Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
684/07.9TBCBR.C1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: ACORDÃO DA RELAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
OBTENÇÃO DE PROVA
DEVER DE COOPERAÇÃO
EXAME HEMATOLÓGICO
RECUSA
RELAÇÕES SEXUAIS
PERÍODO LEGAL DA CONCEPÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : I - Tendo a Relação conhecido, expressamente, das questões suscitadas na apelação e inexistindo quaisquer outras que sejam de conhecimento oficioso, não se verifica a arguida causa de nulidade.
II - O tribunal assume o “poder-dever” de ordenar a realização das diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio quando, no início da audiência, sobrestando na conclusão da produção de prova pessoal, determina um exame hematológico ao réu.
III - Tendo o réu deixado de comparecer no exame designado, sem haver justificado a falta, nem ter requerido a marcação de um novo exame ou agravado da decisão que o determinou, não pode, sob pretexto da impossibilidade legal de atribuir valor probatório à sua recusa, recuperar a questão da validade do exame hematológico que deixou precludir.
IV - Ainda que o tribunal de 1.ª instância tenha fundado a convicção de que entre a mãe do menor e o réu existiram relações sexuais de cópula completa, no período legal da concepção do menor, com base na recusa do réu em submeter-se a exame hematológico, na qual assentou a presunção de paternidade, que o réu não logrou ilidir, agiu no âmbito das regras definidas pelos arts. 519.º, n.º 1, do CPC, e 357.º, n.º 2, do CC, apreciando, criticamente, o valor da sua conduta, para efeitos probatórios, que este STJ não pode sindicar.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
O Exm° Magistrado do Mº Pº propôs a presente acção de investigação de paternidade, com processo ordinário, contra AA, em relação à menor BB, filha de CC, todos, suficientemente, identificados nos autos, pedindo que, na sua procedência, aquela menor seja reconhecida como filha do réu, para todos os efeitos legais, invocando, para o efeito, que a mesma nasceu em consequência das diversas relações de cópula mantidas entre o réu e a mãe da menor.
Na contestação, o réu nega a existência de relações sexuais com a mãe da menor, concluindo pela improcedência da acção.
A sentença julgou a acção, provada e procedente, e, em consequência, declarou que a menor BB, registada apenas como filha de CC, e a que se reporta o assento de nascimento n° 1182, do ano de 2006, da Conservatória do Registo Civil de Coimbra, é filha, também, do aqui réu, AA, ordenando a correspondente rectificação registral, averbando-se tal facto ao respectivo assento de nascimento da menor.
Desta sentença, o réu interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente a respectiva apelação, confirmando a decisão impugnada.
Do acórdão da Relação de Coimbra, o réu interpôs recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua revogação e substituição por outro que declare que a menor BB, registada pela mãe, no estado de casada com DD, apenas como sua filha e de pai incógnito, e a que se reporta o assento de nascimento n° 1182, do ano de 2006, na Conservatória do Registo Civil de Coimbra, não é filha do recorrente, ou quando, por mera cautela, assim se não entenda, deve, o mesmo acórdão ser declarado nulo ou revogado e, consequentemente, os autos devolvidos à 1a instância, para aí ser levado a cabo o exame de ADN, na pessoa da mãe da menor, da menor e do recorrente, «ex vi» do n° 3, do artigo 265°, do CPC, afim de apurar a verdade materio-cientifica, prova rainha neste tipo de acção, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1ª – "A deficiência, obscuridade, contradição ou falta de fundamentação das respostas à base instrutória, além de poderem ser arguidas mediante reclamação (n° 4 do art° 653° do CPC) podem sê-lo, ainda, no recurso a interpor da sentença (art° 712° n° 2 e 3), tenham ou não sido objecto de reclamação". E, in casu, foram-no logo para o tribunal a quo.
2ª - "Incumbe ao Juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos que lhe é licito conhecer" (n° 3 do art° 265° do CPC).
3ª - "O uso indevido ou o não uso do poder dever consignado no n° 3 do art° 265° do CPC é matéria sindicável em via de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça" (Ac. do STJ de 12-6-2003 - CJ/STJ 2003- 2o 100).
4ª - A falta de colaboração do réu, em acção de investigação de paternidade em submeter-se ao exame hematológico, tem a sanção do n° 2 do art° 357° do CC (RL 7-3-1966 - BMJ 455- 559).
