Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
11599/18.5T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: LEONOR CRUZ RODRIGUES
Descritores: DESPEDIMENTO
JUSTA CAUSA
DEVER DE LEALDADE
PREJUÍZO PATRIMONIAL
INFRACÇÃO DISCIPLINAR
Data do Acordão: 04/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I – A noção de justa causa de despedimento, consagrada no artigo 351.º, n.º 1, do Código de Trabalho de 2009, pressupõe um comportamento culposo do trabalhador, violador de deveres estruturantes da relação de trabalho, que pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência do vínculo laboral.
II - O comportamento culposo do trabalhador pressupõe um comportamento, por acção ou omissão, imputável ao trabalhador a título de culpa, sob a forma de dolo ou mera negligência, que viole algum dos seus deveres decorrentes da relação laboral.
III – O primeiro elemento constitutivo da infracção disciplinar é a existência de um comportamento, voluntário do trabalhador, traduzido na violação de deveres decorrentes da relação laboral.
IV - O que releva para efeitos de apreciação da existência de infracção disciplinar não é, em primeira linha, o resultado, o eventual prejuízo resultante de determinado comportamento, mas saber se a conduta em si, a actuação do trabalhador que conduziu ao resultado foi ilícita e culposa, se infringiu, deliberada ou negligentemente, deveres inerentes à relação laboral que deveria ter observado na execução do contrato.
V – Constatado que a actuação do trabalhador foi conforme à prática habitual e procedimentos internos da empregadora na matéria, a que a trabalhadora estava adstrita e devia obediência, não foi ilícita e culposa a sua actuação.
Decisão Texto Integral:


Procº nº 11599/18.5T8LSB.L1.S1

4ª Secção

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça.

I

1.  Relatório


1. No Juízo do Trabalho ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., AA propôs contra “OSÍRIS – VIAGENS E TURISMO, Lda” acção especial de impugnação da regularidade e licitude do despedimento, na qual se opôs ao despedimento promovido pela Empregadora com fundamento em justa causa de despedimento.
2. Realizada a audiência de partes e frustrada a conciliação a Empregadora apresentou articulado de motivação do despedimento, invocando que a trabalhadora violou, de forma irremediável, os deveres de respeito, obediência e lealdade, ao desviar clientela para empresa concorrente da sua entidade empregadora.

3. A este articulado respondeu a trabalhadora apresentando contestação, na qual invocou a nulidade do procedimento disciplinar e a sua invalidade, impugnou a motivação do despedimento e concluiu pedindo que fosse declarado ilícito o despedimento e a condenação da Empregadora na sua reintegração ou no pagamento da indemnização segundo opção ulterior, no pagamento de retribuições vencidas e vincendas, em indemnização por danos não patrimoniais, e créditos salariais resultantes de horas de formação não ministradas e trabalho suplementar.
4. Apresentada réplica pela empregadora, proferido despacho saneador, instruída e discutida a causa, foi proferida sentença que declarou ilícito o despedimento e condenou a Empregadora no pagamento  à trabalhadora de uma indemnização correspondente a 30 dias de remuneração base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade, esta reportada a 3.11.2014, as retribuições, incluindo retribuição, subsídio de férias e de natal, vencidos desde o despedimento  até ao trânsito em julgado da decisão e até integral pagamento, tudo acrescido de juros de mora à taxa legal, e a quantia de € 2 000,00 a título de danos não patrimoniais..

