Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 4ª SECÇÃO | ||
Relator: | JÚLIO GOMES | ||
Descritores: | ACIDENTE DE TRABALHO PRATICANTE DESPORTIVO RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA | ||
Data do Acordão: | 09/25/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA. | ||
Doutrina: | - JOANA CARNEIRO, Prontuário de Direito do Trabalho 2017, n.º 1, p. 99 e ss. e 122. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 615.º, N.º 1, ALÍNEA D). LEI DE ACIDENTES DE TRABALHO (LAT): - ARTIGO 78.º. LEI N.º 27/2011, DE 16-06: - ARTIGOS 2.º, N.º 3 E 5.º. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 30-04-2008, PROCESSO N.º 07S4749. | ||
Sumário : | I. As normas legais respeitantes a acidentes de trabalho são imperativas e consagram direitos inalienáveis e irrenunciáveis (artigo 78.º da LAT) sendo de conhecimento oficioso. II. No julgamento da matéria de facto nada impede que a Relação aprecie a fundamentação da 1.ª instância e adira à mesma, o que cabe na sua livre apreciação das provas produzidas no processo (salvo aquelas que têm valor legal tabelado) e na sua livre convicção. III. A manutenção da taxa de incapacidade agravada mesmo depois dos 35 anos justifica-se pelas especiais dificuldades da reconversão profissional a que é forçado o desportista profissional e pela perda de oportunidades que a lesão pode acarretar, não sendo inconstitucional por violação do princípio da igualdade esta interpretação dos artigos 2.º n.º 3 e 5.º da Lei n.º 27/2011. IV. O dano que se visa reparar, em matéria de acidentes de trabalho, não é, em rigor, o da perda das retribuições, mas antes o da perda da capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte, sendo que a incapacidade de trabalho não pode confundir-se com a perda das retribuições. V. Não se verifica qualquer enriquecimento injustificado do trabalhador à custa do segurador, mesmo quando o empregador continuou a pagar as retribuições durante parte do período de incapacidade, porquanto qualquer enriquecimento a existir seria à custa do empregador e seria estranho ao contrato de seguro, não podendo ser invocado pelo segurador. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça
Relatório
AA, residente na Rua ..., n.º …, …, ..., intentou ação especial emergente de acidente de trabalho contra: BB, S.A., com sede na ..., nº ..., Lisboa; CC, S.A., com sede na Rua ..., Porto; DD, S.A., com sede no ..., nº … Lisboa; EE, S.A., com sede no ..., ..., pedindo que as Rés sejam condenadas, na proporção da respetiva responsabilidade, a pagar-lhe: - A pensão anual e vitalícia de € 64.320,00; - A quantia de € 89.148,49 de indemnização pela incapacidade temporária absoluta; - A quantia de € 4.869,64 de subsídio por situação de elevada incapacidade permanente; - A quantia de € 30,00, relativa a despesas de transportes que despendeu em deslocações obrigatórias a tribunal, tudo acrescido dos respectivos juros de mora. As Rés contestaram, pedindo que a ação fosse julgada improcedente e as Rés absolvidas do pedido. Realizado o julgamento foi proferida foi proferida sentença, que terminou com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, julgo: A) A excpção da caducidade do direito de acção invocado pelas RR. improcedente, por não provada; B) A ação parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência, condeno as RR. “BB, SA”, “CC, SA”, “DD …, SA” e “ EE, SA” a pagar ao A., na proporção das suas responsabilidades: I- Desde o dia 02/03/2013, a pensão anual e vitalícia de € 63,360,00 (sessenta e três mil, trezentos e sessenta euros), que é devida até à data que o A. complete 35 anos de idade (cfr. nº 2 do artº 3º da Lei 27/2011, de 26 de Junho; Pensão que se atualiza para os seguintes montantes: - Desde 1 de Janeiro de 2014: € 63 613,44 (sessenta e três mil, seiscentos e treze euros e quarenta e quatro cêntimos); - Desde 1 de Janeiro de 2016: € 63 867,89 (sessenta e três mil, oitocentos e sessenta e sete euros e oitenta e nove cêntimos); - Desde 1 de Janeiro de 2017: € 64 187,23 (sessenta e quatro mil, cento e oitenta e sete euros e vinte e três cêntimos); - Desde 1 de Janeiro de 2018: € 65 342,60 (sessenta e cinco mil, trezentos e quarenta e dois euros e sessenta cêntimos); II - O subsídio de elevada incapacidade no valor de € 5.201,66 (cinco mil, duzentos e um euros e sessenta e seis cêntimos) - artº 67º, n.