Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04A4491
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PINTO MONTEIRO
Descritores: CONFIANÇA JUDICIAL DE MENORES
ADOPÇÃO
CONSENTIMENTO
CONSENTIMENTO PARA ADOPÇÃO
Nº do Documento: SJ200504070044911
Data do Acordão: 04/07/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 3592/04
Data: 08/11/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - A confiança judicial do menor a casal, pessoa singular ou instituição, fixada no artigo 1978º n.º 1 do C. Civil, com vista a futura adopção, protege o interesse do menor de não ver protelada a definição da sua situação face aos pais biológicos, pois torna desnecessário o consentimento dos pais ou do parente ou tutor que, na sua falta, tenha o menor a seu cargo e com ele viva.
II - Os maus tratos (em sentido amplo), a falta de afectividade do menor para com a mãe, a ausência de relacionamento familiar, designadamente com os irmãos, e o retrocesso físico e psicológico do menor quando entregue à mãe, preenchem o condicionalismo da alínea d) do artigo 1978º n.º 1 do C. Civil e justificam a confiança do menor.
III - Está constitucionalmente consagrado (artigo 36º n.º 6 da CRP) que os filhos poderão ser separados dos pais quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com os filhos.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I - A Santa Casa de Misericórdia de Lisboa requereu a confiança judicial do menor A filho de B, com vista à sua futura adopção.

Contestando, a mãe do menor sustentou que deve ser indeferida a requerida confiança, com o regresso do menor ao seio da família biológica.

O processo prosseguiu termos, tendo tido lugar audiência de julgamento, sendo proferida sentença que decretou a confiança judicial do menor nos termos requeridos.

Inconformada, recorreu a mãe do menor.

O Tribunal da Relação julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida.

Novamente inconformada, recorre a mãe do menor para este Tribunal.

Formula as seguintes conclusões:
- O menor A, presentemente de seis anos de idade (31.03.1998) é filho biológico da ora recorrente;
- O A tem mais três irmãos, dois dos quais vivem com a mãe e o mais velho com o avô materno, a pedido deste;
- O A nunca foi abandonado pela mãe, conforme decorre da sentença do Tribunal de 1ª instância e confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa;
- No cumprimento do acordão da Relação foi o A entregue à mãe e ora recorrente em 15.11.2001;
- Uma ocorrência menos feliz verificada no âmbito familiar, em 14.04.2001, determinou que o A voltasse, de novo, a ser institucionalizado na SCML, sob o pretexto de que lhe tinham sido infligidos maus tratos gravíssimos pela mãe e seu companheiro;
- Os alegados maus tratos deram origem ao processo n.º 1163/02.6TASNT, que corre termos pelo Tribunal de Sintra, no qual ainda só foi deduzida acusação, encontrando-se em fase de instrução;
- No processo supra referido ainda não houve decisão, pelo que temos de presumir que a ora recorrente é inocente, de modo a respeitarmos um princípio constitucional basilar plasmado no n.º 2 do artigo 32º n.º 2 da CRP;
- Havendo essa presunção de inocência, cai por terra um dos fundamentos da causa de pedir da SCML, os alegados maus tratos "gravíssimos" infligidos ao A;
- O Tribunal a quo veio conhecer de factos já julgados em acção anterior - o que lhe está vedado por ter sido formado caso julgado (n.º 1 do artigo 661º e n.º 2 do artigo 678º, ambos do CPC) violando, também, o n.º 5 do artigo 29º da CRP - assim como também se pronunciou sobre questões que não lhe competia apreciar e em objecto diverso (alínea d) do n.º 1 do artigo 668º do CPC);
- O Tribunal a quo fundamentou a sua convicção no disposto no artigo 1978º do C. Civil (confiança com vista à futura adopção), sem que, no caso sub judice, se tivesse verificado qualquer dos requisitos que enformam aquele dispositivo legal;
- O A tem mãe biológica viva, que não consente na sua adopção, sendo certo que nunca abandonou nem pôs em perigo o seu filho, quer por acção ou omissão, a sua segurança, a sua saúde e a sua educação, além de que existem familiares seus que revelam manifesto interesse pelo A (os avôs maternos), pelo que foi violado, igualmente o disposto no artigo 36º n.º 5 da CRP;
- Não foi o A que escolheu ou teve sequer alguma vez possibilidade de escolha no tocante à sua institucionalização na SCML;
- O Tribunal a quo aceita como provados factos que estão por provar, incorrendo no vício denominado de "petitio principii";
- Inexiste prova dos alegados "maus tratos gravíssimos", por o processo relativamente aos mesmos ainda não ter sido objecto de decisão, pelo que o Tribunal a quo não pode conhecer deles nem para tal tem competência;
- As fotografias juntas aos autos são inócuas, não têm rosto nem memória (não se sabe quando, onde e como foram obtidas), além de se desconhecer a identidade das mesmas;
- A apreciação da matéria de facto não pode ter lugar, uma vez que não foi feito registo de toda a prova produzida em julgamento. Daí que o Tribunal da Relação de Lisboa não pode controlar se a motivação indicada para a formação da convicção do Tribunal a quo é ou não merecedora de censura, como também não pode confrontar os depoimentos das testemunhas que serviram de fundamento à convicção do Tribunal;
- Donde se tira que foi igualmente, violado o disposto nos artigos 522º, alínea b) e 721º n.º 2, ambos do CPC e no Dec.-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro;
- A alegada fundamentação de direito da decisão peca por partir de uma convicção íntima do julgador, sem suporte probatório suficiente apurado em audiência de discussão e julgamento, com violação do disposto nos artigos 158º e 659º n.º 2, ambos do CPC;
- Foram violadas, ainda as normas ínsitas nas alíneas a) e b) do artigo 690ºA do CPC, em virtude do Tribunal a quo se ter pronunciado sobre factos que não devia conhecer;
- Foi também infringido o disposto nos artigos 11º n.º 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o artigo 6º n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e maxime o artigo 9º da Convenção sobre os Direitos da Criança.

