Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1064/10.4JDLSB.L1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MAIA COSTA
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
UNIÃO DE FACTO
CIÚME
MEDIDA CONCRETA DA PENA
ESPECIAL CENSURABILIDADE
DOLO DIRECTO
CULPA
ILICITUDE
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
PENA PARCELAR
CONCURSO DE CRIMES
CÚMULO JURÍDICO
PENA ÚNICA
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
Data do Acordão: 11/23/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário : I -A medida concreta da pena, nos termos do art. 71.º do CP, é fixada em função da culpa e das exigências da prevenção, devendo atender, nomeadamente à ilicitude do facto, à intensidade do dolo, às motivações e às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior aos factos, à sua falta de preparação para manter conduta lícita.

II - Em relação ao crime de violência doméstica cometido pelo arguido na pessoa de L há que relevar a ilicitude dos factos e a intensidade do dolo. Na verdade, as agressões físicas, a par de insultos verbais, praticadas contra a companheira, na residência familiar, perduraram entre 2004 e 26-02-2009, agravando-se progressivamente com a passagem do tempo até esta última data, ocasião em que a vítima não suportou mais o comportamento violento do arguido e abandonou a residência, com os seus filhos, que presenciaram os factos, como aliás habitualmente acontecia, tendo recebido tratamento hospitalar nessa data.

III -Sendo a culpa do arguido elevada, são também elevadas as necessidades preventivas, gerais e especiais, estas atendendo ao comportamento reiterado do arguido, aquelas tendo em consideração a censura crescente que a violência doméstica vem merecendo por parte do legislador e da sociedade em geral, que estigmatiza e censura especialmente quem pratica este tipo de actos.

IV - No que respeita ao crime de violência doméstica, dentro da moldura legal de 2 a 5 anos de prisão, a pena de 3 anos e 6 meses de prisão mostra-se adequada ao período alargado em que perdurou o comportamento delitivo do arguido e às finalidades da pena que se fazem sentir.

V - Quanto ao crime de homicídio qualificado, ficou demonstrado que entre Fevereiro de 2010 e 12-07-2010 o arguido, por diversas vezes, perseguiu e ameaçou a vítima, de tal forma que esta passou a trazer consigo permanentemente, para sua defesa, uma faca de cozinha. Igualmente se demonstrou que no dia dos factos (12-07-2010) o arguido procurou de novo a vítima, apanhando-a de surpresa próximo da residência, e, após uma «breve troca de palavras», empunhou a pistola que levava consigo e, acto contínuo, disparou um primeiro tiro contra a vítima, seguido de mais quatro, quando ela já se encontrava caída no solo.

VI - Ponderada esta actuação, nada sugere uma súbita emoção violenta difícil de controlar, antes, pelo contrário, um comportamento reflectido e planificado por parte do arguido, procurando a vítima próximo da sua residência, já com intenção de a matar, munindo-se previamente da arma idónea para levar a cabo o seu intento, e disparando logo após uma breve abordagem à vítima.

VII - Não atenua a responsabilidade do arguido a circunstância de ter actuado por ciúme, inconformado com o termo do relacionamento marital. Este facto, contrariamente ao alegado pelo recorrente, é revelador da sua intolerância e desprezo para com a vítima e para com o direito desta à sua autodeterminação, enquanto pessoa livre e autónoma.

VIII - A conduta do arguido apresenta-se como especialmente censurável, enquanto expressão suprema de violência doméstica, que praticou, com agressões físicas e psíquicas à vítima, ao longo de anos, num crescendo de violência e que rematou com o homicídio desta.

IX - Num quadro de elevada ilicitude, de dolo intenso e de fortes exigências de prevenção geral, dentro da moldura abstracta prevista pelo legislador, a pena de 20 anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado não ultrapassa a medida da culpa e satisfaz as referidas exigências preventivas.

X - Nos termos do art. 77.º, n.º 1, do CP, a pena do concurso de crimes resultará de uma apreciação global dos factos, tomados como conjunto, e não mero somatório de factos desligados, e da personalidade do agente. Nessa apreciação indagar-se-á se a pluralidade dos factos delituosos corresponde a uma tendência de personalidade, ou antes a uma mera pluriocasionalidade, de carácter fortuito, não imputável a essa personalidade, sendo naturalmente circunstância agravante a identificação de uma tendência do agente para a prática reiterada de crimes.

XI - No caso, a apreciação dos factos imputados é claramente desfavorável ao arguido: depois de anos sucessivos a maltratar a sua companheira, matou-a, porque ela, precisamente por causa dos maus tratos regularmente infligidos, tinha acabado com o relacionamento marital; também agrediu, por diversas vezes, e com alguma violência, a filha V, quando ainda vivia na mesma casa. Revela, assim, o arguido uma personalidade violenta para com os seus familiares, desprezando acentuadamente os valores da afectividade e do respeito que devem presidir à vivência em família.

XII - A moldura penal do concurso vai de 20 anos a 25 anos de prisão. Dentro desse intervalo, a pena fixada na decisão recorrida [22 anos de prisão] cumpre perfeitamente os critérios definidos no art. 77.º do CP, não merecendo, por isso, censura.
Decisão Texto Integral:                          

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            I. RELATÓRIO

AA, com os sinais dos autos, foi condenado, por acórdão de 9.5.2011 do Juízo de Grande Instância Criminal da Comarca da Grande Lisboa-Noroeste, nas seguintes penas:

- pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131° e 132°, n°s 1 e 2, b), do Código Penal (CP), na pena de 20 anos de prisão;

- pela prática de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art. 152°, n°s 1, b), e 2, do CP, relativamente à ofendida BB, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão;

- pela prática de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art. 152°, n°s 1, d) e 2, do mesmo diploma legal, relativamente à ofendida CC, na pena de 2 anos de prisão;

- pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86°, n° 1, c), com referência aos arts. 2°, n° 1, e), p), x), ae) e az), e 3°, n° 2, l), todos da Lei n° 5/2006, de 23-2, na pena de 1 ano de prisão.