5. Não se conformando com o assim decidido, apelou a Empregadora, impugnando a decisão relativa à matéria de facto e de direito, vindo o Tribunal da Relação, por acórdão de 24 de Março de 2021, lavrado com um voto de vencido, a julgar o recurso procedente, declarando a licitude do despedimento e revogando a decisão de 1ª instância.
6. É agora a trabalhadora que, inconformada, interpõe recurso de revista, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
“A. O Acórdão do Tribunal da Relação ... colocado em crise incorreu em erro na interpretação e aplicação da lei, o que, consequentemente, teve por efeito a indevida revogação da decisão do tribunal de primeira instância.
B. Efectivamente tal decisão enferma de uma errada aplicação do direito, caracterizada por uma profunda desconexão entre os factos inequivocamente provados nos autos e a solução jurídica adoptada, assentando a mesma num raciocínio abstracto, pouco fundamentado e, com o devido respeito, contraditório, produzido à total revelia da factualidade provada nos autos,
C. É certo que no nosso sistema jurídico vigora o princípio da livre convicção do julgador (nos casos em que ao meio de prova não seja atribuída força probatória plena), mas não é menos verdade que a sua convicção terá de ser devidamente ponderada e fundamentada, conforme estatuído no número 5 do artigo 607.º do CPC
D. Sendo que, todavia, não pode a análise crítica da prova produzida ser confundida com um exercício de mera prognose por parte do Tribunal a quo.
E. Pelo que, as decisões judiciais têm de ser produzidas de acordo com as regras jurídicas pré-definidas, por todos antecipadamente conhecidas, consistindo o teor final de tais decisões na solução que decorre da aplicação dos factos processualmente provados às normas substantivas em cuja hipótese tais factos se subsumam.
F. Assim, entendeu o Tribunal da Relação ... que dos factos dados como provados e contrariamente à apreciação feita pelo Tribunal de 1.ª* Instância, resulta uma violação culposa e grave da Recorrente enquanto trabalhadora da Ré e ora Recorrida,
G. Razão pela qual entendeu declarar a licitude do seu despedimento.
H. Invoca o douto Acórdão que “Embora não tenha resultado provada a obrigação de consulta de superior hierárquico, o cancelamento da referida reserva implicou um prejuízo pra a empresa, resultante da perda do cliente, e permitiu a reserva a favor de empresa concorrente” (sic)
I. Tal posição é veementemente contestada pela Recorrente porquanto, e contrariamente ao expressamente invocado no douto Acórdão, o que ficou inequivocamente provado foi que a trabalhadora ora Recorrente não tinha qualquer obrigação de consultar o seu supervisor para efectuar o referido cancelamento, sendo este um acto comum de acontecer, salvo determinadas excepções expressamente previstas, conforme resulta dos seguintes factos provados:
“AO) - O cancelamento de reservas pelos técnicos da empresa não determinava o prévio conhecimento ou autorização superior (…)
BG) - A trabalhadora não consultou a gerência ou qualquer superior hierárquico acerca do cancelamento pois tal nunca foi prática na empregadora.
BH) - Ao longo de todos os anos em que a trabalhadora trabalhou para a empregadora, nunca foi prática a de, sempre que existisse um grupo e este não se “realizasse”, haver a necessidade de informar as chefias ou a direcção, salvo: - Se estes já soubessem de antemão que o grupo se estava a “realizar”; - Se o grupo tivesse passado inicialmente “pelas suas mãos”; - Ou ainda dada a sua envergadura logística e/ou financeira.
J. Assim, e face a esta inequívoca prova, não é compreensível a decisão do Acórdão recorrido, uma vez que a posição assumida pela Recorrente relativamente ao cancelamento do grupo, foi a de agir exactamente e em consonância com as regras em vigor na empresa desde que ela lá começou a trabalhar há quase década e meia
K. De realçar que a regra para este tipo de cancelamentos era os mesmos serem efectuados da forma como a ora Recorrente o fez, razão pela qual, nem neste caso, nem em nenhum outro que foi acontecendo ao longo dos anos, consultou a gerência ou qualquer superior hierárquico.
L. Sendo esta uma prática comum e por todos reconhecida na empresa, conforme ficou inequivocamente provado através de diversos testemunhos de Colegas da Recorrente, em particular, da testemunha BB – cfr. depoimento prestado no dia de 29 de Junho de 2020, com a duração de 53 minutos e 36 segundos, e cujas passagens relevantes para esta questão se encontram entre os minutos 15:06 a 16:40, 21:47 a 23:30 e 52:25 a 53:09.
M. Estando assim, no entender da Recorrente, inequivocamente demonstrada a razão que lhe assiste em termos da posição que assumiu na questão do cancelamento do grupo com que se viu confrontada,
N. Não havendo por isso na mesma qualquer erro, falha ou negligência da sua parte, nem tão pouco, e por consequência dolo,
O. Importando igualmente referir, porque o douto Acórdão recorrido nisso assenta para justificar a licitude do seu despedimento, que existindo algum prejuízo para a Ré, o mesmo é igual a todos os eventuais e pretensos prejuízos que, ao longo de, pelo menos, quase década e meia a Recorrida teve com os diversos cancelamentos que foram acontecendo.
P. Uma vez que este cancelamento efectuado pela Recorrente foi feito exactamente da mesma forma e nas mesmas circunstâncias que outros cancelamentos anteriormente efectuados ao longo de anos,
Q. Contrariamente ao que invoca o douto Acórdão recorrido, não existe qualquer prova nos autos de que a reserva do cliente cancelado pela Recorrente tenha passado para uma empresa concorrente, pelo que esta conclusão, importante na errada decisão proferida pelo Tribunal da Relação ..., se trata de uma mera presunção, sem qualquer suporte factual.
R. Porém, e ainda que se admita que possa ter existido prejuízo para a empresa por força do cancelamento do grupo, este mesmo prejuízo, do ponto de vista conceptual, não é em nada diferente do prejuízo que cada cancelamento efectuado ao longo dos anos implicou,
S. Sendo que no que concerne a cancelamentos de grupos, as regras na Recorrida, pelo menos até ao dia 12 de Fevereiro de 2018, eram bem claras e conhecidas de todos, encontrando-se as mesmas provadas nestes autos, da mesma forma que se encontram provado que ter a Recorrente cumprido escrupulosamente com a prática que sempre vigorou na empresa
T. Tal posição, a que o douto Acórdão infundadamente deu cobertura, representa, no entendimento da Recorrente, uma clara posição de “Venire Contra Factum Proprium”, uma vez que foi a própria Ré, através das directrizes vigentes na empresa para os cancelamentos de grupos, que deu causa à acção de cancelamento do grupo por parte da trabalhadora,
U. Importa também ter presente que, apesar da Ré e ora Recorrida estar a passar por um período critico e de alguma confusão, situação que afectava todos os trabalhadores da empresa, Recorrente incluída, a mesma manteve-se com zelo, diligência e vontade no desempenho das suas funções,
V. Tendo este desempenho de funções de elevadíssima responsabilidade, conforme factos BZ) e CA) igualmente provados, se mantido durante cerca de um mês após o cancelamento do grupo, o que, a acrescer a tudo o já devidamente elencado, coloca indubitavelmente em causa o argumento da violação do dever de lealdade invocado no douto Acórdão ora recorrido.
W. Não se compreendendo, nem aceitando como pode o douto Acórdão concluir pela violação do dever de lealdade, e de forma culposa, uma vez que a Recorrente não só não incumpriu com nenhuma ordem ou procedimento, mas antes, e pelo contrário, agiu em consonância com as directrizes em vigor na empresa há, pelo menos, 14 anos,
X. Razão pela qual, é entendimento da Recorrente, contrariamente ao expresso no Acórdão recorrido, não existir nenhuma gravidade efectiva e culposa na sua conduta que justifique o seu despedimento por completa falta de fundamento,
Y. Nem pode, em seu entender, contrariamente ao vertido no douto Acórdão e por completa falta de fundamento, ser entendida que a relação de confiança entre empregador e trabalhadora foi irremediavelmente quebrada, uma vez que, a A. e ora Recorrente trabalhou durante sensivelmente um mês após o pretenso facto que lhe é imputado,
Z. O que torna igualmente bem claro quer o infundado procedimento disciplinar de que a A. foi vítima, sob a invocação da pretendida impossibilidade de manutenção da relação de trabalho, quer a decisão do Tribunal da Relação ... em, contrariamente ao decidido pelo Tribunal de primeira instância, considerar lícito o seu despedimento.
AA. A tudo o supra exposto, acresce igualmente relevar o desempenho profissional da A. e ora Recorrente ao longo dos seus 14 anos de trabalho para a Recorrida, desempenho de excelência expressamente reconhecido pela Ré e ora Recorrida que não só a elogiava em público, como também lhe conferia as áreas de trabalho de maior responsabilidade, premiando-a regularmente por este seu desempenho, quer com aumentos de vencimento, o último dos quais acontecido em Janeiro de 2018, e em que a trabalhadora viu o seu vencimento mensal aumentado de €1.750,00 para €2.150,00, quer através do pagamento de diversos prémios de desempenho.
BB. Ora, ao contrário do que sustenta o Tribunal a quo na douta decisão que se impugna, não existe, no entender da Recorrente, nenhum facto ou argumento que justifique estarmos perante um motivo de justa causa de despedimento.
CC. Desde logo porque não existe qualquer comportamento culposo da trabalhadora no dia 12 de Fevereiro de 2018, uma vez que esta se limitou a cumprir com as ordens da empresa para aquela situação específica.
DD. Acresce não ter ficado demonstrada qualquer impossibilidade de subsistência da relação de trabalho, uma vez que a própria entidade patronal, tendo tomado conhecimento imediato do cancelamento do grupo, manteve a Recorrente nas suas normais funções durante cerca de um mês após o referido cancelamento
EE. Mantendo-lhe igualmente a mesma responsabilidade em clientes da maior importância para a empresa, como são o E.…, a M..., a F..., o GN..., a A..., o I... e o IP....,
FF. O que prova a não existência de nenhum abalo nas condições (psicológicas e outras) de suporte a uma vinculação duradoura.
GG. Desta forma, fica inequivocamente provado nos autos, contrariamente ao que sustenta o Tribunal a quo no douto Acórdão que ora se impugna e do qual se recorre, que o mesmo, na apreciação da justa causa não atendeu aos pressupostos vertidos no n.º 3 do art.º 351º do Código do Trabalho.
HH. Resultando de toda a prova produzida nos presentes autos, que o único facto imputável à A. e ora Recorrente em 14 anos de trabalho de excelência para a Ré, ainda que, por mera hipótese de raciocínio, se possa admitir como um erro, e um erro de gravidade, o mesmo, face a tudo o supra exposto, não é, nem pode ser considerado de molde a comprometer a relação de confiança que sempre existiu entre as partes, e que a Ré e ora Recorrida, sempre expressou ter na A..
II. Desta forma, a matéria de facto provada nos autos, nomeadamente a que supra se referiu, permite concluir a inexistência de fundamento para o despedimento da A. e ora Recorrente conforme decisão do Tribunal de primeira instância,
JJ. Pelo que, ao decidir em sentido diverso, o douto Acórdão recorrido faz uma incorrecta interpretação da matéria de facto provada e uma incorrecta subsunção da norma contida na al. f) do n.º 1 do art.º 128º do Código do Trabalho
KK.  Devendo, por todo o exposto, a decisão em crise e ora impugnada ser revogada, mantendo-se a unidade e a plenitude da primeira decisão proferida”
7. A Empregadora recorrida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso, formulando a final as seguintes conclusões:
1. O Douto Acórdão recorrido está juridicamente correcto e
2. Não violou qualquer disposição legal
3. Nem realizou qualquer interpretação não legal, nem não correspondente à verificada nos Doutos Tribunais, nomeadamente, Tribunais Superiores;
4. A A., ora Recorrente, exerce funções desde 03.09.18 na empresa P.…, Lda;
5. Há uma situação concorrencial entre as empresas Osíris - Viagens e Turismo, Lda. que tem o mesmo objecto social e actividade comercial desde 17.01.2018, data da constituição da segunda;
6. Na Ré, ora Recorrida, não se verificou em Janeiro e Fevereiro de 2018 ou noutra data anterior qualquer despedimento de trabalhadores e
7. Os trabalhadores que saíram da empresa ora Recorrida em 2018 demitiram-se - dois em Janeiro - ou denunciaram os seus contratos de trabalho - cinco em Fevereiro;
8. A A., ora Recorrente, teve uma conduta ilegal, ilícita, grave e culposa, porquanto
9. Violou os deveres de lealdade, de diligência, de boa fé e de transparência a que estava obrigada para com a sua entidade patronal;
10. Tendo quebrado a relação de confiança que devia existir com esta;
11. 0 que se verificou a partir de 12.02.2018;
12. Até à data referida anteriormente a ora Recorrente era trabalhadora de grande confiança da sua entidade patronal,
13. Manifestada inequivocamente em factos concretos reconhecidos nos autos;
14. Quanto maior é a confiança no trabalhador maior é a desilusão,
15. Provocando maiores danos em caso de ser quebrada;
16. A trabalhadora, ora Recorrente, exerceu funções em conluio com uma empresa concorrente denominada P.…, Lda., através de empregados desta;
17. Tal empresa foi constituída em 17.01.18 tendo o mesmo objecto social e exercendo a mesma actividade comercial da empresa, ora Recorrida;
18. A referida P.…, Lda. foi constituída e passou a trabalhar com empregados da ora Recorrida que deixaram de trabalhar nesta no início de 2018;
19.Tendo saído dois em Janeiro que se demitiram e cinco em Fevereiro de 2018 que denunciaram os seus contratos de trabalho, entre eles o trabalhador CC cujo último dia de trabalho foi em 09.02.2018;
20. Na empresa ora Recorrida não se verificaram despedimentos de trabalhadores, mesmo antes de 2018;
21. A trabalhadora, ora Recorrente, foi contratada pela P.…, Lda. para exercer as mesmas funções de Técnica de Turismo que exercia na empresa ora Recorrida;
22. Em 12.02.2018 a trabalhadora Recorrente em conluio com o ex-empregado DD cancelou reservas de 50 quartos com pequeno-almoço na C.… a pedido do referido DD;
23. 0 qual à data já exercia funções na empresa concorrente P.…, Lda.;
24. 0 que era do conhecimento da A., ora Recorrente, cujo
25. Cancelamento foi realizado por esta, no mesmo dia, pelas 22h05 da sua residência e
26. Sem qualquer fundamento e sem consultar a gerência ou qualquer superior hierárquico;
27. Antes de 16.02.2018 a trabalhadora, ora Recorrente, e o referido DD conversaram sobre a colocação a favor de EE do preço de dois bilhetes Lisboa/Londres, ida e volta, na conta da Osíris ou noutro processo de cliente/viagem;
28. Em 16.02.2018 o referido DD solicitou a emissão dos referidos bilhetes apesar de já não ser empregado da empresa Ré, ora Recorrida;
29. A reserva dos referidos bilhetes havia sido realizada em 06.02.18 não tendo sido emitidos os bilhetes, que posteriormente viram a referida reserva deixar de estar activa devido ao sistema;
30. A ora Recorrente informa o referido DD em 16.02.2018 que não tinha "files" para colocar os bilhetes e sugere ao mesmo que seja a empresa dele P.…, Lda. a reservar os voos, a facturar e cobrar os mesmos;
31. A trabalhadora, ora Recorrente, não abriu qualquer "file" ou processo de cliente para a referida EE, nem emitiu bilhetes,
32. Deixando de facturar em benefício da empresa concorrente que conhecia como tal;
33. Em 28.02.2018 a A. ora Recorrente foi contactada pela ex-colega FF, já ao serviço da P..., Lda., solicitando-lhe uma alteração de um bilhete em nome de GG onde se verificava um débito de €737,00,
34. Tendo falado com a sua chefe HH que lhe deu instruções;
35. Em 02.03.18 a A., ora Recorrente disse ao Sr. II que se o quisesse já tinha saído da Osíris, Lda. conforme Provado pela alínea BY) dos Factos Provados;
36. Também ficou provado nos autos que a mesma trabalhadora no mesmo dia 02.03.2018 questionou o Sr. II sobre se teria acontecido algo na semana em que tinha estado de férias para que tivesse mudado a sua atitude para consigo - alínea BW) dos Factos Provados;
37. Provado ficou que antes do dia 02.03.2018 em dia não identificado, o Sr. II elevou a voz para a trabalhadora, ora Recorrente, dizendo-lhe que era "estranho" que os pedidos de ex-colegas fossem sempre feitos a ela - alínea AS) dos Factos Provados;
38. Dão-se por reproduzidos os factos constantes das alíneas K) a P), AD), AN), AT), BB), BM) a BO), BR) a BW) e BY) dos Factos Provados;
39. A conduta da trabalhadora, ora Recorrente, provocou prejuízos à sua entidade patronal, porquanto
40. Não agiu com a diligência devida nem defendeu os interesses da sua entidade patronal;
41. A perda de confiança foi total a partir de 12.02.2018 e
42. Determinou uma impossibilidade prática e imediata de subsistência da relação laboral;
43.Tal conduta determinou também falta de confiança futura na idoneidade da trabalhadora criando ao empregador dúvidas sérias e fundamentadas;
44. A violação do dever de lealdade é a de um dever absoluto e
45. Como tal, não é passível de quantificação;
46. A única sanção aplicável era, como foi, a de despedimento com justa causa;
47. Estão verificados os fundamentos do referido despedimento, de forma inequívoca e evidente: o comportamento ilícito, culposo e grave, violador dos deveres indicados, nomeadamente do dever de lealdade e que o mesmo tornou imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral;
48.Sanção de despedimento que deve ser confirmada pelo Venerando Tribunal Superior, porquanto,
49. A trabalhadora violou, de forma culposa e grave, o dever de lealdade previsto no art° 128° n° 1 alínea f) do Código do Trabalho,
50. Entre outros, nomeadamente, de diligência e de boa-fé;
51. Quebrando, ainda, de forma irreversível, imediata e irremediável a confiança entre trabalhador e entidade patronal que deve existir,
52. 0 que impossibilita a subsistência da relação laboral;
53. Há, por conseguinte, no caso subjudice justa causa de despedimento da trabalhadora, face ao desvio de clientela, pelo menos, dois clientes, a favor de empresa concorrente;
54. Sendo este lícito, com todas as consequências e
55. Não havendo violação de qualquer preceito jurídico;
56. A interpretação em causa realizada pelo Venerando Tribunal da Relação ... é a correcta e está de acordo e na sequência da realizada pelo Supremo Tribunal de Justiça e por todos os Tribunais da Relação”.
8. Neste Tribunal, cumprido o disposto no artigo 87º, nº 3, do C.P.T., o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência da revista, parecer que, tendo sido notificado às partes, foi objecto de resposta pela recorrente.

