Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
432/08.6 TASCR.L1.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: SOUTO DE MOURA
Descritores: RECURSO PENAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVEL
REPRESENTAÇÃO
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
SEGURO
CONTRATO DE MEDIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
RESPONSABILIDADE OBJECTIVA
CONTRATO DE COMISSÃO
CONTRATO DE AGÊNCIA
LACUNA
Data do Acordão: 03/31/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO O RECURSO
Área Temática:

DIREITO PROCESSUAL PENAL - SUJEITOS PROCESSUAIS / PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVEL - RECURSOS.
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / REPONSABILIDADE CIVIL.
DIREITO DOS SEGUROS - CONTRATO DE SEGURO / MEDIAÇÃO.
DIREITO COMERCIAL - CONTRATO DE AGÊNCIA.
Doutrina:
- A. Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Almedina, 2013, 393, 398 e ss..
- Almeida e Leitão, In "Estudos de Direito dos Seguros, 2008, 200.
- José Vasques, "Novo Regime Jurídico da Mediação de Seguros", Coimbra Editora, 2006, 82.
- Luís Poças, Estudos de Direito dos Seguros, 215.
- Pires de Lima/Antunes Varela, "Código Civil” Anotado, Coimbra Editora, 4.ª edição, Vol. I, 508.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º, N.º 2, 500.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 674.º, N.ºS 1 E 3.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 400.º, N.ºS 2 E 3, 410.º, 432.º, N.º1, AL. C), 434.º.
D.L. N.º 144/2006, DE 31-7.
D.L. N.º 178/86, DE 3-7: - ARTIGO 23.º, N.º1.
D.L. N.º 72/2008, DE 16-4: - ARTIGOS 30.º, N.º3, 46.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 18/12/2007, PROC. N.º 07A4305, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 1/4/2014, PROC. N.º 4739/03.0TVLSB.L2.S1, EM WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA DE 19/10/1995, DO PLENO DAS SECÇÕES CRIMINAIS, PROC. N.º 46580, 3.ª SECÇÃO, IN D.R. Iª SÉRIE – A, DE 28/12/2005.
Sumário :
I -Da factualidade provada resulta que as arguidas exerciam funções de mediadoras exclusivamente por conta da Companhia de Seguros X. Tinham ambas a qualidade de agente, sendo que uma delas tinha ainda a faculdade de proceder à cobrança. Só a Companhia podia emitir o contrato e o recibo das quantias recebidas, desenvolvendo-se o trabalho das mediadoras ao nível das simples propostas, sendo que as arguidas convenceram o lesado de que as propostas eram já o contrato definitivo, usando expedientes vários, e recebendo o dinheiro, fazendo-o seu. Nem as propostas, nem os montantes recebidos alguma vez deram entrada na Companhia. Nunca esta emitiu qualquer documento que concedesse poderes de representação às arguidas, designadamente para realizarem contratos de seguro. E de acordo com os contratos de mediação celebrados com as arguidas estas apenas podiam dar por realizados contratos de seguro em nome e por conta da Companhia de Seguros, se esta o autorizasse por escrito.
II -A actividade ilícita desenvolvida pelas arguidas é estranha a poderes de representação da seguradora, que esta nunca lhes concedeu. E a possibilidade de cobrança facultada à arguida Y traduz-se apenas num serviço que, como mediadora prestava à Companhia, ficando fiel depositária dos montantes recebidos até os entregar à Companhia de Seguros, por força do estipulado especificamente em acordo com esta. Por outro lado, a exclusividade acordada das duas arguidas, apenas significa que enquanto mediadoras se comprometeram por acordo, a não trabalhar com mais nenhuma companhia de seguros, em termos de intermediação, não implicando poderes de representação da seguradora.
III -A imputação à demandada seguradora de responsabilidade pelo risco só poderia assentar numa relação de comissão, nos termos do art. 500.º, do CC, e reclamaria a subordinação das arguidas a ordens ou instruções dadas pela Companhia quanto à actividade de mediação. À data da prática dos factos, a relevância da representação aparente estava prevista unicamente para o contrato de agência. Tal não se encontrava previsto em matéria de mediação de seguros sendo que inexiste qualquer lacuna da lei quanto a tal questão. Com efeito, a protecção de terceiro de boa-fé, ludibriado por mediadoras sem escrúpulos em crimes de burla, não pode ir ao ponto de fazer incorrer em responsabilidade civil a demandada Companhia de Seguros, por aplicação analógica da disposição pensada para o contrato de agência, que previa aí a eficácia da representação aparente.
Decisão Texto Integral:
AA, nascida em ...., com última residência conhecida em Lisboa, e a irmã BB, nascida a ..., local onde teve a última residência conhecida, casada e mediadora de seguros, ambas presentemente ausentes em parte incerta, foram julgadas em processo comum e com intervenção de tribunal coletivo, juntamente com a demandada "..., Companhia de Seguros S.A.", no então ... Juízo do Tribunal Judicial de ..., e condenadas em acórdão de 18/7/2014, na pena de 5 anos de prisão, cada uma, pela prática do crime de burla qualificada na forma continuada, p. e p. nos arts. 30º, nº 2, 79º, nº 1, 217º e 218º, nº 1 e 2, al. a) do CP.

Arguidas e demandada "..., Companhia de Seguros S.A.", foram ainda condenadas ao pagamento de indemnizações aos demandantes CC, DD e marido EE, FF, GG, HH, II, JJ, LL e MM. 

As arguidas e a demandada recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa, que por acórdão de 17/12/2014 negou provimento ao recurso das arguidas e concedeu provimento ao recurso da Companhia de Seguros "...". Procedeu à alteração da matéria de facto, por esta pretendida (cf. fls. 3072 v. e 3073), e absolveu-a de todos os pedidos cíveis contra si deduzidos.

Seguidamente, as arguidas interpuseram recurso para o STJ da decisão da Relação, arguindo logo, como questão prévia, a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia (fls. 3114). Os demandantes interpuseram, do mesmo passo, recurso quanto à parte cível (fls. 3125), por se não conformarem com a absolvição da Companhia de Seguros "...".

Foi então elaborado novo acórdão da Relação, de 6/5/2015, que abordou a questão da nulidade, arguida ao abrigo dos art.s 379º, nº 2, 414º, nº 4, e 419º, nº 3, al. c), todos do CPP, indeferindo-a. As arguidas interpuseram novo recurso (fls. 3168) daquele acórdão, o qual não foi admitido (fls. 3175) porque, circunscrito à parte penal, se confrontava com uma situação de dupla conforme (art. 400º, al. e) e f) do CPP). Reclamaram dessa não admissão de recurso para o Exmº Presidente do STJ e viram a reclamação ser indeferida.

No que toca ao recurso dos demandantes civis, foi admitido o recurso interposto pelo demandante HH, o único lesado que formulara um pedido superior à alçada da Relação. 

Como se viu, este ofendido havia obtido a condenação em primeira instância, não só das arguidas como também da Companhia de Seguros "...". Ficaram todas condenadas a pagar-lhe solidariamente a quantia de 70 000 euros, por danos materiais, e só as arguidas AA e BB (também solidariamente), o montante de 2 500 euros, por danos morais. Mas o acórdão recorrido absolveu a demandada "..., Companhia de Seguros S.A.", da responsabilidade pelo pagamento de quaisquer indemnizações aos ofendidos, incluindo portanto HH.  

Face ao exposto, apenas cumpre conhecer o recurso interposto para este STJ pelo demandante HH quanto ao pedido cível por si deduzido.

A – FACTOS

A matéria de facto que se fixou e que releva para o presente recurso de HH foi a que se segue, figurando em realce e entre parêntesis os factos ou segmentos eliminados pela Relação no acórdão ora recorrido.

"1. As arguidas AA e BB são irmãs, sendo que esta última é casada com NN.

2. Ambas residiram até à data da prática dos factos na cidade de ..., a primeira, no ...., e a segunda, no....
3. [Ambas as arguidas desempenhavam funções na Companhia de Seguros “OO” (entretanto denominada de ... Companhia de Seguros, S.A.), sendo que] a arguida BB desempenhava funções como mediadora de seguros, sem capacidade de cobrança, e a arguida AA como agente de seguros, com capacidade de cobrança.