º 1 da Lei 98/09 de 04/09; III - A quantia de € 66 728,77 (sessenta e seis mil, setecentos e vinte e oito euros e setenta e sete cêntimos) de indemnizações pelo período de ITA; IV- A quantia € 30,00 (trinta euros) nas deslocações ao tribunal e ao GML, sendo todas as quantias acrescidas de juros de mora, à taxa de 4%, nos termos do disposto no artº 135º do C. P. Trabalho, desde as datas dos respetivos vencimentos até integral pagamento. O Autor veio requerer a retificação de inexatidão contida na sentença, ao abrigo do disposto no art.º 614.º do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 1.º n.º 2 al. a) do CPT, sustentando que na sentença se declara que tem direito a uma pensão anual e vitalícia, mas apenas condena as Rés no pagamento de uma pensão temporária até aos 35 anos. A sua pretensão veio a ser indeferida, por despacho proferido em 16/05/2018. Inconformados, tanto o Autor como as Rés Seguradoras recorreram. O Tribunal da Relação proferiu Acórdão com o seguinte teor: «Nestes termos, acorda-se neste Tribunal da Relação de ... em: No mais, mantém-se a sentença recorrida, devendo as Rés comprovar nos autos que procederam às devidas atualizações da pensão». . Novamente inconformados as Rés seguradoras interpuseram recurso de revista com as seguintes Conclusões: O Recorrido contra-alegou. O Ministério Público emitiu Parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso e confirmado o Acórdão recorrido.
Fundamentação
De Facto
As instãncias consideraram provados os seguintes factos:
1- O A. e a “GG, SAD” celebraram em 25 de Janeiro de 2010 um contrato de trabalho desportivo para vigorar entre o dia 1 de Julho de 2010 e o dia 30 de Junho de 2015 (al A) da matéria de facto assente). 2- Na época desportiva de 2011/2012, o clube obrigou-se a pagar ao jogador a retribuição anual de € 96.000,00 (noventa e seis mil euros) (al B) da matéria de facto assente). 3- Na época desportiva de 2011/2012, o A. foi cedido temporariamente ao FF(al C) da matéria de facto assente). 4- No dia 04 de Fevereiro de 2012, o Autor encontrava-se constipado (nº1 da base instrutória). 5- O departamento médico da sua entidade empregadora entendeu que este estava em condições de participar no jogo oficial entre o FF e HH, que se iniciou às 20:30h e que se disputou no Estádio ..., em ..., ... (nº2 da base instrutória). 6- O A. disputou o identificado jogo (nº3 da base instrutória). 7- Esse jogo realizou-se num terreno de jogo relvado, que se encontrava “pesado” por antes de se iniciar o jogo ter caído chuva (nº4 da base instrutória). 8- A temperatura atmosférica durante o referido jogo situou-se entre os 3 e os 5 graus celsius (nº5 da base instrutória). 9- Após jogar mais de 80 (oitenta) minutos e depois de efetuar um sprint de aproximadamente 30 metros, o A. tentou intercetar a bola que estava na posse do colega da equipa adversária II (nº6 da base instrutória). 10- E nessa altura atingiu o identificado colega com o seu joelho e ficou a sangrar do joelho (nºs 7º e 8º da base instrutória). 11- Passados uns minutos, o autor baixou-se para limpar o joelho ensanguentado e quando se levantou começou a sentir-se mal, designadamente, começou a ver tudo branco e a deixar de ver com nitidez (nº 9 da base instrutória). 