Contra-alegando a recorrida defende a manutenção do decidido.

O Ministério Público entende dever ser confirmado o acordão.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - Vem dado como provado:

A nasceu em 31.03.98;

É filho de B;

No assento de nascimento é omisso o nome de pai;

B tem mais 3 filhos - C, D e E;

C encontra-se ao cuidado do avô materno;

A nunca viveu com o seu irmão Ricardo;

Conheceu sua irmã D aos 3 anos de idade;

Os pais da requerida separaram-se era esta menor;

B - requerida - tem mais 5 irmãos;

Correu termos processo tutelar relativamente a B - queixa por si apresentada contra seu pai - maus tratos - agredia-a com um pedaço de cabo eléctrico isolado a plástico (batia-lhe com ele na cabeça e corpo), bem como uma lâmina de catana (de chapa na cara);

D e E vivem com os pais - a requerida e seu companheiro - F;

A viveu com a mãe e foi entregue por esta a uma ama durante algum tempo, antes de ter sido admitido, pela primeira vez, na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa;

Em 05.05.99, A, com 13 meses de idade, deu entrada no Hospital de S. Roque da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, através de auto de abandono;

A situação foi apresentada em Tribunal, tendo sido instaurado o processo tutelar n.º 44/99 - 4º Juízo, 2ª Secção do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, através do qual o A foi confiado provisoriamente à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, por decisão de 04.01.00;

A medida de colocação veio a ser transformada em confiança a título definitivo em 08.01.01;

A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa instaurou acção de confiança judicial com vista à futura adopção do A - Processo n.º 141 M/00 do 2º Juízo, 2ª Secção do Tribunal de Família e Menores de Lisboa;

A confiança judicial não foi decretada - decisão datada de 28.02.01;

Atento o mencionado, o A foi entregue ao CAO dos Plátanos, em 24.05.99;

Posteriormente foi transferido para o Lar S. Francisco de Assis, em 15.07.00;

A mãe do A - B - foi informada da transferência;

A mãe do A solicitou visitas a este, no Lar, em Fevereiro de 2001;

As visitas foram autorizadas;

Na primeira visita verificou-se que o A não reconhecia a mãe;

A mãe permaneceu calada, sem qualquer movimento de aproximação física à criança;

Nas restantes visitas, constatou-se a falta de relação mãe e filho;

A despedia-se rapidamente da mãe e ia brincar com outras crianças, nunca se referindo à figura materna;

No âmbito do processo de promoção e protecção n.º 44/99, foram sendo solicitados à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa informações sobre o decorrer das visitas;