Em cúmulo destas penas, foi o arguido condenado na pena única de 22 anos de prisão.

            Desta decisão interpôs o arguido recurso, concluindo:

1. O recorrente AA não se conforma com o Douto Acórdão Condenatório.

2. Ao arguido deveriam ter sido aplicadas penas parcelares coincidentes com os limites mínimos das penas abstractas correspondentes aos crimes por si praticados, o que levaria, por força do cúmulo jurídico a uma pena única inferior àquela em que foi condenado.

3. Tal pena é excessiva e desadequada.

4. Resultou provado que

- "Após o regresso do arguido a Portugal, a companheira terá abandonado o agregado levando consigo ambos os filhos, situação esta que poderá ter contribuído de forma premente para a instabilidade psico-emocional de AA, de acordo com informação da irmã do arguido".

- "Decorrente do abandono da companheira do agregado - e pese embora todos os esforços encetados pelo arguido para que a mesma, a filha de ambos e o enteado regressassem ao seio familiar - AA terá assumido uma postura de desligamento emocional face à própria vida, abandonando a actividade profissional, adoptando uma postura de abatimento, descurando os cuidados básicos de higiene, escusando-se a alimentar-se e afastando-se do convívio social."

- “Em contexto de entrevista, o arguido evidenciou uma postura abatida, psicoemocionalmente instável com humor predominantemente depressivo, nervosismo e choro frequente quando abordada a situação que motivou a sua detenção".

- "Também se aceita que, a partir do ano de 2008, o início da co-habitação não desejada com o filho da ofendida BB tivesse acentuado o clima de discussão e agressão previamente existente na casa de morada de família do arguido".

5. Os graves factos cometidos pelo arguido no dia 12 de Julho de 2010 foram o culminar de uma tensão que vinha crescendo no íntimo do arguido, aliados à sua situação de desemprego e consequente precária/grave situação económico-financeira e à solidão em se encontrava, os quais, naquele dia e após troca de palavras com a vítima onde mais uma vez acabaram ambos por se agredir verbalmente, levou o arguido, acometido de comoção violenta e no estado de emoção em que se encontrava, a disparar sobre a ofendida BB, provocando-lhe a morte.

6. Mas, e contrariamente ao que decidiu o Acórdão ora impugnado, o arguido, neste caso, actuou num estado emocional já muito alterado de grande desespero e emoção violenta que não conseguiu conter.

7. Dos elementos probatórios resulta que a situação vivenciada pelo arguido pode ser explicada como um acting-out - uma situação psicótica geradora de um stress muito elevado, em que falharam os processos de controle de impulsos.

8. O arguido nunca foi condenado pela prática de um crime, nem é portador de tendência criminosa.

9. O arguido declarou estar arrependido durante a audiência de julgamento.

10. O arguido optou por confessar todos os factos.

11. Cada vez mais os nossos tribunais devem, em nossa modesta opinião, valorar quem ERRA, mas assume as consequências dos seus erros.

12. Não foram tomadas em consideração tais circunstâncias atenuantes e condições pessoais do recorrente.

13. Essas circunstâncias e condições pessoais do recorrente apontam para a aplicação de uma pena compatível com a personalidade e inserção social do recorrente e não com a excessiva pena de prisão que lhe foi aplicada.

14. Na determinação da medida da pena, estipula o art° 71° do Código Penal que o Tribunal deve ainda atender a todas as circunstâncias que depuserem a favor do arguido.

15. A pena imposta não deve, ainda assim, ser de tal forma elevada que inviabilize ou dificulte excessivamente a sempre almejada reinserção social do arguido.

16. Ainda que a conduta do arguido seja de especial gravidade, não podem deixar de se considerar as suas condições pessoais e o facto de não constarem do seu registo criminal quaisquer condenações.

17. É de antever como altamente improvável a repetição do quadro factual pelo qual o arguido responde criminalmente nos presentes autos.

18. Todas as referidas circunstâncias, ainda que sopesadas com as graves consequências dos factos cometidos, justificam que as penas a aplicar ao arguido se situassem nos seus limites mínimos e consequentemente que a pena única em que foi condenado, por força do cúmulo jurídico a que procedeu o Tribunal a quo, não fosse superior a 18 anos de prisão.

19. O Douto Acórdão proferido pelo Tribunal a quo, e ora recorrido, violou o disposto nos art°s 40º, 71°, n°s 1 e 2, 72°, n° 2, alínea b), 73° e 77° todos do Código Penal.

            O sr. Procurador da República respondeu, dizendo:

1. O recurso não observa os requisitos de forma impostos pelo artº 412º, nºs 1, 2, als. b) e c), impondo-se a sua rejeição se, após convite, as suas deficiências se não mostrarem supridas – artºs 417º, nºs 2 e 3 e 420º, nº 1, al. c) do CPP.

2. Não podendo o tribunal superior - ou os outros sujeitos processuais - compreender quais as questões que o recorrente deseja submeter à sua apreciação.

