Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
104/14.2JBLSB-E.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE REVISÃO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 04/03/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I. O arguido, tal como o assistente (cf quanto a este o art. 70.º, n.º 1, do CPP e o Ac. STJ/FJ n.º 15/2016), não pode autorepresentar-se em processo penal, particularmente, para praticar atos que são de reserva do advogado.

II. O legislador no próprio art. 62.º do CPP, ao aí consagrar os direitos do defensor, para além de reconhecer o seu lugar, ao lado do arguido (título III), como sujeito do processo (livro I), está, também, a reafirmar o seu papel essencial na administração da justiça (conforme esta­belece o art. 208.º CRP), pois enquanto Advogado assegura a defesa efetiva do arguido, tendo em atenção os interesses deste.

III. Assim, o arguido (tal como os demais sujeitos processuais com legitimidade para interpor recurso de revisão – cf. no que aqui interessa o art. 450.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, do CPC) não pode auto-representar-se em recurso extraordinário de revisão por si subscrito, antes tem de estar devidamente representado por advogado (art. 64.º, n.º 1, al. e), do CPP).

IV. Ora, uma vez que o recurso extraordinário de revisão que o arguido apresentou nos autos não está subscrito pelo seu defensor, mais não resta senão rejeitá-lo por não cumprir uma das condições necessárias, o mesmo é dizer, por não cumprir um pressuposto processual legalmente exigido para que pudesse ser validamente admitido (arts. 420.º, n.º 1, al. b), 414.º, n.º 2, do CPP).

Decisão Texto Integral:
Proc. n.º 104/14.2JBLSB-E.S1

Recurso de Revisão

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

Relatório

No processo comum (tribunal coletivo) n.º 104/14.2JBLSB, do Juízo Criminal de..., ..., da comarca de ..., por acórdão de 22.10.2018, transitado em julgado, o arguido AA foi condenado:

- Pela prática de quatro crimes de roubo agravado, da previsão dos arts. 210.º, n.ºs 1 e 2, al. b), e 204.º, n.ºs 1, als. e) e h), e 2, als. a), f) e g), ambos do Código Penal, em quatro penas singulares de 6 anos e 6 meses de prisão;

- Pela prática de um crime de associação criminosa, da previsão do art. 299.º, n.º 1, do Código Penal, pena de 2 anos e 6 meses de prisão;

- Pela prática de seis crimes de furto qualificado, da previsão do art. 204.º, n.º 2, do Código Penal, em seis penas singulares de 2 anos e 6 meses de prisão;

- Pela prática de um crime de furto qualificado, da previsão do art. 204.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão;

- Pela prática de cinco crimes de falsificação agravada, da previsão do art. 256.º, n.ºs 1, als. a) e c), e 3 do Código Penal, em cinco penas de 1 ano de prisão;

- Pela prática de um crime de furto simples, da previsão do art. 203.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão;

- Pela prática de dois crimes de falsificação agravada, da previsão do art. 256.º, n.ºs 1, als. a) e c), e 3, do Código Penal, em duas penas de 1 ano e 6 meses de prisão;

- Pela prática de um crime de falsas declarações, da previsão do art. 348.º-A do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão;

- Pela prática de um crime de falsidade de declaração, da previsão do art. 359.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão;

- Pela prática de um crime de branqueamento de capitais, da previsão do art. 368.º-A do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão;

- Pela prática de um crime de detenção de arma proibida, da previsão do art. 86.º, n.º 1, al. c) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 3 anos de prisão; e,

- Em cúmulo jurídico, na pena única de 18 anos de prisão.

II. Em requerimento por si manuscrito e assinado, entrado em ........2023, o mesmo arguido/condenado AA, que também ali se identificou como BB, recluso no ..., por si, veio interpor recurso extraordinário de revisão do acórdão de ........2018, transitado em julgado, proferido no referido processo n.º 104/14.2JBLSB, nos termos do artigo 449.º, n.º 1, al. c) e d), do CPP e arts. 24.6 e 20.1 da Constituição da República Portuguesa, 4.2 do protocolo 7 da Convenção Europeia, invocando que a condenação pelo crime de falsidade de declaração, ocorrido aquando do seu interrogatório judicial como arguido em ........2016, é injusta porque não faltou à verdade relativamente à sua identificação, juntando documentos para demonstrar que respondeu com verdade sobre a sua identificação.