II

2.  Delimitação objectiva do recurso

Delimitado o objecto do recurso pelas questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nº 3, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação das que são de conhecimento oficioso (artigo 608º, nº 2, do CPC), a questão jurídica trazida à apreciação deste Supremo Tribunal é a da justa causa de despedimento da trabalhadora recorrente.

III

3.  Fundamentação de facto

Vem provada a seguinte factualidade:
A) Em 02/03/2018, pela gerência da empregadora foi determinada a instauração de processo disciplinar à trabalhadora, conforme despacho de fls. 2 e v° do processo disciplinar apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
B) Em 09/03/2018, foi elaborada a nota de culpa de fls. 36 a 41 do processo disciplinar apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
C) A trabalhadora foi notificada da nota de culpa, referida em B), em 09/03/2018, conforme declaração aposta na carta de fls. 35 do processo disciplinar apenso, que aqui se dá por integralmente reproduzida, através da qual também foi informada que, a partir da mesma data, ficava suspensa do exercício de funções, nos termos do art. 354°, n° 1, do CT.
D) A trabalhadora respondeu à nota de culpa, referida em B), nos termos expressos no articulado de fls. 47 a 64 do processo disciplinar apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
E) Em 24/04/2018, foi elaborado o relatório final e proposta de decisão de fls. 158 a 197 do processo disciplinar apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
F) Em 26/04/2018, a gerência da empregadora determinou a aplicação à trabalhadora da sanção disciplinar de despedimento alegando justa causa, com efeitos a 30/04/2018, conforme decisão de fls. 198 a 201 do processo disciplinar apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
G) A trabalhadora foi notificada do relatório final e decisão, referidos em E) e F), por carta cuja cópia consta de fls. 2 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datada de 26/04/2018.
H) A trabalhadora, AA, esteve ao serviço da empregadora com a categoria profissional de Ia Técnica de Turismo, desde 03/11/2004.
I) A trabalhadora desempenhou na empregadora sempre as funções de gestora de viagens.
J) A trabalhadora, no âmbito das funções, tinha sob a sua responsabilidade, entre outras matérias, a gestão e controle de consultas e reservas de clientes.
K) Durante o mês de Janeiro de 2018, demitiram-se dois trabalhadores da empregadora Ré - o Sr. JJ e a Sra. FF - sem aviso prévio.
L) Entre 5 e 8 de Fevereiro de 2018, outros cinco trabalhadores denunciaram unilateralmente os seus contratos de trabalho, também sem aviso prévio.
M) Entre eles, o trabalhador DD, que apresentou a sua demissão no dia 05/02/2018 e teve como último dia de trabalho o dia 09/02/2018.
N) Os referidos trabalhadores, quando saíram da empregadora foram trabalhar para a sociedade “P.…, Lda”, constituída em 17 de Janeiro de 2018.
O) Que tem por objecto “Atividade de agência de viagens e turismo” e tem como sócio-gerente o Sr. JJ, referido em K).
P) O ex-trabalhador da empregadora, DD, é trabalhador da referida sociedade “P.…, Lda”.
Q) Em 01/02/2018, o referido DD, ainda ao serviço da Osíris, formulou à C.… um pedido de reserva de 50 quartos com pequeno-almoço para o cliente Grupo CM..., para as datas de 22 e 23 de Maio de 2018.
R) Em 06/02/2018, a C.… informou a Osíris das condições e preços e, em 7 do mesmo mês, a pré-reserva foi realizada pelo ainda trabalhador da Osiris DD.
S) No dia 07/02/2018, o referido DD reencaminhou os e-mails trocados com a C... para o e-mail com o endereço DD@gmail.com
T) Em 12/02/2018, pelas 10h06m, o referido DD, reencaminhou os e-mail trocados com a C... do e-mail com o endereço DD@gmail.com para o e-mail com o endereço DD@P...,Lda.pt.
U) No mesmo, pelas 10h12m, enviou um e-mail à C..., através do email DD@P...,Lda.pt, para informar que já não trabalhava para a empregadora e que através da “P..., Lda.”, iria assumir a gestão do Grupo CM....
V) Mais solicitou à C.… que lhe enviasse “todas as condições para a reconfirmação da reserva destes 50 quartos de 22 a 23 May”, solicitando-o com a maior brevidade possível.
W) No mesmo dia 12/02/2018, pelas 15h36m, o referido DD insistiu junto da C... por resposta ao seu e-mail.
X) No mesmo dia, a C.… através da sua colaboradora KK, respondeu ao DD e informou-o de que “Estou só a aguardar o cancelamento por parte da Osíris para passar este grupo para a sua nova agência”.
Y) E a mesma colaboradora da C.…, KK, deseja a DD “o maior sucesso no novo desafio”.