3. De qualquer modo, a matéria de facto encontra-se correctamente julgada e é inatacável.

4. Não se verifica qualquer dos vícios a que alude o artº 410º, nº 2, do CPP.

5. Como se não verifica ainda qualquer nulidade na sentença.

6. A convicção do tribunal mostra-se perfeitamente motivada e assente nas provas produzidas, interpretadas à luz da experiência comum e dos critérios definidos no artº 127º do CPP, que se mostra claramente acatado.

7. A sentença contém todos os elementos necessários à boa decisão da causa e as conclusões tiradas estão de acordo com um raciocínio lógico e não arbitrário.

8. Tal sentença fez correcta aplicação do direito aos factos.

9. É justa e equilibrada na escolha e na medida da pena.

10. Não enferma de qualquer vício,

11. Devendo, por isso, confirmar-se a decisão recorrida,

12. Caso venha a ser admitido e caso não seja, antes, rejeitado, como se impõe.

13. Com o que se fará a costumada JUSTIÇA.

Neste Supremo Tribunal, a sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer:

O arguido AA por acórdão proferido e depositado em 9/5/2011, na 2ª sec. do juízo da Grande Instância Criminal da Comarca da Grande Lisboa–Noroeste, foi condenado por diversos crimes, na pena única de 23 anos de prisão, vindo recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça apenas quanto às medidas das penas de prisão parcelares e única (crimes de homicídio qualificado, violência doméstica e detenção de arma proibida).

O arguido AA foi julgado e condenado por autoria de um crime de homicídio qualificado p.p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, al. b) a 20 anos de prisão, um crime de detenção de arma proibida p.p. pelos arts. 86º, nº 1, c) da lei 17/2009 na pena de 1 ano de prisão, dois crimes de violência doméstica agravada a 3 anos e 2 anos de prisão, em cúmulo na pena única de 23 anos de prisão.

Inconformado com a medida das penas que lhe foram aplicadas, parece pretender que as mesmas sejam reduzidas ao mínimo das penas aplicáveis, linearmente defendendo o arrependimento, o ter actuado num estado emocional de grande desespero e emoção violenta, as circunstâncias e condições pessoais posteriores, o ser primário e ter confessado, o que justificará ser fixada uma pena concreta e única não superior a 18 anos, por ter havido violação do disposto nos arts 40º nº 1 e 2, 71º, 72º nº 2 al. b), 73º e 77º do C.P..

O M.P., através do sr. Procurador da República, defende essencialmente que o recurso do arguido deverá ser rejeitado por não ter observado os requisitos p. pelo art.º 412º nº 1 e 2 al. b) e c) e por não se verificar qualquer dos vícios do art.º 410º nº 2 e/ou nulidade ou então e, porque a sentença contém todos os elementos à boa decisão da causa, dever ser confirmada a decisão recorrida.

1- Embora o arguido/recorrente AA possa não ter indicado, nas conclusões, o sentido em que o Tribunal recorrido interpretou as normas aplicadas e o sentido em que elas deviam ter sido interpretadas (al. b) do nº 2 do artº 412º do CPP), parece-nos que será possível deduzir que foi o sentido da interpretação das normas sobre a medida das penas e a fundamentação sustentada pela 1ª instância, ao aplicá-las, que o arguido/recorrente quis impugnar a medida das penas ao indicar quais as razões que, no seu entender, levariam a aplicar outras penas e a pena única de 18 anos, que haveria de resultar do concurso.

Segundo nos parece, por isso não será necessário convidar o recorrente/arguido a completar as suas conclusões, conforme dispõe, desde Setembro de 2007, o nº 3 do art.º 417º do CPP.

2- Não obstante o arguido AA tentar impugnar a medida das penas aplicadas por autoria dos 4 crimes que cometeu, ao pretender que as mesmas sejam coincidentes com os limites mínimos aplicáveis, afasta desde logo duas delas, exactamente porque foi condenado pelas penas mínimas – no crime de violência doméstica agravada de que foi vítima a filha, a pena foi de 2 anos de prisão quando a pena aplicável segundo o disposto no art.º 152º nº 1 al. d) e 2 é de dois a cinco anos de prisão; no crime de detenção de arma proibida foi condenado a 1 ano de prisão e pelo disposto no art.º 86º nº 1 al. c) a pena aplicável vai de 1 a 5 anos (embora também possa ser aplicável pena de multa até 60 dias).

3- O objecto do recurso do arguido AA, sobre a medida das penas por isso deverá circunscrever-se aos 3 anos de prisão pelo crime de violência doméstica (art.º 152º nº 1 al. d) e nº 2 do C.P.), aos 20 anos de prisão por autoria do crime de homicídio qualificado (art.º 131º, 132º nº 2 al. b) do CP) e à pena única de 23 anos resultante do cúmulo jurídico, do concurso de todos os crimes.

3.1 A medida da pena por autoria do crime de homicídio qualificado do art.º 131, 132º nº 1 e 2 al. b) tem de ser encontrada entre os 12 e os 25 anos de prisão.

O acórdão condenatório recorrido estabeleceu a pena de 20 anos de prisão doutrinariamente e obedecendo aos critérios dos artºs 40º e 71º do C.P., nomeadamente as necessidades de prevenção geral e especial e ainda as exigências de reprovação do crime e ainda a pena deve ser proporcional à culpa concreta do agente em sentido pedagógico e ressocializador, apreciando e aplicando à matéria de facto provada.                

  Esta medida da pena de 20 anos ficou estabelecida na metade superior da moldura penal aplicável e só poderia parecer excessiva se se encontrasse fundamentação que levasse a situá-la na metade inferior, nomeadamente por não terem sido valoradas todas as circunstâncias que pudessem favorecer o arguido/recorrente.

3.2. A determinação da medida da pena, nos termos do artº 71º, nº 1, do Código Penal “far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes”, mas dentro dos limites definidos na lei.

