Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4526/06.4TBMAI.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: HERANÇA
SONEGAÇÃO DE BENS
ACÇÃO DE CONDENAÇÃO
CABEÇA DE CASAL
HERDEIRO
INVENTÁRIO
Apenso:
Data do Acordão: 09/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DAS SUCESSÕES
Doutrina: - Antunes Varela, Código Civil Anotado, 1998, Vol. VI, págs. 156/157.
- Américo de Campos Costa, Revista dos Tribunais, Ano 74.º, 1956, págs. 40/41.
- Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, 1993, Vol. II, 2º edição, pág. 86.
- Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, Vol. X, 1936, pág. 641.
- Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol I, 1979, pág. 555.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 2096.º
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 1349.º, NºS 2 E 4, 1350.º, N.º1
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 1-7-2010, C.J., 2, PÁG. 132.
Sumário :
I - A acção de sonegados tem por objectivo a condenação do herdeiro, seja ou não cabeça-de-casal, a perder em benefício dos co-herdeiros o direito que possa ter a qualquer parte dos bens sonegados (art. 2096.º do CC) e pressupõe a omissão de declaração quando se lhe impunha o dever de declarar os bens da herança.

II - Se o cabeça-de-casal, fora de qualquer acto judicial ou outro em que estivesse obrigado a declarar os bens a partilhar, designadamente o inventário, se limita a responder a um herdeiro que não há bens a partilhar, falta o pressuposto que permite intentar acção de sonegados autonomamente.

III - Não há dolo se o cabeça-de-casal se limita a declarar, interpelado por um outro herdeiro, que não há bens a partilhar quando o herdeiro tinha conhecimento da existência de bens integrativos do património hereditário, designadamente o imóvel onde vivia o cabeça-de-casal que o marido desta vendera simuladamente.

IV - Não incorre em acto ilícito o cabeça-de-casal que continua a viver na casa de morada de família onde vivia com o marido à data da morte deste, não constituindo acto ilícito igualmente o ter recebido na casa uma filha.
Decisão Texto Integral:

             Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

 1. AA e, por intervenção principal provocada, BB, em acção declarativa ordinária proposta em 13-6-2006 contra CC deduziram os seguintes pedidos:

             - Que seja a ré removida do cargo de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do pai dos AA e marido da ré, DD falecido em 28-1-1999.

 - Que seja nomeado cabeça-de-casal da herança aberta por óbito daquele DD a filha mais velha, BB.

 - Que seja reconhecido que a ré perdeu o direito aos bens sonegados identificados no artigo 26.º da petição inicial (imóvel, depósito bancário e veículo automóvel) em benefício dos demais herdeiros daquele DD.

 - Que seja a ré condenada a restituir à herança todos os bens sonegados melhor identificados no artigo 26.º da petição inicial.

 - Que seja a ré condenada a indemnizar aquela herança com o valor das utilidades e faculdades que aqueles bens propiciam e de que a mesma usufrui em exclusividade desde a data da abertura da referida herança até efectiva restituição dos mesmos, a ser liquidada em execução de sentença.

 2. Alegaram que DD faleceu no estado de casado em separação de bens com a ré que passou a viver com o marido no imóvel referenciado nos autos desde o casamento de ambos ocorrido em 2-12-1993.

 3. No dia 23-6-1996 o falecido DD outorgou escritura de compra e venda desse imóvel sendo compradora EE, filha da ré que outorgou na escritura autorizando o marido a alienar a casa de morada de família, compra e venda que veio a ser julgada nula por simulação.

 4. No julgamento da causa a ré em depoimento pessoal procurou obstar à prova da simulação declarando que emprestou dinheiro à filha para o pagamento do imóvel, mais declarando que sabia que a filha tinha pago o imóvel em prestações, contribuindo, assim, para sonegar o imóvel à herança.

