, por acórdão de 23.09.14 (Fls. 313 a 328), revogando aquela sentença, julgou improcedente a deduzida oposição à execução, com o inerente prosseguimento desta.

      Daí a presente revista interposta pela opoente, visando a revogação do acórdão recorrido, conforme alegações culminadas com a formulação das seguintes conclusões:

                                                   /

1ª - O acórdão de que se recorre violou o art. 685º-B, nº1, do CPC aplicável à data da interposição do recurso, que corresponde ao art. 640º do novo CPC, por não ter rejeitado o recurso interposto pela “AA”, uma vez que, ao recorrer da matéria de facto, não especifica os pontos incorrectamente julgados, nem indica os meios probatórios existentes que impõem solução diversa;

2ª - Sendo esta matéria de conhecimento oficioso, não é a oponente, nas suas contra-alegações, que competia provar esta questão, tanto mais que são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e não as contra-alegações;

3ª - No acórdão recorrido, as conclusões do recurso de apelação da recorrida são julgadas prolixas, mas o Tribunal não tirou a consequência que isso acarreta;

4ª - No douto acórdão recorrido, não é julgada uma única conclusão do recurso de apelação, mas, antes, são tecidas considerações sobre a sentença, descabidas e totalmente fora do objecto do recurso;

5ª - Mal também se andou no acórdão recorrido quanto à aplicação da lei substantiva, uma vez que considera que o tribunal de 1ª instância não devia ter conhecido da nulidade relativamente à venda de bens alheios, por não ter sido alegado pela oponente na sua oposição esta nulidade e ter pedido a anulabilidade do contrato;

6ª - A nulidade do contrato é de conhecimento oficioso nos termos do disposto no art. 286º do CC, pelo que andou bem o tribunal de 1ª instância ao conhecer que o contrato de compra e venda é nulo por consubstanciar a venda de bens alheios nos termos do art. 892º do CC;

7ª - O registo automóvel tal como é dito no acórdão não tem eficácia constitutiva do direito de propriedade sobre o mesmo, mas constitui uma presunção legal de que o bem pertencente (deveria querer dizer-se “pertence”) a quem tem a sua titularidade no registo, não foi feita ilação (sic) desta presunção nos autos;

8ª - Mais, o DL nº 395/91 (deveria querer dizer-se “359/91”) aplica-se ao contrato de crédito em causa, uma vez que a aplicação de um diploma legal não tem de ser discutida no âmbito da matéria de facto, trata-se de uma questão de aplicação do direito e o contrato de crédito, nas cláusulas 6ª e 14ª, expressamente faz referência à aplicação do referido DL;

9ª - Ou seja, as partes submeteram o contrato à legislação em causa, tendo sido perfeitamente legítimo ao tribunal de 1ª instância proceder à aplicação deste DL, uma vez que o contrato assim o refere;

10ª - A oponente celebrou um contrato de compra e venda de um veículo automóvel e um contrato de crédito que estão coligados e com dependência funcional, daí resultando relevantes os efeitos jurídicos, visto que as vicissitudes de um contrato acabam por se repercutir no outro, conforme entendimento jurisprudencial, pelo que a nulidade do contrato de compra e venda leva à nulidade do contrato de crédito;

11ª - O acórdão recorrido viola a lei processual nos seguintes arts.: 674º, al. c); 666º, 615º e 639º, nº/1 e 3, todos do actual CPC e viola a lei substantiva nos seguintes arts. do CC: 286º e 892, bem como art. 12º, nº2 do DL nº 395/91 (deveria querer dizer-se “359/91”), de 21.09.

       Termos em que se requer a V .Ex. cias seja dado provimento ao presente recurso, revogando o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do qual se recorre e mantendo a sentença proferida em 1ª instância.

       Assim se fará JUSTIÇA.

       Contra-alegando, defende a recorrida a manutenção do julgado.

       Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

                                                    *

2 - A Relação teve por provados os seguintes factos (que temos por imodificáveis, atenta a ausência de fundamento legal para a respectiva alteração):

                                                    /

1 - A exequente intentou acção executiva contra a, aqui, oponente, munida do documento de fls. 5 dos autos de execução onde se inscreve a frase: "no seu vencimento pagarei(emos) por esta única via de livrança à AA - ... S. A. ou à sua ordem, a quantia de quarenta e um mil e sessenta euros e setenta e um cêntimos", com data de "emissão" em 21.09.2010 e de "vencimento" em 12.10.2010 (documento que aqui se considera reproduzido);