III. Na 1ª instância a Sr.ª juíza proferiu o seguinte despacho:

«Considerando que, notificada a defensora do arguido a mesma nada disse ou requereu e bem assim o disposto no art.º 450.º, n.º 1, al. c) do CPP, cumpra-se o disposto no art.º 452.º do CPP com o requerimento e documentos juntos pelo condenado e diligencie a secção pela junção aos mesmos de certidão do Acórdão proferido nestes autos (cfr. art.º 451.º, n.º 3 do CPP).

Após, notifique o M.P. e, decorrido que se mostre o prazo de resposta, remeta os autos ao STJ.

D.n.

Notifique o condenado do presente despacho.»

IV. Respondeu o Ministério Público, sustentando que deverá ser concedido provimento ao recurso extraordinário de revisão, determinando-se a realização de diligências com vista a apurar a autenticidade do assento de nascimento apresentado e do documento de identificação bem como à resenha de impressões digitais do arguido.

V. Neste Tribunal o Sr. PGA pronunciou-se no sentido da rejeição da revisão, por falta de pressuposto legal para a sua admissão, uma vez que (como é jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, que indicou), o requerimento do arguido não se encontra subscrito por advogado, como a lei determina (arts. 414.º, n.º 2, 420.º, n.º 1, al. b) e 64.º, n.º 1, al. e), do CPP).

VI. No exame preliminar a Relatora ordenou que fossem cumpridos os vistos legais, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

Fundamentação

VII. O recurso extraordinário de revisão, previsto nos artigos 449.º a 466.º CPP, é um meio processual (que se aplica às sentenças transitadas em julgado, bem como aos despachos que tiverem posto fim ao processo – art. 449.º, n.º 1 e n.º 2 do CPP – também transitados) que visa alcançar a possibilidade da reapreciação, através de novo julgamento, de decisão anterior (condenatória ou absolutória ou que ponha fim ao processo), desde que se verifiquem determinadas situações (art. 449.º, n.º 1, do CPP) que o legislador considerou deverem ser atendíveis e, por isso, nesses casos deu prevalência ao princípio da justiça sobre a regra geral da segurança do direito e da força do caso julgado (daí podendo dizer-se, com Germano Marques da Silva1, que do “trânsito em julgado da decisão a ordem jurídica considera em regra sanados os vícios que porventura nela existissem.”).

O art. 450.º, n.º 1, al. c), do CPP, atribui ao condenado ou ao seu defensor legitimidade para requerer a revisão, relativamente a sentença condenatória, o que significa, em relação ao arguido, que tal disposição legal tem de ser articulada com o estabelecido no art. 64.º, n.º 1, al. e), do CPP, segundo o qual “É obrigatória a assistência de defensor oficioso nos recursos ordinários ou extraordinários.”

Ou seja, o arguido, tal como o assistente (cf quanto a este o art. 70.º, n.º 1, do CPP e o Ac. STJ/FJ n.º 15/2016), não pode autorepresentar-se em processo penal, particularmente, para praticar atos que são de reserva do advogado.

Com efeito, no referido Ac. STJ/FJ n.º 15/2016, uniformizou-se jurisprudência no sentido de “nos termos do artigo 70.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o ofendido que seja advogado e pretenda constituir-se assistente, em processo penal, tem de estar representado nos autos por outro advogado”.

Assim, como se refere no ac. do STJ de 26.05.2021 (Nuno Gonçalves) - igualmente referenciado no ac. STJ, 23.06.2021 (Ana Barata de Brito) - com esse ac. de fixação de jurisprudência n.º 15/2016 reitera-se que “o exercício do direito ao recurso em processo penal pelo arguido, pelo assistente ou por qualquer interveniente ou pessoa que aí seja condenada a qualquer título, só pode efetivar-se através de advogado constituído ou nomeado defensor”, dando-se ainda nota de que o “Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, confrontado com a proibição legal da autorepresentação e a obrigatoriedade de constituição ou nomeação de defensor decidiu, no acórdão de 4 de abril de 2018, que não viola o artigo 6 §§ 1 e 3 c) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.”