 5. No depoimento pessoal prestado afirmou que “ não informou os filhos de DD da existência de quaisquer bens por não existirem” e que “ o automóvel existia quando o DD faleceu e registado em nome da depoente foi adquirido com economias de ambos” e que “ tinham conta comum na Caixa Geral de Depósitos”.

 6. Após o falecimento de DD a filha e genro da ré passaram a residir no mencionado imóvel a titulo gratuito.

 7. A ré contestou alegando, em síntese, que as declarações prestadas em depoimento de parte  não foram tidas por confessórias, não constituem confissão de qualquer facto que estivesse em discussão nos autos ou que a ré tivesse anteriormente negado, nunca teve qualquer conversa com o autor sobre a partilha dos bens, sempre tem mantido a residência no imóvel nele habitando com a sua filha, não ocultou dolosamente a existência de bens chamados a relacionar nem ocultou a sua existência na herança, nunca foi chamada para, na qualidade de herdeira ou de cabeça-de-casal relacionar ou apresentar bens; o autor, aliás, conhece a existência dos bens, sinal de que não foram ocultados, não foi ela quem tomou a decisão de alienar o imóvel, limitando-se a dar o seu consentimento à outorga da escritura, o seu convencimento de que o imóvel não integrava o património do falecido marido não a faz incorrer na pena prevista para a sonegação, só no inventário pode ocorrer a sonegação.

 8. Face às despesas realizadas no imóvel, e para a hipótese  de se entender que o processo é o próprio e de ser julgada procedente a acção, deduziu , em reconvenção, os seguintes pedidos:

 - De condenação dos reconvindos, em representação da herança, a pagar à ré reconvinte a quantia de 20.459,30€, sendo 15.585,05€ relativa ao pagamento de empréstimo a favor do marido tendo em vista o pagamento de tornas a favor dos AA no âmbito de inventário instaurado por morte da mãe dos autores com quem DD foi casado.

 - De condenação dos reconvindos sobre o capital em dívida, de 16.369,95€, ou outra quantia que, em seu lugar, seja apurada, de juros de mora vincendos à taxa legal em vigor em cada momento.

 9. Foi proferida decisão em que a ré foi absolvida da instância por se ter considerado que houve erro na forma do processo por se entender que o pedido de remoção do cabeça-de-casal constitui incidente do processo de inventário, decisão revogada pelo acórdão da Relação do Porto de 11-2-2008 onde se considerou que é adequado para o pedido deduzido o meio processual comum utilizado pelo autor.

 10. Prosseguindo a acção, foi julgada procedente nos seguintes termos:

 - Removeu-se a ré CC do cargo de cabeça-de-casal  da herança aberta por óbito de DD.

 - Nomeou-se cabeça-de-casal da mesma herança aberta por óbito daquele DD a filha mais velha do mesmo, BB.

 - Declarou-se que a ré CC perdeu o direito aos bens sonegados identificados no item 11 dos factos provados em benefício dos demais herdeiros daquele DD.

 - Condenou-se a ré CC a restituir à herança todos os bens sonegados melhor identificados no item 11 dos factos provados.

 -  Condenou-se a ré CC a indemnizar aquela herança com o valor das utilidades e faculdades que aqueles bens propiciam e de que a mesma usufrui em exclusividade desde a data da abertura da referida herança até efectiva restituição dos mesmos, a liquidar em momento ulterior

 - Julgou-se improcedente, por não provada, a reconvenção formulada pela ré CC contra os demais herdeiros da herança dos autos, designadamente contra o autor AA e contra a chamada BB, absolvendo-os da totalidade dos pedidos contra si formulados.

 11. Interposto recurso pela ré, o Tribunal da Relação, alterando a matéria de facto, revogou a sentença recorrida na parte em que considera procedente a acção e, consequentemente, absolveu a ré dos pedidos contra ela formulados, confirmando-se a sentença na parte respeitante à decisão sobre o pedido reconvencional.

 12. Recorrem os autores, de revista, para o Supremo Tribunal, assim concluindo a minuta:

 - Os factos considerados provados e assentes nos autos consubstanciam sonegação de bens da herança por parte da ré recorrida que desempenha as funções de cabeça-de-casal da mesma herança.