5ª - Ora, resulta dos autos entre outras coisas, que:
1 - "Não obstante a inquirição das testemunhas arroladas determinou-se que se procedesse a exame de ADN a efectuar no Instituto de Medicina Legal de Coimbra à mãe da menor, ao réu e à menor" (fls. 291).
2 - Para tal foi enviada ao réu oficio datado de 23-05-2008, notificando-o para comparecer no INML-C no dia 12-06-2008, pelas 9horas e 30 (fls. 259).
3 - Tal carta-oficio foi devolvida (fls. 263), com a indicação de que "Não Atendeu" - 08-05-26 - 10-30.
4 - Donde, como, doutamente, alegou o Digníssimo Magistrado do Ministério Publico "o R. não se recusou a submeter-se ao exame de pesquisa de ADN" (fls. 329).
5 - Aliás, o réu não podia comparecer, na medida em que não teve conhecimento, sequer, da notificação do dia e hora aprazado para a realização de tal exame, pelo que não tendo tido conhecimento da marcação de tal exame (dia e hora), não tinha que justificar a sua ausência. Só tem que justificar a sua ausência, quem está notificado, para comparecer e não comparece - salvo o erro e o devido respeito.
6ª - Donde ao caso dos autos, não se aplica o disposto no art° 519° do
CPC e nunca por nunca o disposto no n° 2 do art° 344° do CC.
7ª - Isto é o réu aceitou o exame, não se lhe opondo, só que não foi notificado para o fazer, o que ainda até hoje não aconteceu.
8ª - Ora, ao réu basta criar a duvida séria sobre a sua atribuída paternidade, n° 2 do art° 1871° do CC, o que fez, não só através da prova testemunhal que adregou aos autos - mas que não foi considerada credível - como também aceitou submeter-se ao exame de ADN, para o qual não foi, efectivamente, notificado até hoje.
9ª - Donde,
1 - Tendo nascido no dia 21/07/2006, na …, Coimbra, a menor BB, esta foi registada (fls. 5 dos autos), pela mãe, apenas como filha de CC!... (nome de casada!...).
2 - A mãe da menor foi casada com DD, desde 21 de Agosto de 1989 até 9 de Junho de 2008.
3 - O réu é casado.
4 - Entre o réu e a mãe da menor não existem relações de parentesco ou afinidade,
5 - A presente acção foi julgada viável, por despacho judicial proferido em 12/01/2007, na AOP n° 701/06.0TMCBR, do Tribunal de Família e Menores de Coimbra - 2o Juízo.
6 - A CC e o réu conheceram-se, em Janeiro de 1998, por razões profissionais.
7 - A CC, o marido e o réu foram amigos a partir de tal data (1998) e entre ela e o marido por um lado e o réu, pelo outro, existiram relações profissionais e de amizade.
10ª - A CC e o réu nunca viveram em comum, nem tiveram qualquer relacionamento sexual, apenas, de amizade e profissional.
11ª - Nunca fizeram férias juntos.
12ª - Não se provou que o réu haja tido relações sexuais com a CC - apenas de amizade e profissionais e nunca por nunca ser no período legal da concepção da menor.
13ª - Provou-se que a CC, sempre teve, para além do marido, e na constância do matrimónio, vários companheiros, que nunca o réu, que sempre foi, tão só, seu amigo e patrão!
14ª - Mais, provou-se que o réu não é pai da menor.
15ª - Na verdade, não se provou que a menor haja sido registada e tratada como filha do réu, e, também, não pelo público (em geral).
16ª - Apenas se adregou, aos autos duas pessoas "intimas" para virem dizer, o que, no dizer delas, ela lhes disse. Onde está o publico?...
17ª - E os filhos? Um de dezoito anos!... e os pais?! E os avós?! Etc, etc. E o Dr. …?!...
18ª - Não existe carta nem qualquer outro documento escrito nos quais o réu declare a sua paternidade.
19ª - Não se provou que, durante o período da concepção, tenha existido comunhão em condições análogas às dos cônjuges, nem concubinato, duradouro ou não, entre a CC e o réu!
20ª - Não se provou que o réu haja seduzido a CC. Nem que esta fosse virgem. Nem! Nem! Nem!
