Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B402
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA ROCHA
Descritores: FUNDOS DE INVESTIMENTO
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
AUTORIDADE
CASO JULGADO
Nº do Documento: SJ20080306004022
Data do Acordão: 03/06/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário :
1. Os fundos de investimento constituem patrimónios autónomos, sem personalidade jurídica
2. Mas se é certo a personalidade jurídica atribuir, necessariamente, a quem a detenha, a personalidade judiciária, já não é a proposição contrária, isto é, a de carecer de personalidade judiciária quem não detenha a personalidade jurídica.
3. Face ao art. 6º do CPC, apesar do Fundo de Investimento Imobiliário carecer de personalidade jurídica, não se lhe poderá, sem mais, negar a susceptibilidade de ser parte, que lhe advém, face a este normativo, da circunstância de constituir um património autónomo.
4. Extinto o Fundo, deixou de existir o património autónomo detentor da personalidade judiciária.
5. A excepção de caso julgado tem por fim evitar a repetição de causas e os seus requisitos são os fixados no art. 498º do CPC: identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir.
6. A autoridade de caso julgado, diversamente, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que se aludiu, pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
1.
A sociedade AA, S.A., em representação do BB (........), intentou a presente execução hipotecária, para pagamento de quantia certa, contra CC- Construções Civis Lda.

A executada veio deduzir embargos de executado, excepcionando a falta de personalidade judiciária da exequente, alegando, em síntese, que a execução foi proposta por BB (........), representada em juízo por AA, S.A., em Abril de 2002. Porém, no dia 13 de Novembro de 2001, por escritura pública de partilha e liquidação, o BB (........) foi dissolvido, liquidado e partilhado, certo que a dissolução, liquidação e partilha da exequente ........, anterior à propositura da presente acção, consubstancia a excepção de falta de personalidade judiciária da mesma.

A embargada contestou, alegando que o BB nunca teve personalidade judiciária, pois que se trata de um património autónomo, desprovido de personalidade jurídica, motivo pelo qual nunca poderia ser titular de qualquer relação jurídica ou agir por si só em juízo; daí ter, necessariamente, que ser representada - em regime de representação legal - por uma sociedade gestora, que age em representação do Fundo em todos os seus actos e negócios jurídicos.
Conclui pela improcedência da excepção suscitada.

Foi proferido despacho saneador, que julgou procedente a excepção deduzida de falta de personalidade judiciária e absolveu a embargante da instância.
A embargada não se conformou com esta decisão e interpôs recurso de agravo para o Tribunal da Relação de Évora, que, por acórdão de 4.10.07, revogou o despacho recorrido e ordenou o prosseguimento da tramitação processual subsequente.

Irresignada, a embargante recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a respectiva alegação pela seguinte forma:

Foi proferido, em 8 de Junho de 2006, acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, na sequência de um acórdão do STJ, que considerava que, a existir prévia liquidação do fundo existiria falta de personalidade judiciária, acórdão esse proferido em acção que correu termos entre as mesmas partes, em que a excepção deduzida era a mesma, de falta de personalidade judiciária, com os mesmos fundamentos ou causa de pedir, ou seja, a prévia dissolução, liquidação e partilha do fundo exequente anteriormente à propositura da acção, acórdão esse que se encontra transitado em julgado e que conclui pela ocorrência de excepção falta de personalidade judiciária do fundo para a acção de falência que aí se encontrava em causa;
Foi junta certidão do dito acórdão à presente execução, razão pela qual deveria o Tribunal da Relação, no acórdão recorrido, ter julgado procedente excepção de caso julgado, excepção que é de conhecimento oficioso, nos termos do disposto no artigo 495º do Código de Processo Civil - ou, com fundamento no disposto no artigo 675º, nº 2, do mesmo Código, ter-se abstido de contradizer a decisão anterior, tendo, por isso, o mesmo incorrido em nulidade, nos termos do disposto nos arts. 668º, nº1 e 712º do Código de Processo Civil, invocável nos termos do disposto no artigo 755º do mesmo Código;
Assim, deverá ser julgada procedente a excepção de caso julgado, com a consequente procedência da excepção de absolvição da instância e procedência dos embargos de executado, tendo sido violadas pela decisão recorrida os dispositivos mencionados na conclusão antecedente;
Assim não se entendendo, deverá ser julgada procedente a excepção de falta de personalidade judiciária da exequente, por, previamente à propositura da execução, ter sido liquidado, dissolvido e partilhado o fundo exequente;
Violou, assim, o acórdão recorrido o disposto nos arts. 5º, 6º, 288º, nº1, al. c), todos do CPC e o art. 2º, nº 2, do Decreto-Lei nº 294/95, de 17/11, os quais, devidamente interpretados, imporiam que não tem personalidade judiciária o fundo de investimento imobiliário, liquidado, dissolvido e partilhado previamente à propositura de acção judicial.
Nas contra-alegações, a embargada pronuncia-se pela manutenção do acórdão impugnado.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2.
Os factos com relevo para a decisão são os constantes do relatório.
3. O Direito.
As conclusões da legação do recurso impõem a este Tribunal a apreciação das seguintes questões:
- se deve ser julgada procedente a excepção de caso julgado;
- se, assim não se entender, deve ser julgada procedente a excepção de falta de personalidade judiciária da exequente.

Pela Portaria 6/92, publicada no D.R., II Série, de 7.1.92, foi autorizada a constituição do fundo fechado de investimento imobiliário «BB (........)», cuja administração, gestão e representação eram asseguradas pela «AA, S.A.», sendo aprovado o regulamento de administração e gestão do Fundo, cujo original ficava depositado no Banco de Portugal.
O DL. nº 229-C/88, de 4-7, no seu art. 2º, dispunha:
1. Os fundos são conjuntos de valores resultantes de investimentos de capitais recebidos do público e representados por certificados de participação.
2. Os fundos têm por fim exclusivo a constituição de uma carteira diversificada de valores mobiliários ou imobiliários, permitindo a divisão dos riscos e a rentabilidade das aplicações.
3. Os fundos de investimento fechados caracterizam-se pelo facto de o capital a investir na aquisição de valores, mobiliários ou imobiliários, ser fixado no acto de constituição dos mesmos fundos.

Nos arts. 4º e 5º do mesmo diploma referia-se que a administração dos fundos de investimento deveria ser exercida por uma sociedade gestora (podendo, ainda, a administração de fundos de investimento fechados ser exercida por bancos comerciais ou de investimento e por sociedades de investimento), sendo a sociedade gestora uma instituição parabancária que tinha por objecto exclusivo a administração, gestão e representação de um ou mais fundos de investimento da mesma natureza, actuando por conta comum dos participantes e podendo, designadamente, adquirir e alienar quaisquer valores e exercer os direitos directa ou indirectamente relacionados com os bens do fundo.

O DL. nº 224/95, de 17-11 (com alterações introduzidas pelo DL. nº 323/97, de 26-11), estabeleceu o novo regime dos fundos de investimento imobiliário, dispondo, no art. 2º, nº 2, que os fundos de investimento imobiliário são instituições de investimento colectivo que têm por fim o investimento de capitais recebidos do público em carteiras diversificadas de valores fundamentalmente imobiliários segundo um princípio de divisão de riscos acrescentando que os mesmos «constituem patrimónios autónomos, pertencentes, no regime especial de comunhão regulado no presente diploma, a uma plural idade de pessoas singulares ou colectivas e que não respondem pelas dívidas próprias dos participantes ou das entidades que asseguram a sua gestão.
No que respeita à administração dos fundos de investimento imobiliário estabelece o n° 1 do art. 6º do citado diploma que a administração dos fundos de investimento imobiliário deve ser exercido por uma sociedade gestora de fundos de investimento imobiliário.
E acrescenta o art. 7º, n°1, que as sociedades gestoras de fundos de investimento imobiliário devem ter por objecto exclusivo a administração, em representação dos participantes de um ou mais fundos imobiliários.