 - Sonegação essa feita em benefício daquela mesma sua filha que outorgou a escritura de compra e venda simulada, anulada judicialmente no P. 2384/1999 do Tribunal Judicial da Maia.

 - Tal sonegação ocorreu com dolo já que, com intenção da ré/recorrida, em prejudicar o autor e sua irmã, herdeiros da herança, proprietária do referido prédio.

 - Em face da lei, perdeu a ré/recorrida o direito aos bens sonegados em benefício dos demais herdeiros daquele DD.

 - Já que apenas com o trânsito da sentença que anulou a escritura de compra e venda simulada proferida pelo TJ da Maia no P. n.º 2384/1999 ficou assente que o prédio em questão pertencia à herança daquele DD

 - Não se encontra alegado nem provado que os familiares que a ré/recorrida autorizou  e autoriza a residir no prédio da herança e a utilizar os bens móveis existentes no mesmo, beneficiem da qualidade de família a que alude o artigo 1487.º do Código Civil que pode residir conjuntamente com o titular de qualquer direito de habitação.

 - A ré/recorrida alegou expressamente que desde a morte daquele DD (28-1-1999) até à sentença de anulação da escritura simulada (13-9-2004) habitou o prédio controvertido nos autos ‘porque a sua filha EE a tal autorizou’ não tendo invocado qualquer razão ou fundamento.

 - Pelo que terá que se concluir que tal não ocorreu por aí ter instalada a sua casa de morada de família.

 - Aliás nem sequer se encontra alegado/provado que a ré/recorrida residiu no aludido prédio, tendo em conta qualquer atribuição preferencial em partilha do direito de habitação.

 - Encontrando-se indiciado nos autos que aquela filha da ré/recorrida passou a residir no prédio  em questão por morte daquele DD, e nada mais se encontrando provado nos autos, ter-se-á que considerar que a mesma passou a residir e a ocupar a morada e residência que era ocupada por aquele DD, até porque documentalmente esta era a titular do direito de propriedade do prédio em questão.

 - Não tendo a ré/recorrida alegado e provado que passou a residir no prédio controvertido nos autos após a morte daquele DD, no exercício  do seu direito próprio e pessoal de habitar a ‘ casa de morada de família’  e alegando a mesma que tal ocorreu  apenas por autorização  da sua filha Fernanda pelo prazo superior a um ano, caducou o seu direito, nos termos do artigo 2103.º-A,n.º2 do Código Civil.

 - Pelo que deverá ser destituída de cabeça-de-casal daquela herança e condenada a restituir à mesma herança todos os bens sonegados e a indemnizar a mesma nos termos fixados na sentença proferida na 1ª instância

 - O acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 253.º, 1487.º, 2079.º, 2080.º,n.º1, alínea a), 2087.º,n.º1, 2088.º,n.º1, 2096.º,n.º 1 e 2, 2103.º-A,n.ºs 1 e 2 do Código Civil.

 13. Factos provados:

 1) DD faleceu, em 28/01/1999, no estado de casado, em segundas núpcias de ambos, com a Ré, no regime de separação de bens (alínea A).

2) O falecido DD deixou como únicos herdeiros os autores, seus filhos, e a ré, sua esposa (alínea B).

 3) O falecido DD não deixou testamento (alínea C).

 4) O falecido DD era proprietário do prédio urbano destinado a habitação, composto por edifício de ......, dois anexos, garagem e logradouro, sito na T......., nº ..., Águas Santas, Maia, descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o nº 00000, da freguesia de Águas Santas, e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 4194, com o valor patrimonial de Esc. 3.547.525$00 (alínea D).

 5) O falecido DD adquiriu o referido prédio em virtude de lhe ter sido adjudicado, pelo valor de Esc. 21.000.000$00, no processo de Inventário Facultativo que correu termos sob o nº 00000, na 2ª Secção, do 3º Juízo Cível do Porto, por óbito da mãe do Autor, FF, ocorrido em 01/02/1981 (alínea E).