 [4. Todo o seu trabalho era supervisionado pelo técnico comercial da Companhia de Seguros PP.]
 
 5. Em data não apurada e aproveitando-se das funções que desempenhavam [na referida companhia de seguros], as ora arguidas congeminaram um plano segundo o qual, [a coberto da companhia que representavam e] com vista a apropriarem-se de dinheiro de terceiros, convenceriam esses terceiros com quem mantinham uma relação de familiaridade ou uma relação próxima de confiança ou amizade, a adquirir produtos financeiros da Companhia de Seguros “OO”, com base numa falsa promessa de que, desse modo, obteriam um bónus em numerário dessa companhia por terem atingindo o objetivo imposto por esta ou taxas de juros elevadas sempre superiores a 5%.
 
6. As arguidas bem sabiam que a Companhia de Seguros “OO” não atribuía mais dinheiro em função da venda dos produtos financeiros por si efetuados e que não lhes era permitido renegociar as taxas de juro pois estas eram fixas e determinadas pela Companhia.

7. De igual modo sabiam que as propostas de seguro que entregavam aos clientes para aquisição de produtos financeiros da Companhia de Seguros “OO” não constituíam o contrato final, mas apenas uma mera proposta, cabendo à companhia de seguros emitir um recibo e o respetivo contrato.
*
Ofendida CC (…)
9. Convencida de que estava a subscrever apólices de capitalização na referida companhia, [dado que as arguidas representavam essa companhia], a queixosa entregou àquelas, nas datas abaixo assinaladas, as seguintes quantias em numerário: (…)
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Ofendidos DD e EE (…)
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Ofendido QQ  (…)
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Ofendido GG (…)
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Ofendida FF (…)
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Ofendido HH:

58. Em data não concretamente determinada, aproveitando-se da relação de familiaridade (a arguida BB era cunhada do seu filho), as arguidas BB e AA, agindo de comum acordo e em conjugação de esforços, abordaram o ofendido HH (marido da queixosa II) na sua residência, sita no ..., e, alegando que necessitavam de atingir o objetivo imposto pela Companhia de Seguros de venda de produtos financeiros no valor de 50.000,00€ e que lhes faltavam apenas 10.000,00€ para atingir esse objetivo, propuseram-lhe a aquisição de diversos produtos financeiros comercializados pela Companhia de Seguros OO, com a promessa de que auferiria uma taxa de juro elevada entre os 5% e os 9%.

59. Por depositar confiança nas arguidas e julgando que estava efetivamente a adquirir produtos financeiros da Companhia de Seguros “OO” e que, com isso, iria auferir vantagens patrimoniais, o queixoso aceitou adquirir tais produtos financeiros.

 60. Assim, em junho de 2005, e por saber que tinha recebido 25.000,00€ da venda de um terreno, a arguida BB, com o conhecimento da arguida AA, convenceu o queixoso a adquirir o produto financeiro “PPR/E”, por um período de cinco anos, tendo-lhe entregue a proposta junta aos autos a fls. 211 dos autos, já por si preenchida, fazendo crer que se tratava do contrato definitivo.

61. Após a assinatura de tal proposta, o queixoso HH entregou à arguida BB a quantia de 25.000,00€ em numerário.

62. Na posse de tal quantia, as arguidas BB e AA utilizaram-na em seu benefício pessoal, fazendo-a sua.

63. Tal proposta bem como o respetivo dinheiro nunca deram entrada na Companhia de Seguros.

64. Em Março de 2007 e por saber que o queixoso iria receber o capital e juros de uma aplicação financeira que havia efetuado em 1999 na companhia de seguros “OO” através do Banco ..., a arguida BB, com o conhecimento da arguida AA, argumentando que tinha objetivos a atingir impostos pela companhia de seguros e com promessa de que tal investimento lhe seria rentável atenta a taxa de juro indexada, convenceu o queixoso a investir novamente esse dinheiro, sendo que inclusive por o investimento ter sido feito na companhia para a qual trabalhava lhe trataria de todo o assunto.

65. Assim, a arguida BB, com o conhecimento da arguida AA, utilizando um impresso que já não estava em vigor na companhia de seguros desde 2002, convenceu o queixoso HH a assinar a proposta junta aos autos a fls. 223 a 226 dos autos, fazendo-lhe crer de que se tratava do contrato definitivo.

66. Após a assinatura de tal proposta, o queixoso entregou-lhe o cheque n.º ... da Caixa Geral de Depósitos emitido pela companhia de seguros, tendo a arguida BB o depositado em 16 de março de 2007 na conta bancária n.º ..., titulada pelo seu marido NN.

67. Para dar credibilidade à sua atuação, a arguida entregou-lhe a proposta com um carimbo da data de entrada na companhia de seguros, com a data de 03.09.04, e a quantia de 525,70€ em numerário, que lhe havia sido entregue pela companhia de seguros através do cheque com o n.º ....

68. Bem como e a fim de o convencer da veracidade do por si alegado entregou-lhe, em data não determinada, uma carta por si forjada, com o timbre da Companhia de Seguros “OO” e a data de 3 de março de 2008.

69. Na posse de tal quantia, as arguida sBB e AA utilizaram-na em seu benefício pessoal, fazendo-a sua.

70. Tal proposta bem como o respetivo dinheiro nunca deram entrada na Companhia de Seguros.

71. Em 3 de julho de 2007, a arguida BB, com o conhecimento da arguida AA, argumentando que tinha objetivos a atingir impostos pela Companhia de Seguros e com promessa de que tal subscrição lhe seria rentável atenta a taxa de juro indexada, convenceu o queixoso a adquirir o produto financeiro “PPR Ganha +” .

72. Assim, a arguida BB, com o conhecimento da arguida AA, convenceu o queixoso HH a assinar a proposta junta aos autos a fls. 213 dos autos, fazendo-lhe crer de que se tratava do contrato definitivo.

73. Após a assinatura de tal proposta, o queixoso HH entregou à arguida BB a quantia de 5.000,00€ em numerário que detinha no interior da sua residência.

74. Na posse de tal quantia, as arguidas BB e AA utilizaram-na em seu benefício pessoal, fazendo-a sua.

75. Tal proposta bem como o respetivo dinheiro nunca deram entrada na companhia de seguros.

76. Em Julho de 2008, a arguida BB, com o conhecimento da arguida AA, argumentando novamente que tinha objetivos a atingir impostos pela Companhia de Seguros e com promessa de que tal subscrição lhe seria rentável atenta a taxa de juro indexada, convenceu o queixoso a adquirir o produto financeiro “Reforma Plena”.

77. A arguida bem sabia que já não era possível a subscrição de tal produto pois este apenas esteve em vigor entre 01.04.2000 e 31.08.2006 e o impresso utilizado apenas foi utilizado pela companhia até ao ano de 2006.

78. Assim, a arguida BB, com o conhecimento da arguida AA, convenceu o queixoso HH a assinar essa proposta junta aos autos a fls. 227 dos autos.

79. Após a assinatura de tal proposta, o queixoso HH levantou em 18.07.2008 a quantia de 10.000,00€ e, conjuntamente com 2.000,00€ que detinha na sua residência e 3.000,00€ que pediu emprestados a uma vizinha, entregou à arguida a quantia global de 15.000,00€.
80. Na posse de tal quantia, as arguidas BB e AA utilizaram-na em seu benefício pessoal, fazendo-a sua.