Z) Como resposta, DD pediu a C.… que pedisse o cancelamento do Grupo Osíris a AA@osiris.pt
AA) Pelas 17h43m do mesmo dia 12/02/2018, o referido DD reencaminhou a troca de e-mail com a C.… para a trabalhadora, referindo “Vê isto e confirma cxl”.
AB) No mesmo dia 12/02/2018, pelas 22h05m, a trabalhadora enviou um e-mail à C.…, no qual referia “De acordo com o combinado, solicito o cancelamento da reserva”.
AC) O cancelamento foi realizado pela trabalhadora às 22h05m, a partir da sua residência e do computador portátil da Osíris que lhe estava distribuído.
AD) Sem qualquer fundamento e sem consultar a gerência ou qualquer superior hierárquico.
AE) A conduta da trabalhadora envolveu um prejuízo para a empresa.
AF) Em 16/02/2018, pelas 13h02m, DD enviou à trabalhadora um e-mail solicitando-lhe a emissão de bilhetes para dois voos de ida e volta entre Lisboa e Londres, que identificou de uma cliente EE.
AG) No dia 16/02/2018, DD já não era trabalhador da empregadora e já se encontrava ao serviço da empresa “P.…, Lda”.
AH) Foi efectuada uma reserva, em 06/02/18, pela Osíris e por DD, não tendo sido emitidos os bilhetes pela Osíris, deixando a reserva de estar activa.
AI) A trabalhadora respondeu a DD no dia 16/02/2018, pelas 13h32m, referindo que “Não tenho files para colocar o bilhete”.
AJ) Houve uma conversa anterior, entre a trabalhadora e DD, quando este ainda trabalhava na “Osíris”, sobre a colocação do preço dos bilhetes na “Osíris” e noutro processo de cliente/viagem.
AK) A trabalhadora não afectou aquela reserva a um processo de cliente/viagem da Osíris.
AL) Nem abriu qualquer files ou processo de cliente para a referida EE, nem emitiu bilhetes.
AM) E colocou como alternativa ao referido DD que efectuasse a reserva dos voos e a cobrasse através da “P.…, Lda.”.
AN) Que a trabalhadora sabia existir e ser concorrente da sua entidade patronal.
AO) O cancelamento de reservas pelos técnicos da empresa não determinava o prévio conhecimento ou autorização superior em situações normais, embora houvesse excepções ou circunstâncias concretas que o pudessem determinar.

AP) Em data não concretamente apurada, ocorreu uma reunião do gerente Sr. II c a trabalhadora HH, na qual foi abordada a questão do cancelamento da reserva.
AQ) Desde meados de Janeiro de 2018, a trabalhadora encontrava-se, em conjunto com o gerente Sr. II, a organizar a conta da A... (A.…) que é um cliente importante e cuja estrutura de facturação/cobrança é bastante complicada.
AR) Colaborou em soluções que facilitam o trabalho da empresa na maior celeridade na conferência de facturas e respectivo pagamento deste cliente.
AS) Em dia não apurado, mas antes de 2 de Março, o Sr. II elevou a voz para a trabalhadora, dizendo-lhe, entre outras coisas, que era “estranho” que os pedidos de ex-colegas fossem sempre feitos a ela.
AT) No dia 12 de Março de 2018, a Colega LL passou a ocupar o lugar da trabalhadora na empregadora.
AU) A trabalhadora, ao longo dos seus mais de 13 anos de trabalho ao serviço da empregadora, nunca teve quaisquer atritos ou problemas disciplinares com colegas, inferiores hierárquicos ou seus superiores.
AV) Pautando-se sempre a sua conduta por um elevado grau de profissionalismo e pelo respeito pelas normas respeitantes à actividade profissional que desenvolve, tendo tido sempre um desempenho que pode considerar-se de excelência.
AW) Dando sempre o seu máximo em prol da empregadora c encontrando-se igualmente sempre disponível para o desempenho de todas as tarefas, dentro do âmbito das funções que lhe estavam adstritas, que aquela entendesse dever a trabalhadora levar a cabo.
AX) Trabalhando igualmente amiúde fora do seu horário de trabalho, sempre por conta, determinação e no interesse da empregadora.
AY) Com especial destaque para o ano de 2012, ano pleno de fortes emoções e transformações na sua vida, fruto do nascimento do seu filho e da morte do seu pai após doença prolongada, mas que, ainda assim, em nada mudou relativamente ao empenho, ao zelo e à dedicação da trabalhadora relativamente ao seu desempenho profissional.
AZ) Desempenho este que sempre foi reconhecido, quer enquanto trabalhadora da empregadora, recebendo diversos prémios e aumentos de vencimento, o último dos quais aconteceu em Janeiro de 2018, em que a trabalhadora viu o seu vencimento mensal aumentado de € 1.715,00 para € 2.150,00.
BA) Em reunião realizada no dia 7 de Fevereiro de 2018, com os trabalhadores da equipa de outgoing, o director da Ré, o Sr. II, afirmou em frente a todas as pessoas que se encontravam na sala (e eram cerca de 10) que, entre outras questões, confiava na A., vendo-a como coordenadora do sector Estado, um cliente que engloba vários ministérios, muito importante para a Ré, e a quem a. vinha dando total acompanhamento e atenção.
BB) Criticando a forma como aos ex-colegas da trabalhadora haviam saído da empresa.
BC) Tendo a trabalhadora, pública e peremptoriamente, afirmado não pretender sair da Osíris e que, caso hipoteticamente um dia viesse a pensar fazê-lo, nunca o faria da forma como os seus ex-colegas o haviam feito.
BD) No dia 12 de Fevereiro de 2018, tal como era comum acontecer, depois de cumprir com o seu horário de trabalho nas instalações da empregadora, a trabalhadora foi, por determinação, conta e interesse daquela, para sua casa continuar a trabalhar, tendo enviado vários emails para diversos clientes, entre eles, para a M.…, para a D. MM do E.…, para a D. NN (I.…) e para a D. OO (IP...), tratando de reservas em curso e de orçamentos.
BE) Quando a trabalhadora ficou responsável pelo cliente A.…, foi-lhe atribuído pela empregadora um computador portátil e um telemóvel de serviço.
BF) Situação relativamente à qual a trabalhadora nunca se opôs.
BG) A trabalhadora não consultou a gerência ou qualquer superior hierárquico acerca do cancelamento pois tal nunca foi prática na empregadora.
BII) Ao longo de todos os anos em que a trabalhadora trabalhou para a empregadora, nunca foi prática a de, sempre que existisse um grupo e este não se “realizasse”, haver a necessidade de informar as chefias ou a direcção, salvo:
- Se estes já soubessem de antemão que o grupo se estava a “realizar”;
- Se o grupo tivesse passado inicialmente “pelas suas mãos”;
- Ou ainda dada a sua envergadura logística e/ou financeira.
BI) No grupo da M..., cancelado pela trabalhadora em Outubro 2017 (viagens e alojamentos ficaram sem efeito), não houve qualquer informação dada à chefia/direcção.
BJ) O cliente em causa já trabalhava com o DD, quando este foi trabalhar para a empregadora.
BK) Cliente que, desde que o DD saiu para a nova agência, deixou de pedir viagens à empregadora, ligando apenas para fazer alterações em reservas já emitidas e em curso.
BL) No dia 14 Fevereiro de 2018, logo pela manhã, e quando confrontada pelo Senhor II acerca do cancelamento do grupo, isto em frente das colegas PP e HH, a trabalhadora de imediato informou o que tinha feito e como tinha feito, tendo igualmente referido que, em momento algum, teve qualquer intenção de prejudicar a sua entidade patronal.
BM) Na altura, a trabalhadora assumiu que “(...) com tanta confusão que estava a acontecer no departamento nem se apercebeu que tal não o poderia ter feito, pedindo desculpa por esse facto”.
BN) No período crítico vivido na empregadora, por força da saída de vários dos seus trabalhadores, a trabalhadora manteve-se, com zelo, diligência e vontade, a desenvolver o seu trabalho.
BO) Nesse período, todos os trabalhadores que se mantiveram ao serviço da empregadora encontravam-se com imenso trabalho, tendo o seu director-geral solicitado por várias vezes mais (e sempre mais) um esforço suplementar - sem qualquer tipo de contrapartida - embora soubesse que todos já se encontravam a atingir o comummente chamado de “redline”.
BP) Tendo a trabalhadora sempre correspondido a essas solicitações de forma empenhada, dedicada e profissional.
BQ) Prestando inúmeras vezes trabalho suplementar, quer no escritório, quer a partir de casa.
BR) Na sequência dos factos referidos em AS), a trabalhadora ficou visivelmente transtornada e chorosa.
BS) No dia 16 de Fevereiro de 2018, depois de sair da agência por volta das 21 h15, a trabalhadora foi ainda para casa trabalhar, tendo enviado um e-mail ao Senhor II já perto das 23h00, conforme havia ficado combinado entre ambos, com uma listagem de todos os clientes, que normalmente a trabalhadora atendia, listagem que incluía nomes, contactos telefónicos e e-mails.
BT) No dia 28 de Fevereiro de 2018, a trabalhadora recebeu por parte de uma das suas ex-colegas, a D. FF, um pedido de alteração de um bilhete em nome de GG, pedido feito por sms, tendo então informado da existência de € 737,00 para que se procedesse à alteração.
BU) Falando de imediato com a sua chefe, a D. HH, sobre o referido assunto, que lhe disse para falar directamente com o Senhor II.
BV) Tendo, nessa altura, ocorrido a situação descrita em AS).
BW) A trabalhadora dirigiu-se, no dia 2 de Março de 2018, ao Senhor II para, uma vez mais, abordar questões relacionadas com o cliente A.… e também para, de forma leal e urbana, o questionar sobre se teria acontecido algo na semana em que tinha estado de férias para que tivesse mudado a sua atitude para consigo.
BX) No período em que trabalhou na empregadora, quando a trabalhadora tinha dúvidas procurava esclarecê-las com os seus superiores.
BY) Na conversa referida em BW), a trabalhadora disse ao Senhor II que se o quisesse já tinha saído da Osíris.
BZ) A trabalhadora, após os factos que deram origem ao seu despedimento, continuou a ser uma das pessoas que trabalhava nos dossiers do E.…, M.…, F.…, GN.…, A.…, I.… e IP....
CA) A trabalhadora continuou a trabalhar, quer fosse na agência, quer fosse a partir de casa.
CB) Alguns clientes querem eles próprios seguir os trabalhadores em quem confiam e com quem trabalham há anos.
CD) A trabalhadora, com o seu trabalho, obteve lucros para a empregadora, mesmo tendo maioritariamente como cliente o Estado Português, a quem são atribuídos descontos que podem variar entre os 7,5% e os 19%.
CE) A trabalhadora tinha uma carteira de € 2.000.000,00 de vendas.
CF) A empregadora tem uma política de objectivos e remunerações extra.
 CG) Até à data dos factos que deram origem ao despedimento da trabalhadora, esta era merecedora de confiança que, fruto do profissionalismo, do rigor, da ética e do empenho da trabalhadora, foi extensível aos clientes da empregadora que com ela trabalharam, merecendo sempre a trabalhadora não apenas a sua total e inequívoca confiança, como também os mais diversos e importantes reconhecimentos.
CH) Tudo factos que, para além do valor que aportam à própria, aportaram também sempre grande valor à empregadora, em particular na fidelização desses mesmos clientes.
Cl) Por força da instauração do processo disciplinar e subsequente despedimento, a trabalhadora sentiu-se profundamente atingida, chocada e humilhada com as acusações que lhe foram feitas.
CJ) A partir do ano de 2012, era comum que a trabalhadora prestasse, pelo menos, uma hora de trabalho suplementar por dia.
CK) No dia 8 Janeiro de 2016, dia do seu aniversário e também dia do aniversário da empregadora, a trabalhadora gozou férias no período da tarde desse mesmo dia, a fim de poder estar com a sua família, para depois, prescindindo da companhia daqueles, à noite poder estar no jantar comemorativo do 15° aniversário da empregadora.
CL) Tendo sido inclusive ela a soprar as velas do bolo da Osíris em conjunto com o Sr. II.
CM) A trabalhadora estava sempre disponível para ajudar todos os colegas, bem como, para esclarecer qualquer dúvida técnica, logística, funcional ou outras que fossem do seu conhecimento.