 6) Desde 1981, o falecido DD sempre viveu neste prédio (alínea F).

 7) O falecido DD e a ré casaram em 02/12/1993, passando esta, a partir dessa data, a residir no mencionado prédio (alínea G).

 8) Após o falecimento de DD, a ré continuou e continua a residir no referido prédio (alínea H).

 9) Em 23/06/1996, por escritura pública celebrada no Cartório Notarial da Maia, o falecido DD, com conhecimento e autorização prestada em tal acto pela ré, declarou vender a EE, filha da ré, o prédio urbano acima identificado (alínea I).

 10) O negócio de compra e venda titulado pela referida escritura pública foi declarado nulo, por simulação, através de decisão, transitada em julgado, proferida no Processo nº 2384/1999, do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Maia, nos termos constantes de fls. 18 a 31 destes autos, tendo a agora ré prestado depoimento de parte com as afirmações reproduzidas a escrito de fls. 30 e 31 destes autos, cujo teor aqui se reproduz (alínea J).

 11) Os bens que integram a herança do falecido DD são: o prédio urbano atrás identificado; os bens móveis, identificados sob as verbas nº 3 a 6 e 11 a 20, da descrição de bens junta a fls. 22 e 23 dos autos; um veículo automóvel e uma conta comum do falecido e da ré na "Caixa Geral de Depósitos" (alínea L).

 12) Após o falecimento do seu pai, o autor dirigiu-     -se à Ré e solicitou-lhe informação sobre os bens que compunham o acervo da herança (Item 1º).

 13) Respondendo-lhe esta que o falecido DD não possuía quaisquer bens, que "não havia nada a partilhar" (Item 2º).

 14) A ré autorizou que outros seus familiares ocupem o mencionado prédio urbano e utilizem os bens móveis aí existentes, a título gratuito, contra a vontade dos autores (Item 3º).

 15) Se o imóvel fosse arrendado propiciaria um rendimento mensal de pelo menos 300,00€ (trezentos Euros) (Item 4º).

 15-A) O autor tinha conhecimento da existência da adjudicação ao pai, o falecido DD, do prédio referido nos autos e de que, pelo menos aquando da propositura da acção que com o n.º 000000/1999 correu termos no 1º juízo do Tribunal Judicial da Maia, referida, tinha conhecimento de que a venda de tal prédio, outorgada em escritura pública em 23-6-1996, tinha sido simulada.

 16) Quando o falecido DD e a ré contraíram casamento, estava pendente o inventário referido em 5) (Item 7º).

17) -(Item 8º) : eliminado.

 18) Na pendência do casamento da Ré com o falecido DD, pelo menos este DD procedeu à substituição da alcatifa da sala e dos três quartos de dormir por tijoleira, pagando os respectivos materiais e a mão de obra da sua colocação (Item 11º).

 19) Pessoa ou pessoas não apuradas mandou/mandaram retirar o papel de parede e executar limpeza e regularização das paredes interiores e sua pintura geral (Item 12º).

 20) Nestes trabalhos despendeu-se uma quantia de cerca de 4 250,00€ (quatro mil duzentos e cinquenta Euros) (Item 13º).

 21) Pessoa ou pessoas não apuradas mandou/mandaram executar móveis novos para a cozinha, em fórmica e com tampo, no que despendeu uma quantia de cerca de 700,00€ (Item 14º).

 22) No anexo pessoa ou pessoas não apuradas mandou/mandaram executar uma cobertura em chapa ondulada de alumínio com suporte de ferro (Item 15º).

 23) No sótão, assim criado, passou a existir uma área de arrumos (Item 16º).

 24) Na execução desta cobertura despendeu-se uma quantia de cerca de 2 500,00€ (dois mil e quinhentos Euros) (Item 17º).