81. Tal proposta bem como o respetivo dinheiro nunca deram entrada na Companhia de Seguros.

82. O queixoso apenas subscreveu na OO o produto “PoupInveste”, com a taxa de juro de 4%, vencido em 05.02.2007.

83. O queixoso HH sofreu um prejuízo patrimonial no valor total de 70.000€ (setenta mil euros).
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Ofendida II (…)
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Ofendida JJ (…)
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Ofendido LL (…)
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Ofendida MM (…)
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Ofendido RR (…)
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132. As arguidas exerciam, à data da prática dos factos, funções quer na empresa “...” quer na Companhia de Seguros “OO”, auferindo a título de vencimento ilíquido: na empresa “...”: a arguida BB, em 2007, a quantia de 4.253,45€ e, em 2008, a quantia de 8.303,80€; a arguida AA, em 2007, a quantia de 4.494,75€ e, em 2008, a quantia de 7.999,34€; na Seguradora “OO”: a arguida BB, em 2005, a quantia de 7.516,86€; em 2006, a quantia 3.640,60€; em 2007, a quantia de 3.294,55€; e, em 2008, a quantia de 2.112,70€; a arguida AA, em 2005, a quantia de 5.543,41€; em 2006, a quantia de 342,94€; em 2007, a quantia de 1607,91€; e, em 2008, a quantia de 761,65€.

133. Ao agirem da forma descrita e de comum acordo e em conjugação de esforços, as arguidas agiram livre e conscientemente com o propósito concretizado de obter para si, como efetivamente obtiveram, as referidas quantias monetárias, tendo-lhes dado o destino que bem quiseram e entenderam.

134. Conseguiram tal desiderato, através da atuação supra descrita, enganando os queixosos, valendo-se das funções profissionais que exerciam por conta e ao serviço da Companhia de Seguros “OO” como mediadoras e agentes de seguros, induzindo estes em erro com promessas de vantagens patrimoniais, querendo causar com tais condutas prejuízo àqueles.

135. As arguidas sabiam que, com tal atuação, causavam aos queixosos prejuízos patrimoniais, resultados estes que previram e quiseram, pois sabiam que, com base na relação de confiança e de familiaridade, aqueles aceitariam adquirir tais produtos financeiros com base na errónea convicção de que elas atuavam ao serviço da seguradora que representavam e que dai obteriam vantagens patrimoniais.

136. As arguidas atuaram sempre no quadro de uma única solicitação externa, que as levaram a prosseguir a sua conduta durante vários meses e, nalguns casos, anos, com base numa suposta situação de impunidade, por falta de fiscalização e promessa de que só ao fim de um determinado número de anos, normalmente cinco anos, é que iriam receber tais vantagens.

137. As arguidas não têm antecedentes criminais.

138. As arguidas encontram-se a residir no Reino Unido.
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Dos pedidos de indemnização civil
139. Em consequência do acima referido, os demandantes JJ, LL, MM, HH e II ficaram aborrecidos e humilhados por pessoas em quem depositavam confiança e andam nervosos e preocupados com a situação, pois as quantias que entregaram às arguidas correspondiam ao valor das suas economias de anos de trabalho, que assim deixaram de poder contar com esse dinheiro. (…)
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Das contestações aos pedidos de indemnização, apresentadas pela ... Companhia de Seguros, S.A.
150. A 02.07.2007, a arguida AA celebrou com a ... (à data designada por OO) um contrato de mediação de seguros, nos termos do qual se obrigava a prestar, a favor da demandada, a atividade de mediação de seguros no território nacional, enquanto agente de seguros em regime de exclusividade, no ramo NÃO VIDA, para o qual estava inscrita como mediadora no ISP com o n.º ....

151. A 02.07.2007, a arguida BB celebrou com a ... (à data designada porOO) um contrato de mediação de seguros, nos termos do qual se obrigava a prestar, a favor da demandada, a atividade de mediação de seguros no território nacional, enquanto agente de seguros em regime de exclusividade, no ramo NÃO VIDA e VIDA, para o qual estava inscrita como mediadora no ISP com o n.º ....

152. Nos termos desses contratos, as arguidas apenas poderiam dar como celebrados contratos de seguro, em nome e por conta da demandada, quando esta o autorizasse por escrito, o que nunca aconteceu.

153. Os poderes de cobrança conferidos à arguida AA foram-lhe retirados, a 29.07.2008, com efeitos imediatos.

154. Por cartas datadas de 22 de dezembro de 2008, a ... rescindiu os contratos celebrados com as arguidas, alegando justa causa.

155. Nunca foi emitido pela demandada seguradora qualquer instrumento de poderes de representação da demandada, nomeadamente para celebrar contratos de seguro, os quais, nos casos concretos destas mediadoras, sempre careceram de submissão das respetivas propostas à apreciação da demandada, para sua eventual aceitação.

156. A demandada disponibiliza informaticamente aos seus mediadores os modelos das propostas para celebração de contratos relativos aos produtos financeiros alegadamente subscritos.

157. Esses mesmos impressos podem ser obtidos por qualquer cidadão junto das agências de clientes da demandada.

158. A arguida AA foi beneficiária, na qualidade de segurada, do seguro de grupo titulado pela apólice n.º RC22704987, com a qual a demandada ... (à data ainda OO) segurou a responsabilidade civil profissional da arguida, enquanto mediadora, sendo que tal apólice constituía uma oferta da demandada aos seus mediadores, vigente entre 1 de janeiro de 2007 e 22 de dezembro de 2008.
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Prova resultante de documentos juntos ao processo com interesse para os pedidos de indemnização:

159. A arguida BB foi mediadora de produtos de todos os demandantes civis relativamente a produtos da ..., Companhia de Seguros, S.A..

160. A arguida AA foi mediadora de produtos dos demandantes civis MM e QQ relativamente a produtos da ..., Companhia de Seguros, S.A..

161. Por documento escrito, intitulado de contrato de mediação de seguros de agente provisório exclusivo, datado de 7 de março de 2003, subscrito pela OO, Companhia de Seguros, S.A. e BB, foi declarado por ambas as partes que pelo presente contrato esta obriga-se a prestar a favor daquela o resultado da sua atividade de mediação de seguros, no âmbito dos Ramos Vida e não VIDA e/ou operações para as quais o Instituto de Seguros tenha concedido a respetiva autorização (…), dando-se aqui como reproduzido o restante teor – fls. 2645 a 2649 dos autos.

162. Por documento escrito, intitulado de contrato de mediação de seguros de agente provisório exclusivo, datado de 7 de dezembro de 2004, subscrito pela Império Bonança, Companhia de Seguros, S.A. e AA , foi declarado por ambas as partes que pelo presente contrato esta obriga-se a prestar a favor daquela o resultado da sua atividade de mediação de seguros, no âmbito dos Ramos Vida e não VIDA e/ou operações para as quais o Instituto de Seguros tenha concedido a respetiva autorização (…), dando-se aqui como reproduzido o restante teor – fls. 2648 a 2652 dos autos."

 

B – RECURSO

São estas as conclusões da motivação do recurso do demandante HH:

"Recurso de matéria de facto.

Os factos redigidos nos pontos 3, 4, 5, 9, 132, 134, da matéria de facto, não devem constar, nos termos conforme decide o Tribunal da Relação, dado que as mediadoras arguidas desempenhavam funções na seguradora, o que não contraria a realidade, nem o estatuto legal aplicável a mediação de seguros.

 

Recurso de matéria de Direito

1- A vinculação da seguradora pela representação aparente vem admitida pela lei, quer no domínio comercial quer pela lei da mediação de seguros, D.L. 144/2006, de 31 de julho;

2- O artigo 23° n°1 do Dl. 178/86, é de aplicação à mediação de seguros, porque a ...- companhia de seguros, deu à mediadora AA, poderes de cobrança aos demandantes;

3- A seguradora criou a aparência de representação que fez o demandante acreditar haver poderes representativos a favor das mediadoras.

4- O contrato de seguros de responsabilidade em que a mediadora AA figura como segurada, incluí todos os danos que possa causar.

Termos em que deve dar-se provimento ao presente recurso, anulando-se a decisão recorrida e condenando-se a demandada ...-Companhia de Seguros SA, nos pedidos civis deduzidos pelos demandantes."