12- Após o sinistrado manteve-se em campo e tentou retomar a atividade (nº 10º da base instrutória). 13- O A. continuou a sentir-se muito indisposto, sem forças e teve de se sentar no relvado e solicitar assistência médica (nº 11 da base instrutória). 14- O A. foi, de imediato, assistido pelo departamento médico do FF(nº 12º da base instrutória). 15- E o departamento médico deu indicações para que o A. fosse para o balneário (nº 13º da base instrutória). 16- Nessa altura o A. foi transportado de maca para o balneário (nº 14º da base instrutória). 17- E, no balneário, o A. ficou deitado durante uns minutos e começou a deixar de sentir os seus membros inferiores e a sentir muito frio (nº 15º e 18 da base instrutória). 18- E, o departamento médico do FF decidiu chamar o INEM (Instituto Nacional de Emergência Médica), que enviou uma ambulância para o local (nº 19º da base instrutória). 19- O A. foi, então, levado de maca para a ambulância e depois foi transportado para o Hospital de ... (nº 20º da base instrutória). 20- O A. deu entrada no Hospital de ... – Centro Hospitalar do ..., EPE (nº 21º da base instrutória). 21- E, foi-lhe detetada uma arritmia cardíaca (taquicardia ventricular) (nº 22º da base instrutória). 22- Que foi convertida num ritmo normal por cardioversão elétrica com 50 J, (num choque elétrico no tórax aplicado por aparelho de Desfibrilhação) (nº 23º da base instrutória). 23- O A. ficou em observação durante dois dias no Centro Hospitalar do ..., EPE (nº 24º da base instrutória). 24- E teve alta do hospital no dia 06/02/2012 (nº 25º da base instrutória). 25- Após a alta hospitalar, o A. recebeu indicações por parte do departamento médico do FF e do GG – … SAD para se apresentar em Lisboa de modo a efetuar exames complementares (nº 26º da base instrutória). 26- No dia 10/02/2012, o A. efetuou uma ressonância magnética cardíaca no ... em Lisboa (nº 27º da base instrutória). 27- E, em 15/02/2012, efetuou um estudo eletrofisiológico (EEF) inicial diagnóstico no Hospital … (nº 28º da base instrutória). 28- E, a partir desta data, o A. passou a ser acompanhado pelo Dr. JJ(nº 29º da base instrutória). 29- E, por indicação do Dr. JJ, no dia 28/02/2012, efectuou novo estudo eletrofisiológico no Hospital …, em Lisboa (nº 30º da base instrutória). 30- Após, o A. obteve autorização para retomar a atividade desportiva, tendo ficado acordado que iria treinar-se sob vigilância médica (nº 31º da base instrutória). 31- Em 09/05/2012, durante um exercício de corrida, o A. voltou a sentir uma alteração do seu ritmo cardíaco (nº 32º da base instrutória). 32- E, teve de ser assistido no Centro ... (nº 33º da base instrutória). 33- E, nos dias 29 e 30 de Maio de 2012, o autor voltou a efetuar estudos eletrofisiológicos no Hospital …, em Lisboa (nº 34º da base instrutória). 34- E, no dia 29/05/2012, o Dr. JJ realizou um estudo eletrofisiológico (introdução de cateteres para análise do sistema elétrico do coração) ao A. que demorou aproximadamente 8 (oito) horas (nº 35º da base instrutória). 35- E, no dia imediatamente seguinte, voltou a fazer novo estudo eletrofisiológico, que demorou cerca de 9 (nove) horas (nº 36º da base instrutória). 36- Após um período de internamento de aproximadamente 15 (quinze) dias, o A. teve alta hospitalar (nº 37º da base instrutória). 37- E, recebeu indicações por parte do seu médico assistente, Dr. JJ, para retomar a atividade desportiva moderada, sob avaliação médica para que se avaliasse se a arritmia cardíaca aparecia com o esforço ou se a questão já se encontrava definitivamente normalizada (nº 38º da base instrutória). 38- Após, o A. retomou, então, a prática de atividade física, tendo começado a efetuar exercícios de corrida moderada e por períodos não superiores a uma hora (nº 39º da base instrutória). 39- No dia 12/10/2012, o autor voltou a efetuar nova ressonância magnética cardíaca (nº 40º da base instrutória). 40- Em Janeiro de 2013, em dia indeterminado, o A., após terminar um exercício de corrida em ritmo moderado que realizava na companhia do seu pai KK, começou a sentir tonturas e a perder força (nº 41º da base instrutória). 41- E, perdeu a consciência, tendo sido o seu pai a agarrá-lo e a impedir que caísse no chão (nº 42º da base instrutória). 42- Após alguns instantes, o A. retomou a consciência (nº 43º da base instrutória). 43- Em consequência, o Autor foi observado pelo Dr. JJ, que verificou a presença de palpitações e sensação de lipotíma com o esforço físico (nº 44º da base instrutória). 44- Em nova prova de esforço efetuada no centro de medicina desportiva, em Lisboa no dia 07/02/2013, houve evidência de taquicardia ventricular durante cerca de 2 minutos, já no período de recuperação (nº 45º da base instrutória). 45- O A. foi novamente observado pelo Dr. JJ, em 03/04/2013, no ... em Lisboa (nº 46º da base instrutória). 46- E, decidiu-se que o A. iria fazer medicamentação (...) durante um período de 4 meses para experimentar se, por esta via, era possível controlar a ocorrência de arritmias cardíacas (nº 47º da base instrutória). 47- A verificar-se a falência desta terapêutica, o A. teria de sujeitar-se ao implante de um cardioversor desfibrilhador (nº 48º da base instrutória). 48- Após os 4 meses de ingestão da medicação prescrita concluiu-se que não seria necessário realizar o implante do cardioversor desfibrilhador, por a situação do A. ser controlável com a medicação (nº 49º da base instrutória). 49- O A. terá de tomar esse medicamento até ao resto da sua vida (nº 50º da base instrutória). 50- Em 19 de Setembro de 2013, o Dr. JJ atribuiu alta clínica ao sinistrado, considerando que “a situação clínica do sinistrado se encontra consolidada e insuscetível de modificação com terapêutica adequada.” (nº 51º da base instrutória). 51- E, “…à contra-indicação absoluta para a prática desportiva de competição, pelo risco de ocorrência de disritmia ventricular maligna e morte súbita” (nº 52º da base instrutória). 52- O A. esteve afetado de ITA desde 04-02-2012 até 01-03-2013 (nº 53º da base instrutória). 53- Nesta última data foi-lhe dada alta clínica (nº 54º da base instrutória). 54- Em consequência dos factos descritos nos nºs 4 a 24 o A. ficou afectado a IPP de 60% a que corresponde a IPP de 85% prevista na tabela de comutação específica para a atividade de praticante desportivo profissional, anexa à Lei nº 27/11 de 16/06 (cfr. artº 5º da última Lei referida). 55- O FF assumiu a responsabilidade integral por qualquer lesão do jogador no decurso da época desportiva de 2011/2012, assim como o respetivo tratamento e recuperação (al. D) da matéria de facto assente). 56- O FF transferiu a sua responsabilidade civil por acidentes de trabalho para as Rés, por contrato de seguro, titulado pela apólice nº ..., pela retribuição anual referida no nº 2 supra (na al. B) dos factos assentes), tendo cada uma das Rés aceite uma parte da responsabilidade, designadamente: -1.ª Ré: 55%; -2ª Ré: 20%; -3ª Ré: 15%; -4ª Ré: 10% (al E) da matéria de facto assente). 57- A entidade empregadora acordou com as referidas seguradoras uma franquia de 30 dias no que diz respeito às incapacidades temporárias (al F) da matéria de facto assente). 58- A entidade empregadora do A. pagou-lhe integralmente o seu salário até 06/06/2012 (al G) da matéria de facto assente). 59- O A. despendeu a quantia de € 30,00 nas deslocações ao tribunal e ao GML (nº 55º da base instrutória). 60- Frustrou-se a tentativa de conciliação pelos fundamentos constantes do auto de conciliação de fls.85 a 87, cujo teor dou aqui por integralmente reproduzido (al H) da matéria de facto assente).
De Direito
No seu recurso de revista os Recorrentes, LL SA e Outras, suscitam quatro questões: Cumpre analisar as referidas questões, pela ordem enunciada. A nulidade da sentença por excesso de pronúncia ocorre quando o juiz conhece de questões de que não podia tomar conhecimento 8artigo 615.º, n.º 1, alínea d). E o juiz ”não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras” (artigo 608.º, n.º 2 do CPC, parte final). Ora as normas legais respeitantes a acidentes de trabalho são imperativas e consagram direitos inalienáveis e irrenunciáveis (artigo 78.º da LAT) pelo que são de conhecimento oficioso. Não se verifica, pois, a alegada nulidade por excesso de pronúncia. Relativamente à segunda questão importa, antes de mais, referir que, de acordo com o n.º 1 do artigo 662.º do CPC, ”a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. O julgamento em matéria de facto realizado pelo Tribunal da Relação insere-se em um recurso e não pode ignorar a decisão previamente tomada pela 1.ª instância até para determinar se se impõe decisão diversa. E nada impede, ao contrário do que pretendem os Recorrentes, que a Relação aprecie a fundamentação daquela 1.ª instância e adira à mesma, o que cabe na sua livre apreciação das provas produzidas no processo (salvo aquelas que têm valor legal tabelado) e na livre convicção. Aliás, no caso dos autos o Acórdão recorrido teve o cuidado de sublinhar que «a prova produzida permite-nos afirmar que foi o esforço físico (causa exógena) que o sinistrado despendia na altura que foi determinante e precipitante da lesão que lhe causou sequelas que o impedem de voltar a desempenhar a sua atividade profissional. E ainda que fosse portador de focos arritemogénicos, tal não configuraria uma verdadeira doença anterior, mas apenas uma predisposição patológica para a ocorrência de arritmias, sendo por isso necessária a verificação de um evento, que fizesse despoletar a arritmia». O Acórdão recorrido analisa as afirmações e conclusões dos peritos, sublinha que «todos os médicos foram unânimes ao afirmar a inexistência de qualquer relatório clínico ou exame médico que permitisse comprovar que o sinistrado fosse portador de qualquer doença do foro cardíaco até à arritmia que sofreu em 4/02/2012» (p. 28 do Acórdão), e adere à decisão da 1.ª instância também na sua valoração da prova testemunhal. O julgamento da matéria de facto acha-se, assim, fundamentado e tendo em conta o princípio da livre convicção, a circunstância de o Tribunal da Relação não ter tomado decisão diversa em matéria de facto não é, em si mesma, sindicável por este Tribunal, à luz do disposto no n.º 4 do artigo 662.º do CPC.
