Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B683
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: EXECUÇÃO
CAUSA DE PEDIR
TÍTULO EXECUTIVO
LETRA DE CÂMBIO
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
RELAÇÕES IMEDIATAS
ÓNUS DA PROVA
COACÇÃO MORAL
RESERVA MENTAL
ASSUNÇÃO DE DÍVIDA
Nº do Documento: SJ200703150006837
Data do Acordão: 03/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : 1. O ónus de prova na oposição à execução segue essencialmente o regime geral previsto no artigo 342º do Código Civil.
2. O fundamento substantivo da acção executiva - causa de pedir - é a própria obrigação exequenda, constituindo o título executivo o seu instrumento documental legal de demonstração.
3. Sendo o exequente o portador e sacador da letra de câmbio, a causa da constituição da relação jurídica cambiária – obrigação subjacente - é susceptível de ser discutida na fase declarativa da oposição à execução deduzida pelo aceitante executado.
4. Para o vício de coacção moral, dada a licitude envolvente, não releva a ameaça de accionamento em juízo para o exercício do direito, nem o mero receio de desagradar à pessoa que se respeita ou de quem se depende a algum nível.
5. Sem a prova de que a declaração cambiária de aceitante visou o engano da pessoa que preencheu a letra de câmbio para nela figurar como sacador, não releva a invocação da reserva mental.
6. A ratificação pelo credor do contrato de transmissão singular de dívida pode ser tácita, por exemplo no caso de o credor accionar o assuntor para a respectiva cobrança ou aceitar dele o respectivo pagamento.
7. Não assentando a letra de câmbio dada à execução em alguma relação jurídica substantiva idónea à constituição da relação jurídica cambiária por ela consubstanciada, procedem os embargos de executado. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I
Empresa-A intentou, no dia 22 de Maio de 2000, contra AA e BB, acção executiva para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, a fim de haver destes a quantia de 5 090 000$ e juros, com fundamento numa letra de câmbio, sacada pela primeira e aceite pelos últimos.
BB deduziu, no dia 10 de Julho de 2000, embargos de executado, invocando a inexistência da dívida, e pediu o apoio judiciário na modalidade de assistência judiciária.
A embargada, na contestação, afirmou a existência da dívida da embargante, e a esta foi concedido o apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e de custas.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 16 de Julho de 2005, por via da qual os embargos foram julgados procedentes.
Apelou a embargada, e a Relação, por acórdão proferido no dia 24 de Outubro de 2006, revogando a sentença recorrida, declarou a improcedência dos embargos.

Interpôs a apelada recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- os factos provados não revelam a causa debendi da recorrente em relação à recorrida nem a assunção de dívida da sua parte;
- eles revelam que a recorrida, face ao desaparecimento do seu vendedor, tentou criar as condições para receber da recorrente e do executado AA os valores com que o primeiro se aproveitou, fomentando as condições para o surgimento dos títulos;
- a Relação incorreu em erro na interpretação dos factos ao considerar que a recorrente agiu no seguimento de vontade livremente formada, e aplicou incorrectamente os artigos 236º, 240º e 595º do Código Civil;
- o acórdão é tecnicamente incorrecto e substancialmente injusto.