Feito o enquadramento legal, e seguindo a doutrina dominante, importa referir que os fundos de investimento constituem patrimónios autónomos, sem personalidade jurídica (v. autores cits. no acórdão impugnado e, ainda, José Maria Pires, in Direito Bancário, 3º vol., pag. 237).
Os patrimónios autónomos são patrimónios de afectação especial – têm um destino particular, uma especial destinação, visam a consecução de determinado escopo, limitado e restrito.
Segundo Ferrara, património autónomo é “um património juridicamente distinto do restante património da pessoa, capaz de próprias relações e de dívidas próprias e insensível às flutuações e alternativas que atinjam o património que lhe está ao lado ou em cujo seio ele vive.
O património separado é um património autónomo que não tem outra relação com o património que lhe está vizinho afora o liame extrínseco de ter o mesmo sujeito” (cit. por Manuel de Andrade, in Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. I, pag. 217).
Contudo, não é decisivo averiguar se as partes detêm, ou não, personalidade jurídica, para se lhes reconhecer, ou não, a susceptibilidade de serem partes, isto é, de terem a necessária personalidade judiciária. Isto porque, se, de acordo com o citado nº 2 do art. 5º do CPC, é certo a personalidade jurídica atribui, necessariamente, a quem a detenha, a personalidade judiciária, já não é a proposição contrária, isto é, a de carecer de personalidade judiciária quem não detenha a personalidade jurídica.
Face ao art. 6º do mesmo diploma legal, apesar do Fundo de Investimento Imobiliário carecer de personalidade jurídica, não se lhe poderá, sem mais, negar a susceptibilidade de ser parte, que lhe advém, face a este normativo, da circunstância de constituir um património autónomo.
Quer dizer, este preceito admite, como partes na causa, entidades às quais não é reconhecida personalidade jurídica.

Este pressuposto processual (personalidade judiciária) deve estar presente em qualquer processo de natureza contenciosa, pretendendo o legislador referir-se àquele que requer ou contra quem é requerida determinada providência judiciária a que tende a acção (v. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pag. 75 e Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol II, pags. 97 e sgs.).
Na expressão de Castro Mendes, “constitui o pressuposto dos restantes pressupostos subjectivos” (in Direito Processual Civil, Vol. II, pag. 18).
E, de facto, só se compreende a apreciação da legitimidade e da capacidade judiciária relativamente a quem goze da prerrogativa de ser sujeito processual.
Na verdade, sendo o processo civil o instrumento criado para a definição de direitos e obrigações na esfera do direito privado (direito civil ou direito comercial), natural é que todo aquele que seja atingido na sua esfera jurídica pelos efeitos da decisão judicial constitua uma entidade capaz de suportar tais consequências.

Temos, pois, como certo, em face do exposto, que o Fundo em causa, como património autónomo que é, goza de personalidade judiciária (art. 6º, al. a), do CPC).

Sendo o BB (........) um fundo fechado (são fechados os fundos cujas unidades de participação são em número fixo), poderiam os seus participantes proceder à sua extinção (art. 26º do DL. nº 294/95).
Foi o que aconteceu, através da escritura de partilha e liquidação, de 13 de Novembro de 2001.

A propósito do momento de extinção do fundo de investimento refere Alexandre Brandão da Veiga (in “Fundos de Investimento Mobiliário e Imobiliário”, pag. 295, citado no acórdão da Relação de Lisboa):
«Não definindo a lei, mais uma vez, de modo sistemático, qual o momento de extinção do fundo, apenas podemos estabelecer conclusões com base em construção dogmática.
Há que distinguir a liquidação compulsiva da liquidação não compulsiva.
Em ambos os casos, a liquidação não pode encerrar enquanto não houver partilha integral.
... No caso da liquidação não compulsiva, a liquidação termina com o encerramento das contas pela entidade gestora.
O momento do termo da liquidação é o momento da extinção do fundo. A extinção do fundo tem como consequências o termo dos deveres das entidades gestora e do depositário e a caducidade da autorização administrativa do fundo.
…é o acto de encerramento da liquidação ou a sua aprovação que têm de ser os últimos momentos de vida deste mesmo fundo».