Quanto à terceira questão há que destacar que a solução encontrada pelo Tribunal da Relação no Acórdão recorrido encontra arrimo na letra da lei, remetendo o artigo 5.º da lei n.º 27/2011 para os casos previstos nos artigos anteriores, resultando também do limite específico criada na alínea b) do artigo 4.º que a lei teve em conta a possibilidade de a incapacidade se prolongar para além dos 35 anos de idade. Os Recorrentes defendem, no entanto, a inconstitucionalidade de esta interpretação por violação do princípio da igualdade: seria compreensível que enquanto realizasse uma atividade desportiva profissional o praticante desportivo beneficiasse de uma IPP específica e agravada, mas a partir dos 35 anos ou ao menos quando realizasse uma outra atividade profissional e já não fosse praticante desportivo profissional não haveria razões, sob pena de violação do princípio da igualdade, para continuar a aplicar essa IPP específica e agravada, porquanto apenas passaria a estar em jogo «a perda da capacidade de ganho genérica de que [tais trabalhadores] ficam a padecer após o término da carreira» (Conclusão n.º 28). A tabela de comutação específica dos praticantes desportivos, aliás já prevista no artigo 2.º n.º 3 da Lei n.º 8/2003 e atualmente constante do artigo 5.º da Lei n.º 27/2011 demonstra, nas palavras de JOANA CARNEIRO, «uma justa apreciação da situação do sinistrado face às especificidades resultantes de uma lesão quando este é desportista profissional, tentando, assim, colmatar as eventuais desigualdades resultantes do facto de o atleta ser efetivamente diferente de um sinistrado que não utiliza, de modo tão intenso, as capacidades físicas na sua profissão»[1]. Mas será que esta especial tutela de um profissional face a uma atividade de desgaste rápido apenas se justifica até aos 35 anos e já não quando o desportista profissional é forçado a «reconverter-se» a outra atividade profissional? Ou seja, será que a lei ao manter a taxa de incapacidade agravada não terá sido, no fim de contas, sensível às especiais dificuldades desta reconversão e ao facto de que alguns praticantes desportivos procuram frequentemente reconverter-se ou requalificar-se em atividades ainda ligadas ao desporto (como a de treinadores ou técnicos desportivos) e em que ainda podem relevar as sequelas de um acidente ocorrido quando eram praticantes desportivos? Além desta perda de oportunidade é ainda necessário ter em conta que o desporto profissional é tão exigente que mesmo em fase anterior o aspirante a praticante desportivo vê amiúde limitada a sua educação profissional e a sua capacidade para, mais tarde, procurar outra profissão. Em suma, não é inteiramente igual a situação de quem nunca foi praticante desportivo e a de quem o foi tendo depois que exercer outra atividade profissional, e podendo ainda padecer das consequências de um acidente conexo com uma atividade bem mais exigente também do ponto de vista físico daquela a que estão sujeitos muitos outros trabalhadores. E esta «pós-eficácia» da especial proteção do trabalhador que foi um praticante desportivo não viola, então, o princípio da igualdade, pelo que não existe a inconstitucionalidade invocada. Resta a quarta questão suscitada pelos Recorrentes. A premissa de que partem é a de que «a responsabilidade das Rés é a do FF, seu segurado, para si transferida pelo contrato de seguro obrigatório de acidente de trabalho, pelo que respondem exatamente na mesma medida que aquele» (Conclusão n.º 32) e «as indemnizações por incapacidades temporárias previstas no artigo 48.º, n.º 3 da LAT visam reparar um dano, qual seja o da perda da retribuição (total ou parcial) durante o tempo de incapacidade temporária» (Conclusão n.º 33). Mas será exata tal premissa? Da leitura da LAT (Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro), mais precisamente do seu artigo 8.º n.º 1 e dos seus artigos 48.º e seguintes resulta que o dano que se visa reparar não é, em rigor, o da perda das retribuições, mas antes o da perda da capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte. Como se vê a lei autonomiza a perda da capacidade de trabalho e trata-a como um dano autónomo e indemnizável. E tal perda verifica-se mesmo se o empregador continua a pagar a retribuição dutante uma parte do período em que o trabalhador viu a sua capacidade de trabalho reduzida. Aliás, e como já decidiu este Tribunal, a incapacidade de trabalho não pode confundir-se com a perda das retribuições[2]. E se o empregador pagou a retribuição fosse como contrapartida da disponibilidade, fosse por erro ou por liberalidade para com o trabalhador, tal não deve beneficiar o segurador que tem que realizar a prestação a que se obrigou pelo contrato de seguro (e pela qual recebeu os respetivos prémios). Razão pela qual também não se pode pretender que o trabalhador se enriqueceu à custa do segurador – qualquer enriquecimento a existir seria à custa do empregador, seria estranho ao contrato de seguro e não pode ser invocado pelo segurador. Improcede, pois, também esta argumentação dos Recorrentes.
Decisão: Negada a revista, confirmando-se o Acórdão recorrido. Custas do recurso pelos Recorrentes. Lisboa, 25 de setembro de 2019
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