Respondeu a recorrida, em síntese de conclusão:
- a causa debendi é o aceite da letra e a promessa da sua amortização por parte da recorrente;
- a existência normal de uma fonte originante da assunção da dívida não é necessária para a sua subsistência desta, independentemente da existência ou da validade da sua causa;
- não houve reserva mental nem coacção moral, e não foram violados os artigos 236º, 240º e 595º do Código Civil.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. CC, quando era vendedor comissionista da embargada, vendeu a dois clientes – DD e EE – dois veículos automóveis, por 3 290 000$ e 3 050 000$, respectivamente, tendo recebido daqueles, por conta desses preços, dois cheques com o valor de 2 590 000$ e 2 500 000$.
2. AA entregou a CC os cheques nºs 13504933576, com o montante inscrito de 2 500 000$, e 674506164, com o valor de 2 590 000$, que o último entregou à embargada, que os aceitou, como forma de pagamento das quantias mencionadas na primeira parte de 1.
3. A embargada aceitou receber esses dois cheques como parte do pagamento dos veículos referidos sob 1, um deles sacado sobre uma conta de AA, e o outro sobre uma conta da sociedade R V S R Reparação Veículos Sobre Rodas Ldª, tendo o primeiro, com o valor inscrito de 2 500 000$, sido pago.
4. Uma dessas contas tinha como titulares a embargante e AA, e, a outra, uma sociedade de que a embargante era gerente.
5. Na sequência do pagamento do cheque referido na segunda parte de 3, a conta bancária sacada ficou a descoberto, e encontrava-se ainda por pagar o cheque de 2 590 000$.
6. No dia 14 de Outubro de 1999, a embargante e AA apareceram nas instalações da embargada nas Caldas da Rainha, aflitos, e invocaram que o Banco iria estragar o nome deles, e que precisavam urgentemente de creditar a conta bancária com o valor de 2 500 000$.
7. Perante essa situação, FF entregou a AA um cheque sobre conta sua, aberta no Empresa-B, no valor de 2 500 000$, a fim de a embargante e AA proverem a conta bancária referida sob 5.
8. Contra a entrega desse cheque, AA passou um cheque de igual valor a favor de FF, e, na mesma altura, a embargada concedeu à embargante e a AA, este companheiro daquela, o prazo até 27 de Outubro de 1999 para pagarem o valor dos dois cheques referidos sob 2, o que eles aceitaram.
9. No dia 27 de Outubro de 1999, a solicitação do executado AA, que lhe disse que a deslocação era necessária para resolver um problema que ele tinha com uns cheques, emitidos sobre contas no Empresa-C das Caldas da Rainha, que tinha emprestado a um vendedor da embargada, a embargante deslocou-se às instalações da embargada, nas Caldas da Rainha.
10. Findo o prazo mencionado sob 8, no referido dia 27 de Outubro de 1999, foi preenchida a letra de câmbio, com o valor inscrito de 5 090 000$, sacada pela recorrida, assinada no lugar destinado ao aceite pela embargante e por AA, com vencimento no dia 1 de Fevereiro de 2000.
11. No mesmo dia 27 de Outubro de 1999, a embargante e AA assinaram o documento inserto a folhas 13 do apenso à execução, do seguinte teor: “Nós abaixo assinados, aceitantes da letra no valor de 5 090 000$, cujo vencimento ocorre a 1 de Fevereiro de 2000 e o sacador Empresa-A, declaramos que a mencionada letra substitui os cheques nºs 6150493603 sobre o Empresa-C, datado de 27 de Outubro de 1999, e 6745061641 sobre o Empresa-C, datado de 15 de Outubro de 1999. Assim, pela mencionada letra, assumimos pagar 5 090 000$, como parte do preço que nos falta pagar da aquisição de veículos por terceiros, que atempadamente satisfizeram à firma a totalidade do valor dos veículos que adquiriram”.
12. Redigido e assinado o escrito aludido sob 11, a embargante e AA declararam então que iriam proceder a amortizações mensais da letra, de que a embargada é portadora.
13. O referido escrito foi redigido pela embargada, e a embargante nunca adquiriu à embargada qualquer veículo, nem se obrigou para com a mesma, na qualidade de fiadora ou avalista, a pagar o valor de compras que terceiros tenham feito à primeira.
13. Quando a letra e o escrito mencionado sob 11 foram presentes à embargante, a letra já se encontrava preenchida pela embargada, e GG, à data adjunto da administração da embargada, não aceitou que a declaração e a letra fossem assinadas apenas por AA.
14. AA disse à embargante que assinasse também aqueles documentos, e ela quando os assinou estava muito nervosa.
15. Cerca de uma semana após a subscrição dessa letra, a embargante disse à embargada que, caso o AA não pagasse, deveria entrar em contacto com ela.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrente é ou não sujeito da obrigação de pagamento, no confronto da recorrida, da quantia exequenda em causa.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação da recorrente e da recorrida, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- lei adjectiva aplicável à acção executiva e à oposição;
- estrutura dos embargos de executado e a distribuição do ónus de prova.
- estrutura do título executivo em causa;
- âmbito da impugnação do seu conteúdo;
- agiu ou não a recorrente sob reserva mental ou coacção?
- assumiu ou não a recorrente a dívida de outrem?
- o título executivo em causa assenta ou não em obrigação pecuniária assumida pela recorrente?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela determinação da lei adjectiva aplicável à acção executiva e à oposição.
Como a acção executiva e os embargos em causa foram deduzidos antes do dia 15 de Setembro de 2003, não lhes são aplicáveis as normas processuais decorrentes da reforma processual que nessa data entrou em vigor (artigo 4º do Decreto-Lei n.º 199/2003, de 10 de Setembro).
Instaurada a acção executiva no dia 22 de Maio de 2000, à mesma e à oposição são aplicáveis as normas adjectivas decorrentes da reforma do Código de Processo Civil que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1997 (artigo 16º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro).
Assim, ainda estamos perante a espécie designada por embargos de executado, a que se reportam os artigos 812º a 820º do Código de Processo Civil, redacção anterior.