A demandada "..., Companhia de Seguros S.A." contra-alegou e concluiu:

" Recurso de Direito

1. O mediador de seguros é um profissional independente e autónomo, não estando sujeito a fiscalização ou supervisão da seguradora;

2. As mediadoras arguidas não se encontravam, ao tempo da prática dos factos a que se reportam os autos debaixo de qualquer supervisão da seguradora nem legalmente deviam estar;

3. Os mediadores de seguros não têm poderes legais de representação da seguradora, a não ser que esta os outorgue nos termos gerais;

4. À ausência de poderes legais de representação junta-se a falta de procuração outorgada por esta seguradora a favor das agentes de seguros ora arguidas, não deixando margem para qualquer dúvida que estas não tinham poderes para actuar em nome da seguradora e representá-la junto de terceiros (os ofendidos) na celebração de contratos, qualquer que fosse a natureza destes;

5. De acordo com o regime geral da representação voluntária, não havendo a seguradora outorgado poderes representativos às mediadoras arguidas, os contratos celebrados em seu nome com os ofendidos - todos eles - não são eficazes quanto a si, não a vinculando a nenhum dos seus efeitos jurídicos;

6. A seguradora não responde pelos actos dos mediadores de seguros, que são profissionais livres e independentes, seja qual for o regime considerado, responsabilidade civil subjectiva ou objectiva, incluindo a responsabilidade como comitente;

7. Uma vinculação desta seguradora pela "representação aparente" não vem admitida pela lei portuguesa da mediação de seguros;

                 

8. A aparência jurídica não constitui fonte de representação voluntária em Portugal, nem no domínio do Direito Comercial, que não funda nenhum regime especial (ou excepcional) nesta matéria;

9. O art. 23º, nº 1 do DL n.° 178/86 não pode ser transposto por analogia para a mediação de seguros, porquanto constitui uma norma excepcional, insusceptível de aplicação analógica, sob pena de violação da lei;

10. Por outro lado, a extensão analógica do art. 23º, nº 1 do DL nº 178/86 supõe que se considere haver uma lacuna no regime de mediação de seguros em matéria de representação voluntária;

11. Essa lacuna, pura e simplesmente, não existe;

12. Ainda que existisse, porém, falta a semelhança entre o mediador de seguros e o agente para justificara analogia;

13. De resto, mesmo que o Direito português admitisse a representação aparente para o mediador de seguros, no caso concreto dos autos não se verificam nem os requisitos gerais da figura segundo o art. 23º, nº 1 do DL nº 178/86, nem os específicos, quer da representação tolerada quer da representação aparente;

14. A seguradora nada fez para criar a aparência de representação que fez os ofendidos acreditar haver poderes representativos a favor das mediadoras arguidas;

15. Em síntese, dado o regime português da representação voluntária, a recorrente nunca poderia ter sido condenada nos pedidos civis, porque os contratos celebrados em seu nome pelas mediadoras arguidas são para si ineficazes;

16. A responsabilidade civil respeita apenas à relação entre as arguidas e os ofendidos;

 

Termos em que o presente recurso deve ser declarado improcedente, mantendo-se o acórdão recorrido."

Colhidos os vistos os autos foram levados à conferência.

C – APRECIAÇÃO

1. O recorrente começa por recorrer de facto, invocando "erro notório na apreciação da prova" (§§ 1 a 15 da sua motivação, fls. 3126 a 3130, e conclusão 1ª).

De acordo com o art. 400º, nº 3, do CPP, "Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil".

Trata-se de disposição introduzida pela Lei 48/2007, de 29 de agosto, que introduziu uma clara quebra no princípio da adesão do pedido de indemnização cível ao processo penal, com o propósito explícito de equiparação de todos os recorrentes, em matéria cível, quer o sejam no processo penal ou fora dele, como bem resulta do constante da Proposta de Lei 109/X.

Interessa então que a equiparação se traduza no respeito pelas regras que regulam a recorribilidade em matéria cível, atento o valor do pedido e as alçadas, de acordo com o nº 2 do art. 400º do CPP, bem como a disciplina que circunscreve a competência do STJ em recurso de revista.

Assim, importa ter em conta que o art. 674º do CPC, ao tratar do fundamento da revista, estabelece no seu nº 1 qual pode ser esse fundamento - violação da lei substantiva, violação ou errada interpretação da lei adjetiva e conhecimento das nulidades dos art.s 615º e 666º do CPC – ao mesmo tempo que no seu nº 3 determina: "O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova."

Aliás, a vocação do STJ para conhecer só de direito, também se traduz, em processo penal, no disposto no art. 434º do CPP. O conhecimento de recurso em matéria de facto, interposto de decisão final do tribunal coletivo, é só da competência do Tribunal da Relação, mesmo tratando-se da mera invocação dos vícios do artº 410º do CPP.

Quando o artº 434º do CPP nos diz que o recurso para o STJ visa exclusivamente matéria de direito, “sem prejuízo do disposto nos nºs 2 e 3, do artº 410º”, não pretende, sem mais, com esta afirmação, que o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça possa visar sempre a invocação dos vícios previstos neste artigo. Pretende simplesmente admitir o conhecimento dos vícios mencionados pelo STJ, oficiosamente, mesmo não se tratando de matéria de direito.

O âmbito dos poderes de cognição do STJ é-nos revelado ainda, a este propósito, pela al. c), do nº 1, do artº 432º, do CPP, que restringe o conhecimento do STJ a matéria de direito. 

Claro que ao pronunciar-se de direito, nos recursos que para si se interponham, o STJ tem que dispor de uma base factual escorreita, no sentido de se apresentar, expurgada de eventuais insuficiências, erros de apreciação ou contradições que se revelem ostensivos. Ao ter que decidir de direito, o STJ tem que partir de uma realidade factual sustentada, verosímil e coerente, tanto quanto o revela a decisão recorrida.

Por isso conhece dos vícios aludidos por sua iniciativa se para tanto encontrar motivo. Aliás, tem mesmo de os conhecer, nos termos do acórdão para fixação de jurisprudência de 19/10/1995, do Pleno das Secções Criminais deste S T J (Pº 46580-3ª, in D.R. Iª série – A, de 28/12/2005).

Serve para dizer que se não conhecerá do recurso interposto pelo demandante HH na parte atinente a matéria de facto.

2. Em matéria de direito, a questão que é colocada neste recurso cifra-se em saber se a demandada "..., Companhia de Seguros S.A." deve ser responsabilizada pelo pagamento da indemnização que é devida àquele ofendido. Este defende que sim, por ter ocorrido uma representação aparente, que vincula a Companhia de Seguros demandada, face ao disposto no DL 144/2006 de 31 de julho e art. 23º, nº 1 do DL 178/86. Invoca no essencial, de acordo com as conclusões da sua motivação, que:

· O referido DL 144/2006 admite a figura da representação aparente.

· O art. 23º, nº 1 do DL 178/86 é de aplicar, porque a Companhia de Seguros demandada deu à mediadora AA poderes de cobrança.

· A seguradora criou a aparência de representação e por isso o lesado HH acreditou que as mediadoras tinham poderes de representação.

· A arguida AA tem a seu favor um contrato de seguro celebrado com a “...” que inclui todos os danos que aquela causar no exercício da sua atividade profissional de mediadora.

A decisão recorrida, que como se viu ilibou a Companhia de Seguros de responsabilidade, fundou-se, em síntese, nos seguintes argumentos:

a) Apesar de a decisão de 1ª instância se ter baseado na chamada "teoria da representação tolerada ou aparente", ao tempo da prática dos factos esta não estava prevista na lei para o "mediador de seguros", nem o art. 23º, nº 1, do DL 178/86, que regula o contrato de agência, pode ser aplicado analogicamente ao caso.

b) O mediador de seguros é um profissional independente obrigado a manter uma posição de equidistância entre o tomador e a seguradora. É nomeado e pode ser removido pelo tomador, cabendo-lhe o cumprimento de deveres tanto para com a seguradora como para com o tomador. A sua atividade desdobra-se numa "propedêutica de negociação" entre as partes que desembocará (ou não) na celebração do contrato de seguro, ou num apoio (prestação de assistência às partes) na execução de contrato de seguro já celebrado, designadamente em caso de acidente. 