2 - No rosto do documento referido em 1, no espaço destinado ao "nome e morada do(s) subscrito(es)", encontra-se inscrito "BB Lda. ( ... )" e, no espaço destinado a "assinatura(s) do(s) subscritor(es)", está aposto um carimbo identificativo da oponente e sobre o mesmo estão apostas assinaturas;

3 - A oponente celebrou com a exequente o "contrato de crédito nº ...", que deu origem ao título dado à execução e que teve por objecto o veículo ... …, com matrícula -EH-, adquirido pela oponente à CC (contrato junto a fls. 25 e 26 e que se dá por integralmente reproduzido);

4 - Bem que nunca pertenceu à CC, nem em data anterior, nem em data da outorga do contrato;

5 - Por força do referido contrato, foram assumidas, entre outras obrigações, a de pagar à ora exequente uma prestação mensal no montante de € 1 083,15, por um período de 60 meses (Cfr. Cláusulas 9ª a 11ª das “Condições Particulares”), com início em 23.12.07;

6 - Efectivamente, ao abrigo do referido contrato, foram liquidadas 25 prestações contratuais, vencidas entre 23.12.07 e 23.12.09;

7 - O pagamento de 16 das referidas prestações foi efectuado por débito na conta da oponente, tendo, posteriormente, sido efectuados pagamentos por outros meios;

8 - Durante o período mediado entre 23.12.07 e 23.12.09 não foi comunicada à exequente qualquer irregularidade;

9 - Entretanto, vencidas as prestações nº/s 26, 27, 28 e 29, respectivamente, em 23.01.10, 3.02.10 (sic), 23.03.10 e 23.04.10, não foram as mesmas pagas - situação que se mantém, aliás, até à presente data;

10 - Em face da mora no pagamento das prestações, a exequente, através de carta registada com aviso de recepção, datada de 13.05.10, concedeu à executada/opoente um prazo suplementar de 8 dias úteis para pagamento da dívida, findo o qual a mora se converteria em incumprimento definitivo;

11 - Carta esta que, apesar de ter sido enviada para a morada contratualmente indicada, veio devolvida com a menção aposta pelos CTT "Não Atendeu";

12 - Decorrido que foi o prazo admonitório concedido para a regularização da dívida pendente, nova carta foi enviada à executada/opoente, desta feita comunicando o valor em dívida e advertindo-a para o preenchimento da livrança por si subscrita em garantia do bom cumprimento do contrato;

13 - Tendo sido enviada para a morada contratualmente indicada, veio tal carta devolvida com a menção aposta pelos CTT "Não Atendeu";

14 - A fls. 196, está junta a certidão do registo automóvel atinente ao veículo objecto do acordo descrito em 3 (certidão que se dá por integralmente reproduzida).

                                                       *

3 - Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente e não havendo lugar a qualquer conhecimento oficioso, constata-se que, essencialmente, são as seguintes as questões por si suscitadas e que, no âmbito da revista, demandam apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso:

                                                       /

  I - Se o recurso de apelação devia ter sido, oficiosamente, rejeitado, no que diz respeito à reapreciação da matéria de facto;

 II - Se a recorrente deveria ter sido convidada a sintetizar as respectivas conclusões, nos termos do disposto no art. 685º-A, nº3 do CPC, na redacção introduzida pelo DL nº 303/07, de 24.08;

III - Se a recorrida-opoente podia, na qualidade de respectiva compradora, invocar como meio de defesa perante a recorrente-exequente o alegado incumprimento do contrato de compra e venda por parte da vendedora;

 IV - Na afirmativa, se tal se repercute e de que modo, na subsistência, perante a recorrida-opoente, do título executivo - livrança - em que se funda a execução.

       Apreciando:

                                                       *

4 - I - Carece de qualquer fundamento a questão suscitada pela recorrente e enunciada em primeiro lugar.

       Com efeito, a apelação interposta pela exequente não teve por objecto a reapreciação da matéria de facto, só se compreendendo que a recorrente suscite tal questão se não tiver atentado devidamente no teor do douto acórdão recorrido.

       Na realidade, no mesmo se pondera, textualmente (respectivas fls. 11): “Preliminarmente cumpre assinalar que pese embora nas prolixas conclusões formuladas pela recorrente esta convoque os depoimentos produzidos pelas testemunhas, é patente que não vem posta em crise a decisão da matéria de facto e, consequentemente, também não vem suscitada a reapreciação de tal decisão (…) Neste contexto e pese embora a redundante invocação de tais testemunhos, carece de fundamento a pretendida rejeição do recurso reclamada pela recorrida, com base na suposta inobservância dos ónus estabelecidos no nº1 do art. 685º-B do CPC”.