2.
Atentemos agora na estrutura dos embargos de executado e na distribuição do ónus de prova.
A fase declarativa dos embargos de executado, estruturalmente extrínseca à acção executiva, configura-se como contra-acção susceptível de se basear, conforme os casos, em fundamento de natureza substantiva ou de natureza processual.
É uma fase eventual da acção executiva que assume a estrutura de acção declarativa do tipo de contra-acção tendente a obstar aos efeitos da execução por via da afectação dos efeitos normais do título executivo, em que o executado pode invocar factos de impugnação e ou de excepção.
O ónus de prova no âmbito dos embargos de executado segue, por isso, o regime decorrente do artigo 342º do Código Civil.
A idónea invocação na fase declarativa da acção executiva em análise de algum facto relativo à falta de algum dos seus pressupostos específicos implica a declaração judicial desse vício e da inadmissibilidade da acção executiva.
Estamos no caso vertente perante uma acção executiva para pagamento de quantia certa baseada em letra de câmbio, pelo que a respectiva oposição por embargos é susceptível de assentar na inexistência da própria obrigação exequenda (artigo 816º do Código de Processo Civil).

3.
Vejamos agora a estrutura do título executivo em causa.
A acção executiva visa a implementação das providências adequadas à efectiva reparação do direito violado, e tem por base um título pelo qual se determinam o seu fim e limites (artigos 4º, n.º 3, e 45º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Podem servir de base à execução os documentos particulares assinados pelo devedor que importem a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 805º do Código de Processo Civil (artigo 46º, proémio, e alínea d), do Código de Processo Civil).
Tendo em atenção o conteúdo declarativo do requerimento executivo apresentado pela recorrida, em que ela baseou a execução para pagamento de quantia certa em apreciação, o título executivo respectivo é uma letra de câmbio.
Ora, o portador da letra de câmbio pode exercer os seus direitos de acção, além do mais, contra os aceitantes, na data do respectivo vencimento, e juros e despesas (artigos 43º, 1ª e 2ª partes, e 48º, 1ª a 4ª partes, da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças –LULL).
Os aceitantes são solidariamente responsáveis para com o portador, que tem o direito de os accionar, individual ou colectivamente, independentemente da ordem por que se obrigaram (artigo 47º, 1ª e 2ª partes, da LULL).
Assim, as letras de câmbio consubstanciam, por via das respectivas declarações cambiárias e ao abrigo da lei cambiária, a constituição de obrigações pecuniárias, e, consequentemente, são títulos executivos idóneos à instauração da acção executiva para pagamento de quantia certa (artigo 46º, proémio, e alínea c), do Código de Processo Civil).
A relevância especial dos títulos executivos que resulta da lei deriva da segurança tida por suficiente da existência do direito substantivo cuja reparação se pretende efectivar por via da acção executiva.
O fundamento substantivo da acção executiva é, pois, a própria obrigação exequenda, constituindo o título executivo o seu instrumento documental legal de demonstração.
Ele constitui, para fins executivos, condição da acção executiva e a prova legal da existência do direito de crédito nas suas vertentes fáctico-jurídicas, assumindo, por isso, autonomia em relação à realidade que envolve.