O mediador é independente e autónomo, enquanto profissional livre que exerce a atividade "por sua conta e risco", sendo remunerado através de comissões pagas pela seguradora, consoante o trabalho feito. Não está juridicamente subordinado à seguradora que sobre ele não tem poderes de fiscalização ou supervisão. Não exerce uma atividade seguradora propriamente dita que envolva a tomada de riscos em nome próprio.

c) Embora a lei fale na respetiva atuação em nome e por conta da seguradora, o "mediador ligado" ou o "agente de seguros ", não representa a seguradora, não é um seu mandatário e a atividade por si exercida não se analisa na prática de atos jurídicos.

O mediador, para levar a cabo a sua atividade, tem que celebrar um contrato de mediação com uma seguradora ou com outro mediador, após o que poderá fazer mediação para estes, e disso mesmo tem que avisar o candidato a tomador. Este é o sentido da expressão "atuação em nome e por conta da seguradora", cuja função é a de delimitar o campo de atuação do mediador e nada mais. Por isso a Relação eliminou dos factos 3, 132 e 134 a menção segundo a qual as arguidas desempenhavam funções na Companhia de Seguros "OO".

O mediador atua sempre em nome próprio ao promover a celebração de contratos entre o tomador e a seguradora, está proibido por lei de celebrar contratos em nome desta, salvo se houver poderes de representação expressamente outorgados para o efeito, o que no caso nunca aconteceu (facto provado 152).

d) O contrato de mediação de seguros não se integra na categoria de contratos de distribuição, porque o mediador tem uma posição de equidistância em relação às partes devendo ser imparcial. Na lógica da distribuição comercial da agência ou da franquia não cabe a proteção do aí beneficiário que é devida ao tomador. Este nomeia ou remove o mediador ou pede-lhe apenas assistência num contrato já celebrado.

Face à lei atual, a responsabilidade civil do mediador pelos danos causados, na sequência da violação dos respetivos deveres para com os clientes, continua a ser subjetiva, só o atingindo a si. Seria necessária uma lei, que não existe, para que terceiros – aqui a seguradora - pudessem ser responsabilizados, em sede de responsabilidade objetiva (art. 483º, nº 2 do CC).

Em sede de responsabilidade do comitente pelos atos do comissário não se poderia fundar essa responsabilidade objetiva. Porque não existe comissão nos termos do art. 500º do CC, porque a independência e autonomia do mediador o eximem de ordens instruções ou supervisão da seguradora.

e) Não é aplicável ao caso a teoria da representação pela aparência, já que a tutela da aparência só pode ser considerada entre nós em face de norma que a preveja, e que será excecional face ao valor da segurança jurídica. Daí não poder ser aplicável analogicamente o art. 23º, nº 1 do DL 178/86, pensado para o contrato de agencia e que constitui uma norma excecional. Também não estava em vigor à data dos factos o regime do art. 30º, nº 3 do DL 72/2008, que só entrou em vigor a 1/1/2009, e então, sim, previu a representação aparente na mediação de seguros.

O único facto constitutivo da representação é a procuração. A parte que negoceia com quem se assume representante pode exigir a prova dos poderes de representação, e se for vítima de um falso procurador não pode vincular o suposto representado ao contrato celebrado.

Na falta de regime especial previsto, não existe entre nós um regime de representação comercial autónomo, ou uma tutela da aparência representativa, válida em geral para o direito comercial.

A aplicação analógica acima referida reclamaria a existência de uma lacuna que não existia, e mesmo que se descobrisse, a falta de similitude entre a agência e a mediação, cifrada na vinculação do agente e na autonomia do mediador, impediriam a aplicação analógica. Tanto assim que, quando se pretendeu introduzir a representação aparente em sede de mediação de seguros houve necessidade de o prever expressamente, no art. 30º, nº 3 do DL 72/2008.

Acresce que, se não pode fundar-se a responsabilidade da seguradora numa representação aparente, também o não poderá numa "representação tolerada", já que a factualidade disponível não permite afirmar que, como é próprio desta figura, a seguradora soubesse que as mediadoras se arrogassem representantes dela, sem nada ter feito para contrariar o facto.

f) À luz de uma conceção subjetiva ética de boa-fé (e não meramente psicológica), os lesados não estavam de boa-fé porque culposamente não averiguaram se os poderes de representação existiam, sabido que por regra os mediadores não representam as empresas de seguros ou outros mediadores e a ignorância da lei a ninguém aproveita.

 A seguradora não contribuiu em nada para que se criasse junto dos lesados uma convicção de representação por parte das mediadoras. A confiança nestas tem que ser objetivamente fundada, ou seja, fundada num comportamento qualquer do representado que seja capaz de a infundir e justificar. Por outro lado, a seguradora não tem a obrigação de fiscalizar a atividade do mediador que não é seu comissário e sim um profissional independente.

g) Afastada qualquer responsabilidade da seguradora assente em representação tolerada ou aparente, também não poderia a mesma fundar-se no contrato de seguro de responsabilidade civil profissional oferecido pela dita seguradora à arguida AA. Para além de o âmbito temporal de eficácia do dito seguro ser só a partir de 1/1/2007, o contrato de seguro em questão não obriga ao pagamento de indemnização por factos dolosos, face ao art. 46º, nº 1 do DL 72/2008.  

Vejamos então.

3. Contando com uma história longa integrando figuras semelhantes e equiparadas, que é feita remontar ao tempo do nosso rei D. Sebastião[1], a mediação de seguros foi regulada de modo completo, pela primeira vez, com o DL 145/79, de 23 de maio, a que se seguiria o DL 336/85, de 21 de agosto, e, depois deste, o DL 388/91, de 10 de outubro, que já integrou disciplina comunitária do setor.

Iria vigorar por 15 anos, e nos termos deste diploma, o campo da mediação abrangia os contratos de seguro direto e a operações de seguro, nomeadamente operações de capitalização e de fundos de pensões (art. 1º, nº 1). Quanto à atividade de mediação propriamente dita, foi caraterizada como a atividade remunerada tendente à realização e assistência (ou apenas a assistência) dos contratos ou operações mencionados no nº 1 do art. 1º (art. 2º). Os mediadores podiam ser de três categorias: simples angariadores, agentes ou corretores (nº 2) do art. 2º), certo que os agentes podiam celebrar os contratos em nome e por conta da seguradora (salvo se relativos a fundos de pensões) desde que houvesse o acordo prévio estabelecido com a seguradora nesse sentido e um seguro de responsabilidade civil profissional do agente mediador (art. 18º, nº 1 e 4º, nº 2). A atividade de corretagem, que pressupunha uma estrutura mais complexa, podia incluir funções de consultadoria, elaboração de estudos ou pareceres técnicos, para além da celebração de contratos nos termos facultados aos agentes. Os corretores podiam exercer a sua atividade diretamente ou através de agentes ou angariadores (art. 36º).  

Seguiu-se-lhe o DL 144/2006, de 31 de julho, entrado em vigor em 27/1/2007, que revogou o DL 388/91, de 10 de outubro, e cujo relevo advém, sobretudo, da transposição que fez da Diretriz Comunitária 2002/92/CE de 9/12/2002, sendo mesmo seu propósito explícito "evitar o desalinhamento" [2] do regime português com o dos restantes Estados da UE.

No art. 5º do diploma aparece-nos a definição de mediação de seguros, como "qualquer atividade que consista em apresentar ou propor um contrato de seguro ou praticar outro acto preparatório da sua celebração, em celebrar o contrato de seguro, ou em apoiar a gestão e a execução desse contrato, em especial em caso de sinistro". As categorias de mediadores de seguros passam a ser, nos termos do art. 8º, as seguintes:

De "mediador de seguros ligado", que fundamentalmente exerce a sua atividade em nome e por conta de uma empresa de seguros (ou mais do que uma, que promovam produtos não concorrentes), atuando sob inteira responsabilidade das mesmas no que se refere à mediação, de "agente" de seguros, cuja atividade é exercida à mesma em nome e por conta de uma ou mais empresa ou outro mediador de seguros, mas nos termos do contrato que celebre com essas entidades, e finalmente o "corretor de seguros" que aconselha os clientes face às necessidades destes a aos produtos do mercado, sendo a atividade de mediação levada a cabo de modo imparcial e independente em relação às empresas de seguros.