 25) Foi ainda executada uma marquise na qual se despendeu a quantia de pelo menos 350,00€ (trezentos e cinquenta Euros) (Item 18º).

 26) As obras efectuadas fundiram-se no imóvel já existente, aumentando-lhe valor e tornando mais confortável e prática a habitação (Item 19º).

 27) O levantamento de tais obras inutiliza as mesmas e causa deterioração no prédio (Item 20º).

 Apreciando:

 14. A presente acção é uma acção de sonegados.

 15. Os autores pretendem que se reconheça que a ré sonegou bens da herança, incorrendo na pena civil do artigo 2096.º do Código Civil - ou seja, a perda em benefício dos co-herdeiros do direito que possa ter a qualquer dos bens sonegados - sonegação respeitante a três bens, o imóvel que foi casa de morada de família da ré e de seu marido, pai dos AA, a conta bancária conjunta e o automóvel.

 16. O Tribunal da Relação, reapreciando a matéria de facto que alterou em parte, considerou, no que respeita à prova do dolo - a sonegação tem de ser dolosa - que os factos não permitem concluir que havia de parte da ré uma tal intenção, pois impunha-se a prova (artigo 342.º do Código Civil) de que a ré, quando interpelada pelo autor sobre os bens que compunham o acervo da herança (12 supra) estava ciente de que o autor não tinha conhecimento dos bens a partilhar. Ora tal prova não se fez e, inclusivamente, no que respeita ao imóvel, provou-    -se que o autor tinha o conhecimento a que se alude em 15-A supra.

 17. Assim, e no plano de facto que cabe ao Tribunal da Relação no que à intenção se refere, referiu o acórdão ainda o seguinte:

 A referida circunstância só poderia ter-se como evidenciadora de uma intenção ou desígnio fraudulento por parte da Ré se estivesse demonstrado que o Autor, quando interpelou a Ré, não tinha conhecimento dos bens a partilhar, e de que a Ré estava ciente desse facto. E essa prova incumbia ao Autor, sobre quem recaía o ónus de prova de todos os elementos concernentes ao dolo. Se isso se verificasse ainda se poderia afirmar que com a afirmação feita a Ré estava conscientemente a pretender ocultar bens da herança em detrimento de terceiros. Na ausência de comprovação dessa circunstância nada permite concluir por aquela intenção fraudulenta.

Deve assim concluir-se que nesta parte merece acolhimento o recurso, devendo concluir-se pela inexistência de elementos de facto suficientes para ter como verificada a sonegação de bens.

 18. Nesta acção a sonegação pretende ser reconhecida com base em ocorrências prévias e independentes do processo de inventário; se tivermos em atenção que a sanção civil da sonegação não se reconduz à materialidade da ocultação dolosa da existência de bens alheia a qualquer declaração de vontade, mas pressupõe obviamente, nas palavras de Antunes Varela, “ um facto negativo ( a omissão de uma declaração) cumulado com um facto jurídico de carácter positivo ( o dever de declarar, por parte do omitente)” (Código Civil Anotado, 1998, Vol VI, pág. 156/157) a dúvida que se suscita é saber se, hoje, deve ou não deve continuar a entender-se que a declaração de vontade que releva é a que se produziu no âmbito do inventário. Isto porque a sanção civil que está em causa é violenta e meras declarações produzidas em contextos diversos podem levar a que as acções de sonegados conduzam à aplicação da sanção constante do artigo 2096.º do Código Civil quando, intentado que fosse o inventário e na sequência da acusação da falta de bens relacionados, o cabeça-de-casal ou o herdeiro não deixariam de considerar que tais bens integravam o acervo hereditário.

 19. O artigo 1343.ºdo C.P.C. prescrevia o seguinte:

 1- Há sonegação quando dolosamente se omitam quaisquer bens na relação ou se negue a existência dos bens acusados.