4.
Atentemos agora no âmbito da impugnação do conteúdo do referido título executivo.
Estamos, pois, no caso vertente, perante uma acção executiva cujo título é uma letra de câmbio, em que a recorrida figura como sacadora e portadora e a recorrente e AA como sacados ou aceitantes.
É um título cambiário de natureza formal, que contém o mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada, o nome da pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga, a assinatura de quem a passa e a indicação da data em que e o lugar onde é passada (artigo 1º da LULL).
É um título de crédito à ordem, de natureza formal, pelo qual uma pessoa se compromete, para com outra, a pagar-lhe determinada importância, em certa data, é envolvido, sob a motivação de facilitar a sua circulação como tal e de salvaguardar os interesses de terceiros de boa-fé, das características da incorporação, da literalidade, da abstracção, da independência recíproca das obrigações nele assumidas e da autonomia do direito do portador.
Com efeito, o direito de crédito cambiário está consubstanciado no documento, o conteúdo da obrigação cambiária é o que ele revela, e é independente da respectiva causa debendi.
Dir-se-á que os princípios da literalidade e da abstracção são instrumentais em relação à independência do direito cambiário face à causa que esteve na origem da sua constituição.
Por via da relação jurídica cambiária decorrente da letra de câmbio que à execução serve de título executivo, está a recorrente, em princípio, juridicamente vinculada a pagar à recorrida a quantia exequenda, ou seja, a quantia de cerca de € 25 450.
Mas a plena relevância das mencionadas características da literalidade e abstracção depende de as letras entrarem em circulação, ou seja, de passarem à titularidade de terceiros, certo que a sua criação é originada por uma declaração unilateral de vontade negocial.
Por isso, nas relações cambiárias, importa distinguir entre as imediatas, que se estabelecem entre os sujeitos seus intervenientes directos, sem intermediação de outrem, como é o caso, por exemplo, do sacador e do aceitante, e as mediatas, em que o portador é estranho às relações extracartulares, o que ocorre quando as letras são endossadas a um terceiro, que, por via desse endosso, passa a integrar a cadeia de sujeitos cambiários.
Assim, no que concerne ao sacador e ao aceitante das letras de câmbio, o quadro é de relações imediatas.
Ora, a letra de câmbio em causa foi subscrita pela recorrida, como sacadora, e pela recorrente e AA na posição jurídica de aceitantes, pelo que a primeira e a segunda estão, na espécie, no plano das relações imediatas.
Em consequência, pode discutir-se, nesta fase declarativa de embargos de executado, a origem da constituição da obrigação jurídica cambiária, por via da análise do conteúdo da respectiva relação jurídica subjacente.

5.
Vejamos agora se a recorrente agiu ou não sob reserva mental ou a coacção.
O primeiro dos referidos vícios – a reserva mental – está previsto no artigo 244º do Código Civil.
Ela ocorre sempre que é emitida uma declaração contrária à vontade real do seu autor com o intuito de enganar o declaratário (nº 1).
Todavia, a validade da referida declaração não é prejudicada pela reserva mental, salvo se for conhecida do declaratário, caso em que a consequência é a da simulação (nº 2).
Assim, no caso de conhecimento pelo declaratário da divergência entre a vontade real e a vontade declarada pelo seu interlocutor, a consequência é a da nulidade do respectivo conteúdo declarativo (artigo 240º, nº 2, do Código Civil).
Fora disso, a motivação do declarante com vista a produzir a declaração não correspondente à sua vontade não afecta a validade da sua declaração, o que significa dever produzir os efeitos que lhe são próprios.