De resto, o legislador no próprio art. 62.º do CPP, ao aí consagrar os direitos do defensor, para além de reconhecer o seu lugar, ao lado do arguido (título III), como sujeito do processo (livro I), está, também, a reafirmar o seu papel essencial na administração da justiça (conforme esta­belece o art. 208.º CRP), pois enquanto Advogado assegura a defesa efetiva do arguido, tendo em atenção os interesses deste.

Aliás, como diz Germano Marques da Silva2, “No âmbito da função defensiva, o defensor exerce a defesa técnico-jurídica. A defesa consiste na actividade destinada a fazer valer no processo os direitos subjectivos e outros interesses jurídicos do arguido. É uma actividade complexa e unitária que abrange a autodefesa pelo próprio arguido e a defesa técnica exer­cida pelo defensor. Deve anotar-se que o defensor do arguido não é defensor do crime, mas da Justiça e dos direitos e interesses jurídicos do arguido. (...) A actividade da defesa é a actuação processual que tem por fim favorecer o arguido.”

Ora, tudo isto evidencia que, tendo sido o requerimento acima referenciado, intitulado de “revisão”, manuscrito pelo próprio arguido, sem se fazer representar por defensor oficioso, não pode o mesmo ser admitido.

O arguido (tal como os demais sujeitos processuais com legitimidade para interpor recurso de revisão – cf. no que aqui interessa o art. 450.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, do CPC) não pode auto-representar-se, antes tem de estar devidamente representado por advogado (art. 64.º, n.º 1, al. e), do CPP).

Com efeito, é essa a jurisprudência praticamente uniforme deste Supremo Tribunal de Justiça, como se pode ver, entre outros, nos acórdãos de 27.09.2023 (Ernesto Vaz Pereira), de 8.06.2022 (Ana Brito), de 26.05.2021 (Nuno Gonçalves), de 29.03.2017 (Oliveira Mendes) e de 14.01.2015 (João Miguel), todos citados pelo Sr. PGA.

E, assim, porque o recurso extraordinário de revisão que o arguido apresentou nos autos não está subscrito pelo seu defensor, mais não resta senão rejeitá-lo por não cumprir uma das condições necessárias, o mesmo é dizer, por não cumprir um pressuposto processual legalmente exigido para que pudesse ser validamente admitido (arts. 420.º, n.º 1, al. b), 414.º, n.º 2, do CPP).

Dispositivo

Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso extraordinário de revisão do arguido, nos termos dos arts. 420.º, n.º 1, al. b), 414.º, n.º 2, do CPP, por não se mostrar subscrito por defensor (art. 64.º, n.º 1, al. e), do CPP).

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça individual em 4 (quatro) UC`s e sendo ainda condenado no pagamento da soma de 6 UC`s, nos termos do art. 420.º, n.º 3, do CPP.

Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo assinado pela própria, pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos e pelo Senhor Juiz Conselheiro Presidente desta Secção Criminal.

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Supremo Tribunal de Justiça, 03.04.2024

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Ana Barata Brito (Juíza Conselheira Adjunta)

José Luís Lopes da Mota (Juiz Conselheiro Adjunto)

Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro Presidente da Secção)

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1. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo: Lisboa, 1994, p. 359, acrescentando o seguinte: “Há, porém, certos casos em que o vício assume tal gravidade que faz com que a lei entenda ser insuportável a manutenção da decisão. O princípio da justiça exige que a verificação de determinadas circunstâncias anormais permita sacrificar a segurança e a intangibilidade do caso julgado exprime, quando dessas circunstâncias puder resultar um prejuízo maior do que aquele que resulta da preterição do caso julgado, o que é praticamente sensível no domínio penal em que as ficções de segurança dificilmente se acomodam ao sacrifício de valores morais essenciais.”

2. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. I, 4.º ed., Lisboa: Editorial Verbo, 2000, I, pp. 306 e ss.