Existe, um critério legal para a determinação da pena que se baseia na culpa e na prevenção, graduando-se com as circunstâncias atenuantes e agravantes.

A questão da medida correcta da pena tem a ver com a problemática dos fins das penas, muito debatido na doutrina.

Se por um lado a pena é uma reacção prática que, no dizer de Anabela Rodrigues (in “A Determinação da Medida da Preventiva de Liberdade”, fls. 151):

é o meio mais enérgico ao dispor do poder instituído para assegurar a convivência pacífica dos cidadãos em sociedade, mas é simultaneamente o que toca de mais perto a sua libertação, segurança e dignidade”.

Os direitos, liberdades e garantias estão constitucionalmente previstos e por isso as suas restrições estão limitadas necessariamente à salvaguarda de outros direitos e interesses igualmente protegidos (artº 18º nº 2 da Constituição).

As penas de prisão ao serem aplicadas restringem, por isso, a liberdade do cidadão que violou o direito à vida, à integridade física e moral de outros cidadãos e só não podem ter efeito retroactivo, ao contrário do fim da sua prevenção (artºs 24º e sgts da Constituição).  

E segundo Figueiredo Dias (“As consequências do crime”, 277 e ss) e a doutrina, “as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção social do agente na comunidade – em concreto a pena terá como limite superior a medida óptima de tutela dos bens jurídicos com atenção às normas comunitárias, e como limite inferior o “quantum” abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar” (Ac. STJ de 8/10/2011).

A reinserção social do agente como prevê o art.º 40º do C.P. integrar-se-á na prevenção especial positiva, mas não dentro das finalidades da protecção dos bens jurídicos e a integração geral positiva será um fim essencial da pena na linha doutrinária e também jurisprudencial.

3.3. A pena a aplicar ao arguido AA Salvador, para além da prevenção geral (atendimento do sentimento comunitário) também a prevenção especial terá de ser atendida com a “neutralização-afastamento” do delinquente no cometimento físico de outros crimes, para isso intimando-o a proporcionar, a moldar a sua personalidade (neste sentido Ac. do STJ de 27/05/2011, proc. 517/08.9).       

O arguido/recorrente pretende fazer valer que a morte da sua ex-companheira resultou da alteração do seu estado emocional para desespero e emoção violenta, o que, conjugado com o seu arrependimento, o não ter tendência criminosa, o ter confessado, constituíram atenuantes que deviam levar a uma pena não tão excessiva.

Poderá existir “compreensível emoção violenta” quando o agente actua dominado por um estado emocional provocado por factos a que um homem comum e “fiel ao direito” seria sensível, sendo, portanto, atenuada a exigibilidade de conformação com as normas; “desespero” refere-se a estados depressivos vividos pelo agente, sendo em qualquer caso necessário que a acção revele uma exigibilidade diminuída (ac. do STJ de 17/09/09, p. 434/09.5Y… do Exmo Senhor Conselheiro Relator).

3.4 Como resulta dos factos provados a instabilidade psico-emocional do arguido AA já durava desde 2008, mas desde 2004 que o relacionamento do casal já se pautava por discussões permanentes e agressões e desde 26 de Fevereiro de 2009 que a união de facto havia terminado porque a vítima BB decidiu sair de casa devido às agressões ocorridas nessa noite.

A conduta do arguido desde então até 12 de Julho de 2010 não revelará nem emoção violenta nem desespero que possa atenuar a medida da pena a aplicar devida à morte provocada na vítima que se encontrava dentro do carro numa situação de completa incapacidade de resistir.

Não se podendo relevar estas circunstâncias nem o ser primário neste tipo de crime, não nos parece que, em função da exigência de prevenção geral que será mais elevada que a da prevenção especial, que a medida da pena aplicada ao arguido, 20 anos de prisão, possa vir a ser alterada.

4- A medida da pena por autoria do crime de violência doméstica de que foi vítima a ex-companheira antes da sua morte não nos parece que possa/deva ser alterada, até porque o arguido não apresenta fundamentos que estivessem abrangidos nas circunstâncias referidas pelo art.º 71º do CP.

5- A pena única aplicável tem de ser encontrada entre 19 e 25 (a soma é de 26 anos) de prisão e o acórdão recorrido linearmente e com referência aos fundamentos das medidas das penas parcelares, fixou-a em 23 anos.

Como na determinação concreta correspondente ao concurso dos dois crimes de violência doméstica, arma proibida e homicídio qualificado deverão ser levados em conta, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido, parece-nos que eventualmente a medida da pena única poderia fixar próximos dos 22 anos e 6 meses de prisão.

Assim e por tudo isto parece-nos que o recurso do arguido AA não deverá obter provimento quanto às medidas das penas parcelares e única a que foi condenado, no entanto e muito eventualmente a medida da pena única poderia ser ligeiramente reduzida.

Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP), o recorrente nada disse.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

O recorrente impugna somente a medida das penas parcelares, que entende que devem situar-se nos limites mínimos, e da pena única, que pretende que seja reduzida para 18 anos de prisão.

É a seguinte a matéria de facto apurada:

1 - Durante o ano 1995, o arguido começou a viver em união de facto com a ofendida BB, nascida em … de Abril de …, tendo ambos uma filha em comum, CC, nascida em …/…/19….

2 - Desde que iniciaram vida em união de facto, o agregado familiar passou a residir na Rua …, n.° …, ….° B, Casal …, …, Cacém.

3 - Desde o ano de 2008, o referido agregado familiar passou a integrar outro filho da vítima, DD, nascido em …/…/19… - fruto de um relacionamento anterior com EE, com quem a vítima casou em Abril de 2010.