Na subsecção relativa à falta de vícios de vontade, refere-se à coacção moral o artigo 255º do Código Civil.
Considera feita sob coacção moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração (nº 1).
A referida ameaça pode respeitar à pessoa e à honra e fazenda do declarante ou de terceiro, mas não constitui coacção a ameaça do exercício normal de um direito nem o simples temor reverencial (nºs 2 e 3).
Assim, para a coacção só releva a ameaça ilícita, o que não ocorre, por exemplo, dada a respectiva licitude, a relativa ao exercício de um direito, ou o mero receio de desagradar à pessoa que se respeita ou de quem se depende a algum nível.
A consequência de se extorquir a declaração negocial por coacção, ainda que provenha de terceiro, é a sua anulabilidade, embora no caso de provir de terceiro se exija a gravidade do mal e o justificado receio da sua consumação (artigo 256º do Código Civil).
Os factos provados não revelam que a recorrente tenha assinado a letra de câmbio ou o outro documento particular, com o conteúdo acima mencionado, com o intuito de enganar a recorrida, nem sob alguma ameaça de um mal feita pelo representante da última.
Por isso, inexiste fundamento legal para a conclusão de que a recorrente subscreveu os mencionados documentos sob reserva mental ou coacção.

6.
Atentemos agora sobre se a recorrente assumiu ou não a dívida de outrem.
Expressa a lei que a transmissão a título singular de uma dívida é susceptível de ocorrer por contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor, ou entre o novo devedor e o credor, independentemente do consentimento do antigo devedor (artigo 595º, nº 1, do Código Civil).
Trata-se, pois, de uma situação em que um terceiro, designado por assuntor, se obriga perante o credor a realizar a prestação devida por outrem.
A referida ratificação é susceptível de operar na forma expressa ou tácita, neste caso, por exemplo, accionando o assuntor ou aceitando dele o pagamento (artigo 217º, nº 1, do Código Civil).
A questão de saber se estão ou não preenchidos os pressupostos do instituto da transmissão singular de dívidas depende de os factos revelarem, por um lado, um direito de crédito da recorrida em relação a um terceiro, e, por outro, a manifestação de vontade por parte da recorrente, no confronto de uma ou de outro, de assumir a obrigação de pagamento.
Sabe-se que a recorrida, através do seu agente CC, vendeu a DD e a EE dois veículos automóveis pelo valor global de 6 340 000$, e que eles lhe entregaram dois cheques, um com o valor inscrito de 2 590 000$ e o outro com o valor inscrito de 2 500 000$, sendo o diferencial entre o valor dos veículos e o dos cheques no montante de 1 250 000$.
Os referidos factos não revelam que o valor de 5 090 000$ inscrito nos cheques ou o aludido diferencial de 1 250 000$ não tenham sido pagos por DD e EE a CC, e, consequentemente, à recorrida.
Assim, não se pode concluir que DD e EE eram devedores no confronto da recorrida da totalidade ou de parte do preço dos mencionados veículos automóveis.
Ademais, os factos disponíveis não revelam que AA tenha celebrado com a recorrida, designadamente com o seu aludido agente, algum contrato que o vinculasse ao pagamento à mesma de alguma quantia em dinheiro.
Acresce que, conforme resulta de II 12, a recorrente não se obrigou perante a recorrida a pagar-lhe o valor das compras que lhe tenham sido feitas por terceiras pessoas.
Assim, não revelam os factos disponíveis alguma obrigação de pagamento monetário vinculadora de terceiros no confronto da recorrida, e, consequentemente, que a recorrente tivesse celebrado com a recorrida, ou com algum terceiro, algum contrato de assunção de dívida.
Temos, pois, que a recorrente não assumiu qualquer dívida de terceiro no confronto da recorrida.