21ª - Não se provou que o réu tenha tido relações sexuais com a CC, no período legal de concepção, ao invés, provou-se o contrário, provando-se, inclusive, que a relação do réu com a CC e o marido desta, era apenas, tão só, de amizade e profissional, e, também não se provou que o réu haja recusado submeter-se a quaisquer exames periciais, nomeadamente ao ADN.
22ª - A presente acção foi julgada procedente, tão só, com o fundamento no depoimento de duas testemunhas (tidas por credíveis), em contraprova de um grande número de outras testemunhas (tidas por não credíveis), sem razão justificativa, pelo menos aos olhos do recorrente.
23ª - Ora, é hoje opinião unânime, quer doutrinal, quer jurisprudencial, que o exame de ADN "é prova rainha neste tipo de acções".
24ª - E tal prova não está feita nos presentes autos, por razões estranhas ao recorrente, que não se opondo, à ordem dada para levar a cabo tal exame de ADN, apenas e tão só, não foi notificado para o fazer, como se demonstrou.
25ª - E tal exame, é imprescindível, in casu, atenta "a credibilidade dada às testemunhas da mãe da menor" e "à não credibilidade atestada ás testemunhas do R".
26ª - Ora, tendo o mesmo exame sido ordenado, tal ordem não foi levada ao conhecimento do réu, pelo que ele não se recusou a fazê-lo.
27ª - Porém, o tribunal procedeu ao julgamento, com base no errado fundamento de que o réu se havia recusado - o que é falso, praticando uma nulidade prevista e punida pelo art° 668° do CPC, que se argui para todos os devidos e legais efeitos, e é do conhecimento oficioso, levando pois à nulidade do acórdão recorrido por contradição dos seus fundamentos com a decisão e por omissão de pronúncia.
28ª - Impõe-no o principio da verdade material, ínsito no n° 3 do art° 265° do CPC - principio inquisitório.
29ª - E é da competência do Supremo Tribunal de Justiça, mesmo ex officio, o uso indevido ou o não uso do poder dever contido no n° 3 do art° 265° do CPC é matéria sindicável em via de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (Ac. do STJ de 12-6-2003 CJ/STJ 2o 100).
30ª - Donde, julgar a presente acção procedente, apenas com base na credibilidade do depoimento de duas testemunhas indicadas pela mãe da menor em contraprova com a não credibilidade de todas as adregadas pelo recorrente - era permitir, que quando a menor atingisse a maioridade e o réu lhe propusesse fazer o ADN e este fosse negativo toda a vida "os amigos dela lhe dizem - vai chamar pai a outro!"
31ª - Violou assim o douto acórdão ora recorrido, entre outros os ínsitos dos art°s 1.801°, ex vi dos art°s 1826° e 1838°, 1.826°, 1871° n° 1 e 2 , 344° n° 2 do CC e os 265° n° 3, 519° e 668° do CPC.
32ª - Por mera cautela, quando se venha a prolatar acórdão, em oposição ao prolatado por este Supremo Tribunal de Justiça em 12-6-2003 (in CJ/STJ 2° 100), o que se não vislumbra, requer desde já ex vi do n° 3 do art° 732° A do CPC, que o presente acórdão seja prolatado com a intervenção do plenário das secções cíveis.
O Exº Procurador-Geral Adjunto, nas suas contra-alegações, entende que deve ser confirmado o acórdão recorrido.
O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
No dia 21 de Julho de 2006, na …, Coimbra, nasceu a menor BB, que foi registada, apenas, como filha de CC, casada, residente na Rua …l, n° …, … - …, Coimbra – …).
O réu é casado – B).
Entre o réu e a mãe da menor não existem relações de parentesco ou afinidade – C).
A presente acção foi julgada viável, por despacho judicial proferido em 12 de Janeiro de 2007, na AOP n.° 701/06.0TMCBR, do Tribunal de Família e Menores de Coimbra - 2.° Juízo – D).
Na sequência do relacionamento estabelecido, por questões de ordem profissional, a CC e o réu, em Abril ou Maio de 1998, iniciaram um relacionamento amoroso - 3.°.
E, apesar de nunca terem vivido, maritalmente, passaram a ter uma vivência em comum, frequentando o réu a residência da CC, assiduamente, e até altas horas da noite - 4.°.
A relação entre a mãe da menor e o réu prolongou-se, pelo menos, até Março de 2006 - 8.°.