4 - Pelo menos a partir de 2004, o relacionamento entre o casal sempre se pautou por discussões permanentes e agressões do arguido a BB com uma frequência não concretamente apurada, sempre na residência do agregado familiar, com murros e pontapés.

5 - Outras vezes agrediu-a com um fio de cabo de televisão e noutra com dentadas nas costas.

6 - As agressões foram por diversas vezes presenciadas pelos menores, que também já tinham visto o arguido a ameaçar a ofendida com uma pistola.

7 - Em datas não concretamente apuradas, o arguido também agrediu a sua filha CC com estalos, pontapés, e de outras vezes com o cinto das calças, no interior da residência do agregado familiar, deixando a menor com dores e hematomas.

8 - No entanto as ofendidas nunca apresentaram qualquer denúncia junto das autoridades por temerem pela sua integridade física e vida, até ao dia 27 de Fevereiro de 2009, altura em que as agressões passaram a ter uma maior gravidade.

9 - No dia 26 de Fevereiro de 2009, à noite, após uma discussão no interior da residência supra mencionada, no Casal …, Agualva, área desta Comarca, a ofendida BB decidiu ir dormir para um colchão na sala.

10 - O arguido não gostou da atitude, dirigiu-se à sala onde a mesma se encontrava e começou a desferir vários socos na cabeça da ofendida.

11 - Em acto contínuo, o arguido empurrou-a com extrema violência para o chão, vindo a ofendida a bater com a testa no mesmo, o que a levou a perder os sentidos.

12 - A agressão do arguido à ofendida foi presenciada pelos seus dois filhos menores, à data CC com apenas 9 anos de idade e DD com 14 anos de idade, que de imediato foram pedir auxílio à vizinha FF.

13 - Em consequência das agressões supra descritas, a ofendida BB sofreu dores e hematomas e necessitou de receber tratamento hospitalar no Hospital Amadora Sintra.

14 - Nessa mesma noite a ofendida solicitou o auxílio da Assistente Social para não regressar mais à residência do agregado e juntamente com os seus filhos passou a pernoitar num quarto em Alcântara custeado pela segurança social, até que arranjou outra casa para residir com os seus filhos menores.

15 - Desde essa data a vítima nunca mais viveu em união de facto com o arguido, sendo que este, ainda assim, continuou a persegui-la e a molestá-la.

16 - No dia 29 de Fevereiro de 2010, o arguido dirigiu-se junto à Igreja de São Marcos, área desta comarca, onde sabia encontrar-se a ofendida e a filha do casal.

17 - Cerca das 11h30, à saída da Igreja, o arguido abordou a vítima, e disse-lhe, em tom ameaçador: "és uma puta", "és uma merda", "vaca", "não vales nada" e ainda "vou raptar a minha filha".

18 - Por temer pela própria vida, a vítima, juntamente com a sua filha, apanhou um autocarro, e encetou fuga em direcção à residência onde habitava juntamente com os seus filhos sita na Av. …, lote … A, Casal …, ….

19 - O arguido nunca aceitou o fim do relacionamento com a vítima BB Brito e, desde aquela data, em número de vezes não concretamente apurado, perseguiu e ameaçou a ofendida, de tal forma que, para se proteger, a vítima trazia consigo, permanentemente, uma faca de cozinha envolta num pano, camuflada dentro da sua mala.

20 - No dia 12 de Julho de 2010, cerca das 21h20, o arguido, na posse de uma arma de fogo, dirigiu-se à zona do Casal …, junto à residência da vítima, com o propósito de retirar a vida a BB.

21 - No momento em que avistou a ofendida nas imediações da Estação do Comboio do Cacém, o arguido aproximou-se da mesma, surpreendendo-a no viaduto que liga o Cacém ao Casal …, pela Ponte …, área desta Comarca.

22 - Após uma breve troca de palavras empunhou a pistola semi-automática, marca BBM, modelo 315, adaptada para calibre 6.35mm, que trazia consigo, presa nas calças, por debaixo da camisa.

23 - Em acto contínuo, e quando estava a uma distância aproximada de l,5m da ofendida, o arguido apontou a arma de fogo a BB e disparou na sua direcção um primeiro tiro, sem lhe conceder qualquer oportunidade de defesa, designadamente através da utilização da faca que trazia na mala.

24 - Ao primeiro disparo efectuado pelo arguido contra a vítima, esta caiu imediatamente inanimada no chão, mas ainda assim, o arguido aproximou-se de BB e continuou a disparar mais 4 vezes contra a vítima, aproximando a arma ao corpo de BB para ter a certeza que lhe acertava nas zonas vitais, como veio a acontecer.

25 - Em concreto, o arguido atingiu a vítima com um tiro na zona do quadrante infero-interno da região mamária, com outro na região supra mamária esquerda, outro na região inferior da órbita direita, infra-palpebral, outro na zona occipital esquerda e um quinto tiro na face lateral esquerda do pescoço.

26 - Como consequência directa e necessária da conduta do arguido resultou na vítima feridas orificiais perfuro-contundentes: no quadrante infero-interno da região mamária esquerda, circular, que mede cerca de 0,2cm de diâmetro, na região supra mamária esquerda, circular, que mede cerca de 0,2cm de diâmetro, na região inferior da órbita direita, infra-palpebral, ovalada, que mede cerca de 0,8x0,4cm, de eixo maior para baixo e para fora, na região occipital esquerda, circular que mede cerca de 0,4cm de diâmetro, na face lateral esquerda do pescoço, junto à base, na linha média, circular, que mede cerca de 0,3cm de diâmetro.