2- A existência da sonegação é apreciada juntamente com a acusação da falta de bens, nos termos do artigo anterior, podendo a arguição ser feita até à decisão. Provada a sonegação, aplicar-se-á logo no inventário a sanção civil que lhe caiba. Se os elementos existentes no processo não permitirem decisão definitiva, são os interessados remetidos para os meios comuns.

 20. De acordo com este preceito cuja redacção é de 1961 e que reproduz praticamente com poucas alterações o texto do C.P.C. de 1939 (artigo 1384.º) e que não foi alterado com a entrada em vigor do Código Civil de 1966 a sonegação tinha em vista “ a violação intencional da verdade na declaração dos bens que constituem a herança” (Antunes Varela, loc. cit., pág. 156).

  21. Anteriormente, e enquanto vigorou o Código Civil de 1867 cujo artigo 2079.º não nos definia o que era a sonegação (artigo 2079.º:” pelo facto de sonegar bens da herança, o cabeça de casal perderá, em benefício dos co-herdeiros, o direito que possa ter a qualquer parte dos bens sonegados, e, se não for herdeiro, incorrerá na pena de furto) entendia-se que a sanção civil pressupunha que houvesse inventário, orfanológico ou de maiores.

 22. Escrevia Américo de Campos Costa a este propósito:

 Observe-se que a sanção civil, prevista no artigo 2079.º, só tem lugar havendo inventário, orfanológico ou de maiores.

Basta atender à própria colocação do preceito: ele está inserto na Secção III, subordinada à epígrafe “ Do Inventário” , e mais especialmente na subsecção I, intitulada Do cabeça de casal e do arrolamento e descrição de bens. Além disso, que a sonegação pressupõe a existência do inventário, di-lo claramente o artigo 1384.º do Código de Processo Civil, ao preceituar ‘ que se verifica a sonegação quando houver dolo na falta de descrição  de bens ou na existência dos bens acusados’.

Qual será então a consequência legal de um herdeiro subtrair ou desencaminhar bens da herança, não se tendo instaurado inventário judicial?

Não rege para aqui o artigo 2079.º do Código Civil, pois, como acabámos de dizer, o artigo supõe a existência de inventário. A solução legal só poderá consistir em fazer responder o herdeiro pelo crime de abuso de confiança ou de furto, consoante estiver ou não na posse da herança, verificando-se, claro está, os demais requisitos de qualquer destas infracções” (Revista dos Tribunais, Ano 74.º, 1956, pág. 40/41)

 23. Cunha Gonçalves não entendia de modo diverso a sonegação. Escrevia este autor:

 A palavra ‘sonegar’, do latim sub-negare, significa ocultar dolosamente os bens alheios que alguém possui e tem o dever de apresentar, ou mencionar na respectiva relação ou descrição, negar a existência desses mesmos bens em seu poder […].A sonegação dos bens tem os elementos seguintes: a) prova de que os bens em questão pertenciam ao inventariado;  b) existência desses bens em poder do cabeça-de-casal; c) conhecimento deste acerca da propriedade desses bens; d) omissão destes na descrição feita no inventário, por seu exclusivo arbítrio; e) dolo ou intenção de lesar os co-herdeiros(Tratado de Direito Civil, Vol X, 1936, pág. 641).

 24. Não se duvida de que, se no inventário não for possível apurar  a existência dos bens cuja falta foi acusada, remetendo-se os interessados para os meios comuns ( artigo 1349.º/2 e 1350.º/1 do C.P.C. redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 227/94, de 8 de Setembro) pode, na acção de sonegados, pedir-se a condenação  na pena civil.

 25. A questão está em saber se, como se disse, pode ser proposta acção de sonegados com base em declaração proferida pelo herdeiro ou pelo cabeça de casal, considerando, como refere Lopes Cardoso, que o artigo 2096.º/1 do Código Civil se “ reporta à sonegação cometida quer em processo de inventário, quer fora dele, para em relação a ambos estabelecer igual penalidade: a da perda em benefício dos co-herdeiros do direito que possa ter a qualquer parte dos bens sonegados”(Partilhas Judiciais, Vol I, 1979, pág. 555) e admitindo-se, por conseguinte, que “ não havendo processo de inventário, terá de recorrer-se ao processo comum de declaração, seguindo-se a forma que corresponder ao valor da acção” (Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, 1993, Vol II, 2º edição, pág. 86), entendimento que também é o do Ac. do S.T.J. de 1-7-2010 (Alberto Sobrinho) C.J.,2, pág. 132).