4.  Fundamentação de Direito

Os presentes autos respeitam a uma acção especial de impugnação da regularidade e licitude do despedimento instaurada em 16 de Maio de 2018, tendo o acórdão recorrido sido proferido em 24.3.2021.

Assim sendo, o quadro normativo aplicável, substantivo e adjectivo, é o seguinte:

- O Código do Trabalho de 2009, aprovado pela Lei n° 7/2009, de 12 de Fevereiro.

- O Código de Processo do Trabalho, na versão operada pela Lei nº 63/2013, de 27 de Agosto, com as alterações introduzidas pelas Leis nº 55/2017, de 17 de Julho, e nº 107/2019, de 9 de Setembro;

- O Código de Processo Civil, na versão conferida pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho.

Está em causa na presente revista saber da existência de justa causa para o despedimento da trabalhadora Recorrente.

O despedimento com justa causa é uma modalidade de cessação do contrato por iniciativa da entidade empregadora estando, contudo, vinculada no seu exercício uma vez que o empregador só pode resolver o contrato dessa forma fundamentando a sua decisão num motivo que a justifique, ou seja, baseando-se num comportamento culposo por parte do trabalhador (justa causa subjetiva).

As sanções disciplinares suscetíveis de aplicação pelo empregador estão estabelecidas no art.º 328º do Código do Trabalho, devendo o empregador aplicar sempre aquela que se mostre adequada e proporcional à gravidade da infração e à culpa do trabalhador (art.º 330º do Código do Trabalho) sendo a de despedimento a mais gravosa, uma vez que determina a extinção do contrato de trabalho sem qualquer indemnização ou compensação ao trabalhador.

O princípio da proporcionalidade, consagrado no normativo do artº 330º do Cod. Trabalho, actua em dois momentos, o da escolha do tipo de sanção e o da determinação da medida da punição, sendo esse princípio que “convocado aquando da selecção da sanção disciplinar tida por adequada, orienta e informa o empregador (…) da necessidade de observar... a regra segundo a qual a sanção por que se opte deve corresponder, em termos de proporcional severidade, à gravidade da conduta infraccional, avaliada em si e nas suas consequências, e ao grau de culpa do infractor, ambas aferíveis pelo padrão convencional do homem médio “bonus pater famíliae” e reportadas ao quadro atendível na apreciação da justa causa prefigurado no nº 3 do artº 351º do CT/2009.”[1]

É o princípio da proporcionalidade que, na doutrina e na jurisprudência deste Supremo Tribunal, é convocado para afirmar, em uníssono, que o despedimento-sanção, correspondendo à última ratio das penas disciplinares, reserva-se aos comportamentos culposos e graves do trabalhador subordinado, violadores de deveres estruturantes do vínculo, que reclamem um forte juízo de censura, máxime quando a relação de confiança em que assenta o contrato seja fatalmente atingida, tornando inexigível ao empregador a manutenção do contrato[2].

Em matéria de despedimentos, o Código do Trabalho de 2009, aqui aplicável, regula no artigo 351º os termos em que é lícito proceder ao despedimento de trabalhador.
Nele se dispõe que constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador - que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho» (n.º 1), devendo atender-se para apreciação da justa causa, «no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes (n.º 3), enumerando, exemplificativamente, no n.º 2, um conjunto de comportamentos constitutivos de justa causa.

A noção de justa causa de despedimento, consagrada no artigo 351.º, n.º 1, do Código de Trabalho de 2009, pressupõe um comportamento culposo do trabalhador, violador de deveres estruturantes da relação de trabalho, que pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência do vínculo laboral
A existência de justa causa, segundo jurisprudência unânime deste Supremo Tribunal e entendimento generalizada da doutrina, depende, para além da gravidade das consequências danosas do comportamento, da verificação cumulativa de três elementos:
- um elemento subjectivo, traduzido num comportamento culposo do trabalhador;
- um elemento objectivo, traduzido na impossibilidade da subsistência da relação de trabalho;
- o nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade

O comportamento culposo do trabalhador pressupõe um comportamento, por acção ou omissão, imputável ao trabalhador a título de culpa, sob a forma de dolo ou mera negligência, que viole algum dos seus deveres decorrentes da relação laboral, v.g. o dever de lealdade.
São, assim, elementos do conceito de justa causa de despedimento:
a) A existência de uma conduta do trabalhador que evidencie uma violação culposa dos seus deveres contratuais;
b) que essa conduta seja objectivamente grave em si mesma e nas suas consequências;
c) que por força dessa gravidade seja imediata e praticamente impossível a manutenção da relação laboral.

Os factos integrativos do conceito de justa causa hão de materializar um incumprimento culposo dos deveres contratuais por parte do trabalhador, numa dimensão suscetível de ser considerada como grave, quer a gravidade se concretize nos factos em si mesmos, quer ocorra nas suas consequências.