De entre os deveres gerais dos mediadores consta, à cabeça, o de "Celebrar contratos em nome da empresa de seguros apenas quando esta lhe tenha conferido, por escrito, os necessários poderes." (al. a) do art. 29º).

De referir, por último, que o DL 72/2008, de 16 de abril, entrado em vigor a 1/1/2009, quis proceder a "uma consolidação do direito do contrato de seguro vigente, tornando mais acessível o conhecimento do respetivo regime jurídico, esclarecendo várias dúvidas existentes, regulando alguns casos omissos na atual legislação e, obviamente, introduzindo diversas soluções normativas inovadoras."[3]

 No tocante à mediação propriamente dita, esclarece-se que "Sem por em causa o recente regime da mediação de seguros aprovado pelo Decreto –Lei nº 144/2006 de 31 de Julho, aproveitou-se para fazer alusão expressa à figura da representação aparente na celebração do contrato de seguro com a intervenção de mediador de seguros e à eficácia das comunicações realizadas por intermédio do mediador."[4]

E foi assim que surgiu na nossa lei, pela primeira vez, a consagração da figura da representação aparente, no âmbito da mediação de seguros, através do art. 30º do dito DL 72/2008, de 16 de abril:

"1 – O contrato de seguro que o mediador de seguros, agindo em nome do segurador, celebre sem poderes específicos para o efeito é ineficaz em relação a este, se não for por este retificado, sem prejuízo do disposto no nº 3.

2 – Considera-se o contrato de seguro ratificado se o segurador, logo que tenha conhecimento da sua celebração e do conteúdo do mesmo, não manifestar ao tomador do seguro de boa fé, no prazo de cinco dias a contar daquele conhecimento, a respetiva oposição.

3 – O contrato de seguro que o mediador de seguros, agindo em nome do segurador, celebre sem poderes específicos para o efeito, é eficaz em relação a este se tiverem existido razões ponderosas, objetivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso, que justifiquem a confiança do tomador do seguro de boa-fé na legitimidade do mediador de seguros, desde que o segurador tenha igualmente contribuído para fundar a confiança do tomador do seguro."

Ora, antes deste diploma, já o DL 178/86, de 3 de julho, que regulara o contrato de "agência", também conhecido por contrato de "representação comercial", previra a representação aparente e seus efeitos no nº 1 do seu art. 23º: "O negócio celebrado por um agente sem poderes de representação é eficaz perante o principal se tiverem existido razões ponderosas, objetivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso, que justifiquem a confiança do terceiro de boa-fé na legitimidade do agente, desde que o principal tenha igualmente contribuído para fundar a confiança do terceiro."

No preâmbulo do diploma e a propósito da proteção de terceiros, disse-se: "Com a norma dedicada à representação aparente, procurou-se, embora de forma prudente, tutelar as legítimas expectativas de terceiros. Desejariam uns que o legislador fosse mais longe; recearão outros que o legislador tenha ido longe de mais. Optou-se, no entanto, por uma solução que se tem por equilibrada, em tema tão sensível como é o da representação aparente."

4. Resulta da factualidade que foi dada por provada que as arguidas AA e BB exerciam funções de mediadoras exclusivamente por conta da Companhia de Seguros "OO", que passou a designar-se depois "... Companhia de Seguros S.A.".

Tinham ambas a qualidade de agente, com capacidade de cobrança a primeira, nos termos de contratos de 2/7/2007, celebrados com a Companhia, que se podem ver a fls. 2645 e segs. dos autos. Tal como fazia aos outros mediadores, a Companhia ofereceu à arguida AA um seguro de grupo, de responsabilidade civil profissional enquanto mediadora.

Os poderes de cobrança da arguida AA foram retirados a 29/7/2008 e os dois contratos de mediação rescindidos a 22/12/2008.

As arguidas congeminaram e executaram um plano fraudulento, sempre de comum acordo e em conjugação de esforços, em que o artifício usado passava por convencerem, no caso o demandante HH, a comprar produtos financeiros da Companhia de Seguros, com o argumento de que iria receber um bónus ou juros mais elevados, sempre superiores a 5%.

Só a Companhia podia emitir o contrato e o recibo das quantias recebidas, desenvolvendo-se o trabalho das mediadoras ao nível das simples propostas, mas as arguidas convenceram o lesado HH de que as propostas eram já o contrato definitivo, usando expedientes vários, como o uso de impressos da Companhia em desuso há anos, e recebiam o dinheiro fazendo-o seu. Nem as propostas nem os montantes recebidos alguma vez deram entrada na Companhia.

Nunca esta emitiu qualquer documento que concedesse poderes de representação às arguidas, designadamente para realizarem contratos de seguro. E de acordo com os contratos de mediação celebrados com as arguidas estas apenas podiam dar por realizados contratos de seguro em nome e por conta da Companhia de Seguros, se esta o autorizasse por escrito.

4.1. Ora, perante esta factualidade sucintamente revisitada, começaremos por abordar a questão referida na conclusão 4ª das alegações de recurso, na parte relativa a matéria de direito: "O contrato de seguros de responsabilidade em que a mediadora AA figura como segurada, inclui todos os danos que possa causar".

Acontece que percorrendo as alegações apresentadas nem uma palavra existe em relação a este contrato de seguro facultado pela seguradora a favor da agente AA. É, pois,  questão, de que se não poderia sequer conhecer.

Mas os termos do contrato de seguro em foco, aliás obrigatório, de responsabilidade civil dos mediadores de seguros da ".../Bonança", consta de fls. 1807 e seg. dos autos. E por aí se vê que está coberta não só a "responsabilidade civil profissional emergente da atividade do Segurado, na sua qualidade de mediador de seguros", como ainda a "responsabilidade civil extracontratual do Segurado, nos termos e limites definidos no nº 2 do Artigo 3º" (art. 2º).

 Este nº 2 apenas garante lesões causadas a terceiros por "materiais, mobiliário ou recheio, equipamentos, utensílios e decorações, pertencentes às instalações profissionais do Segurado". Ou seja, do mediador.

Assim, como não podia deixar de ser, a responsabilidade derivada da atividade profissional do mediador exige em primeiro lugar que os danos resultem da atividade do mediador enquanto tal. Não de uma atividade criminosa protagonizada pelo mediador, em que tal qualidade só serviu como instrumento da prática de crimes de burla, mas não lhe era inerente. E não lhe era inerente porque as arguidas nunca quiseram propor, preparar ou dar assistência a contratos a realizar, ou realizados de facto, entre o lesado HH e a seguradora. Por isso é que também nunca faria sentido que a Companhia se disponibilizasse a assumir responsabilidades, por atividades do mediador, que nunca seriam, do interesse dela, seguradora.  Por isso é que o contrato de seguro facultado pela seguradora não cobriria danos causados por comportamentos dolosos, ilícitos, criminosos, do mediador segurado.  

Independentemente do período em que este seguro esteve em vigor (1/1/2007 a 22/12/2008), nunca poderia assentar nele a responsabilidade da demandada pelos danos causados ao recorrente Carlos. Improcede portanto nesta parte o recurso.

4.2. Na primeira conclusão relativa à matéria de direito, o recorrente afirma que "A vinculação da seguradora pela representação aparente vem admitida pela lei, quer no domínio comercial quer pela lei da mediação de seguros, D.L. 144/2006, de 31 de julho". Ora, como já se viu, este último diploma, assim como os anteriores, é completamente omisso quanto a uma previsão da chamada representação aparente, que em matéria de mediação de seguros só surgiria com o DL 72/2008, de 16 de abril, entrado em vigor a 1/1/2009.

Somos pois levados a encarar a eventualidade da eficácia da representação aparente, em matéria de mediação de seguros, apenas por aplicação analógica do art. 23º, nº 1 do DL 178/86, de 3 de julho, que a prevê para o contrato de agência. E a tal se referem as duas restantes conclusões (relativas à matéria de direito) do recurso interposto para este STJ.