Momento em que a CC já estava grávida de 16 semanas - 9.°.
O que era do perfeito conhecimento do réu - 10.°.
Ao longo deste relacionamento, o réu e a CC mantiveram um
relacionamento sexual, como se marido e mulher fossem - 11.°.
A CC foi sempre uma mulher séria e bem comportada - 12.°.
A CC apenas com o réu manteve relações sexuais, nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento de sua filha - 13.°.
O nascimento da menor ocorreu no termo da gravidez que sobreveio a sua mãe, CC, em consequência das diversas relações sexuais de cópula completa, mantidas entre esta e o réu - 14.°.
*
Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 690º e 726º, todos do CPC, são as seguintes:
I – A questão da nulidade proveniente da não realização do exame hematológico determinado pelo Tribunal.
II – A questão da paternidade da menor.
I. DA NULIDADE PELA NÃO REALIZAÇÃO DO EXAME HEMATOLÓGICO
Sustenta o réu que aceitou submeter-se ao exame de ADN, só que não foi notificado para o fazer, não tendo conhecimento da sua realização, não se recusando, porém, a sujeitar-se ao mesmo, nem tendo, portanto, que justificar a sua ausência.
Por isso, efectuando-se o julgamento com base no errado pressuposto de que o réu se havia recusado a submeter-se ao exame pericial, foi praticada a nulidade, prevista pelo artigo 668°, do CPC, o que conduz à nulidade do acórdão recorrido, por contradição dos seus fundamentos com a decisão e por omissão de pronúncia.
Porém, nas alegações do recurso de apelação, o réu não suscitou esta questão da nulidade e, outrotanto, se diga no decurso de todo o processado em 1ª instância que, deste modo, se assume como uma questão nova.
Com efeito, para além das questões que sejam de conhecimento oficioso, que o Tribunal, obrigatoriamente, deve conhecer, independentemente de pedido, por força do estipulado no artigo 660º, nº 2, do CPC, a eventual apreciação da omissão de pronúncia de que o acórdão recorrido possa padecer depende de o réu a ter suscitado, nas conclusões da apelação, e entre elas não consta, manifestamente, qualquer arguição de nulidade da sentença proferida em 1ª instância.
Ora, podendo as decisões judiciais ser impugnadas, por meio de recurso, como decorre do estipulado pelo artigo 676º, nº 1, do CPC, tem sido entendido, uniformemente, que a essência do recurso visa modificar a decisão recorrida e não criar decisões sobre matéria nova, não podendo, consequentemente, tratar-se no mesmo de questões que não hajam sido suscitadas, perante o Tribunal recorrido, a menos que se reconduzam a hipóteses de conhecimento oficioso, em que é, obviamente, desnecessária a alegação das partes, e que o Tribunal de recurso deve conhecer, quer respeitem à relação processual, quer à relação material controvertida.
Assim sendo, tendo a Relação conhecido, expressamente, das questões suscitadas na apelação e inexistindo quaisquer outras que sejam de conhecimento oficioso, não se verifica a nulidade, por omissão de pronúncia, a que se reporta o artigo 668º, nº 1, d), 1ª parte, do CPC.
Por seu turno, a alegada oposição dos fundamentos com a decisão é aquela que acontece no processo lógico, que parte das premissas de facto e de direito que o julgador entende que se encontram apuradas, com base nas quais conclui pela decisão a proferir, mas que nada tem a ver com o erro de julgamento, que não constitui nulidade, e que será objecto de análise no ponto subsequente.
Deste modo, ao contrário do sustentado pelo réu, o acórdão da Relação não padece das invocadas nulidades, por omissão de pronúncia e contradição dos fundamentos com a decisão, a que aludem os artigos 668º, nº 1, c) e d), 1ª parte, e 716º, nº 1, ambos do CPC.
Importa, porém, efectuar uma breve retrospectiva da marcha processual, a partir do momento em que o Tribunal de1ª instância diligenciou no sentido de notificar o réu para a realização do controvertido exame hematológico.
Com efeito, no início da audiência de discussão e julgamento, antes de ter lugar a produção de prova testemunhal, a Exª Juiz, determinou, oficiosamente, sem prévio requerimento das partes nesse sentido, “não obstante a inquirição das testemunhas arroladas, que se proceda a exame de ADN a efectuar no Instituto de Medicina Legal de Coimbra à mãe da menor, ao réu e à menor”.
Seguidamente, a Exª Juiz titular do processo, através do despacho constante de folhas 256, determinou a notificação do réu para estar presente, no Instituto Nacional de Medicina legal, Delegação de Coimbra, no dia 12 de Junho de 2008, pelas 9,30 horas, advertindo-o de que a recusa tem como consequência a inversão do ónus da prova.
Contudo, não obstante o Exº Advogado do réu ter sido notificado do teor desse despacho, que dele reagiu, através de recurso, que não foi admitido, a carta registada enviada ao réu foi devolvida com a indicação de que “não atendeu, pelas 10,30 horas, do dia 26 de Maio de 2008, tendo sido avisado, na Estação dos CTT de Miranda do Corvo, não sendo a carta reclamada, até ao dia 5 de Junho de 2008”, conforme resulta do conteúdo dos documentos de folhas 258, 259, 261, 262 e 267.
Prosseguindo a tramitação processual com a audiência de discussão e julgamento, que foi designada para o dia 8 de Outubro de 2008, o réu nada disse sobre a situação faltosa ocorrida ao exame sanguíneo, quer, anteriormente, após a notificação da não admissão do recurso, quer, posteriormente, incluindo nas alegações da apelação, como já se salientou, tendo apenas suscitado esta questão, «ex novo», na presente revista.
Com efeito, a eventual nulidade decorrente da não realização do exame pericial determinado deveria ter sido arguida, no prazo de dez dias, a partir do momento em que o réu se apercebeu que o processo iria prosseguir sem a realização dessa diligência, com o limite impreterível do dia 4 de Setembro de 2008, data em que expirou o aludido prazo de dez dias úteis sobre a notificação da continuação daquela audiência de discussão e julgamento.
E, não tendo o réu arguido essa hipotética nulidade, dentro do prazo legal definido pelo artigo 153º, nº 1, deve a mesma considerar-se sanada, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 201º, nº 1, 205º, nº 1 e 206º, nº 3, todos do CPC, de acordo com o princípio processual consagrado de que «das nulidades reclama-se e dos despachos recorre-se», não sendo esta situação susceptível de recurso, e, muito menos, pela primeira vez, em sede de revista, para este Supremo Tribunal de Justiça.
Dispõe ainda o artigo 253º, nº 2, do CPC, que “quando a notificação [às partes em processos pendentes] se destine a chamar a parte para a prática de acto pessoal, além de ser notificado o mandatário, será também expedido pelo correio um aviso registado à própria parte, indicando a data, o local e o fim da comparência”, sendo certo que a notificação postal presume-se feita no terceiro dia posterior ao do registo, ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja, e não deixa de produzir efeito pelo facto de o expediente ser devolvido, desde que a remessa tenha sido feita para o domicílio escolhido; nesse caso, ou no de a carta não ter sido entregue por ausência do destinatário, juntar-se-á ao processo sobrescrito, presumindo-se a notificação feita no dia a que se refere o número anterior, sendo certo que esta presunção só pode ser ilidida pelo notificado provando que a notificação não foi efectuada ou ocorreu em data posterior à presumida, por razões que lhe não sejam imputáveis, nos termos do estipulado pelo artigo 254º, nºs 2, 3 e 4, também, do CPC.
A isto acresce que a carta registada dirigida ao réu, com o fim de o notificar da comparência para a realização do exame pericial, foi expedida para a morada que consta do processo, como já havia acontecido com a carta de citação para os termos da acção, mas que o réu deixou devolver, sem reclamação postal, apesar de, devidamente, avisado pela mesma Estação dos CTT, acabando o seu mandatário judicial por apresentar a contestação.
E o poder de direcção do processo articulado com o princípio do dispositivo impõe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer, por força do estipulado pelo artigo 265º, nº 3, do CPC, sendo o não uso desse «poder-dever» matéria sindicável, em via de recurso, mesmo pelo Supremo Tribunal de Justiça, porquanto, muito embora contenda com a matéria de facto, traduz-se, afinal, numa questão de desaplicação ou errada aplicação da lei.
Porém, o Tribunal de 1ª instância assumiu esse «poder-dever» de ordenar a realização do exame hematológico, sobrestando na conclusão da produção de prova, até que o mesmo estivesse concluído, só prescindindo desse intento quando o réu faltou à diligência, sem haver justificado a ausência, ou, em derradeira hipótese, sem ter requerido a marcação de um novo exame, quando foi notificado da continuação da audiência de discussão e julgamento.
E nada disto tendo feito o réu, sendo certo que já constava do despacho de viabilidade da presente acção, a que alude o artigo 1865º, nºs 4 e 5, do Código Civil (CC), que “o indigitado progenitor não aceitou sujeitar-se a exames de investigação de paternidade”, tendo-se o réu indisponibilizado à realização do exame hematológico e não sendo caso de o compelir a sujeitar-se à sua observância, atento o disposto pelo artigo 519º, nº 3, a), do CPC, não se verifica qualquer omissão no cumprimento do «poder-dever» de o Tribunal determinar a realização das diligências que, ele próprio, no início da audiência, e não o réu, por exemplo, na apresentação dos meios de prova, entendeu necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio.
Assim sendo, deve considerar-se o réu, devidamente, notificado, quer na sua pessoa, quer na do seu Exº Advogado, da realização do exame hematológico a que faltou e, aliás, sem apresentar justificação, no passado dia 12 de Junho de 2008, pelas 9,30 horas, inexistindo, consequentemente, qualquer nulidade processual a registar.
II. DA PATERNIDADE DA MENOR
Entende ainda o recorrente que a falta de colaboração do réu em submeter-se ao exame hematológico, em acção de investigação de paternidade, tem a sanção prevista no artigo 357°, nº 2, do CC, não se aplicando, «in casu», o disposto no artigo 519°, do CPC, e, nunca por nunca, o preceituado pelo artigo 344°, nº 2, do CC.
A propósito do dever de cooperação para a descoberta da verdade, dispõe o artigo 519º, do CPC, no seu nº 1, que “todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade,…praticando os actos que forem determinados”, e, sendo o recusante parte, prossegue o respectivo nº 2, 2ª parte, “…o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no nº 2 do artigo 344º, do Código Civil”.
Tendo o réu faltado ao exame e mantido o silêncio, não tomando qualquer posição quanto a uma futura disponibilidade para se submeter ao mesmo, a não ser agora, nas alegações de revista, e não havendo agravado da decisão que o determinou, limitando-se a inviabilizar a sua realização, devido à falta verificada, encontra-se já precludida a reacção que assumiu contra a sua pertinência e legalidade.
E, nem se diga, que a questão agora como se transmuta, saindo da esfera formal da inadmissibilidade da prova do exame hematológico para incidir no valor probatório da recusa do réu.
Efectivamente, ordenado o exame pericial que, naturalmente, pressupunha a colaboração do réu, imposta pelo artigo 519º, nº 1, do CPC, já transcrito, o seu silêncio e falta de reacção tempestiva útil impôs a aquisição processual da pertinência e legalidade daquele despacho, deixando esgotar a possibilidade de o discutir ou por em causa, tornando inevitável que, em sede factual, o Tribunal apreciasse, livremente, o valor da mesma recusa, para efeitos probatórios, em matéria não subordinada a qualquer tipo de prova legal.
Na verdade, a recusa do cumprimento pelas partes do dever de cooperação para a descoberta da verdade, imposto pelo artigo 519º, nº 1, do CPC, tem a sanção consagrada no artigo 357º, nº 2, do CC, que determina que “…o tribunal apreciará livremente o valor da conduta da parte para efeitos probatórios”, em conformidade com o princípio mais geral da convicção racional, estabelecido pelo artigo 655º, nºs 1 e 2, do CPC, que combina o sistema da livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva ou legal.
Não pode, portanto, o réu, sob pretexto da impossibilidade legal de atribuir valor probatório à sua recusa, recuperar a questão da validade do exame hematológico que deixou precludir.
Uma das presunções legais de paternidade consiste, segundo o disposto no artigo 1871º, nº 1, e), do CC, na situação em que ”se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o período legal de concepção”.