Para além disso, exige-se que essa dimensão global de gravidade torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, a que a doutrina vem chamando elemento objetivo da justa causa.

Não basta, pois, que se verifique um comportamento culposo e ilícito do trabalhador, sendo ainda necessário que esse comportamento, ainda que constitutivo de infracção disciplinar, tenha como consequência necessária a impossibilidade prática e imediata da subsistência do vínculo laboral.

Nas palavras de Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, Almedina, Coimbra, 7ª edição, 2019, pág. 870, “o comportamento do trabalhador apenas consubstancia uma situação de justa causa para despedimento se for ilícito, culposo e grave e se dele resultar a impossibilidade prática e imediata da subsistência do contrato de trabalho, nos termos indicados. Em suma, perante o comportamento do trabalhador, objectivamente considerado (…) é sempre necessário um juízo de valor, para determinar, em concreto, a gravidade deste comportamento, o grau de culpa do trabalhador e em que medida é que ele compromete o vínculo laboral”.

No mesmo sentido afirma Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 19ª edição, 2019, pág. 729, que “certa infracção poderá constituir justa causa quando, em concreto, se não possa exigir, segundo as regras da boa fé, que o empregador se limite a aplicar ao trabalhador faltoso uma sanção disciplinar propriamente dita, quer dizer, uma medida punitiva que não afecte, antes viabilize, a permanência do vínculo. Retoma-se, assim, a ideia de inexigibilidade que está subjacente ao conceito de justa causa, referindo-se aos instrumentos de defesa da conservação do contrato que são, no terreno disciplinar, a repreensão, a sanção pecuniária, a perda de dias de férias e a suspensão do trabalho com perda de retribuição e antiguidade”.

A impossibilidade de manutenção da relação laboral deve, pois, ser apreciada no quadro da inexigibilidade com a ponderação de todos os interesses em presença, existindo sempre que a subsistência do contrato represente uma insuportável e injusta imposição ao empregador.

Segundo Monteiro Fernandes, ob. citada, 16ª edição, 2016, pág. 482, «o que significa a referência legal à “impossibilidade prática” da subsistência da relação de trabalho – é que a continuidade da vinculação representaria (objetivamente) uma insuportável e injusta imposição ao empregador» e que «[n]as circunstâncias concretas, a permanência do contrato e das relações (pessoais e patrimoniais) que ele supõe seria de molde a ferir de modo desmesurado e violento a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal colocada na posição do empregador».

Maria do Rosário Palma Ramalho, ob. citada, pág. 863-864 debruçando-se sobre a construção jurisprudencial deste elemento da justa causa, afirma que «o requisito da impossibilidade de subsistência do vínculo laboral deve ser reconduzido à ideia de inexigibilidade, para a outra parte, da manutenção do contrato, e não apreciado como impossibilidade objetiva»; «a impossibilidade de subsistência do contrato de trabalho tem que ser impossibilidade prática, no sentido em que deve relacionar-se com o vínculo laboral em concreto»; «a impossibilidade de subsistência do contrato tem que ser imediata”

Na mesma linha de entendimento tem este Supremo Tribunal afirmado em jurisprudência constante que “o despedimento-sanção corresponde a uma situação de impossibilidade prática da subsistência da relação laboral. É a solução postulada sempre que, na análise diferencial concreta dos interesses em presença, se conclua – num juízo de probabilidade/prognose sobre a viabilidade do vínculo, basicamente dirigido ao suporte psicológico e fiduciário que a interação relacional pressupõe – que a permanência do contrato constitui objetivamente uma insuportável e injusta imposição ao empregador, ferindo, desmesurada e violentamente, a sensibilidade e liberdade psicológica de uma pessoa normal colocada na posição do real empregador».

Em síntese, exige-se que o comportamento imputado ao trabalhador seja de tal forma grave e lesivo de valores ínsitos à relação laboral, que torne insustentável, nos sobreditos termos, a manutenção do vínculo contratual.

Deve, contudo, ter-se presente, conforme se referiu no acórdão desta Secção de 4.4.2018, Procº nº 462/09.0TTBRR.L2.S1, citando o acórdão de 12.5.2016, proferido no Procº nº 44/10.4TTVRL.G1.S1, que  «como a relação de trabalho tem vocação de perenidade, apenas se justificará o recurso à sanção expulsiva ou rescisória do contrato de trabalho, que o despedimento representa, quando se revelarem inadequadas para o caso as medidas conservatórias ou corretivas, de acordo com o princípio da proporcionalidade, constituindo portanto o despedimento, uma saída de recurso para as mais graves crises contratuais, o que implica que o uso de tal medida seja balanceado, face a cada caso concreto, com as restantes reações disciplinares disponíveis, no dizer de MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, 11ª edição, Coimbra, págs. 553-554» e prosseguiu-se naquele aresto referindo que «donde ser de concluir que, sendo o despedimento a sanção disciplinar mais grave, só deve ser aplicada nos casos em que o comportamento do trabalhador seja de tal forma grave em si e pelas suas consequências que se revele inadequada a adoção de uma sanção corretiva ou conservatória da relação laboral, sendo portanto necessário que nenhum outro procedimento sancionatório se revele adequado a sanar a crise contratual aberta com a conduta do trabalhador».

Feitas estas considerações, numa aproximação ao caso vertente, como tem sido afirmado na jurisprudência deste Supremo Tribunal verifica-se a impossibilidade prática da subsistência da relação laboral, quando se esteja perante uma situação de absoluta quebra de confiança entre a entidade patronal e o trabalhador, susceptível de criar no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta daquele.

As instâncias divergiram na resposta a dar à questão que constitui objecto do presente recurso.

Assim, perante a factualidade provada a sentença de 1ª instância, concluiu pela inexistência de justa causa e ilicitude do despedimento, conclusão que fundamentou dizendo:
“A questão está em saber se, apesar disso, tais factos são suficientes para chegar à conclusão a que chegou a empregadora na decisão de despedimento.
E a resposta, salvo melhor entendimento, só poderá ser negativa.
Assim, dos factos provados não pode, sempre salvo melhor opinião, desde logo inferir-se, como fez a empregadora, que dos mesmos resulte a quebra irremediável da relação de confiança que deve existir entre o trabalhador e a respectiva empregadora, de modo a justificar-se a aplicação da sanção disciplinar mais gravosa.
É que, haverá que ter em conta o critério da proporcionalidade da sanção a aplicar ao caso concreto.
É certo que ficou provado que a trabalhadora efectuou o cancelamento em causa a pedido de DD, quando este já não trabalhava para a empregadora e sim para uma concorrente, sem consultar a gerência ou qualquer superior hierárquico, daí resultando um prejuízo para a empresa, como resulta das regras da experiência comum, decorrente da perda do cliente.
No entanto, também ficou provado que o cancelamento de reservas pelos técnicos da empresa não determinava o prévio conhecimento ou autorização superior em situações normais, embora houvesse excepções ou circunstâncias concretas que o pudessem determinar.
E que, ao longo de todos os anos em que a trabalhadora trabalhou para a empregadora, nunca foi prática a de, sempre que existisse um grupo e este não se “realizasse”, haver a necessidade de informar as chefias ou a direcção, salvo:
- Se estes já soubessem de antemão que o grupo se estava a “realizar”;
- Se o grupo tivesse passado inicialmente “pelas suas mãos”;
- Ou ainda dada a sua envergadura logística e/ou financeira.
Sendo que, salvo melhor entendimento, a situação dos autos, em face da prova produzida, não se enquadra em qualquer das excepções enumeradas.
Não pode, assim, concluir-se que a conduta da trabalhadora revestisse uma gravidade tal que comprometesse, em definitivo, a relação de trabalho.
Por outro lado, a trabalhadora, ao longo dos seus mais de 13 anos de trabalho ao serviço da empregadora, nunca teve quaisquer atritos ou problemas disciplinares com colegas, inferiores hierárquicos ou seus superiores.
Pautando-se sempre a sua conduta por um elevado grau de profissionalismo e pelo respeito pelas normas respeitantes à actividade profissional que desenvolve, tendo tido sempre um desempenho que pode considerar-se de excelência.
Dando sempre o seu máximo em prol da empregadora e encontrando-se igualmente sempre disponível para o desempenho de todas as tarefas, dentro do âmbito das funções que lhe estavam adstritas, que aquela entendesse dever a trabalhadora levar a cabo.
Sendo, até à data dos factos que deram origem ao seu despedimento, merecedora de confiança que, fruto do profissionalismo, do rigor, da ética e do empenho, foi extensível aos clientes da empregadora que com ela trabalharam, merecendo sempre a trabalhadora não apenas a sua total e inequívoca confiança, como também os mais diversos e importantes reconhecimentos.
Tudo factos que, para além do valor que aportam à própria, aportaram também sempre grande valor à empregadora, em particular na fidelização desses mesmos clientes.
Não resultando, por seu turno, dos factos provados, a existência de quaisquer antecedentes disciplinares.
Assim, ainda que considerasse a conduta da trabalhadora, traduzida nos factos provados, passível de censura, sempre a empregadora poderia ter optado pela aplicação de uma sanção conservatória do vínculo laboral.
Nestes termos, a aplicação da sanção de despedimento ao comportamento da trabalhadora, plasmado nos factos provados, mostra-se desproporcionada à gravidade de tal comportamento, não estando, assim, preenchida, salvo melhor opinião, a cláusula geral constante do nº 1 do art. 351º, do CT.”
Já o acórdão recorrido, tendo considerado que ao factos descritos nas alíneas AF a NA não configuram a violação de deveres laborais pela trabalhadora, concluiu pela existência de justa causa para o despedimento e licitude deste com a seguinte fundamentação:
“Importa, agora, verificar se dos factos acima elencados resulta uma violação culposa e grave dos deveres da trabalhadora.
Entendemos que a resposta deve ser afirmativa.
Embora não tenha resultado provada a obrigação de consulta de superior hierárquico, o cancelamento da referida reserva implicou um prejuízo para a empresa, resultante da perda do cliente, e permitiu a reserva a favor de empresa concorrente.
Foi, na nossa perspectiva, violado, de forma culposa, o dever de lealdade previsto no art. 128°, n° 1-f, do CT.
Perante a gravidade desta conduta e não obstante o bom comportamento anterior da recorrida, entendemos que foi quebrada, de forma irremediável, a confiança que deverá nortear a relação entre entidade empregadora e trabalhadora, o que impossibilita a subsistência da relação laboral.
Ocorre, por isso, justa causa de despedimento”.
Insurgindo-se contra o decidido a recorrente contrapõe que não só não incumpriu com nenhuma ordem ou procedimento, mas, pelo contrário, agiu em consonância com as directrizes em vigor na empresa para os cancelamentos de grupos, inexistindo qualquer comportamento culposo da sua parte e qualquer facto ou argumento que justifique estarmos perante justa causa de despedimento, e que, admitindo como hipótese, a existência de um erro, e um erro de gravidade, o mesmo não pode ser considerado de molde a comprometer a relação de confiança existente entre as partes.

Adiantando a solução diremos que não se subscrevem inteiramente nem uma nem outra posição, ou seja, precisando, nem o entendimento e decisão do acórdão recorrido nem integralmente a argumentação da recorrente. Na verdade,
Havendo a sublinhar que está adquirido para os autos e apreciação da questão objecto da presente revista, por assim ter sido decidido pelo acórdão recorrido, que os factos descritos sob os pontos AF) a AN) da matéria de facto provada não integram infracção disciplinar, revisitando a factualidade relevante para apreciação da questão objecto da presente revista, a mesma pode sintetizar-se no seguinte:
- A trabalhadora, no âmbito das suas funções, que desempenhava ao serviço da empregadora desde 3.11.2004, rinha sob a sua responsabilidade, entre outras matérias, a gestão e controle de consultas e reservas de clientes;
- Durante o mês de Janeiro de 2018, demitiram-se dois trabalhadores da empregadora Ré, sem aviso prévio, e entre 5 e 8 de Fevereiro ouros cinco trabalhadores denunciaram unilateralmente os seus contratos de trabalho, também sem aviso prévio, entre eles o trabalhador DD, que apresentou a sua demissão a 5.2.2018 e teve como último dia de trabalho o dia 9.2.2018;
- Esses trabalhadores, quando saíram da empregadora foram trabalhar para a sociedade “P.…, Lda”, agência de viagens e turismo, constituída em Janeiro de 2018;
- Em 01/02/2018, o referido DD, ainda ao serviço da Osíris, formulou à C.… um pedido de reserva de 50 quartos com pequeno-almoço para o cliente Grupo CM..., para as datas de 22 e 23 de Maio de 2018;
- O cliente em causa já trabalhava com o DD quando este foi trabalhar para a empregadora;
- Em 06/02/2018, a C.… informou a Osíris das condições e preços e, em 7 do mesmo mês, a pré-reserva foi realizada pelo ainda trabalhador da Osiris DD;
-  No dia 07/02/2018, o referido DD reencaminhou os e-mails trocados com a C.… para o e-mail com o endereço DD@gmail.com;
- Em reunião realizada no dia 7.2.2018, com os trabalhadores da equipa de outgoing, o director da Ré, o Sr. II, afirmou em frente a todas as pessoas que se encontravam na sala (cerca de 10) que, entre outras questões, confiava na A., vendo-a como coordenadora do sector Estado, um cliente que englobava vários ministérios, muito importante para a Ré, e a quem a. vinha dando total acompanhamento e atenção, criticando a forma como os ex-colegas da trabalhadora haviam saido da empresa;
- Tendo a trabalhadora, publica e peremptóriamente, afirmado não pretender sair da Osíris e que, caso isso hipoteticamente um dia viesse a pensar fazê-lo, nunca o faria da forma como os seu colegas o haviam feito;
- Em 12/02/2018, pelas 10h06m, o referido DD, reencaminhou os e- mail trocados com a C.… do e-mail com o endereço DD@gmail.com para o e-mail com o endereço DD@P...,Lda.pt;
- No mesmo, pelas 10hl2m, enviou um e-mail à C.…, através do email DD@P...,Lda.pt, para informar que já não trabalhava para a empregadora e que através da “P.…, Lda.”, iria assumir a gestão do Grupo CM...;
- Mais solicitou à C.… que lhe enviasse “todas as condições para a reconfirmação da reserva destes 50 quartos de 22 a 23 May”, solicitando-o com a maior brevidade possível;
- No mesmo dia 12/02/2018, pelas 15h36m, o referido DD insistiu junto da C.… por resposta ao seu e-mail;
- No mesmo dia, a C.… através da sua colaboradora KK, respondeu ao DD e informou-o de que “Estou só a aguardar o cancelamento por parte da Osíris para passar este grupo para a sua nova agência”;
- Como resposta, DD pediu a C.… que pedisse o cancelamento do Grupo Osíris a AA@osiris.pt;
-  Pelas 17h43m do mesmo dia 12/02/2018, o referido DD reencaminhou a troca de e-mail com a C.… para a trabalhadora, referindo “Vê isto e confirma cxl”;
- No mesmo dia 12/02/2018, pelas 22h05m, a trabalhadora enviou um e-mail à C.…, no qual referia “De acordo com o combinado, solicito o cancelamento da reserva”;
- O cancelamento foi realizado pela trabalhadora às 22h05m, a partir da sua residência - para onde, como era comum acontecer, depois de cumprir o seu horário de trabalho nas instalações da empregadora, foi, por determinação e interesse daquela, continuar a trabalhar - e do computador portátil da Osíris que lhe estava distribuído;
- Sem qualquer fundamento e sem consultar a gerência ou qualquer superior hierárquico, pois tal nunca foi prática da empregadora;
- A conduta da trabalhadora envolveu um prejuízo para a empresa;
- O cancelamento de reservas pelos técnicos da empresa não determinava o prévio conhecimento ou autorização superior em situações normais, embora houvesse excepções ou circunstâncias concretas que o pudessem determinar;
- Ao longo de todos os anos em que a trabalhadora trabalhou para a empregadora, nunca foi prática a de, sempre que existisse um grupo e este não se “realizasse”, haver a necessidade de informar as chefias ou a direcção, salvo:
- Se estes já soubessem de antemão que o grupo se estava a “realizar”;
- Se o grupo tivesse passado inicialmente “pelas suas mãos”;
- Ou ainda dada a sua envergadura logística e/ou financeira;
- O cliente em causa já trabalhava com o DD, quando este foi trabalhar para a empregadora;
- Cliente que, desde que o DD saiu para a nova agência, deixou de pedir viagens à empregadora, ligando apenas para fazer alterações em reservas já emitida e em curso;
- Alguns clientes querem eles próprios seguir os trabalhadores em quem confiam e com quem trabalham há anos;
- No dia 14 de Fevereiro de 2018, logo pela manhã, e quando confrontada pelo Sr. II acerca do cancelamento do grupo a trabalhadora de imediato informou o que tinha feito e como tinha feito, tendo igualmente referido que, em momento algum, teve qualquer intenção de prejudicar a sua entidade patronal;
- Na altura assumiu que “(…) com tanta confusão que estava a acontecer no departamento nem se apercebeu que não o poderia ter feito, pedindo desculpa por esse facto”;
- A trabalhadora dirigiu-se, no dia 2 de Março de 2018, ao Sr. II para, uma vez mais, abordar questões relacionadas com o cliente A.… e também para, de forma leal e urbana, o questionar sobre se teria acontecido algo na semana em que tinha estado de férias para que tivesse mudado de atitude para consigo;
- No período crítico vivido na empregadora, por força da saída de vários dos seus colaboradores, a trabalhadora manteve-se, com zelo, diligência e vontade, a desenvolver o seu trabalho;
- Nesse período, todos os trabalhadores que se mantiveram ao serviço da empregadora encontravam-se com imenso trabalho, tendo o seu director-geral solicitado por várias vezes mais (e sempre mais) um esforço suplementar -sem qualquer tipo de contrapartida- embora soubesse que todas já se encontravam a atingir o communmente chamado de “redline”;
- Tendo a trabalhadora sempre correspondido a essas solicitações de forma empenhada, dedicada e profissional, prestando inúmeras vezes trabalho suplementar, quer no escritório, quer a partir de casa;