7.
Vejamos agora se o título executivo em causa assenta ou não em obrigação pecuniária assumida pela recorrente.
Os cheques, um deles emitido por AA sobre uma conta de depósito da sua titularidade e da recorrente, e o outro por Empresa-D, de que aquela era gerente, foram entregues pelo primeiro a CC.
Os factos provados não revelam que a recorrida, por um lado, e AA, por outro, tenham celebrado entre si algum contrato de mútuo.
Afirmou-se no referido acórdão que a recorrente subscreveu a letra de câmbio e a declaração confessória conexa para salvaguardar interesses ponderosos, e que assumiu um compromisso que tem de respeitar até últimas consequências.
Certo é que a recorrente, por via da subscrição da letra de câmbio na posição de aceitante, se vinculou ao pagamento ao respectivo portador, na data do vencimento, do valor nela inscrito.
Não obstante, importa verificar se existe alguma relação jurídica substantiva desenvolvida entre a recorrida e a recorrente que suporte a obrigação exequenda tal como consta do título que suporta a execução.
A declaração feita pela recorrente no documento particular referido na segunda parte de II 10, em texto redigido pelo representante da recorrida, revela que a quantia a que se reportou não resultou de assunção de dívida de preço dos veículos automóveis que a última alienou, através de CC, a DD e EE.
Conforme se referiu na sentença proferida no tribunal da primeira instância, a exigência da recorrida, no confronto da recorrente e de AA, do aceite da letra de câmbio e da assinatura do documento mencionado na segunda parte de II 10, foram motivadas pela entrega dos cheques referidos sob II 2 a CC por AA.
Todavia, os factos provados não revelam a celebração de algum contrato entre CC e AA de que pudesse emergir alguma obrigação de pagamento pelo último da quantia que foi inscrita naqueles cheques.
Na realidade, ignora-se a que título é que AA entregou os mencionados cheques a CC – não directamente à recorrida - certo que se não provou o fundamento da explicação do primeiro feita à recorrente de que os havia emprestado ao último.
Além disso, os factos não revelam que a recorrente tivesse tido alguma participação, designadamente por concordância com AA, na entrega por este dos cheques mencionados sob II 2 a CC, vendedor comissionista no âmbito da recorrida.
A factualidade mencionada sob II 6 – ida da recorrente e de AA às instalações da recorrida sob a aflição de que o banco iria estragar o nome deles e precisarem urgentemente de creditarem a sua conta bancária no valor de 2 500 000$ - não revela, sem mais, que algo devessem à recorrida.
Ademais, o cheque com o valor inscrito de 2 500 000$ que foi proporcionado a AA para regularizar a sua conta de depósitos, não era da titularidade da recorrida, mas do seu administrador, pelo que, a existir o direito de crédito correspondente, ele inscrever-se-ia na esfera jurídica do último e não na da primeira.
Acresce que a recorrente logrou provar que não adquiriu à recorrida qualquer veículo automóvel e que se não obrigou a pagar o valor de compras feitas por terceiros, o que é particularmente significativo no caso vertente.
Assim, entre a recorrente e a recorrida não existiram relações comerciais ou de outra ordem que justificassem a subscrição pela primeira, no confronto da última da letra de câmbio ou do documento referido na segunda parte de II 10.
A recorrente logrou provar, cumprindo o respectivo ónus, inexistir idónea relação fundamental susceptível de servir de suporte à relação jurídica cambiária em causa ou à declaração confessória conexa.
Por isso, a conclusão é no sentido de que o título executivo em causa não assenta em relação jurídica substantiva de que derive a obrigação pecuniária integrante da relação jurídica cambiária que a recorrida fez valer em juízo.

8.
Atentemos, finalmente, na síntese da solução para o caso espécie, decorrente dos factos provados e da lei.
À oposição à execução em causa não são aplicáveis as normas do Código de Processo Civil decorrentes do Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março.
A fase declarativa dos embargos de executado, estruturalmente extrínseca à acção executiva, configura-se como contra-acção, tendente a obstar aos efeitos normais do título executivo, por via de impugnação e ou de excepção, em que são aplicáveis as regras gerais de distribuição do ónus de prova.
Como a letra de câmbio que serve de título à execução foi subscrita pela recorrida, como sacadora, e pela recorrente e outrem, na posição jurídica de aceitantes, está-se no plano das relações imediatas, e, consequentemente, pode discutir-se nos embargos de executado a causa da constituição da obrigação jurídica cambiária.
A recorrente não agiu sob reserva mental ou coacção nem assumiu perante a recorrida ou outrem a dívida deste perante aquela.
Procedem os embargos de executado porque a letra de câmbio - título executivo dado à execução - não assenta em relação jurídica subjacente idónea à constituição da relação jurídica cambiária por ela consubstanciada.

Procede, por isso, o recurso.
Vencida, é a recorrida responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV
Pelo exposto, revoga-se o acórdão recorrido, declara-se a procedência dos embargos de executado, e condena-se a recorrida no pagamento das custas respectivas, incluindo as relativas ao recurso de apelação.

Lisboa, 15 de Março de 2007.

Salvador da costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís