Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | SEBASTIÃO PÓVOAS | ||
Descritores: | CULPA PRESUMIDA CONDUTOR COMISSÁRIO ACIDENTE DE VIAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | SJ2009030302761 | ||
Data do Acordão: | 03/03/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | 1) Ao atravessar a faixa de rodagem impõe-se ao peão que se certifique dos veículos que nela transitam, da distância que dele os separa e da velocidade aproximada que os anima, não invadindo a faixa da esquerda – de ultrapassagem – se encoberto por um pesado que circula na da direita, por ser previsível o aparecimento de outros veículos a ultrapassarem aquele.
2) Não é exigível aos condutores que contem com a negligência ou inconsideração de outros utentes da via, salvo tratando-se de crianças – com comportamentos geralmente imprevisíveis – deficientes ou muito idosos – com limitações no seu controlo – ou animais desacompanhados ou sem trela. 3) Deve antes partir do princípio que se ele cumpre todos os preceitos reguladores do trânsito aos outros também é exigível que os cumpram. 4) Na responsabilidade extra-contratual, é regra ser ao lesado que cumpre provar a culpa do lesante, com factos que normalmente a integram, a este provar factos que a excluem ou impedem a eficácia dos seus elementos constitutivos. A regra é afastada havendo presunção de culpa. 5) O n.º 3 do artigo 503.º do Código Civil (na interpretação do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Abril de 1983) presume a culpa do condutor do veículo por conta de outrem pelos danos que causar, presunção aplicável entre ele com o lesante e o titular do direito à indemnização. 6) O condutor do próprio veículo, para além da responsabilidade subjectiva imposta a todo o causador culposo de danos, é onerado com responsabilidade objectiva que garante à vítima o direito à indemnização mesmo quem o condutor prove a sua falta de culpa desde que o acidente resulte de risco próprio do veículo. 7) Já o condutor por conta de outrem, não conduzindo o seu veículo, não está sujeito à responsabilidade objectiva mas sim a uma presunção de culpa. 8) Para estabelecer tal presunção há que demonstrar dois factos: a direcção efectiva do veículo e a relação de comissão entre o titular dessa direcção efectiva e o condutor. 9) A propriedade faz presumir a direcção efectiva, como poder real de facto sobre o veículo. 10) Mas a relação de comissão não se presume nem resulta da presunção acima referida (ou haveria uma segunda presunção, ou presunção derivada) tendo de ser alegados e provados factos que tipifiquem essa comissão, com o resulta do Acórdão Uniformizador de 30 de Abril de 1996. 11) E tal pressupõe a demonstração inequívoca de uma relação de dependência (de mando) entre o comitente e o comissário, aquele dando, ou podendo dar ordens a este, em termos de se responsabilizar o primeiro pela actuação do segundo, não bastando o mero facto de conduzir um veículo em nome ou autorizado pelo dono. 12) O comitente responde, então, solidariamente com o comissário por todos os danos causados no acidente, e não nos termos do n.º 1 do artigo 503.º do Código Civil por não estarem apenas em causa danos do risco próprio do veículo mas um dano causado por culpa (embora presumido) do condutor. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça: AA e BB intentaram acção, com processo ordinário contra “CC – Companhia de Seguros, S.A” e “DD Portugal – Companhia de Seguros, S.A”, pedindo a sua condenação solidária a pagarem, à Autora AA 77.375,00 euros e, à Autora BB, 84.925,00 euros, por danos sofridos com a morte do seu marido e pai EE, em acidente de viação – atropelamento – em que foram intervenientes dois veículos automóveis segurados nas Rés. O “Instituto de Segurança Social, IP” pediu a condenação das Rés no reembolso das quantias, entretanto, pagas e a pagar, às Autoras, a título de subsídio por morte e pensões de sobrevivência. No Tribunal Judicial da Comarca de Leiria as Rés foram absolvidas dos pedidos. Apelaram, as Autoras, para a Relação de Coimbra que confirmou o julgado. Pedem, agora, revista assim concluindo a sua alegação: - Os condutores dos veículos MM e DH, conduziam as respectivas viaturas, numa relação de comitente/comissário; - Em consequência da circulação dos mesmos, o peão EE foi duplamente