4.3. Importa sublinhar que a atividade ilícita desenvolvida pelas arguidas é estranha a poderes de representação da seguradora, que esta nunca concedeu. E a possibilidade de cobrança facultada à arguida AA traduz-se apenas num serviço que, como mediadora prestava à Companhia, ficando fiel depositária dos montantes recebidos até os entregar à Companhia de Seguros, por força do estipulado especificamente em acordo com esta.

Mas não tem a ver com representação. Poderia eventualmente contribuir para uma imagem (falsa) de representação que impressionaria os burlados pseudo-tomadores de seguro, mas essa é toda uma questão diversa.

Por outro lado, a exclusividade das duas arguidas, acordada, apenas significa que as mediadoras se comprometeram por acordo, a não trabalhar com mais nenhuma companhia de seguros, em termos de intermediação. Mas a exclusividade, que não constitui cláusula necessária do contrato de mediação, também não implica poderes de representação da seguradora.

Os contratos de mediação lavrados com ambas as arguidas são claros ao estipularem na Cláusula 1ª, nº 2, que a atividade de mediação é desenvolvida "de modo livre e autónomo" pelas demandas BB e AA (fls. 2645 e 2648), o que se compatibiliza com o grau de vinculação à seguradora, inerente à figura do "agente" de seguros, que é o que ambas as arguidas eram.

O agente de seguros exerce a sua atividade "em nome e por conta da seguradora" mas nos precisos termos do contrato que celebre com essas entidades, e em que podem ser conferidos poderes de âmbito muito variável. Tal como nos diz Luís Poças, "pensamos que a expressão em nome e por conta é utilizada em sentido impróprio, não comportando a necessária existência de poderes de representação. Assim, relativamente a esta categoria de mediadores, importará apurar in casu se o vínculo estabelecido com o segurador é passível de recondução a uma relação comitente-comissário."[5]   

Ora, o art. 483º, nº 2, do CC, estipula que "Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei". Então, a imputação à demandada seguradora de responsabilidade pelo risco só poderia assentar numa relação de comissão, nos termos do art. 500º do CC, e reclamaria a subordinação das arguidas a ordens ou instruções dadas pela "...-Bonança" quanto à atividade de mediação.

Só em face de uma possibilidade de direção do comitente junto do comissário se justifica a responsabilidade objetiva daquele pela atividade deste. [6]

Como se viu, não é esse o caso.

4.4. À data da prática dos factos, estava prevista a relevância da representação aparente, já o dissemos, unicamente para o contrato de agência. Concretamente no art. 23º do DL 178/86. Fora aí introduzida "de forma prudente" e optando "por uma solução que se tem por equilibrada, em tema tão sensível como é o da representação aparente".

O tema á sensível, porque em matéria de declaração negocial, segundo as regras gerais, a falta de poderes de representação torna o negócio ineficaz em relação ao representado, a não ser que este o ratifique (art. 268º, nº 1 do CC). Esta é uma hipótese que no caso nem sequer se colocou, e que aliás, a ter lugar, implicaria a comparticipação da Companhia de Seguros nos crimes de burla cometidos.

Portanto, do que se trata é de saber se existia uma lacuna da lei em face do DL 388/91, de 10 de outubro, ou do DL 144/2006, de 31 de julho, por não terem previsto a representação aparente em matéria de mediação de seguros, e, no caso afirmativo, se estavam preenchidos, face às circunstâncias do caso, os requisitos de que dependia a configuração da eficácia de uma representação aparente.

Dir-se-á já, quanto a este último ponto, que o pressuposto segundo o qual, "o principal tenha igualmente contribuído para fundar a confiança do terceiro", previsto no nº 1 do art. 23º, do DL 178/86, de 3 de julho (que regula o contrato de "agência"), não se encontraria preenchido, se transposto para a mediação.

Como é evidente, esse contributo teria que ter sido prestado perante uma concreta atividade de mediação, mas nunca se poderia bastar com o simples facto de ter sido celebrado, no pretérito, um contrato de mediação (e do mesmo modo se estivesse em causa um contrato de agência).

Ora, a factualidade provada não revela contributo absolutamente nenhum da Companhia de Seguros para que o demandante HH tivesse acreditado nos supostos poderes de representação das arguidas.

Estas praticaram os crimes de burla usando de estratagemas vários, como por exemplo, e entre tudo o mais, a utilização em 2007 de impresso que não estava em vigor na Companhia desde 2002, ou com um carimbo de data de entrada na seguradora que era de 2004, ou a entrega de carta forjada, em papel timbrado, com a data de 3/3/2008 (factos 65, 67 e 68), sendo a seguradora alheia a todos estes estratagemas.
Aliás, ela disponibilizava aos seus mediadores os modelos das propostas para celebração de contratos, informaticamente, impressos que podiam ser obtidos por qualquer cidadão junto das agências de clientes da demandada (factos provados 156 e 157).

4.5. Quanto à questão, em tese geral, da existência de uma lacuna, a preencher com a aplicação analógica do citado art. 23º do DL 178/86, de 3 de julho, dificilmente a podemos admitir.

Sem desconhecermos que a jurisprudência e a doutrina não afinam neste ponto pelo mesmo diapasão [7], entendemos com Luís Poças que "O carácter excecional da tutela da aparência no Direito português, reconhecido pela generalidade da doutrina, impedirá a respetiva aplicação analógica, por integração de lacunas, a outras situações fora do âmbito da previsão normativa, como resulta do art. 11º do Código Civil e da posição da generalidade da doutrina."[8]

Do mesmo modo, José Alberto Vieira, no Parecer junto aos autos a fls. 2917 e segs. entende que o dito art. 23º, nº 1 tem natureza excecional e portanto é insuscetível de aplicação analógica face ao referido art. 11º do CC (designadamente a fls. 2959 dos autos)[9].

Refere este autor que as teorias da representação aparente (ou da representação tolerada) "respeitam ao âmbito da vinculação pela actuação (ou falta dela) do representado, ou seja, à representação propriamente dita; não são teorias de responsabilidade civil.

Pode dizer-se em termos linguísticos que aquele que cria uma aparência de procuração, gerando confiança em terceiro de boa fé, é responsável pela aparência criada. Esta afirmação, porém, reporta-se aos efeitos da conduta, querendo significar que o representado fica vinculado defronte do terceiro pelo contrato celebrado pelo falso representante. Isto não tem nada a ver com a responsabilidade civil (…) uma eventual responsabilidade civil só decorre do regime jurídico desta e dos institutos donde esta possa resultar" (fls. 2952).

Diz ainda a dado passo, que "a protecção da confiança de terceiro (de boa fé) dá-se sempre contra alguém, o titular de uma situação jurídica, que se sacrifica em prol desse terceiro. Ora, o legislador pode [não] optar por proteger o primeiro, como em regra sucede em Portugal nas várias situações em que o interesse de um terceiro de boa-fé colide com o titular de uma situação jurídica. O valor da segurança jurídica apresenta primazia no nosso sistema jurídico, em contraposição com o direito alemão – onde surgiu a teoria da aparência representativa – muito mais permeável à tutela do tráfego jurídico e da posição de terceiros de boa-fé.

Deste modo, uma eventual protecção da aparência, quando surja, tem natureza de excepção" (fls. 2957).

Entendemos que a proteção de terceiro de boa-fé, ludibriado por mediadoras sem escrúpulos em crimes de burla, não pode ir ao ponto de fazer incorrer em responsabilidade civil a demandada Companhia de Seguros, por aplicação analógica da disposição pensada para o contrato de agência, que previa aí a eficácia da representação aparente.