- À data dos factos que deram origem ao despedimento da trabalhadora, esta era merecedora de confiança que, fruto do profissionalismo, do rigor, da ética e do empenhamento da trabalhadora, foi extensível aos clientes da empregadora que com ela trabalhavam, merecendo sempre a trabalhadora não apenas a sua total e inequívoca confiança, como também os mais diversos e importantes reconhecimentos, tudo factos que, para além do valor que aportaram à própria, aportaram sempre grande valor à empregadora, em particular na fidelização desses mesmos.
Balizada a apreciação pela factualidade relevante, quer quanto à concreta conduta verificada quer quanto ao seu enquadramento e contexto em que ocorreu, dir-se-á, em breve parêntesis, que não é, em nossa opinião, possível afastar em absoluto, como sustenta a recorrente, a relevância disciplinar do seu comportamento, pois que a circunstância de a prática habitual da empresa e o procedimento normal em uso e vigor nesta quanto a cancelamentos de reservas não impusesse, salvo nos casos excepcionais em que a situação sub judice não se integra, o prévio conhecimento ou autorização superior, e a trabalhadora tivesse procedido como sempre tinha procedido até então, não deixa de ser certo que a prática instituída e reconhecida como procedimento a adoptar, que respeita ao funcionamento interno da empresa e se dirige aos seus trabalhadores, abarca apenas as situações normais de cancelamentos de reservas, e não a situação, inusitada e inabitual que se verificou de o cancelamento ter sido solicitado à recorrente por um ex-trabalhador que já se não encontrava ao serviço da empresa, da qual havia saído para ingressar numa outra, constituída recentemente por outros ex-trabalhadores empresa, com idêntica actividade, a impor uma acrescida cautela e prudência no aceder a tal solicitação, dando dela prévio conhecimento e submetendo-a a autorização superior, comportamento que a trabalhadora omitiu e lhe é censurável.
Fechado o parêntesis, independentemente deste entendimento, que não foi aquele em que se alicerçou o acórdão recorrido, e tendo presente que o objecto do recurso consiste em saber se o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento ao concluir pela violação do dever de lealdade pela trabalhadora, e pela licitude do despedimento, conclusão que, equacionando a questão de saber se dos factos elencados resulta uma violação culposa e grave dos deveres da trabalhadora,  alcançou com a seguinte fundamentação:
Embora não tenha resultado provada a obrigação de consulta de superior hierárquico, o cancelamento da referida reserva implicou um prejuízo para a empresa, resultante da perda do cliente, e permitiu a reserva a favor de empresa concorrente. Foi, na nossa perspectiva, violado, de forma culposa, o dever de lealdade previsto no art. 128º, nº 1, f), do CT”.
Para o acórdão recorrido a violação do dever de lealdade, e a infracção disciplinar, resultou, pois, não da inobservância de procedimentos internos da empresa no tocante a cancelamentos mas do facto de o cancelamento em questão ter causado um prejuízo à empregadora resultante da perda do cliente, e de ter permitido a reserva a favor de empresa concorrente.
Contudo, salvo o devido respeito, o que releva para efeitos de apreciação da existência de infracção disciplinar não é o resultado, o eventual prejuízo resultante de determinado comportamento, mas saber se a conduta em si, a actuação do trabalhador que conduziu ao resultado foi ilícita e culposa, se infringiu, deliberada ou negligentemente, deveres inerentes à relação laboral que deveria ter observado na execução do contrato,  pelo que,  constatada, como foi pelo acórdão recorrido, que a actuação em questão da trabalhadora quanto ao cancelamento da reserva foi conforme à prática habitual e procedimentos internos da empregadora na matéria a que estava adstrita e devia obediência, logo não ilícita e culposa, a conclusão, na lógica do acórdão recorrido,  pela violação do dever de lealdade não é de sufragar.
Do mesmo modo, sabendo-se que desde que o DD saiu para a nova agência esse cliente deixou de pedir viagens à empregadora, ligando apenas para fazer alterações em reservas já emitidas e em curso, mas que esse cliente já trabalhava com o ex-trabalhador da Osíris DD quando este foi trabalhar para a empregadora e que alguns clientes querem próprios seguir os trabalhadores em quem confiam e com quem trabalham há anos, é infundado e sem respaldo na matéria de facto provada, atribuir à trabalhadora a perda do cliente e o inerente prejuízo.
De todo o modo ainda, se é incontroverso que se em profissões ou cargos em que a confiança entre as partes é o suporte essencial da celebração do contrato e da continuidade das relações que nele se fundam, em que o dever de lealdade se impõe com particular acuidade e intensidade, nem por isso deixa de ser atendível, na apreciação da existência de justa causa de despedimento, a gravidade do comportamento do trabalhador e da lesão da confiança que nele deve poder depositar o empregador, a apreciar de acordo com um critério de razoabilidade, considerando e entendimento e a sensibilidade de um “bonus pater famíliae” de um empregador razoável, pautando-se este juízo por critérios de razoabilidade, exigibilidade e proporcionalidade..
 Nesta perspectiva, de um empregador razoável, a conduta da trabalhadora, que de modo algum evidencia um “conluio” com o ex-trabalhador da empregadora DD no cancelamento da reserva em causa como sustenta a empregadora recorrida, mas, como se disse, e ao que tudo indica, uma falta de cuidado e desatenção que, apreciada no contexto, de grande pressão de trabalho, em razão, designadamente, da saída da empresa num curto espaço de tempo de 7 trabalhadores, e em que aos que permaneceram ao serviço da empregadora foi solicitado por várias vezes mais, e sempre mais, um esforço suplementar, em que todos estavam a atingir os seus limites, é explicável, se não desculpável, tratando-se de uma trabalhadora de inegável e reconhecido profissionalismo, rigor, ética e empenho no trabalho, trabalhando amiúde fora de horas em benefício da empregadora, aportando-lhe ao longo dos anos em que perdurou a relação laboral sempre grande valor, em particular na fidelização dos clientes, e que, logo após os factos, e com estes confrontada, procurou, com lisura, esclarecê-los, pedindo desculpa pelo sucedido, que não legitima inexoravelmente uma dúvida razoável sobre a idoneidade futura da sua conduta.
Tal conduta, no contexto e circunstâncias, nestas relevando as respeitantes ao comportamento de elevada dedicação à empregadora que a matéria de facto evidencia, em que ocorreu, não tem relevo e intensidade suficiente para que, objectiva e razoavelmente, se possa concluir pela irremediável e definitiva perda da confiança por parte da empregadora, nem para que se conclua que a permanência do contrato constituiria objectivamente uma insuportável e injusta imposição à empregadora, ferindo desmesurada e violentamente, a sensibilidade e liberdade psicológica de uma pessoa normal colocada na posição da real empregadora, e consequentemente, pela imediata impossibilidade de subsistência da relação laboral e, por conseguinte, pela existência de justa causa para o despedimento. Na verdade,
Ainda que se considerasse a conduta da trabalhadora passível de censura não pode afirmar-se que outras sanções menos gravosas não pudessem realizar as finalidades sancionatórias que justificam o ilícito disciplinar laboral, surgindo aqui a sanção de despedimento como desproporcionada.

IV – Decisão
Termos em que se acorda em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido e repristinando-se a sentença proferida pelo tribunal de primeira instância.

Custas pela recorrida.
Anexa-se sumário do acórdão.


Lisboa, 21 de Abril de 2022


Leonor Cruz Rodrigues (Relatora)

Pedro Branquinho Dias

Ramalho Pinto

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[1] Cf., entre outros, acórdãos STJ, de 8.1.2013, Procº nº 447/10.4TTVNF.P1.S1., 22.6.2017, Procº nº 722/08.8TTLRS.L2.S1, 22.7.2017, Procº nº 992/15.5T8PTM.E1.S1, e 4.4.2018, Procº nº 462/09.TTRR.L2.S2.
[2] Acs. STJ, de 5.2.2014, Procº 3197/11.0TTLSB.L2.S1.. 4.4.2018, Procº nº 462/09.0TTBRR.L2.S1, 8.7.2020, Procº nº 19538/17.4T8LSB.L1.S1 e 25.11.2020, Procº nº 2368/18.3.T8CSC.L1.S1, entre outros.