A Santa Casa informou o número de visitas, nomeadamente, uma em Junho; 2 em Julho e 3 em Agosto de 2001, sobre o companheiro da mãe, seu comportamento e sobre a falta de elementos para informar como decorriam as visitas;

No processo n.º 44/99, e após promoção do MP, a medida tutelar de confiança do menor à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa foi suspensa, tendo sido determinada a entrega imediata do A à guarda e cuidado da mãe - decisão datada de 14.11.01;

Foi decidido que a integração familiar do A passaria a ser acompanhada pelo EMAT de Lisboa;

O A permaneceu no Lar S. Francisco de Assis até 15.11.01;

Em 15.11.01, o A foi entregue a sua mãe - B - na sequência de decisão judicial;

Os serviços sociais que acompanharam o menor no Lar, comunicaram ao processo n.º 44/99;

Em 19.03.02, o A deu entrada no serviço de urgência do Hospital D. Estefânia;

O companheiro da mãe - F - foi quem levou o menor à urgência;

O companheiro da mãe referiu que o menor tinha caído;

O menor apresentava hematomas na face, ao nível da face - hematomas na região malar e periorbitrária direitas, hemorragia conjuntival bilateral, hematoma do mento e sufusões ao nível dos pavilhões auriculares, de dimensões variáveis;

E ao nível do tronco - lesões de hiperpigmentação residual (face lateral direita e posterior do dorso) aparentemente relacionadas com eventual espancamento antigo;

Foi proposto o internamento do A, mas o companheiro da requerida recusou, regressando no dia seguinte para consulta de oftalmologia e entrevista com o serviço social daquele Hospital;

No decurso da entrevista, o serviço social do hospital tomou conhecimento da situação anterior da institucionalização do menor e foram diligenciados contactos com os serviços sociais da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa;

Após o que, e dada a observação directa do estado em que se encontrava o menor, o serviço social do Hospital D. Estefânia, considerou-o em risco e reportou, em 21.03.02, a situação, ao processo n.º 44/99;

Em 15.04.02, foi revogado de imediato a medida de suspensão de confiança do menor à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e determinada a passagem de mandados de condução do menor - entrega deste, pelas autoridades policiais - à Santa Casa da Misericórdia;

Foram proibidas visitas e contactos com o A e a requerida e o companheiro desta;

O menor foi conduzido, de novo, à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em 16.04.02;

Ao ingressar de novo na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, A foi imediatamente observado na unidade de pediatria do Hospital de s. Roque;

Em exame médico datado de 11.07.02, constatou-se que as lesões cutâneas estavam em fase de desaparecimento e eram indolores;

O A apresentava regularização do controle dos esfincteres, controle que perdera enquanto permaneceu na casa da requerida;

Ao regressar ao Lar S. Francisco de Assis, A reconheceu tudo e todos, notou as diferenças do Lar;

Antes de 15.11.01, A era o típico "bebezão", simpático, socializando bem com os pares e adultos e dormindo sem problemas;

Regressou triste, com um olhar distante, mais irrequieto e agressivo, mostrando indiferença quando magoa alguém;

Chega-se com mais insistência a quem lhe dê atenção, tendo maior necessidade de carinho;

Tem maior dificuldade de concentração;

Tem dificuldade em adormecer e o seu sono não é calmo, chorando frequentemente a meio da noite;

Recentemente, perante um elemento da equipa técnica do Lar, o A verbalizou que as agressões de que foi alvo partiram da requerida e que o instrumento utilizado teria sido um chicote;

O A está a ser acompanhado pelo serviço de pedopsiquiatria da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa;

Foi instaurado processo crime com o n.º 1163/02.6TASNT, a correr termos na 1ª secção dos Serviços do MP de Sintra - maus tratos;

A actual residência da requerida e companheiro é em Casal de Cambra;

O episódio de urgência mencionado foi consequência de a requerida ter batido ao A com um sapato que lhe atingiu a zona dos olhos.

III - Requerida e decretada a confiança judicial do menor, com vista à sua futura adopção, veio a mãe do mesmo recorrer para este Tribunal.

Reafirma a tese de que não estão verificados os requisitos que permitam decretar a medida.

Suscita ainda as seguintes questões processuais-formais:

O Tribunal "a quo" conheceu de factos já julgados em acção anterior e pronunciou-se sobre questões que não lhe competia apreciar;

O Tribunal aceitou como provados factos que estão por provar;

O Tribunal da Relação não pode controlar se a motivação indicada para a formação da convicção do Tribunal é ou não merecedora de censura.