       Não nos merecendo qualquer censura a ponderação que acaba de ser transcrita e que, por inatacável, integralmente subscrevemos, improcedem as correspondentes conclusões formuladas pela recorrente.

                                                   /

II - Nos termos do disposto no art. 685º-A, nº3 do CPC na redacção decorrente do DL nº 303/07, de 24.08, “Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas…o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las…, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afectada”.

       Assim e porque, a dado passo do acórdão recorrido, as conclusões tiradas pela recorrente foram apelidadas de “prolixas”, pretende a recorrente-opoente que, em aplicação do transcrito preceito legal, o Tribunal recorrido não poderia ter deixado de fazer convite à, aí, recorrente para, sob pena da legal cominação de não se conhecer do respectivo recurso, na parte afectada, sintetizar aquelas conclusões.

       Entendemos, porém, que não pode ser acolhida esta pretensão da recorrente, aliás digna de realce, porquanto, não obstante, no caso, pudesse, eventualmente, redundar em seu favor, as razões de “queixa” dos recorrentes residem mais, ou quase exclusivamente, no que apelidam de recurso indevido dos Tribunais Superiores a um tal convite, com as drásticas sequelas que pode projectar na respectiva situação processual…Daí que a correspondente prática judiciária, para além de usada com muito rigor e parcimónia, seja objecto de tendencial rejeição no Tribunal “ad quem”, quando solicitado a decidir recursos despoletados pela cominação legal associada a tal convite.

       Como quer que seja, reputa-se adequado e pertinente reproduzir o que, a propósito, expendeu Abrantes Geraldes (in “Recursos em Processo Civil”, Novo Regime, Reimpressão (2008), pags. 125/127): “…Aquilo que a experiência permite confirmar e que facilmente se comprova através da leitura de relatórios de acórdãos publicados é que se entranhou na prática judiciária um verdadeiro círculo vicioso. Em face do número de situações em que se mostra deficientemente cumprido o ónus de formulação de conclusões, os tribunais superiores acabam por deixá-las passar em claro, preferindo, por razões de celeridade, avançar para a decisão, fazendo nesta a triagem do que verdadeiramente interessa em face das alegações e da sentença recorrida (…) Agindo deste modo, os tribunais superiores colocam os valores da justiça, da celeridade e da eficácia acima de aspectos de natureza formal (…) A prolação do despacho de aperfeiçoamento fica dependente do juízo que for feito acerca da maior ou menor gravidade das irregularidades ou incorrecções, em conjugação com a efectiva necessidade de uma nova peça processual que respeite os requisitos legais. Para isso pode ser conveniente tomar em consideração os efeitos que a intervenção do juiz e as subsequentes intervenções das partes determinem na celeridade. Parece adequado ainda que o juiz atente na reacção do recorrido manifestada nas contra-alegações, por forma a ponderar se alguma irregularidade verificada perturbou o exercício do contraditório, designadamente quando se esteja perante conclusões obscuras”.

       Perante a transcrita e sensata contemplação da correspondente prática judiciária, tributária da possível celeridade processual e da indeclinável salvaguarda dos direitos e faculdades processuais das partes, tem, pois, de concluir-se que o questionado convite ao aperfeiçoamento não foi formulado porque se entendeu que, não obstante extensas, as conclusões formuladas pela recorrente eram perfeitamente inteligíveis, não pondo em crise o exercício do contraditório por parte da recorrida, permitindo, com observância da possível celeridade processual, a identificação das questões suscitadas pela recorrente, bem como dos fundamentos que lhes serviam de suporte.

       Aliás, em concretização da mencionada prática judiciária, poderão indicar-se os acórdãos deste Supremo, de 09.03.04 (Proc. 04A300/ITIJ/Net) e de 13.07.06 (Proc. 06S698.dgsi.Net), assim, respectivamente, sumariados:

--- “I - Do disposto no art. 690º, nº4, do CPC, resulta apenas que o relator não pode deixar de conhecer do recurso com base na falta, deficiência, obscuridade, complexidade ou falta de especificações legais nas conclusões das alegações deste, sem convidar os recorrentes a apresentá-las, completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las. II - Já não impede o conhecimento do objecto do recurso sem tal convite se o Tribunal de recurso entender dispor de elementos que lhe permitam, nomeadamente por razões de celeridade processual, proceder ele próprio àquela sintetização por forma a determinar quais as questões a decidir, apesar da dificuldade acrescida nessa determinação”;

--- “O convite ao aperfeiçoamento da alegação produzida…só se justifica quando se evidencia prolixidade susceptível de legitimar alguma dúvida pontual sobre a pretensão deduzida e, a par disso, seja também notório um esforço de identificação dos pontos factuais censurados e dos elementos probatórios que viabilizam”.