27 - Das lesões acima descritas resultou infiltração hemorrágica do couro cabeludo nas regiões parietal à esquerda e occipital esquerda, fractura orificial na tábua externa do osso occipital esquerdo, fractura da calote craniana, fractura orificial do osso maxilar superior direito, inundação sanguínea ventricular, ferida perfuro-contundente transfixiva dos músculos laterais esquerdos do pescoço, ferida perfuro-contundente transfixiva dos músculos peitorais esquerdos, ferida perfuro-contundente: transfixiva dos músculos peitorais, músculos do 1.° espaço intercostal anterior esquerdo, saco pericárdico, do lobo superior do pulmão esquerdo, terço superior da aorta torácica, hemotórax com sangue líquido e coágulos com cerca de 400c.c à esquerda, atelectasia do pulmão esquerdo, edema do pulmão direito e hemorrágicas sub-endocárdicas.

28 - Os dois projécteis que produziram as lesões necessariamente fatais penetraram:

a) pela região inferior da órbita direita, atravessou o corpo caloso na base do cérebro até à região parieto-occipital esquerda, tendo o projéctil ficado alojado na espessura da dura mater a nível parietal esquerdo;

b) pela região torácica anterior esquerda a nível do quadrante infero-interno da região mamária atravessou os músculos peitorais, músculos do 1.° espaço intercostal anterior esquerdo, saco pericárdico, do lobo superior do pulmão esquerdo, terço superior da aorta torácica, encontrando-se um projéctil de arma de fogo capsulado no hemitórax esquerdo adjacente à coluna dorsal a nível dos músculos intercostais do 5º espaço posterior.

29 - A morte de BB foi devida às graves lesões traumáticas crânio-encefálicas e toráxicas descritas produzidas por instrumento de natureza perfuro-contundente — balas.

30 - BB veio a falecer ainda no local cerca das 21h55.

31 - Junto ao corpo da ofendida ficaram as 5 cápsulas deflagradas, de calibre 0.35mm Browning.

32 - Uma das cápsulas de marca "Geco", três da marca "Sellier & Bellot", e uma da marca "Hirtenberger", 4 delas no passeio, e uma na faixa de rodagem.

33 - Foi ainda encontrada no passeio uma munição de calibre 6.35mm, e da marca "Sellier & Bellot".

34 - A arma utilizada pelo arguido foi uma pistola semi-automática, marca BBM, modelo 315, originalmente de calibre nominal de 8mm e destinada a deflagrar munições de alarme, posteriormente transformada para disparar munições de calibre 6.35mm.

35 - Trata-se de uma arma de fogo não registada nem legalizável, uma vez que resultou de transformação artesanal das características originais da arma, encontrando-se em boas condições de funcionamento.

36 - Depois de alvejar a sua ex-companheira e mãe da sua filha, AA colocou-se em fuga apeado, tranquilamente, com a arma de fogo em seu poder, a qual viria a entregar voluntariamente à polícia no dia seguinte ao cometimento dos factos, ainda municiada com a 6ª munição.

37 - Do corpo da ofendida, foram extraídos 5 projécteis, de calibre 6.35mm Browning, um deles constituinte como um elemento proveniente de uma munição de marca "Hirtenberger", outro de uma munição de marca "Geco", e três constituintes como elementos de três munições da marca "Sellier & Bellot".

38 - Os projécteis extraídos do corpo da ofendida, e as cápsulas encontradas junto ao seu corpo, constituem elementos das munições disparadas pela arma apreendida a AA e que provocaram a morte de BB.

39 - O arguido agiu do modo supra descrito movido por ciúme, por não aceitar o fim do seu relacionamento marital com a ofendida e para a impedir de refazer a sua vida.

40 - Durante o tempo em que viveu com BB o arguido quis molestá-la física e psicologicamente e provocar-lhe, com o seu comportamento persistente de humilhações verbais, desgaste psicológico, e assim conseguir que a mesma se submetesse à sua vontade.

41 - Pretendeu ainda ofendê-la na sua integridade física, como fez a 26 de Fevereiro de 2009 e 26 de Fevereiro de 2010, o que a fez abandonar a residência comum de ambos.

42 - Ao agir da forma acima descrita no dia 12 de Julho de 2010 o arguido AA actuou com o propósito concretizado de tirar a vida a BB, bem sabendo que a sua conduta e as lesões que provocou eram aptas a causarem a morte, como veio a acontecer.

43 - Ao agir da forma acima descrita na pessoa da sua filha CC, o arguido pretendeu molestá-la física e psicologicamente, como veio a fazer, sabendo que lhe tinha para com ela um dever acrescido de protecção por ser sua filha e considerando o facto de ser menor.

44 - O arguido não é possuidor de qualquer licença de uso e porte de arma.

45 - Pelo que, ao deter a pistola adaptada para calibre 6.35 com as características referidas e no circunstancialismo já descrito sabia o arguido que não a podia deter, que a mesma tinha poder letal se utilizada contra alguém, detendo-a, ainda assim, de modo livre, voluntária e consciente, com inteiro convencimento da ilicitude e punibilidade da sua conduta.

46 - Agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se provou:

47 - O arguido nunca foi condenado pela prática de um crime.

48 - O arguido declarou estar arrependido durante a audiência de julgamento. Mais se provou (relatório social):

49 - Natural de Cabo Verde, AA, sexto filho de uma fratria de nove irmãos germanos, integrou desde cedo o agregado dos avós maternos de modo a cuidar deles e a colaborar na actividade de agricultura a que se dedicavam pese embora mantivesse proximidade relacional com os progenitores.

50 - Iniciou o percurso escolar aos 7 anos de idade na terra natal, abandonando a escolaridade, segundo alega por dificuldades económicas, aos 12 anos, com a conclusão da 4ª classe.

51 - Com 20 anos emigrou para Portugal para se juntar ao progenitor e a uma das suas irmãs, que viviam numa barraca no Alto dos Barronhos, mantendo no país de acolhimento um quotidiano aparentemente adaptado e integrado, pautado por regularidade no exercício profissional no sector da construção civil.

52 - Uns anos mais tarde a mãe do arguido emigrou também para Portugal para reintegrar o agregado por necessidades de tratamento médico.

53 - Em 1995, AA inicia o relacionamento afectivo com BB, juntando-se esta, pouco tempo depois, ao agregado de origem do arguido, situação que se altera em 1999 quando o casal adquire habitação própria por meio de empréstimo bancário, mudando-se assim para São Marcos/Cacém com a única filha do casal, actualmente com 13 anos.

54 - Pelas informações recolhidas, o relacionamento do casal era pautado por alguma instabilidade e por episódios de violência doméstica motivados por ciúmes de ambos.

55 - Em 2008, o agravamento das condições económicas do agregado decorrentes da situação de desemprego de AA levaram a que este emigrasse para o Luxemburgo na perspectiva de, com maior facilidade, reintegrar-se profissionalmente no sector da construção civil.

56 - As dificuldades com que se deparou levaram-no a regressar a Portugal cerca de 3 meses depois, coincidindo o seu regresso com algumas mudanças no seio intra-familiar que o próprio poderá ter tido dificuldades em gerir.

57 - De acordo com o apurado junto do arguido e da irmã deste, no período em que esteve ausente do país, o filho mais velho de BB ter-se-á juntado à progenitora — situação não aceite por AA.

58 - Após o regresso do arguido a Portugal, a companheira terá abandonado o agregado levando consigo ambos os filhos, situação esta que poderá ter contribuído de forma premente para a instabilidade psico-emocional de AA, de acordo com informação da irmã do arguido.

59 - AA, antes da actual detenção, vivia sozinho, em habitação própria, mantendo um quotidiano de inactividade e proximidade relacional com o agregado de origem.

60 - Decorrente do abandono da companheira do agregado - e pese embora todos os esforços encetados pelo arguido para que a mesma, a filha de ambos e o enteado regressassem ao seio familiar - AA terá assumido uma postura de desligamento emocional face à própria vida, abandonando a actividade profissional, adoptando uma postura de abatimento, descurando os cuidados básicos de higiene, escusando-se a alimentar-se e afastando-se do convívio social.

61 - Em contexto de entrevista, o arguido evidenciou uma postura abatida, psicoemocionalmente instável com humor predominantemente depressivo, nervosismo e choro frequente quando abordada a situação que motivou a sua detenção.

62 - Verbalizou igualmente grande preocupação face à filha, da qual desconhece o seu actual paradeiro.

63 - AA apresenta um discurso muito crítico face a comportamentos transgressores de natureza constante ao dos presentes autos reconhecendo o desvalor face ao bem jurídico em causa.

64 - Segundo refere, tem mantido um comportamento prisional adequado, sem registo de incidentes, mantendo ocupação laboral no sector das obras, beneficiando de acompanhamento psicoterapêutico e psiquiátrico regular, elementos estes não possíveis de confirmar junto do Estabelecimento Prisional.

65 - Continua a beneficiar de apoio incondicional por parte da família de origem que verbaliza grande preocupação pelo arguido, recebendo visitas regulares destes.

B) FACTOS NÃO PROVADOS

Não resultaram provados os seguintes factos constantes da acusação com relevância para a decisão final:

1 - As agressões do arguido a BB duravam desde o início da vida de ambos em união de facto.

2 - As agressões do arguido a BB ocorriam com a frequência de uma vez por mês.

3 - No dia 29 de Fevereiro de 2009, o arguido dirigiu-se à ofendida proferindo a expressão "prostituta".

4 - O arguido baleou BB por vingança como retaliação pelo facto de a mesma não ceder aos seus propósitos.

Penas parcelares

Como vimos, pretende o arguido que as penas parcelares sejam fixadas no limite mínimo da respectiva moldura penal.

Acontece, porém, que tal já sucede relativamente a duas das penas em que foi condenado: a do crime de violência doméstica na pessoa da sua filha CC, fixada em 2 anos de prisão de prisão, sendo a moldura de 2 a 5 anos de prisão; e a do crime de detenção de arma proibida, fixada em 1 ano de prisão, sendo a moldura penal de 1 a 5 anos de prisão (embora esteja prevista em alternativa a punição com multa até 600 dias, sendo certo que o recorrente não questiona a escolha da pena de prisão).

Consequentemente, apenas há a analisar a medida das penas dos crimes de homicídio e de violência doméstica, na pessoa da vítima BB.

A medida concreta da pena, nos termos do art. 71º do CP, é fixada em função da culpa e das exigências da prevenção, devendo atender, nomeadamente, à ilicitude do facto, à intensidade do dolo, às motivações e às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior aos factos, à sua falta de preparação para manter conduta lícita.

Em relação ao crime de violência doméstica na pessoa da vítima BB, punível com prisão de 2 a 5 anos, há que relevar a elevada ilicitude dos factos e a intensidade do dolo. Na verdade, as agressões físicas, a par de insultos verbais, praticadas pelo arguido contra a vítima BB, sua companheira, na residência familiar, perduraram entre 2004 e 26.2.2009, agravando-se progressivamente com a passagem do tempo até esta última data, ocasião em que a vítima não suportou mais o comportamento violento do arguido e abandonou a residência, com os seus filhos, que presenciaram os factos, como aliás habitualmente acontecia, tendo recebido tratamento hospitalar nessa data.

Sendo a culpa do arguido elevada, não será de mais acentuar as necessidades preventivas, gerais e especiais, estas atendendo ao comportamento reiterado do arguido, aquelas tendo em consideração a censura crescente que a violência doméstica vem merecendo por parte do legislador (que instituiu um quadro punitivo particularmente rigoroso) e da sociedade em geral, que estigmatiza e censura especialmente quem pratica este tipo de actos.

A pena fixada (3 anos e 6 meses de prisão) não se mostra de forma alguma excessiva, considerando-se nomeadamente o período alargado em que perdurou o comportamento delitivo, e assegura as finalidades preventivas da pena, pelo que não merece qualquer censura.

Quanto ao crime de homicídio qualificado, o recorrente, embora não questionando a qualificação, alega ter agido “num estado emocional muito alterado de grande desespero e emoção violenta que não conseguiu conter”.

Os factos, porém, não favorecem esta versão. Na verdade, provou-se que, entre Fevereiro de 2010 e a data dos factos (12.7.2010), o arguido, por diversas vezes, perseguiu e ameaçou a vítima, de tal forma que esta passou a trazer consigo permanentemente, para sua defesa, uma faca de cozinha.

No dia dos factos, o arguido procurou de novo a vítima, apanhando-a de surpresa próximo da residência, e, após “breve troca de palavras”, empunhou a pistola que já levava consigo e, acto contínuo, disparou um primeiro tiro contra a vítima, seguido de mais quatro, quando ela já se encontrava caída no chão.

Nada sugere, pois, uma súbita emoção violenta difícil de controlar, antes, pelo contrário um comportamento reflectido e planificado por parte do arguido, procurando a vítima próximo da sua residência, já com a intenção de a matar, munindo-se previamente da arma idónea para levar a cabo o seu intento, e disparando logo após uma breve abordagem à vítima.

Poderá salientar-se que o arguido agiu movido por ciúme, inconformado com o facto de a vítima ter posto termo ao relacionamento marital. Mas este facto de forma alguma atenua a sua responsabilidade, pois é revelador da sua intolerância e desprezo para com a vítima, para com o direito desta à sua autodeterminação, enquanto pessoa livre e autónoma.

A conduta do arguido apresenta-se como especialmente censurável, enquanto expressão suprema de violência doméstica, que o arguido praticou, com agressões físicas e psíquicas, ao longo de anos, um período considerável da sua relação marital com a vítima, num crescendo de violência, e que rematou com o homicídio desta.

Provou-se, é certo, que o arguido assumiu uma atitude crítica relativamente ao seu comportamento. Não se tratará propriamente de arrependimento, mas, ainda que o fosse, de fraco valor seria essa atenuante perante o conjunto de circunstâncias que agravam sensivelmente a sua responsabilidade penal, nomeadamente a elevada ilicitude e o dolo intenso.

Por outro lado, são incontestáveis e muito fortes as exigências de prevenção geral relativamente a este tipo de criminalidade, conforme já ficou atrás referido e por isso se dispensa de repetir.

Por isso, a pena de 20 anos de prisão, fixada pelo tribunal recorrido, numa moldura de 16 a 25 anos de prisão, afigura-se não ultrapassar a medida da culpa e satisfazer as referidas exigências preventivas.

Pena conjunta

Pretende o recorrente que a pena conjunta seja reduzida para 18 anos de prisão. Mas é evidente que essa pretensão só teria cabimento se as penas parcelares, especialmente a do homicídio, tivessem sofrido redução, o que não sucedeu.

Em todo o caso, terá de ponderar-se se a pena conjunta deverá sofrer alguma atenuação.

Nos termos do art. 77º, nº 1, do CP, a pena do concurso de crimes resultará de uma apreciação global dos factos, tomados como conjunto, e não mero somatório de factos desligados, e da personalidade do agente. Nessa apreciação indagar-se-á se a pluralidade de factos delituosos corresponde a uma tendência da personalidade do agente, ou antes a uma mera pluriocasionalidade, de carácter fortuito, não imputável a essa personalidade, sendo naturalmente circunstância agravante a identificação de uma tendência do agente para a prática reiterada de crimes.

De ter em conta ainda que a moldura da pena do concurso tem como limite mínimo a pena parcelar mais grave e como máximo a soma das diversas penas parcelares.

A apreciação global dos factos imputados é claramente desfavorável ao arguido. Depois de anos sucessivos a maltratar a sua companheira, matou-a, porque ela, precisamente por causa dos maus tratos regularmente infligidos, tinha acabado com o relacionamento marital. Também agrediu, por diversas vezes, e com alguma violência, a filha CC, quando ainda vivia na mesma casa.

Revela, assim, o arguido uma personalidade violenta para com os seus familiares, desprezando acentuadamente os valores de afectividade e respeito que devem presidir à vivência em família.

A moldura penal do concurso vai de 20 anos a 25 anos de prisão.

A pena fixada (22 anos de prisão) cumpre perfeitamente os critérios definidos no art. 77º do CP, não merecendo, por isso, censura.

Improcede, pois, o recurso, na sua totalidade.

III. DECISÃO

Com base no exposto, nega-se provimento ao recurso.

Vai o arguido condenado em 5 (cinco) UC de taxa de justiça.

Lisboa, 23 de Novembro de 2011    

Maia Costa (Relator)

Pires da Graça