Face à escritura de partilha e liquidação, o BB (........) extinguiu-se em 13.11.2001, terminando, nessa data, os deveres da sociedade gestora no que ao Fundo diz respeito.
E, extinto o Fundo, deixou de existir o património autónomo detentor da personalidade judiciária.

Deste modo, nunca a decisão recorrida poderia subsistir.

Mas a questão não acaba aqui.

Na verdade, em 8 de Junho de 2006, foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, transitado em julgado, em acção intentada por AA, S.A., em representação do BB (........), em que requer a declaração de falência de CC- Construções Civis, Ldª,
Nesse acórdão, foi apreciada a arguida falta de personalidade judiciária da requerente, atenta a escritura de partilha e liquidação do Fundo, supervenientemente junta aos autos (escritura de 13.11.2001), tendo sido decidido que, face a tal escritura, extinto o Fundo, deixara de existir o património autónomo detentor de personalidade judiciária, o que já sucedia desde quase três anos antes da propositura da acção e, em consequência, foi a requerida CC- Construções Civis, Ldª, absolvida da instância.

Não restam quaisquer dúvidas de que, em ambas as acções, as partes são as mesmas, como é a mesma a excepção deduzida - falta de personalidade judiciária da ora agravada -, com os mesmos fundamentos ou causa de pedir, ou seja, a prévia dissolução, liquidação e partilha do fundo exequente anteriormente à propositura da acção.

Nas contra-alegações, sustenta, porém, a recorrida que, embora sejam mesmas as partes, o mesmo não acontece relativamente ao pedido e causa de pedir.
Com efeito, alega a agravada, nesta acção está em causa a efectivação do pagamento de uma dívida e a oposição à exigibilidade de tal pagamento e, na outra, a declaração de falência da ora agravante.
Quanto à causa de pedir, a dissimilitude é também patente: numa a situação de falência, com adopção do critério legal e noutra a existência de uma dívida, garantida por hipoteca.

Que dizer?

Como se refere no Ac. do STJ, de 13.12.2007, a autoridade de caso julgado de sentença que transitou e excepção de caso julgado são efeitos distintos da mesma realidade jurídica.
A excepção de caso julgado tem por fim evitar a repetição de causas e os seus requisitos são os fixados no art. 498º do CPC: identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir.
A autoridade de caso julgado, diversamente, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que se aludiu, pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida.

A distinção entre os dois conceitos está claramente apresentada no estudo do Prof. Miguel Teixeira de Sousa “Objecto da Sentença e Caso Julgado Material”, publicado no BMJ nº 325, pág. 49 e sgs., e vem mencionada no Ac. de 26.1.94 deste Supremo Tribunal, publicado no nº 443 do mesmo Boletim, a pág. 515.
Escreve o autor citado: “A excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior” (pág. 176). E mais adiante: “Quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior”.

Na situação ajuizada, é inquestionável que a decisão definitiva proferida na acção a que se reporta o acórdão da Relação de Lisboa não pode deixar de actuar como autoridade de caso julgado, impossibilitando a continuação desta lide.
O que implica a extinção da instância da presente acção, não por inutilidade superveniente da lide, mas por julgamento de forma (art. 287º, al. a), do CPC), inviabilizando uma pronúncia de mérito.

4.
Face ao exposto, decide-se conceder provimento ao agravo, com custas pela agravada.

Lisboa, 06 de Março de 2008
Oliveira Rocha (Relator)
Oliveira Vasconcelos
Serra Baptista