Como se disse no Acórdão deste STJ de 18/12/2007 (Pº 07A4305), posição em que nos revemos,

"Para que se possa recorrer à analogia é necessário que:
- Falte uma precisa disposição da lei para o caso a decidir, que portanto a questão não se encontre já regulada por uma norma de direito e não apenas segundo a letra da lei, mas também segundo a sentido lógico dessa norma; daí que se uma questão se pode resolver com recurso à interpretação extensiva não tem lugar a analogia;
- Haja igualdade jurídica, na essência, entre o caso a regular e o caso regulado (in Interpretação e Aplicação das Leis, tradução de Manuel de Andrade, colecção Studium – 3ª edição – pág. 154 e ss.).
Ainda neste sentido nos orienta Karl Larenz quando entende por analogia a transposição de uma regra, dada pela lei para a hipótese legal, numa outra hipótese, não regulada na lei, semelhante àquela.
E acrescenta:
“As duas situações de facto serem «semelhantes» entre si significa que concordam em alguns aspectos, mas não noutros. Se concordam em absoluto em todos os aspectos que hão-de ser tomados em consideração, então seriam iguais. Por essa razão as previsões legais podem não ser absolutamente iguais nem desiguais entre si; mas têm de concordar precisamente nos aspectos decisivos para a valoração jurídica” (in Metodologia da Ciência do Direito – 2ª edição -, pág. 451).
Para Castanheira Neves, são dois os momentos que convergem num adequado critério de analogia jurídica em função judicativa – “um desses momentos tem a ver com a determinação da analogia dos casos relevantes ou com a determinação desses casos como casos análogos (momento que o nº 2 do art. 10º não considera expressamente); o outro momento tem a ver com a analogia judicativa ou analogia da solução desses casos (momento em que aquele mesmo artigo já considera e aparentemente só considera) e para o qual o primeiro momento oferece uma base necessária, mas só insuficiente”.
Assim, “os casos relevantes (…) serão juridicamente análogos quando os seus respectivos e concretos sentidos problemático-jurídicos – … – se puderem pensar numa conexão justificada pela intenção fundamental de juridicidade que os constitui na sua especificidade jurídica. Quando as suas constitutivas intenções de juridicidade forem no fundo as mesmas ou afins: a diferença dos seus concretos sentidos problemático-jurídicos resultará, nestas circunstâncias, mais das diversidades das respectivas relevâncias objectivas e menos da intencionalidade jurídica que lhes correspondem” (in Metodologia Jurídica – Problemas Fundamentais, pág. 261).
Baptista Machado, na mesma linha argumentativa, defende que o julgador deverá, nos termos do nº 1 do art. 10º do CC, aplicar por analogia aos casos omissos as normas que directamente contemplem casos análogos, considerando-se como “análogos quando neles se verifique um conflito de interesses paralelo, isomorfo ou semelhante – de modo a que o critério valorativo adoptado pelo legislador para compor esse conflito de interesses num dos casos seja por igual ou maioria de razão aplicável ao outro”.
Para este A. o recurso à analogia como meio de preenchimento de lacunas justifica-se por uma razão de coerência normativa ou de justiça relativa, tradutora do princípio da igualdade (casos semelhantes ou conflitos de interesses semelhantes devem ter um tratamento semelhante) (in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pág. 202).
Esta preocupação de igualdade no tratamento de situações em tudo semelhantes está também no espírito de Manuel de Andrade: “analogia é harmónica igualdade, proporção e paralelismo entre situações semelhantes” (in Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis - Interpretação e Aplicação das Leis, pág. 158).

À luz destes ensinamentos, cumpre-nos, portanto, dizer se existe analogia entre a situação do mediador de seguros do nosso caso e a do agente que tem a sua actividade regulada no diploma legal referido.
Ora bem.
Os regimes de mediação de seguros e de agência tratam situações jurídicas bem diferentes: o mediador de seguros exerce uma actividade tendente à realização de contratos de seguro, dando assistência à celebração dos mesmos, o agente actua por conta de outrem (do principal).
Isto, por si só, seria o suficiente para afastarmos a pretendida aplicação analógica: não estamos perante casos semelhantes, antes, pelo contrário, perante situações totalmente distintas.
Mas, descendo mais ao pormenor, mais claro se nos afigura esta conclusão.
Prescreve o mencionado art. 23º no seu nº 1:
“O negócio celebrado por um agente sem poderes de representação é eficaz perante o principal se tiverem existido razões ponderosas, objectivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso, que justifiquem a confiança do terceiro de boa fé na legitimação do agente, desde que o principal tenha contribuído para fundar a confiança no terceiro”.
O problema que este preceito procura “resolver consiste, fundamentalmente, em saber que atitude tomar quando o agente, sem representação ou poderes de cobrança de créditos, actua, no entanto, como se os tivesse, criando no cliente a aparência de estar a contratar ou a pagar a um agente munidos dos respectivos poderes” (apud Pinto Monteiro, Contrato de Agência – 4ª edição -, pág. 91).
Dúvidas poderiam surgir, no plano da teorização, sobre a possibilidade de aplicação analógica entre do regime do contrato de agência ao regime do contrato de medição de seguros, mas as mesmas depressa se teriam de dissipar.
É que o mediador actua com inteira independência e imparcialidade e no interesse de ambos os contraentes; diferentemente, o agente actua por conta do principal, representando-o economicamente.
Ora, o que acontece com a chamada procuração aparente é que alguém se arroga representante de outrem, sem conhecimento do “representado”, sendo que se este tivesse “usado do cuidado exigível, designadamente na vigilância dos seus subordinados, poderia (e deveria) prevenir a situação. Teríamos, assim, como elemento objectivo, a aparência da representação e, como elemento subjectivo, a negligência do “representado” (vide Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português – I – Parte Geral, Tomo IV, pág. 103).
Está, deste modo, clara a dificuldade por nós apontada de aplicar aqui, no regime de mediação de seguros, onde o mediador é independente da seguradora, o regime consagrado para o contrato de agência."

Subscrevemos esta posição. O mediador tem uma posição de equidistância entre o tomador de seguro e a seguradora, que não existe, no que respeita ao agente, entre o cliente e o principal.

Pelas razões apontadas entendemos que, no caso, a demandada "..., Companhia de Seguros S.A." não deve incorrer em responsabilidade civil pelos danos causados ao demandante HH, enquanto vítima de crime de burla cometido pelas arguidas AA e irmã BB.

D  -  DECISÃO

Por todo o exposto se nega provimento ao recurso interposto pelo demandante ofendido HH, mantendo-se decidido quanto a ele no acórdão recorrido.

Condena-se o recorrente no pagamento das respetivas custas.


Lisboa, 31 de Março de 2016


 
Souto de Moura (Relator)

Isabel Pais Martins

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[1] Para uma resenha histórica pode ver-se A. Menezes Cordeiro in "Direito dos Seguros", Almedina, 2013, pág. 398 e segs.
Aí se diz que "As companhias seguradoras são, no fundo entidades financeiras, que articulam o risco e o dinheiro: não têm vocação para desenvolver, no terreno, os inúmeros contactos que conduzem à conclusão dos seguros" (pág. 393).
[2] Do preâmbulo.
[3] Do preâmbulo.
[4] Idem
[5] In "Estudos de Direito dos Seguros", Almeida e Leitão, ldª, 2008, pág. 200.
[6] Cf. Pires de Lima/Antunes Varela in "Código Civil Anotado", Coimbra Editora, 4ª edição, Vol. I, pág. 508.
[7] Assim o Acórdão deste STJ de 1/4/2014 Pº 4739/03.0TVLSB.L2.S1 citado pelo recorrente nas suas alegações a fls. 3132, aceitou a aplicação analógica em causa. Refere-se porém a uma factualidade bem diversa. Estavam aí em causa três contratos de seguro de embarcação – danos e roubo – que foram efetivamente furtadas, discutindo-se se os contratos ainda estavam em vigor nessa data, face à resolução dos contratos por falta de pagamento dos prémios.
[8] Ob. Cit. pág. 215. Citam-se aí, em consonância com este afastamento da analogia, Rita Amaral Cabral e Oliveira Ascensão e já antes, a fls. 213, Menezes Cordeiro.
[9] Porém, não desdenha a aplicação da solução adotada para o contrato de agência ao contrato de mediação de seguros, ao que cremos, apenas "de jure condendo", como aliás viria a acontecer. Cf. "Novo Regime Jurídico da Mediação de Seguros", Coimbra Editora, 2006, pág. 82.