atropelado, tendo sofrido lesões graves, que lhe determinaram, directa e necessariamente, a morte; - O condutor do MM – como resulta do seu depoimento – avistou o peão à distância, entre cerca de 50 m a 100 m, a atravessar a via e, não buzinou, não reduziu a velocidade imprimida à viatura, nem pôs termo à manobra de ultrapassagem, antes seguindo em frente, colheu com o espelho aquele e, logo, em seguida, o DH colheu-o também, na faixa esquerda; - A condução dos mesmos, não se coaduna com a de um condutor prudente e cuidadoso; - A culpa no acidente deveria ser imputada aos condutores dos veículos automóveis; - Ainda que, assim se não entendesse, verificar-se-ia concorrência de culpas; - Por erro de interpretação e/ou aplicação, não se mostram correctamente interpretados e aplicados, os dispositivos previstos nos arts. 70º, nº 1; 483º; 503º, nº 1; 562º; 817º do CC e, arts. 25º, nº 1, al. c); 38º, nº 1, al. a); 102º, nº 2, al. a) do C.E. Na contra-alegação foi defendido o julgado. As instâncias deram por provada a seguinte matéria de facto: 1. No dia 14 de Maio de 1999, cerca das 20.30 h, no IC2 ao km 123,1 junto à localidade de Leiria, ocorreu um acidente de viação – atropelamento – em que foram intervenientes, o peão EE e os veículos ligeiro de passageiros, de matrícula 00-00-MM e ligeiro de mercadorias, de matrícula 00-00-DH (A); 2. O MM era pertença de “MC Rent Aluguer de Longa Duração, SA” e era conduzido por FF, que o conduzia sob as ordens, instruções e estava subordinado, na qualidade de motorista, a “Paulo & Isabel Fragoso – Maceira Lis” (B); 3. O DH era pertença de “Transportes de Mercadorias Órfão, Lda” e era conduzido por GG, que o fazia sob as ordens, instruções daquela e a quem estava subordinado, na qualidade de motorista (C); 4. Aquando do acidente, o referido peão foi em primeiro lugar embatido pelo veículo MM e logo a seguir pelo veículo DH, os quais circulavam no IC2 no sentido Sul-Norte (D); 5. Indo o MM à frente do DH e ambos em manobra de ultrapassagem, circulando pela faixa de rodagem mais à esquerda, das duas existentes no local e naquele sentido de marcha (E); 6. E quando o condutor do MM ultrapassava um veículo pesado que seguia mais à frente, pela faixa de rodagem mais à direita das duas existentes naquele sentido de marcha, ao avistar o referido EE, no sítio por onde o mesmo passava, accionou os órgãos de travagem do veículo, deixando, em consequência, um rasto no pavimento com 19,20 metros de comprimento, direccionado em recta de Sul para Norte (F); 7. Tendo colidido com a parte da frente esquerda no corpo do referido peão e, com o impacto projectou-o para o lado esquerdo (G); 8. De seguida, também o DH embateu com a frente no corpo do peão, impulsionando-o para a faixa de rodagem até cerca de 35,90 metros, onde este acabou por cair estatelado no solo, onde ficou prostrado (H); 9. O 1º embate ocorreu na metade esquerda da faixa de rodagem mais à esquerda, das duas possíveis no local e, naquele sentido de marcha (Sul-Norte), a 4,30 metros da berma direita da via, atento esse mesmo sentido (1); 10. O 2º embate ocorreu cerca de 10 metros mais à frente do 1º, e a 5 metros dessa mesma berma, após o que o DH se foi imobilizar a 88 metros desse local e junto ao eixo da via (J); 11. De seguida, o EE foi transportado de ambulância para o Hospital de Santo André, onde deu entrada no respectivo serviço de urgência (K); 12. Em consequência do acidente, resultaram no referido peão, várias, graves e extensas lesões corporais, que lhe determinaram directa e necessariamente a morte (L); 13. O atropelamento ocorreu após o EE ter estacionado a sua motorizada (1-CPR-00-00) no lado direito da dita via, atento o sentido Sul-Norte, fora da estrada (M); 14. O EE faleceu no dia 14 de Maio de 1999, no estado de casado com AA, tendo deixado ainda uma filha, BB, nascida a 16 de Abril de 1998, ambas ora AA e suas únicas e universais herdeiras (N); 15. A via, no local do acidente, apresentava-se em recta, plana, com dois sentidos de trânsito, tendo duas faixas de rodagem no sentido Sul-Norte, com a largura de cerca de 6,20 metros (O); 16. O piso é em asfalto e estava em razoável estado de conservação (P); 17. O tempo, à ocasião, estava limpo, seco e com boa luminosidade (Q); 18. À ocasião do acidente, o dono do veículo de matrícula 00-00-MM tinha a sua responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros em consequência da circulação daquele, transferida, por contrato de seguro, titulado pela apólice nº 2-1-43-00000000 para a Ré Companhia de Seguros Império Bonança, SA (R); 19. À ocasião do acidente, a dona do veículo de matrícula 00-00-DH tinha a sua responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros em consequência da circulação daquele transferida, por contrato de seguro, titulado pela apólice nº 45/00000000/80 para a Ré DD Portugal – Companhia de Seguros, SA (S); 20. Após o EE ter estacionado a sua motorizada, pretendeu atravessar a via para o lado oposto, e iniciou a travessia do IC2 (1º e 3º); 21. Quando já havia percorrido, perpendicularmente, toda a faixa de rodagem mais à direita a 1,15 metros da faixa mais à esquerda, das duas faixas existentes no sentido Sul-Norte, o EE foi colhido pelo MM, em consequência do que foi projectado para cima a altura concretamente não apurada (4º); 22. Antes do EE ter iniciado a travessia do IC2, o MM e o DH circulavam a velocidade de cerca de 80 quilómetros por hora, pelo menos (5º); 23. Quando o EE se veio a imobilizar, ficou a sofrer dores intensas devido às fracturas e ferimentos provocados pelos embates (9º); 24. O condutor do MM, após este veículo embater no EE, parou o MM junto à berma direita da via, atento o sentido Sul-Norte, a cerca de 100 metros do local do atropelamento (10º); 25. O EE faleceu pelas 22 horas e 10 minutos do dia 14 de Maio de 1999, no Hospital de Santo André, em Leiria (11º); 26. EE nascera em 25 de Fevereiro de 1975, e era uma pessoa cheia de vida, alegre e aparentemente saudável (13º); 27. Era trabalhador, poupado, e muito dedicado à mulher e à filha (14º); 28. Formava, com a mulher e a filha, uma família unida, dedicando uns aos outros, carinho, amor, entreajuda e solidariedade (15º); 29. Era carpinteiro de cofragem do sector da construção civil e a sua esposa estava desempregada (16º); 30.Trabalhava por conta de outrem, auferindo vencimento mensal concretamente não apurado (19º); 31. Era com o vencimento mensal auferido por EE que o agregado familiar composto pelo mesmo e pelas AA, fazia face aos encargos inerentes com alimentação, vestuário, calçado e demais encargos da vida doméstica (20º); 32. À data, as AA não auferiam qualquer rendimento, vivendo do vencimento mensal do EE (21º); 33. O EE ambicionava progredir profissionalmente e assim melhorar as suas condições de vida e do seu agregado familiar (24º); 34. Antes da perda da vida, EE sofreu dores intensas e manteve-se consciente durante algum tempo (25º); 35. A sua morte causou à A. AA grande sofrimento e mágoa, tendo ficado por causa disso deprimida e abalada, visto que a A. e o EE eram um casal muito unido (27º); 36. A BB sofre com a perda do pai, nomeadamente, por não o poder ter conhecido e lembrar-se dele (28º); 37. EE dava à BB carinho, amor, dedicação e atenção (29º); 38. O local do acidente é uma via com algum trânsito, especialmente a certas horas, é constituída por três faixas de rodagem, sendo duas no sentido Sul-Norte e uma no sendo Norte-Sul, e é ladeada de árvores (31º); 39. Tal local é ainda marginado por rails de metal (32º); 40. À ocasião, o EE, sem retirar sequer o capacete, iniciou a travessia da via, da direita para a esquerda, considerando o mesmo sentido Sul-Norte, junto ao viaduto da EN 242, e atravessou-se à frente de um veículo pesado que circulava pela faixa mais à direita das duas existentes no sentido Sul-Norte (33º e 34º); 41. Enquanto fazia a travessia do IC2,o EE esteve encoberto – para quem circulava no sentido Sul-Norte – durante algum tempo por esse mesmo veículo pesado, fazendo a travessia em passo apressado, a dado momento EE invadiu a faixa de rodagem mais à esquerda, das duas existentes no sentido Sul-Norte (35º); 42. Por essa faixa mais à esquerda circulava então o MM, a finalizar a ultrapassagem àquele veículo pesado (36º); 43. Face ao aparecimento, não esperado pelo condutor do MM, do peão EE, o condutor do MM accionou os órgãos de travagem do seu veículo e desviou-se para a direita, na tentativa de evitar embater no peão (37º); 44. Mas veio a embater no peão nomeadamente com o espelho retrovisor esquerdo, após o que, tendo sido o peão projectado para cima em consequência do embate com o veículo MM, veio então a cair sobre a parte da frente do veículo DH, que seguia à rectaguarda do MM, assim se dando o embate entre o peão EE e o DH (38º e 39º); 45. Com base no falecimento, em 14 de Maio de 1999, do beneficiário nº 110.379.670, EE, em consequência do acidente, foram requeridas no “Centro Nacional de Pensões” pela viúva, AA, por si e em representação legal da sua filha BB, ora A., as respectivas prestações por morte, as quais foram deferidas (43º); 46. Em consequência, o ISS, IP/CNP pagou à referida AA, a título de subsídio por morte e pensões de sobrevivência no período de 06/99 a 11/2004, o montante global de 13.489,19€ (44º); 47. O ISS, IP/CNP continuará a pagar ao cônjuge sobrevivo do beneficiário, a pensão de sobrevivência, enquanto esta se encontrar nas condições legais, um 13º mês em Dezembro e um 14º mês em Julho de cada ano, pensão que em 8 de Novembro de 2004 era no valor de 129,60€ para a viúva e, de 42,80€ para a filha (45º); 48. Em consequência, e incluindo já os montantes referidos na alínea anterior o ISS, IP/CNP pagou às AA. A título de subsídio de morte e pensões de sobrevivência no período de Junho de 1999 a Maio de 2007, o valor total de 19.706,38€ (fls. 371 a 381). Foram colhidos os vistos. Conhecendo, A matéria de facto acima elencada permite visualizar a dinâmica do evento pela forma seguinte: Numa via recta e plana, com cerca de 6.20 metros de largura, piso asfaltado e em bom estado de conservação, existem duas faixas de rodagem no sentido sul-norte e uma no sentido norte-sul, sendo que tem dois sentidos de trânsito. Tem algum tráfego, é marginada por rails de metal e ladeada por árvores. A vítima estacionou a sua motorizada na berma e iniciou a travessia da faixa de rodagem da direita para a esquerda, (considerando o sentido sul-norte), em passo apressado. Na faixa mais à direita – ponderando esse sentido – circulava um veiculo pesado à frente do qual atravessou essa faixa de rodagem, ficando, durante algum tempo, encoberto por esse veículo. Pela faixa imediatamente à esquerda, seguiam em manobra de ultrapassagem do pesado os veículos ligeiros, de passageiros, 00-00-MM e de mercadorias, 00-00-DH, aquele à frente deste. O condutor do primeiro avistou a vitima já 1.15 m dentro dessa faixa de ultrapassagem e a 4.30 metros da berma direita, sendo que não esperava o seu aparecimento, tendo travado de imediato e guinado para a sua direita para evitar o embate. Mas tal não logrou embatendo-o com o espelho retrovisor esquerdo e projectando-o para cima de onde caiu sobre a parte da frente do veiculo DH – que o seguia – e que também embateu na vitima. Antes da vítima iniciar a travessia, os veículos em ultrapassagem seguiam, pelo menos, a cerca de 80 km por hora. Esta factualidade permite se conclua que a conduta do peão – vítima foi inconsiderada e negligente. Iniciando a travessia da estrada com dois sentidos, imediatamente à frente de um pesado, teria de figurar que o mesmo podia – como foi – vir a ser ultrapassado e que esse veículo o encobria impedindo-o de ser visto pelos condutores que fizessem qualquer manobra de ultrapassagem. Terá, assim, violado o disposto no artigo 101.º do Código da Estrada então vigente (Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio) que impõe aos peões que atravessem uma faixa de rodagem, o certificarem-se de (tendo em conta a distância que os separam dos veículos que por ela transitam e a respectiva velocidade) o poderem fazer sem perigo de acidente (n.º 1). Daí que se conclua que o evento lhe pode ser imputado a titulo de culpa. Mas poderá sê-lo também aos condutores dos veículos atropelantes? Vejamos. 2.1- Não é exigível aos condutores dos veículos que prevejam a violação, por outros utentes da via, ainda que meros peões, de preceitos da lei estradal. O tripulante não tem, assim, que contar com a negligência ou inconsideração dos outros – salvo tratando-se de crianças – com condutas geralmente imprevisíveis – de deficientes ou muito idosos – com fortes limitações no seu controlo – ou animais, desacompanhados e sem trela. (“E nem o condutor do veículo é obrigado a prever ou a contar com a falta de prudência dos outros – tem antes de partir do princípio que todos cumprem os preceitos regulamentares do trânsito, pois se ele as cumpre e a todos é exigido cumpri-las, as probabilidades de acidente estão afastadas.” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Abril de 1978 – BMJ 276-197; contra o que se afirmou quanto aos menores na via, o Supremo Tribunal de Justiça tem mantido a mesma doutrina, embora exigindo mais diligência aos condutores – v.g. Acórdãos de 12 de Outubro de 1966 e de 5 de Junho de 1968, respectivamente in BMJ 160-173 e 178-130; como se refere no Acórdão, ainda do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Março de 2003 – 03B3335 – “não é de exigir a um condutor razoável ou meridianamente prudente uma previsibilidade para além do que é normal, por isso que tal implicaria que acabasse por ser responsabilizado pela imprudência alheia.”) Estamos no domínio da responsabilidade aquiliana. Aqui, e diversamente do que ocorre na responsabilidade contratual (n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil), não se presume a culpa a menos que a lei, expressamente, o declare. É ao lesado que, como regra, incumbe a prova da culpa do autor da lesão (artigo 342.º, n.º1 e n.º1 do artigo 487.º do Código Civil). Terá de demonstrar que o lesante praticou voluntariamente os factos integradores da simples negligência, ou negligência presumida, que consiste na violação de preceitos destinados a proteger interesses alheios (cf. Prof. A. Varela, in “Das Obrigações em geral”, I, 2.ª ed., 413). De outra banda, o Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Novembro de 1979 – BMJ 291-285 – interpretou o n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil como não sendo aplicável aos acidentes de circulação terrestre, por a condução automóvel não dever considerar-se perigosa, em termos de fazer presumir a culpa de quem a exerce. Contudo, o Prof. Vaz Serra (BMJ 68-87) esclarecia, na esteira de Enneccerus-Lehman que “a jurisprudência tem facilitado a prova da culpa: basta para provar a culpa que o prejudicado possa estabelecer factos que, segundo os princípios da experiência geral, tornem muito verosímil a culpa. Mas o autor do prejuízo pode afastar a prova “prima facie”, demonstrando, por seu lado, outros factos que tornem verosímil ter-se produzido o dano sem culpa sua. Com isto destrói a aparência a ele contrária e força o prejudicado a demonstrar completamente a culpa, já que ao admitir-se a prova “prima facie”, só se dá uma facilidade para produção do encargo da prova.” São as chamadas presunções simples, judiciais ou de experiência (cf. Profs. P. de Lima e A. Varela – “Código Civil Anotado”, I, 3.ª ed., 310; Prof. A. Varela – “Manual de Processo Civil”, 1984, 486 e Prof. Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, 191). Aí, e na repartição do ónus da prova, nos termos do artigo 342.º do Código Civil, há que apelar para o critério da normalidade (“Aquele que invoca um direito tem de provar, por seu turno, os factos anormais que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos” in Profs. Pires de Lima e A. Varela, ob. cit., I, 304; cf. ainda, Conselheiro Mário de Brito – “Código Civil Anotado”, I, 453 e Prof. Vaz Serra – “Provas” – BMJ 112-29). Para além destas presunções judiciais perfilam-se as presunções legais. 2.2- Em matéria de acidentes de viação, releva o n.º 3 do artigo 503.º do Código Civil, na interpretação do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Abril de 1983. Trata-se de presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem, pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele, como lesante, e o titular do direito a indemnização. O Prof. A. Varela justifica esta presunção por não ser semelhante a posição do condutor – comissário (cf. parecer no Boletim da Ordem dos Advogados de Janeiro de 1984). Já o condutor por conta de outrem, não conduzindo o seu próprio veículo, não está sujeito à responsabilidade objectiva. Está sujeito sim a uma presunção de culpa. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Junho de 1997 – BMJ 428-540 assim justificou a opção do legislador: “ O mero condutor, será, na grande generalidade dos casos, um motorista profissional, cuja condução se reveste de especiais características e a tornam particularmente perigosa. Por não ser executada sobre coisa própria é, em regra, mais descuidada; pela habitualidade com que é exercida é muito mais atreita a atitudes de facilidade e à rotina de correr maiores riscos; porque feita por quem deve ter obrigação de especial perícia é susceptível de legitimar que se lhes exija (aos condutores por conta de outrem), em termos mais onerosos, a obrigação de identificar e provar a causa de qualquer eventual acidente, caso ela lhes não seja imputável. Os condutores por conta de outrem, (…) são, na maioria dos casos, motoristas profissionais, que conhecem ou têm obrigação de conhecer, as regras da condução, os segredos da viatura e o perfil das estradas. Se eles, apesar da sua experiência e sabedoria, não convencem o tribunal da falta da sua culpabilidade, nada repugna aceitar, em princípio, a conclusão da sua culpa. Ao mesmo tempo, (…) a presunção de culpa do condutor por conta de outrem é, em certa medida, uma forma de estimular o cumprimento do dever de vigilância, sobre o veículo e de combater os perigos decorrentes da fadiga, da embriaguez, da distração ou do espírito de competição na condução do veículo.” Mas para estabelecer tal presunção há que demonstrar dois factos: a direcção efectiva do veículo e a relação de comissão entre o titular dessa direcção efectiva e o condutor. A direcção efectiva traduz-se no “poder real (de facto) sobre o veículo “tendo-o quem, de facto, gozar ou usufruir das vantagens dele e a quem por tal razão especialmente cabe controlar o seu funcionamento” (Acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Outubro de 1983 – BMJ 330-551 e de 12 de Janeiro de 1983) poder que recai, em regra, sobre o proprietário. Pode mesmo dizer-se que a propriedade faz presumir a direcção efectiva (cfr. v.g. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Maio de 2006 – 06 A1274 – desta mesma conferência; de 13 de Novembro de 2003 – C3B3335). Lapidarmente, o Acórdão deste Supremo Tribunal de 31 de Outubro de 2006 – 06 A3245 – julgou ser “de admitir uma presunção de condução efectiva e interessada relativamente ao dono de um veículo, pois o conceito de direcção efectivo e interessado cabe dentro do conteúdo do direito de propriedade”. Mas a condução por conta de outrem só por si não pressupõe uma relação de comissão, nos termos do artigo 500.º n.º 1 do Código Civil. É que a relação de comissão não se presume, isto é não pode resultar da acenada presunção de propriedade – direcção efectiva, uma segunda presunção no sentido de ser comissário do dono quem quer que conduza o veículo. De acordo com o Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça e 30 de Abril de 1976 (BMJ 456 – 19) “o dono do veículo só é responsável, solidariamente, pelos danos causados pelo respectivo condutor, quando se aleguem e provém factos que tipifiquem uma relação de comissão, nos termos do artigo 500.º, n.º 1 do Código Civil, entre o dono do veículo e o condutor do mesmo”. Mas a comissão pressupõe uma relação de dependência entre o comitente e o comissário – aquele dando, ou podendo dar instruções ou ordens a este – que permita responsabilizar o primeiro pela actuação do segundo (Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Novembro de 2008 – 08B1189. Isto é a relação de comissão não se basta com o facto de o condutor não ser dono do veículo e de o condutor por outrem, em nome ou autorizado por outrem. É necessária a prova da referida relação de dependência (v.g. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Outubro de 2006, acima citado, de 6 de Novembro de 2003 – 03B2997 de 20 de Dezembro de 1994 – BMJ 439 – 538) ou como se decidiu no Acórdão de 18 de Maio de 2006 – 06 A1274 – desta conferência, “uma relação de mando sobre o comissário”. Estabelecida a culpa presumida os lesados não têm que demonstrar os factos que a ela conduzem – artigo 350.º n.º 1 do Código Civil – cumprindo ao lesante ilidi-los. Se o não fizer responde pelos danos acusados sem qualquer limitação fundada no risco, só podendo beneficiar da redução do artigo 494.º do Código Civil.
A presunção legal tem força probatória para inverter o ónus da prova. O comitente responde, então, solidariamente com o comissário por todos os danos causados no acidente, e não nos termos do n.º 1 do artigo 503.º do Código Civil, por não estarem em causa apenas danos do risco próprio do veículo mas sim danos causados por culpa (fundada, embora, em presunção) do condutor. 2.3. – Isto posto, e para além da acima afirmada culpa efectiva do lesado, desde logo a permitir afastar a culpa presumido dos lesantes, o certo é que estes lograram ilidir a presunção acima explanada e que sobre eles recaía, na qualidade de condutores comissários, perante o que, claramente resulta dos factos assentes. Circulando a velocidade que não se provou ser excessiva, quer em termos absolutos – por limitação imperativa no local – quer em termos de conceito de relação – estado do piso, intensidade do tráfego, condições dos veículos e situação meteorológica – também não ficou demonstrado que realizassem a manobra de ultrapassagem ao arrepio das regras estradais e da perícia e consideração exigíveis. De outra banda, e como acima se deixou dito, o terem sido surpreendidos pelo comportamento leviano e inconsiderado da vítima, com o qual não teriam de contar – aparecimento inesperado defronte de um veículo que o ocultava e que estavam a ultrapassar- mais convence da ilisão da presunção que sobre eles recaia. Daí que, e prescindindo de outras considerações, por manifesta desnecessidade, se entenda ser o evento de imputar, em exclusivo à conduta da vítima. 3 – Conclusões Será, assim, de concluir que: a) Ao atravessar a faixa de rodagem impõe-se ao peão que se certifique dos veículos que nela transitam, da distância que dele os separa e da velocidade aproximada que os anima, não invadindo a faixa da esquerda – de ultrapassagem – se encoberto por um pesado que circula na da direita, por ser previsível o aparecimento de outros veículos a ultrapassarem aquele. b) Não é exigível aos condutores que contem com a negligência ou inconsideração de outros utentes da via, salvo tratando-se de crianças – com comportamentos geralmente imprevisíveis – deficientes ou muito idosos – com limitações no seu controlo – ou animais desacompanhados ou sem trela. c) Deve antes partir do princípio que se ele cumpre todos os preceitos reguladores do trânsito aos outros também é exigível que os cumpram. d) Na responsabilidade extra-contratual, é regra ser ao lesado que cumpre provar a culpa do lesante, com factos que normalmente a integram, a este provar factos que a excluem ou impedem a eficácia dos seus elementos constitutivos. A regra é afastada havendo presunção de culpa. e) O n.º 3 do artigo 503.º do Código Civil (na interpretação do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Abril de 1983) presume a culpa do condutor do veículo por conta de outrem pelos danos que causar, presunção aplicável entre ele com o lesante e o titular do direito à indemnização. f) O condutor do próprio veículo, para além da responsabilidade subjectiva imposta a todo o causador culposo de danos, é onerado com responsabilidade objectiva que garante à vítima o direito à indemnização mesmo quem o condutor prove a sua falta de culpa desde que o acidente resulte de risco próprio do veículo. g) Já o condutor por conta de outrem, não conduzindo o seu veículo, não está sujeito à responsabilidade objectiva mas sim a uma presunção de culpa. h) Para estabelecer tal presunção há que demonstrar dois factos: a direcção efectiva do veículo e a relação de comissão entre o titular dessa direcção efectiva e o condutor. i) A propriedade faz presumir a direcção efectiva, como poder real de facto sobre o veículo. j) Mas a relação de comissão não se presume nem resulta da presunção acima referida (ou haveria uma segunda presunção, ou presunção derivada) tendo de ser alegados e provados factos que tipifiquem essa comissão, com o resulta do Acórdão Uniformizador de 30 de Abril de 1996. K) E tal pressupõe a demonstração inequívoca de uma relação de dependência (de mando) entre o comitente e o comissário, aquele dando, ou podendo dar ordens a este, em termos de se responsabilizar o primeiro pela actuação do segundo, não bastando o mero facto de conduzir um veículo em nome ou autorizado pelo dono. l) O comitente responde, então, solidariamente com o comissário por todos os danos causados no acidente, e não nos termos do n.º 1 do artigo 503.º do Código Civil por não estarem apenas em causa danos do risco próprio do veículo mas um dano causado por culpa (embora presumido) do condutor. Perante o exposto acordam em negar a revista. Custas pelos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam. Lisboa, 03 de Março de 2009 Sebastião Póvoas (relator) |