Diversamente, do que acontecia na redacção originária do Código Civil de 1966, que consagrava as condições ou pressupostos de admissibilidade da acção de investigação, que constituíam presunção de facto ou presunção judicial de paternidade, a Revisão do Código Civil, que entrou em vigor a 1 de Abril de 1978, converteu-as em simples presunções de paternidade, às quais atribuiu, porém, uma força probatória especial, que não coincide com a força probatória normal das meras presunções judiciais ou de facto, mas, também, não se identifica com a força probatória típica das presunções legais. (1)
Assim sendo, transitou-se de um sistema de pressupostos da investigação de paternidade para um regime de presunções da relação biológica de paternidade do investigado, com valor probatório, especialmente, fixado na lei.
Tendo-se provado que o réu e a CC, mãe da menor BB, mantiveram relacionamento sexual, como se de marido e mulher se tratasse, ocorrendo o nascimento desta, no termo da gravidez que sobreveio a sua mãe, em consequência das diversas relações sexuais de cópula completa, mantidas entre esta e o réu, designadamente, nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento de sua filha, está, por consequência, estabelecida a filiação biológica.
Ora, a averiguação da filiação biológica constitui matéria de facto da exclusiva competência das instâncias, o que significa, neste particular, que não há lugar a recurso de revista da decisão proferida pela 1ª instância ou pela Relação, relativamente aos factos que interessam à acção, como, também, da decisão que, baseada em puros factos, julgue ou não provada a relação biológica de filiação. (2)
E, se as instâncias não tiveram dúvidas sérias quanto ao estabelecimento da paternidade, não existe fundamento legal para este Supremo Tribunal de Justiça fazer ilidir a presunção de paternidade do réu, em relação à menor BB, nos termos e para os efeitos do disposto pelo artigo 1871º, nºs 1, e) e 2, do CC.
Ainda que o Tribunal de 1ª instância tenha fundado a convicção de que entre a mãe da menor e o réu existiram relações sexuais de cópula completa, no período legal da concepção da menor, com base na recusa daquele em submeter-se ao exame hematológico, em que assentou a presunção de paternidade do réu em relação à menor, e que o mesmo não logrou ilidir, nos termos do estipulado pelo artigo 1871º, nº 2, do CC, ao ficar demonstrada, designadamente, a factualidade constante do ponto nº 13 da base instrutória, segundo a qual “A CC apenas com o R. manteve relações sexuais nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento de sua filha”.
Assim sendo, o Tribunal agiu, no âmbito das regras definidas pelos artigos 519º, nº 1, do CPC, e 357º, nº 2, do CC, apreciando, criticamente, o valor da sua conduta, para efeitos probatórios, o que não pode ser sindicado pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Improcedem, assim, com o devido respeito, as conclusões constantes das alegações do réu, não se mostrando violadas as disposições legais pelo mesmo invocadas ou outras de que, oficiosamente, importe conhecer.
CONCLUSÕES:
I - Tendo a Relação conhecido, expressamente, das questões suscitadas na apelação e inexistindo quaisquer outras que sejam de conhecimento oficioso, não se verifica a arguida causa de nulidade, por omissão de pronúncia.
II – O Tribunal assume o «poder-dever» de ordenar a realização das diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio quando, no início da audiência, sobrestando na conclusão da produção de prova pessoal, determina um exame hematológico ao réu.
III – Tendo o réu deixado de comparecer ao exame designado, sem haver justificado a falta, nem ter requerido a marcação de um novo exame ou agravado da decisão que o determinou, não pode, sob pretexto da impossibilidade legal de atribuir valor probatório à sua recusa, recuperar a questão da validade do exame hematológico que deixou precludir.
IV - Ainda que o Tribunal de 1ª instância tenha fundado a convicção de que entre a mãe do menor e o réu existiram relações sexuais de cópula completa, no período legal da concepção do menor, com base na recusa do réu em submeter-se a exame hematológico, na qual assentou a presunção de paternidade, que o réu não logrou ilidir, agiu no âmbito das regras definidas pelos artigos 519º, nº 1, do CPC, e 357º, nº 2, do CC, apreciando, criticamente, o valor da sua conduta, para efeitos probatórios, que este STL não pode sindicar.
DECISÃO:
Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em negar a revista, confirmando, inteiramente, o douto acórdão recorrido.
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Custas da revista, a cargo do réu.
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Notifique.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 2010
Hélder Roque (Relator)
Sebastião Póvoas
Moreira Alves
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(1) Antunes Varela, RLJ, Ano 117º, 55, nota (1).
(2) Assento do STJ, de 25-7-1978, BMJ nº 279, 79.