      Não tendo, pois, sido violado o preceituado no referido art. 685º-A, nº3.

                                                 /

III - Sendo, pois, chegados à apreciação da 3ª questão supra enunciada e que, sem dúvida, constitui o cerne do objecto do recurso: saber se a recorrente pode, na respectiva qualidade de compradora, invocar como meio de defesa perante a exequente o alegado incumprimento do contrato de compra e venda por parte da vendedora.

       A recorrente, com êxito na 1ª instância, cola-se à respectiva tese afirmativa, no que veio a ser contrariada pela Relação, que proclamou doutrina oposta, fazendo-se eco da correspondente posição sustentada pela exequente.

       Tudo se resumindo, aliás, a saber se, “in casu”, é aplicável o DL nº359/91, de 21.09 (Lei do Crédito ao Consumo - LCC), com as alterações decorrentes dos DD. LL. nº/s 101/00, de 02.06, e 82/06, de 03.05, as quais, no entanto, aqui irrelevam.

       Como consta do respectivo Preâmbulo, o referido DL nº 359/91 - entretanto revogado pelo DL nº 133/09, de 02.06 (seu art. 33º), mas vigente ao tempo da celebração do contrato de crédito discutido nos autos - transpôs para o direito interno as Directivas nº/s 87/102/CEE, de 22.12.86, e 90/88/CEE, de 22.02.90 e visou, além do mais, “assegurar o cumprimento do objectivo constitucional e legalmente fixado de protecção dos direitos dos consumidores” - cfr. arts. 60º, 81º, al. i) e 99º, al. e) da Constituição, de cuja conjugação decorre que a protecção dos direitos e interesses dos consumidores constitui incumbência prioritária do Estado no âmbito económico e social e, bem assim, de política comercial.

       Como se acentua no Ac. deste Supremo, de 22.06.05 (COL/STJ - 2º/137, citando Sandrina Laurentino (“Os Destinatários da Legislação do Consumidor”, in “Estudos de Direito do Consumidor”, nº2, 2000, ed. do Centro de Direito do Consumo da Faculdade de Direito de Coimbra, pags. 420) e Fernando de Gravato Morais (in “União de Contratos de Crédito e de Venda para o Consumo” e “Do Regime Jurídico do Crédito ao Consumo” - “, “Scientia Juridica”, Tomo XL, IX, nº/s 286/288), “Tem-se feito notar que ao direito do consumo (ou do consumidor) subjaz um critério finalista de protecção e promoção dos interesses do consumidor, é esse o escopo das normas que constituem o seu conteúdo, o seu objecto e o seu domínio de aplicação (…) A ideia-força desta legislação é a protecção do consumidor, parte considerada como fraca e leiga perante outras entidades de carácter económico e que, por conseguinte, necessita de uma tutela específica que se vem juntar à tutela já existente no direito comum”.[2]

      Mas, tendo em consideração a dita finalidade prosseguida pelo legislador com a publicação daquele diploma legal, entendeu o mesmo dever delimitar o respectivo âmbito de aplicação, definindo, na al. b) do nº1 do respectivo art. 2º, o conceito de consumidor para os efeitos da aplicação do mesmo DL. Devendo, assim, como tal entender-se “a pessoa singular que, nos negócios jurídicos abrangidos pelo presente diploma, actua com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional”. (“Negrito” de nossa autoria). Podendo aqueles negócios jurídicos consistir, nos termos da definição que a al. a) do mesmo preceito legal nos dá do «contrato de crédito», em qualquer “contrato por meio do qual um credor concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou qualquer acordo de financiamento”.

       Sendo que, por seu turno e nos termos da al. c) do mesmo preceito legal, por «credor» se deve entender “a pessoa singular ou colectiva que, no exercício da sua actividade comercial ou profissional, concede o crédito” (Enfatizámos).

       Por aqui logo se vê que o regime decorrente do mencionado DL nº 359/91 não pode ser convocado para disciplinar o relacionamento contratual havido entre a exequente e a opoente e a que se reportam os autos: sendo esta uma sociedade comercial e, como tal, pessoa colectiva, jamais, atento o que se deixou exposto, pode ser considerada «consumidora», para efeitos de aplicação daquele DL.