Importa começar por recordar que ao Supremo, como Tribunal de revista que é, só cumpre, em princípio, apreciar matéria de direito e não julgar matéria de facto.

Poderá, contudo, o Supremo pronunciar-se sobre os factos provados se existir erro das instâncias na análise da prova por violação das normas que fixam o seu valor. Ofensa essa que se verifica quando as instâncias atribuíram ao meio de prova um valor que ele não comporta ou deixaram de lhe conceder o seu valor legal (artigos 729º n.º 2 e 722º n.º 2 do C. Processo Civil).

Por outro lado, o Supremo não pode exercer, sem mais, censura sobre o não uso pela Relação dos poderes que lhe são atribuídos pelo artigo 712º do C. Processo Civil, podendo-o fazer sobre o seu uso, mas, mesmo neste caso, a possibilidade de sindicância por este Tribunal não poderá ir além duma perspectiva formal e processual.

Dentro destes limites, vejamos a problemática sobre a factualidade apurada, salientando desde já que a prova no caso em análise se pode fazer por qualquer um dos meios admitidos em direito, não existindo, por outro lado, nenhum meio de prova que imponha conclusões diferentes das que foram tiradas nas instâncias.

No que respeita à impugnação da matéria de facto, entendeu-se no acordão recorrido que a recorrente não indicou que concretos meios probatórios constantes do processo ou da gravação nele realizada impunham decisão diversa da adoptada, estando, por isso vedada a alteração da decisão sobre a matéria de facto.

Tornava-se, realmente, necessário à recorrente proceder a essa especificação para que se considerasse validamente efectuada a impugnação sobre os factos considerados provados (artigos 690ºA n.º 1, alínea b) e 712º n.º 1, alínea a) do C. Processo Civil). A existência ou não de uma das cassetes com a gravação perde assim relevância.

Nem o Tribunal conheceu de factos já julgados ou se pronunciou sobre questões de que não podia tomar conhecimento. Tão pouco aceitou como provados factos que estarão para ser apreciados em processo crime.

No acordão em análise apreciou-se correctamente o que a propósito foi invocado, pelo que em bom rigor nada haverá a acrescentar.

Juntar-se-ão, contudo, curtas notas.

O artigo 674ºB do C. Processo Civil estabelece uma presunção legal da inexistência de factos com base na decisão penal transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados.

Essa presunção é, porém, ilidível mediante prova em contrário. Acresce que a simples falta de prova da acusação não permite formular uma presunção. Sendo assim, em nada se viola a presunção de inocência da ora recorrente relativamente ao processo crime, pelo simples facto de se terem apurado neste processo circunstâncias necessárias ao enquadramento jurídico do que aqui se discute. Não se vê por isso como se pode invocar o artigo 6º n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Não procede igualmente a invocação de caso julgado. Não se deu como provado qualquer facto que, nas mesmas condições de espaço e tempo, tenha sido apreciado e considerado não provado por decisão anterior. Designadamente, no que respeita ao eventual abandono, só vem dado como provado que existiu auto de abandono e nada mais do que isso. Diferente dos factos são as conclusões tiradas, mas isso já se prende com o julgamento em si e não com a pura factualidade.

Não existindo qualquer causa de nulidade impõe-se a apreciação do fundo da questão.

O artigo 1978º n.º 1 do C. Civil fixa os casos em que a confiança de menor a casal, pessoa singular ou a instituição, com vista a futura adopção, pode ser decidida pelo Tribunal. Entre outros, estipula-se na alínea d) que o Tribunal pode confiar o menor se os pais, por acção ou omissão, puserem em perigo a segurança, a saúde, a formação moral ou a educação do menor em termos que pela sua gravidade, comprometam seriamente os vínculos afectivos próprios da filiação.

A confiança judicial protege o interesse do menor de não ver protelada a definição da sua situação face aos pais biológicos, pois torna desnecessário o consentimento dos pais ou do parente ou tutor que, na sua falta, tenha o menor a seu cargo e com ele viva. O processo de integração da criança na nova família poderá assim decorrer com mais serenidade e sem incertezas que poderão prejudicar toda a necessária adaptação - Cons. Gomes Leandro - "O Novo Regime Jurídico da Adopção", pág. 273; "Curso de Direito da Família" - Profs. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, 2ª ed., I, pág. 57.

Em concreto, trata-se de um menor, hoje com sete anos de idade, que é filho da ora recorrente, desconhecendo-se o nome do pai. A criança, quando tinha 13 meses, deu entrada no Hospital de S. Roque da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, através de auto de abandono. A partir daí seguiu-se a confiança do menor à Misericórdia, a entrega a um Lar, a reentrega à mãe e a posterior entrada do menor no serviço de urgência do Hospital com sinais de agressões várias, seguindo-se nova entrega à Misericórdia, tendo inclusive sido proibidas as visitas e os contactos entre o menor e a mãe.

Desde a primeira entrada no Hospital (05.05.99) até à nova entrega à Santa Casa de Misericórdia (16.04.02) decorreram cerca de três anos. Espaço de tempo esse em que o menor regrediu psicologicamente, tornando-se necessário, inclusive, acompanhamento do serviço de pedopsiquiatria.

No preâmbulo do Dec.-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio (que aprovou o novo regime jurídico da adopção) lê-se, designadamente, que a confiança judicial do menor tem como primeira finalidade a defesa deste, evitando que se prolonguem situações em que este sofra de carências derivadas da ausência de uma educação familiar com um mínimo de qualidade.

No caso em análise, o cerne do problema consiste em saber se a mãe do menor está em condições de inverter a situação até hoje vivida pelo filho ou, recorrendo de novo à linguagem do preâmbulo, se existe uma ausência, um desinteresse e uma distância " que não permitem prever a viabilidade de proporcionar ao filho em tempo útil a relação de que ele precisa para se desenvolver harmoniosamente".

Não se questionam, evidentemente, os direitos da mãe biológica, nem sequer o interesse que a mesma possa ter pelo menor, como mãe. A questão está em saber se, tendo em conta o interesse do menor, a recorrente está em condições de lhe proporcionar aquele mínimo indispensável a um crescimento são e equilibrado no seio de uma família.

Dos factos apurados, e que este Tribunal deve aceitar, tem que se concluir que não.

Estão demonstrados maus tratos (embora a recorrente só confesse parcialmente); a falta de afectividade do menor para com a mãe; a ausência de relacionamento familiar, designadamente, com os irmãos; o retrocesso físico e psicológico do menor quando entregue à mãe.

Mostra-se assim preenchido o condicionalismo da referida alínea d) do artigo 1978º n.º 1 do C. Civil, como acertadamente foi decidido.

Nem se diga que os avós maternos têm, "manifesto interesse" pelo menor e que por esse motivo foi violado o artigo 36º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.

Antes de mais, não foi dado como provado o referido interesse. A única coisa que a respeito do avô está demonstrado é que a mãe do menor e ora recorrente apresentou queixa contra o pai por maus tratos, que iam ao ponto de a agredir com pedaços de cabo eléctrico e com a lâmina de uma catana.

Depois, porque o artigo 36º da Constituição expressamente reconhece no seu n.º 6 que os filhos poderão ser separados dos pais quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles, como é aqui o caso.

A adopção, por seu lado, tem guarida constitucional no n.º 7 do mesmo artigo.

Saliente-se que o direito e dever dos pais à educação e manutenção dos filhos (n.º 5 do artigo 36º) é um direito-dever, estabelecido, tal como todos os poderes - deveres, ou poderes - funcionais, fundamentalmente, no interesse dos filhos, não constituindo um puro direito subjectivo dos pais. Princípio esse que subjaz igualmente na Convenção sobre os Direitos da Criança.

Diga-se como nota final que por maus tratos não se entende só a agressão física ou psicológica, mas também "o insucesso na garantia do bem-estar material e psicológico da criança, necessário ao seu desenvolvimento saudável e harmonioso" - Dr. Campos Mónaco - "A Declaração Universal dos Direitos da Criança e seus Sucedâneos Internacionais", Coimbra Editora, 2004, pág. 152.

Esses maus tratos existiram claramente e são de molde a concluir que é a confiança judicial do menor que o protege.

Não há assim motivo para alterar o bem fundamentado acordão.

Pelo exposto, nega-se a revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 7 de Abril de 2005

Pinto Monteiro

Lemos Triunfante

Reis Figueira