 26. E sendo certo que hoje - veja-se o artigo 1349.º/4 do C.P.C. com a redacção do DL n.º 227/94 assim como o artigo 30.º do Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela Lei n.º 29/2009, de 29 de Junho) - o conceito de sonegação de bens é unicamente o que nos é dado pelo artigo 2096.º do Código Civil, está afastado, a partir das alterações introduzidas pelo DL n.º 227/94, o texto, acima mencionado, do artigo 1343.º/1.

 27. No entanto, porque a ocultação de bens a que alude o artigo 2096.º/1 do Código Civil se manifesta necessariamente numa omissão de declaração quando haja o dever de a produzir, é em função do acto que impõe esse dever que cumpre atentar. Admite-se, por exemplo, que a acção de sonegados seja intentada quando, fora do inventário, não seja apresentada a relação de bens perante a entidade tributária após notificação do infractor ( ver artigo 70.º do Código da Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações aprovado pelo Decreto-    -Lei n.º 41969, de 24 de Novembro de 1958, hoje revogado pelo Decreto-Lei nº 287/2003, de 12 de Novembro que procedeu à reforma do património, passando o Código do Imposto do Selo a prescrever no que respeita à liquidação do imposto no caso de transmissões gratuitas que “ não sendo apresentada a participação nos termos dos artigos anteriores, ou contendo a mesma omissões ou inexactidões, e tendo o chefe de finanças conhecimento, por qualquer outro meio, de que se operou uma transmissão de bens a título gratuito, compete-lhe instaurar oficiosamente o processo de liquidação do imposto ( artigo 28.º/2) e que “antes de cumprir o disposto no n.º 2, o chefe de finanças notifica o infractor ou infractores, sob pena de serem havidos por sonegados todos os bens, para efectuar a participação ou suprir as deficiências ou omissões, dentro do prazo por ele estabelecido, não inferior a 10 nem superior a 30 dias. (n.º 3); refere finalmente o artigo 29.º, sob a epígrafe “ sonegação de bens” que “ em caso de suspeita fundada de sonegação de bens, o chefe de finanças competente requer o respectivo arrolamento nos termos dos artigos 141.o e 142.o do Código de Procedimento e de Processo Tributário”

 28. Já não nos parece que a pena civil da sonegação se aplique com base nas meras declarações proferidas em contextos em que o cabeça de casal ou o herdeiro se limitam a pronunciar sobre a existência ou não dos bens, prestando informações ou esclarecimentos a outros interessados, não querendo com  isto dizer-se que uma tal atitude não possa relevar, designadamente se for ulteriormente omitida a indicação desses bens na relação a apresentar no inventário, enquanto facto que evidencia o propósito fraudulento, ou enquanto acto ilícito susceptível de causar prejuízos resultantes de uma informação incorrecta ou enquanto comportamento justificativo de arrolamento.

 29. Por isso, não se nos afigura que as declarações proferidas in casu pelo cabeça-de casal de que não havia nada a partilhar quando o autor se lhe dirigiu a solicitar informação sobre os bens que compunham o acervo - sendo certo que, quanto ao imóvel, estava ele ciente da situação, ou a referência ao facto de o veículo estar em seu nome ou de o depósito bancário ser comum -  pudessem relevar enquanto declarações que pressupõem a omissão de uma declaração e o dever de declarar a justificar uma acção de sonegados fora do inventário.