      Concorrendo um outro fundamento para a mesma constatação/conclusão: é que, nos termos do preceituado no art. 3º, al. c) do citado DL, este não se aplica a contratos em que o montante do crédito concedido seja superior a Esc. 6 000 000$00 (€ 29 927,87 - arts. 1º, nº2, do DL nº 323/01, de 17.12. e 1º do Regulamento CE nº 2866/98, do Conselho), sendo certo que, conforme decorre de 3 de 2 supra e do teor de fls. 25 (Condições Particulares do contrato de crédito nº ...), o montante do crédito concedido pela exequente à opoente foi de € 51 500,00.

       Acresce que, mesmo que ao caso fosse aplicável o regime jurídico instituído pelo mencionado DL nº 359/91 - o que já se deixou rejeitado -, ainda assim não se mostrariam preenchidas as condições cumulativamente exigidas para a aplicação do respectivo art. 12º, nº2, o qual assim textua:

     “O consumidor pode demandar o credor em caso de incumprimento ou de cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda por parte do vendedor desde que, não tendo obtido do vendedor a satisfação do seu direito, se verifiquem cumulativamente as seguintes condições:
a) - Existir entre o credor e o vendedor um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor aos clientes do vendedor para a aquisição de bens fornecidos por este último;
b)  - Ter o consumidor obtido o crédito no âmbito do acordo prévio referido na al. anterior.

      Como se expendeu no citado Ac. deste STJ, de 24.04.07, “…a relação de trilateralidade consagrada neste preceito quanto aos efeitos do incumprimento contratual do vendedor confere ao consumidor a faculdade de accionar o financiador, ou de, quando demandado, alegar a excepção de incumprimento, fazendo-o repercutir no contrato de financiamento; mas para isso a lei exige a verificação em concreto de duas condições, que são a existência de um acordo prévio entre o credor e o vendedor - acordo dito de exclusividade - em virtude do qual este se obriga a direccionar os seus clientes para aquele com vista à concessão do crédito necessário à aquisição dos bens que ele, vendedor, fornece (1ª) e a obtenção do crédito no âmbito desse acordo prévio de exclusividade (2ª). Se não se verificarem estes dois requisitos, o credor não responde pelo incumprimento do vendedor: entendeu o legislador que só em situações com estes contornos a conexão entre os dois contratos é suficientemente apertada para que se possa justificar, mediante a extensão da responsabilidade do vendedor ao financiador, terceiro em relação ao contrato de compra e venda e em nome da efectiva protecção do consumidor, uma tão clara derrogação do princípio da relatividade dos contratos”.       

     Nem se diga, “ex adverso”, que das “Condições Gerais” 6ª e 14ª do contrato de crédito celebrado entre a exequente e a opoente decorre a aplicação ao mesmo do regime jurídico instituído pelo DL nº 359/91: não só uma tal aplicação não está na disponibilidade das partes, como naquelas “Condições Gerais” a mesma não é afirmada, porquanto nelas se prevê, expressamente, “No caso de o cliente ser considerado “consumidor”, nos termos da al. b), do nº1, do art. 2º do DL nº 359/91, de 21.09…”, assim se condicionando o que, de seguida, se mostra acordado e não se afirmando, de maneira alguma e como não poderia deixar de ser, a aplicação, à partida e incondicionadamente, do regime jurídico constante do sobredito DL.

    Tudo, pois, impondo a conclusão de que o eventual incumprimento das respectivas obrigações contratuais por parte da vendedora (“CC, Lda”) não legitima o da opoente no que toca ao contrato de crédito celebrado com a exequente: este é, em razão do exposto, insensível a qualquer excepção que, porventura, pudesse ser oposta no âmbito e reportadamente ao contrato de compra e venda celebrado com aquela “CC, Lda”.

                                                         /

IV - Falecendo, pois, o meio de oposição deduzido à execução, subsiste, integral e incólume, o título executivo (livrança) que lhe serve de suporte, improcedendo, integralmente, as remanescentes conclusões formuladas pela recorrente.

                                                       *

5 - Na decorrência do exposto, acorda-se em negar a revista.

     Custas pela recorrente.

                                                       /

                                            Lx     09  /   07 /2015     /       

  

Fernandes do Vale (Relator)

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida

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[1]  Relator: Fernandes do Vale (45/14)
   Ex. mos Adjuntos
   Cons. Ana Paula Boularot
   Cons. Pinto de Almeida
[2]  Em idêntico sentido, cfr., designadamente, os Acs. deste Supremo, de 02.11.04 (COL/STJ - 3º/107) e de 24.04.07 (COL/STJ - 2º/46-47)