Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P3168
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARMÉNIO SOTTOMAYOR
Descritores: INSTRUÇÃO
ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
ASSISTENTE
REJEIÇÃO
INADMISSIBILIDADE LEGAL
PRINCÍPIO DA ECONOMIA E CELERIDADE PROCESSUAIS
Nº do Documento: SJ200903120031685
Data do Acordão: 03/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I - A instrução é uma fase processual destinada a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento.
II - A inadmissibilidade legal constitui uma das três formas legalmente previstas de rejeição do requerimento para abertura de instrução.
III -Um dos princípios que presidem às normas processuais é o da economia processual, entendida esta como a proibição da prática de actos inúteis, conforme estabelece o art. 137.º CPC, aplicável ao processo penal nos termos do art. 4.º do CPP, por o princípio que lhe serve de substrato se harmonizar em absoluto com o processo penal.
IV -Há afloramentos deste princípio em diversas normas do CPP, nomeadamente no art. 311.º, ao permitir ao juiz rejeitar a acusação manifestamente infundada, e no art. 420.º, que prevê a rejeição do recurso quando for manifesta a sua improcedência.
V - Dado o paralelismo entre a acusação e o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente, deve aquilatar-se da possibilidade de aplicação ao requerimento para abertura da instrução do disposto no art. 311.º, que considera manifestamente infundada a acusação: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as prova que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime.
VI -Se o requerimento para abertura de instrução requerida pelo assistente não contém a identificação do arguido, ainda que por simples remissão para o local no processo onde ela consta, a instrução será inexequível e constituirá uma fase processual sem objecto se o assistente deixar de narrar os factos e de indicar as disposições legais aplicáveis.
VII - De igual modo, se, pela simples análise do requerimento para abertura da instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se dever concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à aplicação duma pena, estaremos face a uma fase instrutória inútil, por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia.
VIII - No conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, haverá, assim, que incluir, além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de actos processuais em geral.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA apresentou na Procuradoria-Geral Distrital de Évora uma denúncia criminal contra a juiz de direito Drª BB, imputando-lhe a prática, na acção de processo ordinário nº 667/03.8TBGDL do Tribunal Judicial de Grândola, de actos que, segundo a queixosa, são susceptíveis de integrarem os crimes de denegação da justiça ou prevaricação e de abuso de poder, p. e p. pelos arts. 369º e 382º do Código Penal.
Posteriormente, a queixosa constituiu-se assistente nos autos.
O inquérito veio a ser arquivado com fundamento em que “a participação apresentada não tem, pelas razões expostas, suporte factual que preencha aqueles tipos de ilícitos penais, sendo patente a omissão de articulação de factos concretos susceptíveis de suportarem as incriminações por aqueles ilícitos, com destaque para o elemento de índole subjectiva dos crimes. Assim, do material probatório recolhido não resultam indícios de que o comportamento denunciado integre qualquer crime, nomeadamente aqueles. Por isso também não se realizam outras diligências por não se vislumbrar qualquer utilidade para a averiguação e esclarecimento dos factos. Por tudo o exposto, de harmonia com o disposto no art. 277° do Código de Processo Penal, determinamos o arquivamento dos autos.”
Notificada deste despacho, a assistente requereu, no Tribunal da Relação de Évora, a abertura de instrução.
Todavia, a realização da instrução foi indeferida com o fundamento de “inadmissibilidade legal”, previsto no nº 3 do art. 287º do Código de Processo Penal, conforme o seguinte segmento do despacho que se transcreve:
É com este último fundamento de "inadmissibilidade legal" que se rejeita o requerimento da assistente para abertura da instrução, atendendo a que do mesmo não consta uma descrição factual, com a menção ordenada e sequencial, que permita delimitar o campo sobre o qual irá incidir a instrução, e bem assim integradora das disposições legais que permitam a imputação de prática de um ou mais crimes à citada magistrada.
Verifica-se que do requerimento de abertura da instrução não consta sequer a totalidade dos factos necessários ao preenchimento do tipo dos crimes imputados, não constando todos os elementos subjectivos e objectivos do tipo dos já citados crimes.
A instrução não se destina à simples impugnação do despacho de arquivamento do M.ºPº . Para esse efeito o meio adequado é a reclamação hierárquica. No requerimento para abertura da instrução, o assistente tem de indicar os factos que considere indiciados ou que pretende vir a fazer indiciar. Tal requerimento equivale à acusação, definindo e limitando o objecto do processo a partir da sua apresentação. Não descrevendo a assistente os factos que pretende imputar, qualquer descrição que se venha a fazer numa eventual pronúncia redunda necessariamente numa alteração substancial do requerimento, estando ferida da nulidade cominada no art. 309 do C.P.P .. " (Ac. da ReI. de Coimbra de 24/11 /93, Col. Jur., ano XVIII, 5,61).
Seguindo esta jurisprudência e doutrina e atendendo ao fim da instrução constante do artigo 286° do referido Código e às exigências do artigo 287° n.º 2 e 3, conjugado com o artigo 283°, n.3 aI. b) do mesmo Código, evitando ainda a prática de actos inúteis atento a que nestas condições uma eventual pronúncia estaria ferida de nulidade. A entender-se de outro modo resultariam violados os princípios do contraditório e do acusatório.
Ora pelo que já atrás ficou exposto se retira que não se entende que exista no requerimento de abertura da instrução uma mera irregularidade ou algo a aperfeiçoar, nos termos do disposto no artigo 123° n. 2 do C.P.P., é que a inadmissibilidade da abertura da instrução no caso concreto advém desde logo da não descrição objectiva de todos os factos constitutivos dos tipos dos crimes imputados ao arguido, faltando ainda os elementos subjectivos do tipo do crime. Por outro lado e conforme acórdão para fixação de Jurisprudência do STJ n.º 7/05 (DR Iª Série de 4/11) " Não há convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287°, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido". Também assim o entendeu o Tribunal Constitucional ao não julgar inconstitucional o preceituado nos artigos 287° e 283° quando interpretados no sentido da não obrigatoriedade da formulação de um convite ao aperfeiçoamento.
Nesta conformidade, verifica-se que o requerimento para abertura de instrução formulado pela assistente materializa as razões da sua discordância face ao despacho de arquivamento, mas não contém a descrição factual que permita a imputação da prática dos crimes referidos à referida magistrada.
Essas omissões não podem ser supridas pelo tribunal em sede de instrução, mormente no âmbito da decisão instrutória de pronúncia, pois sempre redundariam numa alteração substancial dos factos constantes do requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente, proibida e cominada como nulidade pelo artigo 309º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Em face de quanto ficou exarado e considerando a falta dos requisitos legais que se deixaram expressos, o requerimento para abertura de instrução é nulo e, em consequência, legalmente inadmissível.
Pelo exposto, rejeito o requerimento para abertura de instrução apresentado pela assistente.
Inconformada a assistente recorreu ao Supremo Tribunal de Justiça, tendo sintetizado a sua argumentação nas conclusões que se passa a transcrever:
1º - A assistente requereu abertura de Instrução do despacho do MP que, junto do Tribunal da Relação de Évora, ordenou o arquivamento do inquérito respeitante ao processo crime instaurado a BB, em 7 de Março de 2007, a qual vem acusada dos crimes de Denegação da justiça ou prevaricação” e “Abuso de poder”, previstos e puníveis pelos arts. 3690 e 3820 do CP, solicitando simultaneamente a nulidade do inquérito, uma vez que, correndo este contra a ela, a mesma não foi constituída arguida, nem quando a participante se constitui em assistente e muito menos quando foi ouvida nos autos, sendo que, desta feita, a mesma foi testemunhar a seu favor, violando o disposto no art. 58º, bem assim o nº 4 do art. 68°, ambos do CPP, na redacção do D L nº 78/87/17/02.
2° - Sucede que, a despeito do afrontamento à lei e de, nos termos da al. b) do nº 2 do art. 119° do CPP, a falta da constituição de arguido ser, na altura cominada de nulidade, a verdade é que o Tribunal a quo, resolveu fechar os olhos a todas estas arbitrariedades e decidiu, após há muito transcorrido o prazo instrutório, julgar nulo o requerimento para a abertura de instrução, observando no 3º& de fls.. 247 que o "formulado pela assistente não se extrai um quadro factual que contenha a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação à arguida de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo. se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que deva ser aplicada."
3º - Decidindo que de tal "requerimento apenas consta matéria conclusiva perante a discordância da assistente com a matéria de facto apurada pela juiz ora denunciada, pela forma como esta foi apurada e conduzido o processo, que terminou com decisão que lhe foi desfavorável e a prejudica, acrescentando ainda que assim agiu com intenção de a prejudicar, embora referindo que nem conhece a denunciada, pretendendo através da instrução que seja a denunciada constituída arguida e através da audição da mesma se apurem as razões porque actuou dessa forma", Ora, sem embargo do devido respeito, por certo não acompanhamos a decisão recorrida, visto o Tribunal de Instrução, a nosso ver, ter identificado erradamente o requerimento da assistente, em virtude deste ser compaginável com o art. 287º e als. b) e c) do nº 3 do art. 283º, ambos do CPP, e do tipo de crime de prevaricação não faz parte que o juiz possui inimizade com a pessoa prejudicada pela sua decisão
4º - Razão pela qual o requerimento instrutório obedece às disposições substantivas que o tornam idóneo à prossecução dos objectivos definidos naqueles preceitos, sendo jurisprudência do STJ exarada no Acórdão de 27/2/02, no Proc. nº 3153/01-3. que: "o requerimento do assistente parar abertura de instrução, no caso de arquivamento do processo pelo MP, é que define e limita o respectivo objecto do processo, a partir da sua formulação, constituindo, substancialmente, uma acusação alternativa, Assim, e além do mais, deverá dele constar a descrição dos factos que fundamental a eventual aplicação de uma pena ao arguido e a indicação das disposições penais incriminatórias”, mas aquele requerimento vai mais longe e não só descreve os factos e a sua forma dolosa, como as circunstâncias de tempo e lugar, indicando as normas penais violadas, bem assim o modus faciendi, como se alcança de fls. 202 a 230, e sendo a acusada ouvida nos autos compreendeu toda a matéria acusatória, salientado que hoje voltaria a fazer o mesmo, patenteando inequivocamente compreensão dos delitos atribuídos
4º-Tanto mais que na base daquele requerimento, a juiz de instrução, a fls. 249, não só criticou a assistente por não haver recorrido da decisão judicial da acusada, como impugnou os crimes que lhe são imputados, bem assim decidiu não ser "suficiente para integrar os elementos dos tipos de crime imputados apenas a avaliação subjectiva da assistente da prova produzida ou uma diversa interpretação das normas aplicáveis que fundamentam o decidido no citado processo, capazes de só por si de integrar os elementos objectivos e subjectivos dos referidos crimes”, lembrando que não basta "a simples alusão de que agiu com intenção de prejudicar, suficiente para a caracterização do dolo".
5º - Daí que, resulte do texto decisório uma contradição insanável na fundamentação, a qual integra o vicio da al. b) do nº 2 do art 410º do CPP, em virtude do tribunal ter dado como provado ser o requerimento inidóneo para a abertura de instrução, e por outro lado, baseia-se nele para insurgir-se contra o tempo e modo da prática dos delitos cometidos pela participada, bem como alegando ainda que a assistente não logrou provar a motivação de dolo directo relativamente ao crime de abuso de poder, decidindo que a mesma agiu apenas no cumprimento do dever e que não se vislumbra "intenção específica ou sequer genérica de prejudicar ou de conscientemente decidir contra o direito", apesar "da decisão poder não ter sido favorável à requerente e das razões de discordância da mesma, verifica-se que a matéria constante do requerimento para a abertura de instrução, não integra a prática dos citados crimes". (Vide 1º e 2°& de f1s. 249 e 2° & in fine de fls.251).
6º - Por último, sempre se dirá a talhe de foice que, mesmo na perspectiva de saber-­se se a denunciada cometeu ou não os crimes de que vem acusada no requerimento instrutório, também por aqui, a nosso ver, escapa qualquer razão ao tribunal recorrido, porque ao dizer-se "que a matéria constante do requerimento para a abertura de instrução, não integra a prática dos citados crimes" que lhe são imputados, não restando dúvidas que tal decisão padece de erro notório sobre a apreciação da prova observada nos autos, o qual, por sua vez integra o vício previsto na al. c) do nº 2 do art. 410° do mesmo diploma,
7º - De facto, na base instrutória de fls. 59 questiona-se no item 7 o seguinte: A filha da A. AA recebe actualmente o vencimento de € 1.199,37, por se encontrar requisitada a secretariar um Vereador Municipal? E no quesito 8, pergunta-se ainda: Quando deixar de exercer esta função volta ao seu anterior posto de assistente administrativa passando a auferir o vencimento de 750,00 €'? ( Doc n° 1) Porém, a matéria dada como adquirida quanto a esta questão, o tribunal, fls. 146 respondeu: "Provado que integra o quadro de pessoal da autarquia com a categoria de assistente administrativa, o qual é actualmente remunerada com a quantia de 888,06 €, acrescido de 3,83 € por dia, a título de subsídio de alimentação", mas a fls.162, 2°& do documento nº7, referido à sentença, a acusada decidiu: "Nesta matéria provou-se que tem uma filha, a qual aufere o ordenado mensal de 1522,73 €, que paga do empréstimo para habitação 125,04 €, a qual tem uma filha a estudar em Beja no 4º ano (último, portanto) que paga de mensalidade 252,73€. A filha da A. alegou portanto, ter despesas fixas na ordem de 377 €''.
8º - Por seu turno, no documento nº 9 a fls.121 e verso, na investigação efectuada pela GNR a filha da assistente disse que a mãe "vive grande parte do tempo comigo (AA) ou então sou eu que me desloco a São Francisco da Serra e pernoitar com ela dado a sua casa ser um monte isolado e sem qualquer vizinho, salientando que a minha mãe tem dificuldades de locomoção e como tal tem extrema dificuldade de efectuar as suas tarefas diárias, ou seja, viver o seu dia a dia com normalidade pelo que necessita de acompanhamento diário motivado também por tomar muitos medicamentos é obrigatória a minha sua presença para que os tome convenientemente" ,contudo, a participada, enganando a realidade, afirma no último parágrafo de fls. 162 da sentença: "Acresce que a A . vive com a sua filha, conforme se pode apurar do cotejo da p.i. e procuração junta, com o doc. relativo ao empréstimo para a habitação da filha da A. e bem assim o lugar de falecimento de....... – São Francisco da Serra - residência declarada para o lSSS - doc.de fls.15, e bem assim as informações juntas aos autos pela GNR, o que na apreciação global da situação releva”.
9º - Como se vê, num e noutro caso, a prova produzida é documental, sendo que em nenhum daqueles casos os documentos foram impugnados quer na forma ou na substância, ou seja, jamais foi aduzida a sua falsidade, pelo que é jurisprudência pacifica do STJ que o "erro notório da apreciação da prova existe quando se dão por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica do homem médio, não poderiam ter verificado ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos (Vide Acórd, de 2 de Junho de 1999, proc .nº 354/99), por isso, não deixa de ser estranho que estando toda esta factualidade delituosa provada e referenciada nos autos, o MP e a Juiz de Instrução não tenham querido ver o que salta aos olhos e aplicar-lhe o direito, porque se em vez de uma juiz fosse um electricista a esquecer-se de ligar o fio terra da tomada ou o mecânico que, por descuido, não apertasse os parafusos da jante e daí adviessem consequências danosas, não sobravam pelourinhos para os castigar
Nestes termos e nos melhores de direito, deve revogar-se o douto despacho recorrido e substituir-se por outro que face à matéria provada:
a)-Ordene a devolução dos autos ao Tribunal a quo, ordenando-se a constituição de arguida e a sua consequente pronúncia pelos crimes acusados:
b )-Ou quando assim se não entenda e encontrando-se nos autos suficiente matéria acusatória, deve o Tribunal ditar a sua pronúncia, como é de JUSTIÇA

O Ministério Público no Tribunal da Relação de Évora, em resposta, sustentou que o recurso deve ser considerado manifestamente improcedente.
Remetidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público neste Tribunal pronunciou-se no sentido de que “não ocorrem razões para a rejeição do requerimento de abertura de instrução, por falta dos exigidos requisitos legais (art. 287º do Cód. Proc. Penal), justificando-se decisão de mérito que confirme o arquivamento”
Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do Código de Processo Penal, nada tendo dito a recorrente.
Os autos foram a vistos e vêm à conferência, para decisão.
A assistente AA propôs contra o Instituto de Solidariedade e Segurança Social uma acção destinada a reconhecer-lhe o direito às prestações por morte de CC, com quem viveu em união de facto. Para lhe ser reconhecido esse direito, a requerente teria de demonstrar que se encontra numa situação de carência efectiva de alimentos, não tendo familiar que lhos pudesse prestar. Finda a produção da prova, a juíza do processo, a denunciada Drª BB, mandou proceder a determinadas diligências “por se mostrar relevante para o apuramento da verdade material, e porque o Tribunal se não julga suficientemente esclarecido de forma a que a decisão de facto possa reflectir a verdade (que não apenas formal)”, conforme fez exarar no despacho de 13.02.2006. A acção veio a ser julgada improcedente e a aqui assistente não interpôs recurso, pelo que a decisão transitou. Veio, porém, agora apresentar uma denúncia criminal contra a referida magistrada judicial, imputando-lhe a prática dos crimes de denegação de justiça e de abuso de poder, denúncia que deu origem a um inquérito que foi arquivado com fundamento em que é “patente a omissão de articulação de factos concretos susceptíveis de suportarem as incriminações por aqueles ilícitos, com destaque para o elemento subjectivo dos crimes”. Foi requerida a abertura de instrução pela assistente AA, requerimento que foi indeferido com o fundamento em inadmissibilidade legal”. É patente que a assistente, com a instauração de procedimento criminal contra a juíza do processo cível e na mira de obter eventualmente a condenação da magistrada, visa interpor recurso de revisão da sentença absolutória, nos termos do art. 771º al. a) do Código de Processo Civil.

A instrução é uma fase processual destinada a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento.
O art. 287º, depois de referir, no nº 1, que a abertura de instrução é requerida pelo assistente relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação, explicita que “o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c).”
A respeito do o requerimento do assistente para abertura de instrução, refere o Prof. Germano Marques da Silva, que tal requerimento “consubstancia uma acusação que, nos mesmos termos que a acusação formal, condiciona e limita a actividade de investigação do juiz e a decisão instrutória” (op.cit, III, pág. 130). E assim também o tem entendido a jurisprudência, mormente a deste Supremo Tribunal, de que se aponta como mero exemplo o acórdão de 25-10-2006 – proc. 3526/06, que decidiu que “o requerimento para abertura da instrução requerida pelo assistente deve conter, para além do mais, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada (ex vi parte final do n.º 2 do art. 287.º e als. b) e c) do n.º 2 do art. 283.º do CPP), o que significa que, não sendo uma acusação em sentido processual-formal, deve constituir processualmente uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo, e que fundamente a aplicação aos arguidos de uma pena”.
No despacho recorrido, afirmou-se que “do mencionado requerimento apenas consta matéria conclusiva perante a discordância da assistente com a matéria de facto apurada pela juiz ora denunciada, pela forma como esta foi apurada e conduzido o processo, que terminou com decisão que lhe foi desfavorável e a prejudica acrescentando que agiu com intenção de a prejudicar, embora referindo que nem conhece a denunciada”. Esta constatação levou ao indeferimento da abertura de instrução, com fundamento em inadmissibilidade legal, uma das três únicas formas legalmente previstas de rejeição do requerimento para abertura de instrução, conforme estabelece o art. 287º nº 3 do Código de Processo Penal.

O conceito de “inadmissibilidade legal” tem sido objecto de larga elaboração, quer doutrinária, quer jurisprudencial.
Nas Jornadas de Direito Processual Penal “O Novo Código de Processo Penal”, organizadas em 1987 pelo Centro de Estudos Judiciários, o Conselheiro Souto Moura, na sua comunicação “Inquérito e Instrução”, depois de indicar casos de inadmissibilidade legal (nos processos especiais, a requerimento do Ministério Público, a pedido do arguido quando exorbitar dos factos da acusação, requerida pelo assistente se versar factos já contemplados na acusação do Ministério Público, falta da legitimidade para a requerer mesmo por parte de quem em princípio deteria tal legitimidade), apoda de inexequível “um requerimento de instrução (do assistente) sem factos, subsequente a um despacho de arquivamento”, o que, em sua opinião “libertaria o juiz de instrução de qualquer vinculação temática”. Acrescenta também relativamente à instrução requerida pelo assistente que a expressão legal “(factos) pelos quais o MºPº não tiver deduzido acusação” abrange para além dos factos nem sequer referidos na acusação, todos aqueles ali presentes de modo instrumental.
Os Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques (Código de Processo Penal – Anotado, II, 2000, pág. 163) depois de indicarem a instrução requerida no âmbito dum processo especial ou por quem não tenha legitimidade para tal como sendo casos de inadmissibilidade da instrução, sustentam que “se do próprio requerimento para abertura da instrução resultar falta de tipicidade da conduta, ausência de queixa, prescrição do procedimento ou inimputabilidade do arguido, etc, somos a entender que, mesmo assim, a instrução não poderá nem deverá ser desde logo recusada por inadmissibilidade, servindo, todavia, para analisar também essas questões.”
Já o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, III, pág. 134-135), considera que no conceito cabem realidades diversas, e após enunciar os casos em que não pode haver instrução, afirma: “o requerimento do assistente tem de conformar uma verdadeira acusação e, por isso, o requerimento não é admissível se dele resultar falta de tipicidade da conduta ou a falta de inimputabilidade do arguido, porque é o próprio procedimento que não pode prosseguir por falta dos pressupostos do objecto, de arguido. Faltando no processo o objecto ou o arguido o processo é inexistente. Se, porém, em lugar de inexistência ocorrer apenas a nulidade da acusação, nos termos do art. 283º, já não será caso de inadmissibilidade legal da instrução, tanto que a nulidade da acusação não é de conhecimento oficioso, tendo de ser arguida”.
Por sua vez, o Conselheiro Maia Gonçalves (Código de Processo Penal Anotado, pág. 629) refere, a respeito do nº 4 do art. 287º do Código de Processo Penal que a rejeição por extemporaneidade e por incompetência do juiz não se afigura passível de dúvidas relevantes, acrescentando: “A rejeição por inadmissibilidade legal da instrução inclui os casos em que aos factos não corresponde infracção criminal (falta de tipicidade), de haver obstáculo que impede o procedimento criminal e de haver obstáculo à abertura da instrução, v.g. ilegitimidade do requerente (caso do MP) ou inadmissibilidade legal da instrução (v.g. casos dos crimes particulares e de alguns processos especiais).
Também o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal, pág. 737) que, em nota 2 ao art. 286º, procede à enumeração dos casos de inadmissibilidade legal, inclui neles o requerimento do assistente que não contém a narração dos factos ou não indica as disposições legais violadas e bem assim o requerimento do assistente que contém factos que não constituem crime (artigo 311, n.º 3, al. c), por identidade de razão). Embora em nota ao artigo seguinte, citando o ac. da Rel de Lisboa, de 12-07-19956 (CJ, XX, 4, 140) refira que não constitui fundamento de indeferimento a insuficiência dos factos, suas consequências e seus autores.
O Procurador-Geral Adjunto Vinício Ribeiro (Código de Processo Penal – Notas e Comentários, pág. 590) refere, por seu turno, que “o não descrever factos, ou descrever factos que não constituam crime, não pode deixar de conduzir à mesma solução, isto é, à inadmissibilidade legal do RAI do assistente por falta de requisitos legais”.

Estes três últimos autores sustentam, pois, a existência de inadmissibilidade legal da instrução nos casos em que o requerimento do assistente contenha apenas factos que não constituam crime.
Um dos princípios que presidem às normas processuais é o da economia processual, entendida esta como a proibição da prática de actos inúteis, conforme estabelece o art. 137º do Código de Processo Civil. Trata-se, como acentua o Prof. José Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, I, pág. 240) duma norma que se impõe a todos, juiz, secretaria e partes, visando proibir os actos que apenas tenham o efeito de complicar o processo, impedindo-o de rapidamente chegar a seu termo.
É certo que o Código de Processo Penal não contém norma equivalente, mas tal não impede a aplicação daquele preceito nos termos do art. 4º do Código de Processo Penal, em virtude de o princípio que lhe serve de substrato se harmonizar em absoluto com o processo penal. De resto, há que reconhecer a existência de afloramentos do referido princípio em diversas normas do Código de Processo Penal, nomeadamente no art. 311º, ao permitir ao juiz rejeitar a acusação manifestamente infundada e no art. 420º que prevê a rejeição do recurso quando for manifesta a sua improcedência. Tanto num caso, como no outro, é evidente que, sendo manifestas a improcedência da acusação ou do recurso, fazer prosseguir o processo, abrindo a respectiva fase, sabendo-se de antemão que seria inevitável a absolvição do arguido ou a improcedência do recurso, conduziria, necessariamente, à prática de actos inúteis.

Conhecido o paralelismo existente entre a acusação e o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente na sequência dum despacho de arquivamento, conforme se reconheceu no acórdão deste Supremo Tribunal de 07-05-2008 – proc.4551/07 e estatuindo o nº 2 do art. 287º do Código de Processo Penal, que é aplicável ao requerimento do assistente para abertura de instrução o disposto no art. 283º nº 3 als. b) e c), norma que diz respeito à acusação, atentemos nas situações que determinam a manifesta falta de fundamento da acusação, com vista a aquilatar da possibilidade da sua aplicação ao requerimento para abertura da instrução.
De harmonia com o art. 311º nº 3, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as prova que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime.
É evidente que se o requerimento para abertura de instrução não contém a identificação do arguido, ainda que por simples remissão para o local no processo onde consta tal identificação, a instrução será inexequível. E constituirá uma fase processual sem objecto se o assistente que a requer deixar de narrar os factos e de indicar as disposições legais aplicáveis, elementos acerca dos quais o Prof. Germano Marques da Silva (op. cit,, pág. 145), refere: “insiste-se que, tratando-se doe requerimento do assistente, é imprescindível que do requerimento conste sempre a narração dos factos constitutivos do crime ou crimes e das disposições legais aplicáveis”.
A propósito da alínea d) do art. 311º nº 3, escreve o Prof. Germano Marques da Silva: “Também esta alínea era desnecessária, porque os factos narrados hão-de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e só a podem fundamentar se constituírem crime. Se os factos não constituírem crime verifica-se a inexistência do objecto do processo, tornando-o inexistente e consequentemente não pode prosseguir”. Pode, portanto, afirmar-se, fazendo uso das palavras do Conselheiro Maia Gonçalves (op. cit., pág. 667) que “acusação manifestamente infundada é aquela que, em face dos seus próprios elementos, não tem condições de viabilidade” Ora, se o juiz de instrução, apreciando o requerimento do assistente nos seus precisos termos, conclui que de modo algum o arguido poderá ser pronunciado, uma vez que os factos que aquele narra jamais constituirão crime, deverá rejeitar o requerimento do assistente. É que, num caso desses, o debate instrutório nenhuma utilidade poderia ter, nomeadamente, porque, tal como se decidiu no acórdão para fixação de jurisprudência nº 7/2005 (D.R. nº 212 – S-A de 4-11-2005) “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 28.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.
Também o Tribunal Constitucional afirma, no acórdão nº 385/2004, de 19 de Maio de 2004, que “a estrutura acusatória do processo penal …. Impõe que o objecto do processo seja fixado com rigor e precisão adequados em determinados momentos processuais, ente os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução”.
Quando assim suceder, quando pela simples análise do requerimento para abertura da instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se dever concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à aplicação duma pena, então estaremos face a uma fase instrutória inútil. Ou, conforme se refere no mencionado acórdão de fixação de jurisprudência, “uma instrução que peque por défice enunciativo de factos susceptíveis de conduzir à pronúncia do arguido titularia um acto inútil que a lei não poderia admitir (art.. 137º do CPP)”. O que significa que, a par de outros fundamentos da rejeição, que se reconduzem também a realidades de que deriva a inutilidade da instrução, se deva ter a instrução como legalmente inadmissível

Também a jurisprudência tem considerado que “não faz sentido procede-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento, sabendo-se antecipadamente que a decisão instrutória não poderá ser proferida nesse sentido” (ac. do STJ, de 22-10-2003 – proc. 2608/03-3), entendendo ser de “rejeitar, por inadmissibilidade legal «vista a analogia perfeita entre a acusação e a instrução», o requerimento de abertura e instrução apresentado pelo assistente no qual este se limita a um exame crítico das provas alcançadas em inquérito … e omite em absoluto a alegação de concretos e explícitos factos materiais praticados pelo arguido e do elemento subjectivo que lhe presidiu para cometimento do crime” (ac. de 22-03-2006 – proc. 357/05-3 e de 07-05-2008, proc. 4551/07-3) E, mais especificamente, o acórdão de 7-12-1005 – proc. 1008/05, que o aqui relator subscreveu como adjunto, onde foi decidido, com um voto de vencido, que “se o requerimento do assistente para abertura da instrução não narra factos susceptíveis de integrar a prática de qualquer crime não pode haver legalmente pronúncia (cf. art. 308.° do CPP), pois a instrução seria, então, um acto inútil, cuja prática a lei proíbe (arts. 137.º do CPC e 4.° do CPP), e como tal legalmente inadmissível”, sendo certo que “a inadmissibilidade legal da instrução é uma das causas de rejeição do requerimento para abertura da instrução, nos termos do n.º 3 do aludido art. 287°”.
Também os tribunais da Relação vem decidindo que a falta de indicação de factos que preencham os elementos típicos do crime produz uma situação de inadmissibilidade legal da instrução. Nesse sentido, cfr, entre outros, os acs. da Rel. de Lisboa de 03-10-2001 – p. 1293/00, de 18-03-2003 – p. 77635; de 30-03-2004 – p. 8701/03; de 30-05-2006 – p. 1111/06; da Rel. do Porto de 15-12-2004 – p. 3660/03; de 01-03-2006 – p. 5577/05; de 21-06-2003 – p. 1176/06; e da Rel. de Coimbra de 23-04-2008 – p. 988/05.8TAACN

Tudo quanto se deixou exposto permite concluir que a falta de indicação no requerimento para a abertura de instrução subscrito pelo assistente dos factos essenciais à imputação da prática de um crime a determinado agente tem como consequência necessária a inutilidade da fase processual de instrução, a qual, como é sabido, é constituída por diversos actos praticados pelo juiz de instrução, sendo um deles, obrigatoriamente, o debate instrutório. Ou seja, nos casos em que exista um notório demérito do requerimento de abertura de instrução, a realização desta fase constitui um acto processual manifestamente inútil por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia. Haverá, assim, em consequência, que incluir no conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de actos processuais em geral.

Situada a questão, haverá, agora, que atentar na narração dos factos tal como foi levada a efeito pela assistente, e ora recorrente, no seu requerimento para abertura de instrução, tendo em vista determinar se nos encontramos, ou não, perante uma situação de falta de indicação dos factos essenciais à imputação da prática do crime e consequentemente, se verifica uma situação de inadmissibilidade legal da instrução, conforme se decidiu no despacho recorrido.

Segundo a decisão recorrida, a instrução foi julgada inadmissível porque “do requerimento para abertura de instrução formulado pela assistente não se extrai um quadro factual que contenha a narração, ainda que sintéctica, dos factos que fundamentam a aplicação à arguida de um pena ou de uma medida de segurança”, uma vez que “do mencionado requerimento apenas consta matéria conclusiva perante a discordância da assistente com a matéria de facto apurada pela juiz ora denunciada”
O que naquela decisão se afirmou não foi, portanto, que a assistente não enunciou factos, aliás tidos por “matéria conclusiva”, mas antes que os factos ali descritos não servem de fundamento à aplicação de uma pena, ou dito de outro modo, que, no requerimento, não foram referidos factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime. Isso, não obstante a assistente imputar à denunciada a prática dos crimes de denegação da justiça e prevaricação e de abuso de poder., indicando as respectivas disposições legais.

Antes de entrarmos na apreciação da correcção do despacho recorrido, não podemos deixar de fazer alusão às inverdades que o requerimento de abertura de instrução contém. Assim sucede com o facto nº 3 do seguinte teor: “no dia seguinte, a acusada como titular do processo, "por solicitação verbal" decidiu ordenar as diligências que se dão por reproduzidas no doc. de fls. 80 e 81, sendo que de entre essas se conta um pedido à GNR de Grândola, para indagar se a assistente vive com a filha AA e qual o agregado familiar dela”. A “solicitação verbal” que a assistente pretende enfatizar, ao realçar graficamente a expressão fazendo uso de letra em itálico, dirige-se ao oficial de justiça para que os autos sejam feitos conclusos, isto é, sejam apresentados ao juiz para que ele possa exarar despacho, não correspondendo a qualquer pedido verbal dirigido à Guarda Nacional Republicana e a outras entidades para fornecerem determinadas informações ao tribunal. Pelo contrário, como a recorrente bem sabe já que instruiu a sua queixa com a reprodução desse despacho que considerou ser o doc. nº 3, trata-se dum despacho judicial com a característica de ser escrito, o qual se mostra plenamente justificado porque, como ali se afirmou, encerrada a discussão, “o Tribunal se não julga suficientemente esclarecido de forma que a decisão de facto possa reflectir a verdade (que não apenas formal)”.
E acrescenta a assistente nos pontos 7 a 9 do requerimento para abertura de instrução: - a interrupção da audiência não se verificou por nenhum dos motivos previstos na lei mas apenas por mero e simples capricho da juiz que se empenhou em violar todas as regras processuais, a fim de prejudicar a participante e de tal modo o fez que não se bastou ilegalmente interromper a audiência de julgamento, como em vez de a continuar no dia seguinte, antes a projectou para o dia 20 de Fevereiro, e mesmo assim adiou-a constantemente vindo a realizar-se a 20 de Março, isto é, quando estavam decorridos mais de dois meses após o seu inicio. De igual modo, foram postergados as disposições do art. 517° do CPC, os quais preconizam que: 1. Salvo disposição em contrário, as provas não serão admitidas nem produzidas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas. 2. Quanto às provas constituendas, a parte será notificada, quando não for revel, para todos os actos de preparação e produção da prova, e será admitida a intervir nesses actos nos termos da lei; relativamente às provas pré-constituídas, deve facultar-se à parte a impugnação, tanto da respectiva admissão como da sua força probatória. Nos presentes autos, a matéria carreada oficiosamente pela juiz participada, constitui prova constituenda ao arrepio da lei após a audiência de julgamento e apresentada contra a assistente, sendo certo que esta jamais foi ouvida para os actos da sua produção. Ora, no já referido despacho de 13 de Fevereiro de 2006, a juiz do processo, depois de ter invocado como fundamento o disposto no art. 653º nº 1 do Código de Processo Civil, solicitou oficiosamente as informações que julgou adequadas “para o apuramento da verdade material e porque o Tribunal se não julga suficientemente esclarecido de forma a que a decisão de facto possa reflectir a verdade (que não apenas a verdade material)”, e logo ordenou que “uma vez juntos os documentos ora solicitados, notifique as partes dos mesmos e apresente-me de imediato os autos” E a 6 de Março de 2006, exarou o seguinte despacho, depois de os autos lhe terem sido conclusos, de novo por solicitação verbal: “Compulsados os autos, verifico que designei data para a leitura do despacho decisório da Matéria de facto sem que os documentos juntos na sequência do Despacho de fls. 80-81 tenham sido notificados às partes, a fim de que estas, querendo, se pronunciem. Face ao exposto, dou sem efeito a diligência designada e em sua substituição designo o próximo dia 24 de Março, às 10 horas. Notifique, enviando cópia dos doc. de fls. 88 a 92, 97 a 109, e 118 a 121.” Verifica-se, assim, que não só foi dada oportunidade à autora da acção e agora assistente para se pronunciar acerca destes documentos, como se ficou a compreender claramente a razão por que a audiência para a leitura da decisão só ocorreu em 24 de Março de 2006, circunstância que a assistente bem conhecia, mas que omitiu na sua argumentação.

Conhecida a razão por que a decisão do processo só em 24 de Março de 2006 foi tornada pública, fica patente não ser possível, com base em tal facto, imputar à juíza denunciada a prática de um crime de denegação de justiça. Com efeito, segundo a definição legal do art. 369º do Código Penal, comete tal crime “o funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar acto no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 120 dias”. Trata-se de um crime doloso, em que estão excluídas as situações em que se verifique dolo eventual, conforme põe em relevo Medina de Seiça (Comentário Conimbricense do Código Penal, III, pág. 619): “exigindo a lei portuguesa que o funcionário actue «conscientemente», as situações recondutíveis à dolosidade eventual, isto é aquelas em que o agente representando a realização do facto como possível conforma-se com a sua realização, não se encontram abrangida pela norma incriminadora, o mesmo é dizer, não são puníveis”.
Sendo o crime de denegação de justiça um crime doloso, nada foi referido no sentido de demonstrar a intenção da denunciada, para além de apodar as razões da interrupção da audiência como “mero capricho da juiz”, sem curar de indicar factos materiais que objectivassem aquele qualificativo e infirmassem a razões expostas pela magistrada no deu despacho. A simples leitura dos documentos juntos com a participação e, portanto, apresentados como prova, mormente os despachos datados de 13 de Fevereiro e de 6 de Março, permite, pelo contrário, não só verificar os motivos que presidiram à realização das diligências – motivos que, como se disse, a assistente não logrou infirmar –, mas que permitem também concluir que a publicação da decisão dois meses depois da data da audiência se ficou a dever à efectivação dessas diligências e à necessidade de observância do princípio do contraditório.
Estabelecendo o art. 3º do Código de Processo Civil um afloramento desse princípio, (O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem), a juíza denunciada, contrariamente ao que pretensamente lhe é imputado, observou cuidadosamente este princípio, só tendo decidido, depois de os documentos terem sido dado a conhecer às partes, e destas se terem podido pronunciar, o que significa que a magistrada não decidiu contra direito, faltando, pois, outro elemento típico do crime de denegação de justiça.
Também quanto ao crime de abuso de poder, não foram enunciados factos que integrem o respectivo tipo legal. Segundo a definição legal contida no art. 382º do Código Penal, pratica este crime “o funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa” Ora, a verdade é que a juiz denunciada, no despacho de 12 de Fevereiro, justificou criteriosamente a razão que a levou a mandar fazer determinadas diligências depois da produção da prova em audiência. Falta, assim, quanto a este crime, a indicação de factos donde se extraia o elemento objectivo da infracção (violação dos deveres inerentes às suas funções). E, quanto ao elemento subjectivo (“intenção de causar prejuízo”), a assistente refere-se-lhe apenas nesses precisos termos, sem enunciar factos donde emirja a intenção danosa da magistrada ao ordenar a feitura das diligências destinadas a averiguar a verdade material.

Uma vez que os factos narrados no requerimento para abertura de instrução não integram os elementos materiais e subjectivos dos crimes de denegação de justiça e de abuso do poder, cuja prática a assistente imputa à arguida, não pode, por conseguinte, a arguida ser pronunciada pelos referidos crimes, motivo por que a realização da instrução se tornaria absolutamente inútil. Em consequência, o despacho de que vem interposto recurso, que decidiu, com base naquela circunstância, pela inadmissibilidade legal da instrução, não é merecedor de censura alguma.

Termos em que acordam no Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso interposto pela assistente AA.
Custas pelo recorrente, com 6 UC de taxa de justiça.

Lisboa, 12 de Março de 2009


Arménio Sottomayor (Relator)
Souto Moura