 30. Tais factos podiam relevar, assim como os actos do cabeça-de-casal no âmbito da venda simulada, enquanto factos susceptíveis de demonstrar a sua intenção dolosa se, no âmbito do inventário, ela tivesse omitido o dever de relacionar tais bens, o que não sucedeu porque, como se disse, não foi, tanto quanto é sabido, instaurado qualquer inventário.

 31. Não existindo inventário e não se vendo que tais declarações tenham sido proferidas em situação em que se impusesse à recorrida o dever de declarar os bens que integravam o acervo hereditário, não podia, por tal motivo, proceder a presente acção, não procedendo igualmente por não se ter provado, como salientou o acórdão sob recurso, a existência do dolo integrativo da sonegação.

 32. Quanto ao facto de a recorrida continuar a viver na casa de morada de família, não se vê que tal actuação seja ilícita e, por isso, acompanhamos as considerações do acórdão quando refere que  não pode no entanto esquecer-se que a casa em questão era a casa de morada de família, onde a ré, ora recorrente  habitava com o de cujus. E a protecção da casa de morada de família, e do respectivo recheio, nos casos de dissolução do casamento por morte de um dos cônjuges, é matéria que o legislador nacional acautela, desde logo nos artigos 2103º-A, 2103º-B, e 2103º-C, todos do CC

De acordo com o disposto no referido artº 2103º-A, nº1, do CC, " o cônjuge sobrevivo tem direito a ser encabeçado, no momento da partilha, no direito de habitação da casa de morada da família e no direito de uso do respectivo recheio, devendo tornas aos co-herdeiros se o valor recebido exceder o da sua parte sucessória e meação, se a houver".

Reconhece assim o legislador a conveniência, em face da ponderação dos interesses em causa, de evitar que o cônjuge sobrevivo, por força do cesso do outro cônjuge, seja forçado a abandonar o local onde viveu na constância do casamento.

Trata-se de um direito que só se constituirá como tal se a casa que foi a de morada de família for, em partilha, atribuída o a outrem que não o cônjuge sobrevivo.

E se é esta a orientação que a lei perfilha, necessariamente não deve considerar-se como administração imprudente o facto de a ré se manter na casa em questão, usufruindo dos bens que constituíam o seu recheio.

 33. Com efeito, resulta da matéria de facto que a ré, após o falecimento do marido, continuou e continua a residir no referido prédio, integrando-se o imóvel no património hereditário. Não foi ainda o mesmo sujeito a partilha porque assim não quiseram seguramente os interessados;  não se vê que pelo facto de o cabeça-de-casal continuar a viver na casa de morada de família após decesso do marido incorra em acto ilícito ou que constitua acto ilícito receber na sua casa a filha.

 Concluindo:

 I- A acção de sonegados tem por objectivo a condenação do herdeiro, seja ou não cabeça-de-casal, a perder em benefício dos co-herdeiros o direito que possa ter a qualquer parte dos bens sonegados (artigo 2096.º do Código Civil) pressupõe a omissão de declaração quando se lhe impunha o dever de declarar os bens da herança.

II- Se o cabeça-de-casal, fora de qualquer acto judicial ou outro em que estivesse obrigado a declarar os bens a partilhar, designadamente o inventário, se limita a responder a um herdeiro que não há bens a partilhar, falta o pressuposto que permite intentar acção de sonegados autonomamente.

III- Não há dolo se o cabeça-de-casal se limita a declarar, interpelado por um outro herdeiro, que não há bens a partilhar quando o herdeiro tinha conhecimento da existência de bens integrativos do património hereditário, designadamente o imóvel onde vivia o cabeça-de-casal que o marido desta vendera simuladamente.

IV- Não incorre em acto ilícito o cabeça-de-casal que continua a viver na casa de morada de família onde vivia com o marido à data da morte deste, não constituindo acto ilícito igualmente o ter recebido na casa uma filha.

 Decisão: nega-se a revista

 Custas pelos recorrentes

 Lisboa, 13 de Setembro de 2011

 

Salazar Casanova (Relator)

 Fernandes do Vale

 Marques Pereira